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Universidade de São Paulo – Instituto de Relações Internacionais
IV Seminário Discente da Pós-Graduação
Política Externa em Direitos Humanos: Um conceito de intersecção
Por Rodrigo de Souza Araujo
RESUMO:
Este trabalho propõe uma reflexão epistemológica sobre as possibilidades e limites de uma
conceituação para “Política Externa em Direitos Humanos”, discutindo critérios que
permitam uma delimitação do campo e possibilite comparações entre estudos sem, todavia,
restringir demasiadamente sua aplicação e abrangência. Usa-se referência na literatura de
Análise de Política Externa, Política Pública e de teoria Discursiva e discute-se como seus
conceitos podem ser articulados para uma definição de Política Externa de Direitos Humanos.
As principais discussões então são da divisão entre Diplomacia e Política externa, da noção
de “Problema Público” e do uso dos Direitos Humanos como ferramenta discursiva. A partir
dessas reflexões chego a seguinte definição de política externa em direitos humanos como
“as escolhas governamentais implementadas fora das fronteiras nacionais pautadas ou
resultantes da percepção de um problema público a partir de um framing de direitos
humanos”. A sobreposição de referências dos três campos permite uma proposta de definição,
mas, além disso, permite a visualização dos debates e limites que eles impõem, fazendo com
que ao optar por uma definição mais ampla ou restrita tenha-se consciência dos reflexos dessa
escolha no trabalho.
Palavras-chave: Política Externa de Direitos Humanos; Política Pública; Análise de Política
Externa; Direitos Humanos.
1. Introdução
O tema dos Direitos Humanos dentro da área de Relações Internacionais sempre foi objeto
de grande controvérsia. Emilie Hafner-Burton e James Ron (2009) discorrem sobre a
dificuldade de comparação de trabalhos e aferição de resultados dentro desse tema dados
os diversos métodos de pesquisa aplicados, métodos qualitativos tenderiam a apresentar
conclusões mais otimistas do que os quantitativos, gerando um ambiente incerto na
produção de axiomas de ação política. Outro ponto de debate ocorre no que diz respeito
à própria conceituação de Direitos Humanos e políticas de direitos humano enquanto
objetos científicos e suas potencialidades focando na norma, no discurso ou na produção
de resultados materiais. Em trabalhos de política externa de direitos humanos tem-se uma
intersecção mais complexa, somam-se a essas questões os debates e desenvolvimentos do
campo de análise de política externa e política externa brasileira, e o enquadramento dos
debates e conceitos de um sobre o outro.
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Esse trabalho fará um esforço de reflexão e adaptação dos principais debates acerca de
política externa e direitos humanos, discorrendo sobre os recentes desenvolvimentos
conceituais da política externa brasileira e como eles podem se articular com noções de
direitos humanos. O objetivo desse ensaio é discutir o campo da política externa em
direitos humanos a partir desses conceitos, e especular sobre sua especificidade ou
generalização diante de outros temas de política externa. Por fim, apresentar um conceitotentativa de política externa em direitos humanos, que seja amplo o suficiente de modo a
lidar com a polissemia dos conceitos, mas que permita a determinação de critérios claros
para trabalho.
Ao longo dos últimos quinze anos a academia iniciou e tem alimentado debates sobre
política externa brasileira que modificaram sua forma de compreensão e uso pelo
governo, sociedade civil e pela própria academia.
Esses novos debates podem ser enquadrados em três grandes temas inter-relacionados: da
especificidade da Política Externa ou tratamento dos temas de Política Externa como
temas de Política Pública, da especialização dos assuntos e ampliação dos atores
envolvidos, e do processo decisório e sua democratização.
