Mesa Temática 11
FEMINISMO NEGRO E TRANSMODERNIDADE DESDE UMA PERSPECTIVA
DESCOLONIAL:
Movimento de Mulheres Negras e a construção de uma perspectiva feminista negra no
Brasil dos anos 1980.
Vivian Souza Alves da Silva – [email protected] – PPCIS/UERJ e LEMTO/UFF1
1. Introdução:
Interessados em investigar os efeitos de longa duração iniciados pela conformação
de um sistema-mundo capitalista moderno/colonial a partir do processo de instauração
da América, autores como Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, filiados à
perspectiva epistêmica descolonial, identificam a classificação social da população
mundial na ideia de “raça” como um dos eixos fundamentais do novo padrão de poder
que inicia sua formação há cinco séculos e que, defendem, continua em atuação até os
dias de hoje. A este padrão de poder denominou-se colonialidade do poder (Quijano,
1992).
A colonialidade do poder não logrou, sabemos, ser recebida passivamente pelos
povos que, racializados, foram agregados no lado subalternado da diferença colonial:
estratégias de resistência frente a esse padrão de relações hierárquicas e desiguais
“surgiram na fundação mesma da modernidade/colonialidade como sua contrapartida”
(Mignolo, 2007: 27). Ao serem desprezadas e invalidadas, as culturas subalternas
puderam prosseguir seu trabalho de subversão em silêncio, na obscuridade (Dussel,
2005: 17). No período posterior a 1945, observa-se, sobretudo nas regiões do sistemamundo onde o pensamento fronteiriço irrompe a partir da ferida colonial, a eclosão de
múltiplos projetos políticos construídos desde o lado subjugado da diferença colonial.
Estes oferecem respostas aos desafios lançados pela Modernidade eurocentrada que se
estruturam não a partir do imaginário cultural colonizado e das estreitas possibilidades
que oferece a racionalidade moderna eurocentrada, mas, antes, das experiências
culturais próprias dos grupos e culturas subalternizados.
1
A autora autoriza a publicação deste artigo em qualquer formato que o Comitê Acadêmico do II
Congresso de Estudos Pós-coloniais e da III Jornadas de Feminismo Pós-colonial definam.
1
Este artigo tem por objetivo, a partir deste panorama, trazer à luz o processo de
construção do ideário político do Movimento de Mulheres Negras (MMN) no Brasil,
compreendendo-o como um entre os tantos questionamentos de ordem epistêmicopolítica que emergem a partir da pluralização e do amadurecimento das lutas sociais
visibilizadas e fortalecidas a partir da metade do século passado. Apresentarei a reflexão
que me leva a crer que este movimento se funda a partir de um “pensamento
fronteiriço”, o que o insere, em alguma medida, naquilo que Enrique Dussel chama de
transmodernidade. Trarei para o texto algumas reflexões das principais intelectuais
ativistas envolvidas no projeto de construção do MMN entre os anos 1980 e meados da
década seguinte, como Lélia Gonzales, Sueli Carneiro e Luiza Bairros, apoiando-me
sobre estas para produzir uma leitura que aproxima a perspectiva epistêmica descolonial
da perspectiva feminista negra que ora começava a ganhar vida.
Se bem que este movimento não tenha teorizado e se pensado a partir de categorias
como colonialidade do poder ou diferença colonial, seu discurso explicita a noção de
que o pensamento e a prática que desenvolvem derivam da experienciação das
permanências, em termos de estrutura de pensamento e práticas sociais, do colonialismo
escravista que vigeu no Brasil por mais de três séculos. Assumo, portanto, a existência
de múltiplas semelhanças em termos de repertório discursivo e horizontes
interpretativos entre este projeto político e a perspectiva descolonial latino-americana
encabeçada por Anibal Quijano, Enrique Dussel e Walter Mignolo.