Um dos debates mais prolíficos é o da especificidade dos estudos de política externa e da
sua capacidade de ser compreendida como política pública. Esse debate ocorre nas
Relações Internacionais desde meados do século XX no que diz respeito a participação
ou interesse popular em assuntos de política externa, mas vai além disso tratando da
própria ontologia da política externa como objeto de estudo, que varia de acordo com a
escola teórica em questão, e da compatibilização dessa concepção de política externa com
a de política pública. Maria Regina Soares de Lima (2000) descreve como diferentes
escolas teóricas, no caso realista e idealista, consideram essa questão e como ela foi
evoluindo. Essa discussão da natureza da política externa entra em contato direto com os
outros dois temas pois, saindo do campo da ontologia, o objeto de estudo se transforma
ao longo do tempo de acordo com a evolução político-institucional e assim a discussão
da ampliação do escopo da política externa e de sua democratização estão conectadas com
sua especificidade e seu trato. Carlos Milani e Letícia Pinheiro, dois autores bastante
profícuos na questão do trato da política externa como política pública, entendem a
política externa não pode ser compreendida como um assunto de competência exclusiva
de um único órgão e com um descolamento das noções de problema público e
representação política. Em especial, no atual panorama dos temas de política
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internacional cada vez mais a fronteira entre o doméstico e o internacional se torna turva,
e com isso temas de política externa ganham relevância e impacto doméstico direto, além
de envolver atores de diversas origens, governamentais e privadas. Desse modo os autores
urgem por uma nova visão da política externa, que não se limite aos clamores de
especificidade e exclusividade de seus órgãos centralizadores e contemple sua expansão
em escopo, atores relevantes e processo decisório.
Partindo dessa ideia de ampliação de competências uma série de artigos trata de novas
áreas de atuação da política externa. Com a globalização e um aumento da complexidade
das relações internacionais cada vez mais temas passam a transitar entre as esferas
nacional e internacional. Assuntos domésticos ganham uma perspectiva internacional e
pautas antes exclusivas dos corpos diplomáticos ganham maior interesse e participação
pública, além do surgimento de novos temas de discussão. Migrações, Meio Ambiente,
Segurança e Saúde são alguns exemplos dessa nova agenda de política externa. Esses
novos assuntos exigem então uma especialização dos negociadores e uma participação de
vários órgãos governamentais, o aspecto transnacional desses temas gera um
estranhamento e um sentimento de invasão de searas entre os ministérios, essa
coparticipação pode gerar vários resultados, da fissura entre membros do governo a
cooperação ou cessão de espaço de um órgão para o outro. O que pode ser dito é que
quanto mais frequentes esses casos de pautas políticas transnacionais, maior o grau de
especialização necessária dos órgãos para tratá-los. Esse é o caso da política comercial ou
das políticas de saúde. Mais uma vez falamos de um duplo movimento de
multipolarização dos atores relevantes para a política externa bem como de um esforço
de adaptação e especialização do Itamaraty.
No que diz respeito ao trabalhos sobre o processo decisório em política externa no Brasil,
percebemos esforços em duas linhas, a primeira delas descreve a transformação desses
processos com a ampliação das unidades decisórias, elemento correlato com os demais
temas, assim tem-se um esforço de elaboração de diversos quadros do processo decisório
de políticas específicas na formação de um grande panorama de padrões e tendências do
Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do governo como um todo1. A segunda linha
busca discutir o grau de democratização da política externa a partir da cultura do órgão
centralizador de decisões (MRE), um dos destaques nessa linha é o trabalho de Dawisson
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V. CASTELAN, Daniel Ricardo. (2010). SOUZA, André de M. (2012).
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Lopes que retrata como elementos da cultura institucional do Itamaraty reforçam ideias
de insulamento do ministério e exclusividade no mesmo em assuntos de política externa.
Esses trabalhos mostram, a partir de uma perspectiva institucional e histórica, as
dinâmicas de resistência e abertura do processo decisório de política externa, os avanços
conseguidos e, por vezes, criticam as limitações ainda existentes.
Como destacado por vários dos autores citados os desenvolvimentos da política
internacional e dos arranjos institucionais exigem uma nova epistemologia para os
estudos de política externa, capaz de lidar com os graus de complexidade presentes, nos
voltamos então para os conceitos apresentados nessa discussão a fim de elucubrar sobre
seus desenvolvimentos para a política externa em direitos humanos.
2. Alguns conceitos preliminares
Antes de partirmos para uma análise das peculiaridades da política externa em direitos
humanos cabe uma melhor caracterização dos conceitos utilizados, e das bases para essas
definições.
2.1 Política Pública e Política Externa
Comecemos pelas definições de política pública e política externa, Salomon e Pinheiro
(2013), assim como Milani (2013), em sua definição de política externa partem já do
pressuposto que política externa é um tipo de política pública. Kraft e Furlong (2013) por
sua vez definem política pública como “o que oficiais públicos dentro do governo, e por
extensão os cidadãos que eles representam, escolhem fazer ou não sobre problemas
públicos. Problemas públicos referem-se a condições que o público percebe vastamente
como sendo inaceitáveis e que, consequentemente, requerem intervenção [grifos
nossos]”. Essa definição é bastante apropriada pois permite desde o início uma separação
entre política externa governamental e ação externa de atores privados, sem entretanto
eliminar a influência de atores privados nessas questões.
Desse modo, a ideia de constituency é o que distingue política pública das ações de ONGs,
por exemplo, em questões de política internacional. E ao mesmo o elemento da
representação recupera a ideia clássica da política dos governantes prestando contas e
sofrendo influência de sua base. Essa noção em primeiro lugar evita uma perspectiva
monolítica do Estado ou de interesse nacional, e além disso inclui os atores nãogovernamentais na sua formulação ao reconhecer mecanismos de influência e cobrança.
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Um outro ponto de destaque, é o elemento da percepção de problemas públicos como
gatilho de políticas. Nesse ponto mais uma vez o papel do público é destacado, e a ideia
de percepção coloca como variáveis a sensibilidade do público a questões políticas além
da disputa política por essa percepção, podemos destacar esse aspecto em dois planos, na
arena oficial as discussões legislativas a respeito de um problema público e como ela
envolve diferentes percepções de uma mesma questão, e na arena pública a representação
de novos problemas como problemas públicos, ou diferentes maneiras de percebê-los
buscando a mobilização da chamada opinião pública. Temos a participação de atores
governamentais, bem como de lobistas, ONGs, empresas privadas, etc. Esse ponto da
articulação simbólica e dos elementos retóricos é particularmente importante quando
tratamos da política externa em direitos humanos e será melhor explorado mais adiante.
Desse modo, ainda que reconhecendo a agência internacional direta de atores privados,
ao descrever política externa como relacionada a política pública e constituency
restringimos esse termo à agência estatal.
Salomon e Pinheiro seguem então tratando da especificidade da política externa diante de
outras políticas públicas, essa distinção estaria no “fato de ser implementada fora das
fronteiras estatais, o que pode levar a uma distância considerável entre objetivos e
resultados”. Vale manter em mente que essa definição já carrega em si a de política
externa como política pública, então não estaríamos tratando de todo e qualquer ato ultrafronteiriço, mas daqueles conectados à noção de problema público. Os autores seguem
“embora implementada fundamentalmente fora das fronteiras do Estado, a política
externa resulta e promove arranjos institucionais-burocráticos domésticos diversos, bem
como articulações políticas internas de variadas dimensões”.2
Daí vem sua distinção de política externa dentro da ideia mais ampla de “ação externa”
como “todo tipo de contatos, planificados ou não, de um governo com outro ator fora de
suas fronteiras”. Nesse grupo mais abrangente além da ação política planejada,
influenciada pela constituency e pautada pela percepção de problemas públicos, também
se encontram as relações espontâneas, costumeiras e protocolares. Uma analogia possível
mas imperfeita, seria a distinção entre diplomacia e política externa discutida por certos
autores, em que a primeira diria respeito a atos de representação protocolar do Estado e a
segunda à ação governamental e política dos Estados no exterior. Optamos, entretanto,
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SALOMÓN, Monica & PINHEIRO, Leticia. (2013). p.2
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pela primeira distinção dada a dificuldade de fazer uma separação clara entre
representação e ação política no que tange à percepção de problemas públicos, e às
diversas acepções do termo “diplomacia” que contribuem para essa confusão.