Devido às limitações de espaço opto por, neste artigo, dividir minha reflexão em três
partes. Iniciarei com uma breve apresentação da perspectiva epistêmica descolonial,
destacando as principais conceituações que formam a base deste “paradigma outro”
(Escobar, 2003). Em seguida, tratarei especialmente dos temas da transmodernidade e
do pensamento fronteiriço, duas conceituações-chave do projeto descolonial latinoamericano. Trarei para esta reflexão, na terceira parte, um panorama acerca da
emergência do feminismo no Brasil dos anos 1960/1970 e da contraproposta
apresentada pelas mulheres negras, já indicando, nesse tópico, a possibilidade de leitura
do Movimento de Mulheres Negras brasileiro a partir das categorias descoloniais, em
especial aquelas destacadas na segunda etapa deste artigo.
2. Perspectiva epistêmica descolonial:
2
A
perspectiva
epistêmica
que
se
organiza
em
torno
de
ideia
de
modernidade/colonialidade pensa criticamente as permanências coloniais no mundo
atual tomando como horizonte histórico o processo de expansão territorial e comercial
dos países ibéricos iniciado no final de século XV. Neste momento, alguns grandes
projetos e estruturas políticas começam a se consubstanciar, entre os quais a América, o
capitalismo
e
a
modernidade,
levando
Aníbal
Quijano
(1991)
a
afirmar,
metaforicamente, que todos “nasceram no mesmo dia”. Isto significa dizer, entre outras
coisas, que a Modernidade se funda sobre uma materialidade específica tornada possível
a partir da expansão territorial ibérica para a região (então instituída como) americana
(Castro-Gómes,
2005).
Esta
“materialidade”,
para
tornar-se
disponível
aos
colonizadores europeus, valeu-se da “articulação de diversas relações de exploração e
de trabalho – escravidão, servidão, reciprocidade, assalariamento, pequena produção
mercantil – em torno do capital e de seu mercado” (Quijano, 1992: 757). O novo padrão
de poder mundial que se forma então, uma “estrutura de poder cujos elementos cruciais
foram, sobretudo em sua combinação, uma novidade histórica” (Quijano, ibid),
caracteriza-se, inicialmente, exatamente por esta articulação. A colonialidade do poder
(id., ibid.) seria marcada, ainda, por um processo de produção de novas identidades
históricas – “índio”, “negro”, “branco” e “mestiço” – impostas “como as categorias
básicas das relações de dominação e como fundamento de uma cultura de racismo e
etnicismo” (id., ibid.). Nesse processo, todos os povos subjugados foram destituídos de
suas próprias e singulares identidades históricas (guaranis, maias, aimarás, iorubas e
tantas outras), e agrupados em torno das novas identidades de origem colonial.
A colonialidade seria o “lado escuro da Modernidade” (Mignolo, 2007c), a face
oculta de exploração, subjugação e expropriação dos povos, territórios e recursos nãoeuropeus necessária ao desenvolvimento da Modernidade europeia. Formada a partir de
1492, a colonialidade se estendeu ao longo desses cinco séculos, rearticulando-se e
adaptando-se aos novos tempos e desafios históricos, até chegar viva aos dias de hoje,
mesmo após a quase completa erradicação das administrações coloniais no mundo pósSegunda Guerra Mundial. O colonialismo global iniciado no final do século XV e
perpetuado durantes os séculos XVI, XVIII e XIX deu lugar ao que o sociólogo
portorriquenho Ramón Grosfoguel (2012) chama de colonialidade global. O autor
entende que “as hierarquias coloniais globais entre ocidentais e não ocidentais que
temos denominado de colonialidade do poder, construídas por 450 anos de
colonialismo, continuam intactas apesar das administrações coloniais terem sido
3
erradicadas” (Grosfoguel, ibid.: 347). As relações sociais extremamente desiguais –
“tanto relações entre Estados como relações entre classes e grupos sociais no interior do
mesmo Estado” (Santos e Meneses, 2010: 18) – geradas pelos projetos coloniais
europeus e, mais tarde, pela hegemonia norte-americana no cenário internacional,
continuaram e continuam atuando, de maneira reconfigurada: “o colonialismo continuou
sobre a forma da colonialidade de poder, [do ser] e de saber” (id., ibid.).