2.2 – Atores de Política Externa
No trato dos atores, para fins de organização do trabalho, recuperamos dois pontos já
levantados. Em primeiro lugar, o da classificação entre atores governamentais ou públicos
e atores não-governamentais ou privados. Ainda que já tenhamos esclarecido nosso
entendimento de política externa como ações de política pública governamental isso não
denota a prevalência exclusiva dos atores públicos no trato da política externa. O que
nossa definição faz é limitar o objeto de estudo ao campo de discussão, planejamento,
elaboração e execução das ações públicas, o que extrapola sobremaneira a esfera
governamental. A discussão da agência concerne os corpos que atuando nesse campo são
relevantes para as ações públicas resultantes. Desse modo, um trabalho sobre política
externa pode se concentrar nos esforços e estratégias de ONGs para sensibilização da
opinião pública numa questão de política externa e seus resultados, destacando, portanto,
atores privados. A prevalência da agência governamental ou privada depende portanto do
recorte realizado no trabalho em questão.
O segundo ponto diz respeito aos atores públicos de política externa, como já dito
anteriormente os esforços de democratização e especialização da política externa tem
levado paulatinamente a uma transformação na formulação de política externa, além de
uma maior influência não-governamental, o Itamaraty tem seu papel centralizador
diminuído com a participação de um maior número de ministérios na discussão,
formulação e execução de políticas. Nesse sentido a discussão de política externa como
política pública contribuiu largamente para essa transformação ao desafiar a sui
generalidade da política externa propagandeada pelo MRE. Assim o número de atores
considerados se amplia. Nesse ponto, vale destacar as várias dinâmicas que podem
ocorrer com essa multipolaridade intragovernamental. Como já elencado anteriormente
as relações entre esses formuladores de política podem variar da coordenação ao dissenso,
quebrando mais uma vez a ideia do estado como unidade monolítica racional e
aproximando-o do conceito de Sousa Santos de estado heterogêneo, em que atores
governamentais reagem diferentemente a um mesmo estímulo externo ocasionando em
respostas contraditórias. Essa heterogenia pode variar com o grau de fragmentação
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política, de polarização dos processos decisórios, e de sensibilidade do problema público
em questão.
2.3 – Política Externa de Direitos Humanos
Por fim, partamos para uma delimitação do nosso objeto principal, política externa de
direitos humanos. Ao tratar dos regimes internacionais de direitos humanos Andrew
Moravcsik(2000) diz “ao contrário de instituições regendo políticas comerciais,
monetárias, ambientais ou de segurança, os regimes internacionais de direitos humanos
não são inicialmente desenhados para regular externalidades políticas surgindo de
interações societais entre fronteiras, mas para responsabilizar governos por atividades
puramente internas [grifo nosso]”, essa afirmação serve como um bom ponto de partida
para discussão da política externa de direitos humanos. A política externa de direitos
humanos, mais do que outros tipos de política externa, trabalha no limiar entre o
doméstico e o internacional, pois implementada em plano internacional ela diz respeito
primordialmente às condições de direitos em espaços domésticos. Desse modo, ao
discutir objetivos, resultados e impactos de uma política externa de direitos humanos eles
podem ocorrer tanto no sentido da contenção de violações no espaço doméstico quanto
da fiscalização das condições de direitos no plano internacional.
Outro ponto central é o da polissemia do termo “direitos humanos”, como colocam
diversos autores é sua abertura/ambiguidade que permite uma grande produção
normativa, mas ao mesmo tempo dificulta a delimitação do conceito. Assim ao tratarmos
de uma política de direitos humanos podemos estar nos referindo a diversos temas e
conteúdos como saúde, educação, trabalho, etc. Além disso, a abrangência do objeto faz
com que sua localização não seja única concernindo a vários órgãos é o caso, por
exemplo, do tema de Migrações que pode ou não ser tratado como questão de direitos
humanos e pode contemplar políticas de diversas esferas demandando uma articulação
interministerial e interinstitucional. Aqui mais uma vez reforçamos a multipolarização
dos atores de política externa e a ampliação de seus temas.