A invenção colonial da ideia de “raça”, conforme já adiantado, seria uma das
características fundamentais e fundantes da colonialidade enquanto padrão de poder
alicerçado sobre uma lógica hierarquizante. A novidade da categoria “raça” não residia
apenas na possibilidade de codificação das diferenças fenotípicas entre as populações
originárias da América e os invasores ibéricos. Estas, aliás, se bem que fossem reais,
não evidenciavam por si só a existência de desigualdades nos níveis de
desenvolvimento biológico e, consequentemente, intelectual, entre uns e outros. O
caráter inédito da ideia de “raça”, e o que a torna uma construção mental especialmente
útil para a dominação colonial, deve-se ao fato de que esta consolida não apenas as
diferenças físicas visíveis entre conquistadores e conquistados numa escala hierárquica,
mas, mais importante, institui supostas desigualdades nos níveis de desenvolvimento
biológico e mental entre estes, criando, assim, uma escala supostamente natural (no
sentido de inata, e não produto de uma construção social) que ia do mais primitivo, o
“bestial”, ao mais desenvolvido, o europeu.
Un rasgo característico de este tipo de clasificación social consiste en que la
relación entre sujetos no es horizontal sino vertical. Esto es, algunas
identidades denotan superioridad sobre otras. Y tal grado de superioridad se
justifica en relación con los grados de humanidad atribuidos a las identidades
en cuestión. En términos generales, entre más clara sea la piel de uno, más
cerca se estará de representar el ideal de una humanidad completa
(Maldonado-Torres, 2007: 132).
Outras formas fundamentais de diferenciação hierárquica, que se ligam à divisão
racial e a fortalecem – entre elas, as categorizações de classe, de gênero e de
sexualidade – estariam em funcionamento dando forma àquilo que Walter Mignolo
(2007) chama de matriz colonial de poder. Nesse sentido, racismo, sexismo,
preconceito social e homofobia não seriam passíveis de serem tratados em separado,
dado que pertencem a uma mesma estrutura de poder. Todas essas, incluindo o
4
eurocentrismo, seriam “ideologias que nascem dos privilégios do novo poder colonial
capitalista, masculinizado, branqueado e heterossexualizado” (Grosfoguel, 2012: 343).
A instituição da classificação da população mundial na ideia de raça não logrou
apenas construir a superioridade étnica de uns homens sobre outros e de umas formas de
conhecimento sobre outras, mas foi capaz, principalmente, de estruturar a transformação
da diferença cultural em valores e hierarquias (Mignolo, 2013). A diferença colonial é o
termo cunhado por Walter Mignolo (2003) exatamente para visibilizar o “lado escuro”
da Modernidade: encarados como “bárbaros”, “primitivos” e naturalmente inferiores,
pensava-se necessário “civilizar”, isto é, impor sobre esta parcela “medíocre” e
“atrasada” da população mundial os modos de pensamento e organização social
tipicamente europeus – esses sim “avançados” e “iluminados”. A racionalidade do
projeto colonial e de seu padrão de poder específico, a colonialidade, ferem os povos
colonizados em sua dignidade não somente por despojar-lhes de suas próprias e
singulares identidades históricas, mas sobretudo por destituí-los de seu lugar na história
da produção cultural da humanidade: pensados enquanto raças inferiores, estes seriam
capazes de produzir somente culturas inferiores (Quijano, 2005: 116). Nesse sentido,
um dos grandes trunfos da colonialidade do poder não é a simples inferiorização e
negação da alteridade, mas, antes, a “[naturalização do] imaginário cultural europeu
como forma única de relacionamento com a natureza, com o mundo social e com a
própria subjetividade” (Castro-Gómez, 2005: 59). Entre os povos que são alvos dos
intentos
catequizadores,
civilizadores,
e
desenvolvimentistas
do
projeto
moderno/colonial emerge aquilo que Mignolo (2003) chama ferida colonial, ou seja, o
“sentimento de inferioridade imposto aos seres humanos que não se encaixam no
modelo predeterminado pelos relatos euroamericanos” (Mignolo, 2007b: 17).