Uma abordagem discursiva pode nos auxiliar a decantar nosso objeto de estudo, nesse
sentido a noção de percepção de problema público retorna como ponto central, bem como
o das várias arenas de discussão. Entende-se o uso do termo “direitos humanos” como
parte de um repertório simbólico que visa a sensibilização de um problema público. Dessa
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maneira a polissemia do termo deixa de confundir e se torna mais um elemento que
privilegia o uso desse arcabouço discursivo.
A articulação de um repertório simbólico é utilizada na dinâmica de discussão, elaboração
e implemento de uma política pública visando dar maior destaque a um problema público,
alterar seu discernimento ou dar maior peso moral a esse problema.
Podemos então ensaiar uma definição do objeto recuperando os conceitos discutidos
anteriormente, chamamos de política externa em direitos humanos as escolhas
governamentais implementadas fora das fronteiras nacionais pautadas ou
resultantes da percepção de um problema público a partir de um framing (ou
utilização discursiva) de direitos humanos.
Com esse crivo saímos da problematização do conteúdo, que é turva dada a difícil
delimitação do tema, e entramos na questão da articulação e sensibilização do problema
a partir da retórica de direitos humanos. Essa delimitação não visa restringir o escopo,
mas estabelecer um critério para a categoria, e permite a inclusão de políticas de conteúdo
menos intuitivo, como políticas comerciais de embargo ou ajuda financeira. Dessa forma
sai-se da discussão de qual o foro ou os atores privilegiados para a discussão da política
externa de direitos humanos, e evitamos uma concepção estática. Possibilitando
comparações das mudanças de canais, instituições e atores de acordo com o tema de
direitos humanos em questão, tratando da continuidade ou transformação da retórica e de
sua audiência3.
Uma vez estabelecida nossa definição conceitual cabe agora discutir sua validade
enquanto categoria teórica e seus problemas frente a conceitos da Política Internacional e
Política Pública.
3. Política Externa de Direitos Humanos e Política Internacional
Salomón e Pinheiro afirmam que a inserção disciplinar da Análise de Política Externa
oscila entre os campos das Relações Internacionais e Política Pública. Nas próximas
seções discorreremos sobre alguns elementos desses campos em relação à política externa
de direitos humanos.
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A formação de alianças, dentro e fora do governo, muda ao tratarmos de temas como sistema
prisional, migrações, gênero, etc.
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Vale destacar, mais uma vez que, o ponto em discussão aqui não é o conteúdo ou a
execução dessas políticas mas como o fenômeno da política externa em direitos humanos
é percebido pelos modelos teóricos e contribui para explicação de problemas.
De acordo com a teoria realista das Relações Internacionais, a ação dos Estados, ou seja
sua política externa, se dá num sistema internacional anárquico e concorrencial visando
a maximização de seus recursos de poder. Nessa perspectiva a fragmentação doméstica
não tem relevância para o estabelecimento da política externa, ela decorre dos
constrangimentos sistêmicos de uma concorrência de soma-zero em que o ganho de um
Estado advém do prejuízo de outrem e portanto é definida pelo interesse nacional de
maximização e manutenção dos ganhos.
Em poucas linhas, trata-se de um modelo teórico estadocêntrico e monolítico, em que os
conceitos de repertório simbólico, sensibilização de problemas públicos e fragmentação
política não tem potencial explicativo relevante. A opinião pública não teria influência
sobre as ações estatais sendo “despreparada, desinformada ou desinteressada” quanto às
mesmas, e mesmo que pleiteasse participação seria constrangida pela lógica do sistema
internacional. O estabelecimento do interesse nacional é relegado ao Estado como
entidade racional ou, em termos menos abstratos, ao líder do governo, que teria condições
privilegiadas para o devido cálculo das condições de poder.
A utilização do arcabouço de direitos humanos na pauta de política externa seria então
um subterfúgio para ação estatal que mascara interesses de poder implícitos. Nessa
abordagem a retórica dos direitos humanos representa um epifenômeno de uma lógica
concorrencial antecedente. Não tem valor categórico em si, pode estar presente na teoria
como ferramenta do jogo de poder mas não possui potencial explicativo das ações
estatais.
No institucionalismo, é principalmente discutido o papel dos regimes internacionais de
direitos humanos. O monopólio estatal dos foros é diminuído, considerando também a
presença de outros atores. Além disso, a escola trabalha com as várias dimensões da
política internacional, comércio, meio ambiente, e direitos humanos avançando para além
do campo da política bélica. Entretanto, o Estado continua apresentando protagonismo, e
a noção de ganhos e efeitos materiais pautando as avaliações, a articulação de uma política
externa de direitos humanos em nada se diferiria de uma comercial ou tecnológica,
perdendo-se aí elementos do campo simbólico típicos das discussões de direitos humanos,
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não se discute framing ou sensibilização. Nesse sentido, ainda que a política externa em
direitos humanos se torne objeto reconhecido, não há conceituação clara e temos incerteza
dos efeitos desses regimes como apontam Hafner-Burton e Ron, Moravcsik e Neumayer.
Uma abordagem das Relações Internacionais mais receptiva aos conceitos apresentados
é a da escola construtivista, notadamente na vertente onufiana. De acordo com essa
perspectiva as ações dos Estados são compreendidas enquanto atos de fala, elementos
discursivos em si. As concepções dos atores não são definidas a priori, tampouco a
estrutura de funcionamento do sistema internacional. Essas seriam construídas a partir do
compartilhamento de visões entre os atores e, portanto, estão sujeitas a transformações ao
longo do tempo. Nesse sentido as noções de repertório discursivo, construção e
articulação de normas, sensibilização e linguagem são todas caras ao modelo teórico.
Além disso, o papel do Estado na política internacional é relativizado, perdendo-se o seu
monopólio e monolitismo, são incluídos novos participantes no modelo, como ONGs e
empresas privadas, e com isso as interações políticas são concebidas em diversos palcos.
Os processos transitam entre o doméstico e o internacional e a definição das políticas é
decorrente dessas variadas interações.
Nesse sentido, o tema dos direitos humanos é providencialmente adequado para o modelo,
dado seus aspectos normativos e discursivos. Sikkink (1993) descreve as normas de
direitos humanos como linguagem comum de uma comunidade de Estados, assim a
promoção de políticas pautadas em direitos humanos refletiria um processo de
reconhecimento e identificação entre esses Estados.
Outros conceitos da abordagem discursiva podem servir de ferramentas para nosso
conceito chave, como por exemplo, a ideia de performance e audiência. Ao tratarmos dos
atores de política externa em direitos humanos como articuladores de um repertório
simbólico retornamos aos conceitos de percepção de problemas públicos, disputa de
significados e protagonismo. Na discussão, formulação e execução de política externa
temos um concurso de visões de um problema e esforços de sensibilização, nesse cenário
os comportamentos dos atores podem ser melhor compreendidos a partir de atos e
estratégias performáticas. Nesse sentido também a problematização da audiência desses
atos é essencial, a partir do recorte metodológico a ser feito a audiência relevante se altera,
e por vezes os próprios atos tem diferentes significados para as diferentes audiências aos
quais eles são submetidos. As estratégias e mecanismos para a sensibilização de um órgão
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governamental podem ser diferentes para a sensibilização de determinado setor da
sociedade. Desse modo, a partir desse campo conceituado um trabalho sobre a variedade
e efeitos dessas estratégias de acordo com sua audiência ganha espaço.
Contrapondo essas abordagens temos que a validade da categoria “política externa em
direitos humanos” varia de acordo com a própria concepção ontológica de política
externa. Numa perspectiva realista a categoria perde valor diante de uma noção de
interesse racional voltado ao ganho material, uma ação de direitos humanos não pode ser
compreendida senão a partir de um interesse material precedente, é um epifenômeno. No
institucionalismo os efeitos da política externa em direitos humanos estariam
predominantemente ligados aos regimes internacionais de direitos humanos, dependentes
da “qualidade” destes, e com resultados ambíguos dados os elementos simbólicos pouco
considerados. Já no modelo construtivista, os elementos simbólico-discursivos dos
direitos humanos ganham destaque, e sua categorização faz sentido diante de políticas
pautadas em outros repertórios. É então um objeto de estudo de mérito. Vale ressalvar
que mesmo com uma visão cética, é válido o questionamento realista de interesses
subjacentes diante do uso da retórica de direitos humanos, para que dentro do aglomerado
de políticas externas de direitos humanos possa-se discutir seus objetivos e resultados,
entretanto como foi dito, essa seria uma questão do conteúdo e execução dessas políticas,
que não procuramos discutir aqui.