No decorrer do processo de classificação racial, a cada uma das novas identidades
históricas (“raças”) construídas sob a premissa da superioridade europeia foram
associados lugares e papeis sociais correspondentes. Isto dá origem ao que Quijano
(2005) entende como sendo a segunda característica fundamental da colonialidade do
poder – a existência de uma sistemática divisão racial do trabalho – forjada exatamente
sobre a já mencionada articulação, típica do projeto colonial nas Américas, entre as
diversas formas de relações de exploração e de trabalho em torno do capital e de seu
mercado. Uma vez entendidas como raças inferiores, as populações sob domínio
colonial europeu foram associadas às relações não-salariais de trabalho, desenvolvendose, dessa maneira, “entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o
5
trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados
implicava que não eram dignos do pagamento de salário” (Quijano, ibid.: 110). A atual
divisão internacional do trabalho, bem como o fato de que as populações historicamente
compreendidas como inferiores ocupam hoje, em geral, postos de trabalho de menor
renda e prestígio, não podem ser entendidos “sem recorrer-se à classificação social
racista da população do mundo. Em outras palavras, separadamente da colonialidade do
poder capitalista mundial” (id., ibid.).
A colonialidade do poder não limitou seu projeto de dominação, por fim, ao controle
do “novo” território americano, e de seus recursos e populações, pela via militar e pelo
uso da força. A formação de toda uma estrutura de pensamento que, ao mesmo tempo,
justificou e possibilitou os projetos coloniais europeus dos séculos XVI, XVIII e XIX,
bem como o atual projeto imperial norte-americano, foi capaz de colonizar não somente
territórios, mas igualmente saberes e subjetividades. Se a colonialidade do saber
responde à questão da colonização epistêmica/dos saberes, “o surgimento do conceito
de ‘colonialidade do ser’ responde, pois, à necessidade de esclarecer a pergunta sobre
os efeitos da colonialidade na experiência vivida, e não apenas na mente dos sujeitos
subalternos” (Maldonado-Torres, ibid.: 130).
É necessário destacar, finalmente, que a diferença colonial é, ainda hoje, uma
construção viva:
La [colonialidad] se mantiene viva en manuales de aprendizaje, en el criterio
para el buen trabajo académico, en la cultura, el sentido común, en la autoimagen de los pueblos, en las aspiraciones de los sujetos, y en tantos otros
aspectos de nuestra experiencia moderna. En un sentido, respiramos la
colonialidad en la modernidad cotidianamente (Maldonado-Torres, 2007:
131).
Esta, além de reificar o antigo racismo e etnicismo forjados durante a Primeira
Modernidade, constrói igualmente, e de forma bastante poderosa, seus novos
“bárbaros”, portadores de identidades culturais “atrasadas” e “primitivas” que, não raro,
precisam ser “libertados” e “conduzidos à democracia” – ainda que a violência seja o
principal veículo de promoção dessa “libertação” rumo ao “progresso”. A perspectiva
descolonial julga que a sustentação de um projeto de tamanha envergadura requer a
ação conjunta das estruturas da colonialidade do poder, do ser e do saber – ainda que, é
preciso ter em foco, a manutenção de tal projeto esteja sendo a cada dia mais posta em
xeque.
3. Pensamento de fronteira e transmodernidade
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A despeito do sistemático processo de repressão e silenciamento das culturas dos
povos racializados e subalternizados pela lógica da colonialidade, sabemos que “as
ideias não se matam: sobrevivem nos corpos, pois são parte da vida” (Mignolo, 2007b:
35). A memória coletiva reprimida dos grupos dominados sobrevive através de sua
transmissão em níveis mais profundos, em canais subterrâneos, e tem potencial para
eclodir em momentos de reconfiguração do status quo político e social (Pollak, 1989).