4. Política Externa de Direitos Humanos e Política Pública
Uma outra forma de compreender as dissensões apresentadas na última seção é a partir
da visão de problema público de cada uma das teorias. O que a respeito da teoria realista
chamamos de “interesses subjacentes” podemos chamar de “problema público motor da
política”, dessa maneira enquanto para os construtivistas direitos humanos podem ser
percebidos como problema público para os realistas o problema público que desencadeia
a política externa é outro e o repertório de direitos humanos sozinho não é capaz de
promover política externa. Nessa seção seguimos discutindo essa questão da concepção
de problema público e sua percepção em questões de política externa de direitos humanos.
Um dos desafios da compatibilização dos conceitos (política pública, política externa e
política externa de direitos humanos) são os limites de cada conceito. Aqui falamos da
delimitação de problema público e política externa de direitos humanos. Dadas as
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características da política externa de direitos humanos em certos aspectos pode ser difícil
classifica-la como decorrente de um problema público pois sua sensibilidade é variável.
Como já colocamos os atos de política externa de direitos humanos podem gerar impactos
tanto no campo doméstico (contenção de violações, alteração de legislação) quanto no
plano internacional (fiscalização, denúncia e coerção de violadores) nesses dois vetores a
perceptibilidade da questão como um problema público pode variar consideravelmente,
reduzindo então o número de atores sensibilizados à questão podendo mesmo retorná-la
a um grupo centralizado de um único órgão. Os elementos de constituency e
accountability perdem relevância.
O problema do constituency é bastante discutido ao tratar do interesse ou sensibilização
da opinião pública com problemas de política externa. Ou seja, a compreensão de
questões de política externa como problemas públicos. Por se tratarem de questões por
vezes distantes de sua realidade a opinião pública teria dificuldade em perceber questões
de política internacional como assuntos que lhe dizem respeito. Recuperando a citação de
Salomón e Pinheiro o fato de seu implemento se dar além das fronteiras nacionais gera
um distanciamento de objetivos e resultados. Maria Regina Lima trata do mesmo tema ao
levantar os argumentos realistas para desconsideração da opinião pública na análise de
política externa, ao fim de seu artigo entretanto a autora destaca a maior participação e
influência da sociedade ao longo do período democrático. Essa questão da sensibilidade
da opinião pública é particularmente complicada nas questões de direitos humanos, dada
a dificuldade da geração de uma percepção de problema público sobre uma violação de
direitos numa sociedade distante. Isso depende então da mobilização dos atores em prol
dessa sensibilização e do uso de um arcabouço simbólico de direitos humanos para o
mesmo.
A variedade de atos que podem ser compreendidos como política externa de direitos
humanos também dificulta o estabelecimento de uma percepção dessas políticas como a
resolução de um problema público. Nesse sentido o simples estabelecimento de relações
diplomáticas com um estado violador de direitos pode ser entendido como política externa
de direitos humanos, todavia a sensibilidade a esses atos é reduzida a um pequeno grupo
de atores (burocratas de um único ministério), o escopo de agência é limitado e assim
também o uso discursivo dos direitos humanos, enfraquecendo então o argumento de que
o ato advenha de uma percepção de problema público de direitos humanos. Daí ensaiamos
uma conclusão, a percepção de uma questão de direitos humanos como problema público
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é mais forte (analiticamente) e a articulação do repertório simbólico mais provável quanto
maior for a audiência e o número de atores envolvidos no processo.