Se é possível falar da eclosão, no pós-1945, de projeto políticos críticos à lógica da
colonialidade construídos desde o lado subjugado da diferença colonial, isto se dá
devido ao fato de que “o mundo pós 2ª Guerra Mundial vê instaurar- se [...] o que
Giovanni Arrighi chamara de ‘caos sistêmico’” (Porto-Gonçalves, 2002: 237). Este
caracteriza-se precisamente por ser uma situação de reconfiguração conjuntural, isto é,
do despertar de “poderosas tendências contraditórias” (Arrighi apud Porto-Gonçalves,
ibid.) que abrem espaço para o questionamento das hegemonias até então vigentes e
para o emergir de atores políticos que vinham sendo mantidos nos bastidores. Essas
novas configurações emergentes não estão necessariamente imbuídas, é preciso admitir,
de um ideal libertário que visa à correção das assimetrias de poder construídas externa e
internamente por séculos de imposições/reproduções coloniais/imperiais. Não obstante,
o que se observa é o deslocamento dos sujeitos subalternos do silêncio e da obscuridade
para as arenas cotidianas do embate político.
Apesar da violência – real e simbólica – do processo anteriormente descrito de
marginalização, apagamento, e depreciação das culturas construídas enquanto inferiores
pela colonialidade; podemos observar que estas culturas outras não puderam ser mortas,
mas, aliás, estão “antes vivas, e na atualidade em pleno processo de renascimento,
buscando (e também inevitavelmente equivocando) caminhos novos para seu
desenvolvimento próximo futuro” (Dussel, 2005: 17). Quando algumas destas recusamse à assimilação, abrem, inevitavelmente, caminhos “rumo à rebelião e aos modos de
pensar distinto” (Mignolo, 2007b: 86).
É preciso admitir, dessa forma, que a prática epistêmica descolonial é muitíssimo
anterior ao debate no interior da Academia sobre o giro epistêmico descolonial. Os
nomes de Túpac Amaru, Zumbi dos Palmares, Toussant Louverture e Ottobah Cugoano
são apenas alguns exemplos de ação contrária à hegemonia eurocêntrica, bem como de
reflexão crítica em torno das possibilidades de construção de um projeto de resistência
frente a esta. Em todos esses casos, os personagens citados guardavam uma alteridade
com relação à Modernidade europeia, já que conviviam cotidianamente com sua face
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oculta, a colonialidade. À exemplo destes, os atuais movimentos contestatórios oriundos
de grupos articulados em torno de identidades cujo valor cultural foi sistematicamente
negado e depreciado e/ou que se supunham fazerem parte do passado, hoje em pleno
processo de emergência, não são e não podem ser portadores de “identidades
substantivas incontaminadas e eternas” (Dussel, ibid.). Se tratam, antes, de identidades
entendidas enquanto processos em construção, desenvolvendo-se em paralelo com a
Modernidade, mas sempre como sua exterioridade.
Dessa maneira, hoje, esses projetos políticos assumem os desafios surgidos desde a
Modernidade – no qual estão inseridos como um “afuera relativo” (e a contradição nos
termos é proposital) –, mas procuram oferecer respostas a estes que partam não do lugar
do imaginário colonizado e restrito das possibilidades que oferece a racionalidade
moderna eurocentrada, mas, antes, que tomem como ponto de partida e referência o
lugar de suas próprias experiências culturais, distintas das europeias e norte-americanas
e, por isso mesmo, com capacidade de oferecer soluções que são igualmente distintas.
A transmodernidade, um projeto utópico proposto por Enrique Dussel para a
transcendência da modernidade em sua versão eurocêntrica, se apresenta como uma
“estratégia de subversão político-cultural desenvolvida do lado subalterno da diferença
colonial” (Grosfoguel, 2012: 341):
Ao contrário do projeto de Habermas, em que o objetivo é concretizar o
incompleto e inacabado projeto da modernidade, a transmodernidade de
Dussel visa concretizar o inacabado e incompleto projeto novecentista da
descolonização. Em vez de uma única modernidade, centrada na Europa e
imposta ao resto do mundo como um desenho global, Dussel propõe que se
enfrente a modernidade eurocentrada através de uma multiplicidade de
respostas críticas descoloniais que partam das culturas e lugares epistêmicos
subalternos de povos colonizados de todo o mundo. Na interpretação que
Walter Mignolo faz de Dussel, a transmodernidade seria equivalente à
“diversalidade enquanto projeto universal”, que é o resultado do “pensamento
crítico de fronteira” enquanto intervenção epistêmica dos diversos
subalternos (Grosfoguel, 2010: 481-482).
O pensamento de fronteira a que Grosfoguel faz referência emerge precisamente da
diferença colonial, ou seja, do diferencial de poder existente no contexto
moderno/colonial, que obrigou – na vã esperança de que, ao fazê-lo, pudesse exterminar
toda a diversidade epistêmica – as populações colonizadas a adotarem a gramática da
modernidade eurocentrada. O que ocorreu, mais bem, foi o surgimento de uma
consciência mestiça – não no sentido sincrético2 – portadora de um pensamento que se
2
“Visto desde um olhar eurocêntrico, isto é, a partir do lado dominante, hegemônico da diferença/relação
do poder colonial, estes processos culturais são concebidos como “sincréticos”, pois se assume que há
8
emarcava numa zona cinza entre a epistemologia própria de um contexto cultural
determinado, vitimado pela colonização; e a epistemologia hegemônica eurocêntrica.
O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao
projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade
para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de
fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a
partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado
oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação
descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade
eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma
redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos,
da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas
pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um
fundamentalismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do
subalterno perante a modernidade eurocêntrica (Grosfoguel, ibid: 480-481).
O fato de a modernidade europeia ter afetado e imprimido sobre todas as culturas do
mundo o seu selo hierarquizante e etnocêntrico não significa “que não existam
alternativas ao eurocentrismo e ao ocidentalismo” (Grosfoguel, 2012: 351). As
epistemologias e pensamentos fronteiriços e a transmodernidade são projetos que se
apresentam diante da necessidade real de responder desde a alteridade aos desafios
surgidos a partir da Modernidade, atuando, para tanto, numa relação de “cumplicidade
subversiva com o sistema” (Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007: 20). Ambas as
estratégias assumem o que Dussel (ibid.: 17) chama de “momentos positivos da
Modernidade” – estes, entendidos a partir de critérios distintos, a depender de quem
avalia –, e propõem a superação da lógica da colonialidade – que rege, de maneira
assimétrica, as relações interculturais e interepistêmicas. Tomando-as como ponto de
partida, poderemos repensar para além dos limites estreitos que a epistemologia
moderna eurocentrada nos impõe questões como a democracia, os direitos humanos, a
cidadania e – o que me interessa em particular – o feminismo.
4. Movimento de Mulheres Negras brasileiro: aproximações possíveis entre as
perspectivas descolonial e feminista negra
uma horizontalidade nas relações culturais ali estabelecidas. No entanto, [...] quando olhamos a partir da
perspectiva subalterna da diferença/relação de poder colonial, o híbrido e mestiço representam estratégias
políticas, culturais e sociais dos sujeitos subalternos que, desde posições de poder subordinadas, quer
dizer, a partir de uma verticalidade nas relações interculturais, inserem epistemologias, cosmologias e
estratégias políticas alternativas ao eurocentrismo como resistência às relações de poder existentes.
Chamar estas estratégias de “sincretismo” é um ato de violência simbólica que reduz estes processos ao
mito de uma integração horizontal e, portanto, igualitária, dos elementos culturais em questão”
(Grosfoguel, 2012: 340-341).
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Em uma busca um tanto quanto inocente, orientada com fins didáticos, por traçar
uma genealogia do feminismo, acabei me deparando com um grave problema, que diz
respeito exatamente à questão da depreciação e do apagamento das experiências
culturais localizadas numa exterioridade em relação à Modernidade – assunto de que as
seções anteriores deste artigo vinham tratando. Seria possível para mim, depois de todo
o caminho crítico percorrido nesta reflexão, reafirmar a origem eurocêntrica do
feminismo, creditando seu florescimento a personagens como Mary Wollstonecraft e
Olympe de Gauges? Entendendo este, como o faço, enquanto uma ideologia política que
questiona o papel subalterno e a exploração da mulher na sociedade, me parece mais
correto assumir genealogias múltiplas e difusas para o feminismo. Se bem que enquanto
projeto político e movimento social estruturado este esteja, de fato, mais próximo de
uma origem europeia/norte-americana, ainda não fui convencida de que mulheres
anônimas em várias partes do mundo, pertencentes a distintos contextos sociais e
culturais, furtaram-se em absoluto de teorizar sobre (mesmo que não no sentido
acadêmico) e de se armar de diferentes maneiras contra as formas de opressão que a elas
se impunham.