Continuando nesse exemplo uma outra dificuldade é a distinção da ideia de política
externa e ações externas. Atos protocolares, eventuais ou espontâneos tradicionalmente
fogem da categoria de política externa (como política pública), entretanto, conforme
dissemos, na retórica de direitos humanos tais atos podem representar conivência ou
admoestação a violadores. Daí fica o problema de como caracterizá-los, comportamentos
estatais seriam classificados diferentemente de acordo com o campo discursivo que os
envolve, ou seria necessária a criação de uma ideia de “ações externas (ou diplomacia) de
direitos humanos”?
Uma solução possível para essa questão está de novo em lidar com a questão do discurso
articulado e do recorte de atores realizado. A percepção de um problema público não é
atribuição exclusiva da opinião pública, estando presente nos demais e sendo motivadora
de suas propostas políticas resolutórias. Desse modo, o ponto das dificuldades de
sensibilização permanece, mas a questão essencial é se os atores relevantes na formulação
da política externa percebiam-na como solução de um problema público (ou seja, se
enxergavam uma questão de direitos humanos como um problema público) e se em sua
discussão ou elaboração articularam discursivamente o repertório de direitos humanos
(entendiam como um problema público de direitos humanos).
Vale ressalva que não estamos descartando a validade de uma discussão dos conteúdos
de política externa em direitos humanos, esse é um ponto central de diversos estudos, e a
crítica do uso retórico dos direitos humanos perpassa uma análise valorativa de seus
conteúdos. Uma conceituação pautada exclusivamente no aspecto simbólico pode
mascarar temas que não conseguindo uma sensibilização “humanista” partem para outros
repertórios, quais sejam ambiental, financeiro, burocrático, etc. de outro lado, pode haver
a entrada de outros problemas por meio de uma “roupagem” de humanos, o
“whitewashing” e o uso seletivo. Mas mesmo nesses casos a questão da sensibilização e
o uso retórico ainda compõem o problema, e a solução seria o destaque desse elemento e
não seu descarte. Uma discussão da articulação dos repertórios e dos sucessos e fracassos
de suas tentativas de sensibilização. Além disso, voltando a polissemia, a vantagem do
conceito proposto é que ele busca discutir os potenciais e fenômenos de sensibilização,
ou seja da percepção ou não de questões políticas segundo esse prisma, sem nublar-se na
polissemia toma-a como questão e abraça as diversas interpretações, segundo um quadro
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problematizador. Não caberia ao conceito definir o conteúdo político da Política Externa
em Direitos Humanos, mas as suas variadas audiências, atores e operadores.
5. Conclusões
O propósito desse trabalho está longe de ser a resolução do nosso problema, mas sim de
discutir e articular ideias e levantar questões e desafios para futura elaboração. Trata-se
de um esforço de buscar fontes compatíveis nas Relações Internacionais, Política Pública
e Análise de Política Externa para articulação de um conceito de política externa em
direitos humanos.
Vemos como muitas dessas ideias se complementam e podem oferecer um quadro teórico
interessante para vários casos, mas que ainda assim tem problemas. A utilização de um
arcabouço discursivo tenta resolver o problema da polissemia de direitos humanos, mas
nubla a questão dos interesses subjacentes à utilização discursiva desse vocabulário. De
mesmo modo ela tenta a resolução do problema de abrangência temática ao se focar no
repertório discursivo e não no conteúdo político, o que entretanto dificulta o
estabelecimento do problema público endereçado por essas políticas.
Dado seu caráter eminentemente simbólico, a delimitação e classificação da política
externa de direitos humanos é problemática. Seus elementos normativos têm difícil
assimilação com quadros teóricos materialistas, como a teoria realista, de mesmo modo
sua classificação como política pública também é delicada visto que sua percepção como
problema público não é evidente em todos os casos.
Propúnhamos ensaiar uma definição e fazer uma discussão epistemológica desta. Como
dito não se trata de um trabalho acabado, mas sim de um esforço que deve ser
continuamente testado e ajustado, buscando então criar uma definição clara e prática para
estudos na área.
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BIBLIOGRAFIA
BAXI, Upendra. (2006). “Politics of reading human rights: Inclusion and exclusion
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The Legalization of Human Rights: Multidisciplinary Perspectives on Human Rights and
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Política externa em direitos humanos: um conceito de - IRI-USP