Minha leitura – que não me é exclusiva, mas, antes, inspirada na visão de algumas
feministas cujo pensamento em grande parte me orienta, como Lélia Gonzales, bell
hooks e Ochy Curiel – não pode ignorar que a consciência da opressão e da exploração
desenvolvida por mulheres colonizadas (pela colonialidade com ou sem colonialismo)
se traduziu em atos de resistência, como a
[...] recusa da escrava em repor a mão de obra, seja pelo reconhecimento do
valor da sua prole como mercadoria, seja por não desejar dar o seio, o
alimento ao filho do senhor, ou ainda para que seu filho não sofresse o
cativeiro. [Estas] são algumas das leituras possíveis do aborto e infanticídio
como formas de resistência. Existem outras, como a recusa da escrava em ter
filhos mulatos, fruto da violência sexual, ou também em ver aumentada com
a maternidade, os seus inúmeros trabalhos e já pesados encargos (Morr,
1989: 94, grifo meu).
Ignorar tais fatos significaria defender uma posição em que apenas as estratégias de luta
típicas do feminismo ocidental/hegemônico são consideradas válidas.
Sustentar uma leitura que desloca o feminismo para fora do centro hegemônico
supõe ampliar e redefinir o leque de significados contido no próprio termo, negando seu
caráter intrinsecamente liberal-individualista e explicitando sua utilidade e validade em
contextos que extrapolam a experiência de mulheres euro-norte-americanas. Conforme
afirma bell hooks (apud Azerêdo, 1994: 212) “(q)ualquer movimento para resistir à
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cooptação da luta feminista deve começar por introduzir uma diferente perspectiva
feminista – uma nova teoria – que não seja informada pela ideologia do individualismo
liberal”. Esse processo, que entendo como uma luta política pelo significado do
feminismo, envolve necessariamente a denúncia do eurocentrismo contido na teorização
e na prática feminista originada no centro do sistema capitalista, e reproduzida, muitas
vezes, por mulheres em situação de privilégio social e racial em outras partes do mundo.
Conforme a crítica de Chandra Mohanty (1984) nos relembra, as práticas
feministas existem no interior de relações de poder – relações que podem ser redefinidas
ou mesmo implicitamente apoiadas por estas práticas. É nesse sentido que muitas
mulheres organizadas em torno de identidades historicamente subalternas colocam na
mesa de diálogo feminista a necessidade de se compreender “gênero” como apenas mais
“uma das formas que relações de opressão assumem numa sociedade capitalista, racista
e colonialista” (Azerêdo, ibid: 207, grifo meu). Lélia Gonzalez, uma das principais
intelectuais ativistas do Movimento de Mulheres Negras brasileiro (MMN),
questionando-se sobre o esquecimento aparente da questão racial por parte do
feminismo brinda-nos com uma reflexão bastante esclarecedora: “a resposta, em nosso
juízo, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e
cujas raízes, nós dizemos, se encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e
neocolonialista da realidade” (Gonzalez, 1988).
O feminismo brasileiro, emergindo num cenário de intenso processo de
modernização capitalista, por um lado, e de forte repressão à organização social, por
outro, viu abrir-se, com a declaração da Década da Mulher pela ONU (1975-1985), uma
margem de manobra para sua articulação que a maioria dos grupos sociais da época não
possuía. Tributária de um contexto de polarização política entre projetos esquerdistas e
conservadores, a primeira década do feminismo no Brasil foi marcada por uma leitura
com forte ênfase no conceito de classes. À esta altura, toda uma tradição sociológica em
torno da existência de uma “democracia racial” no país já havia sido consolidada, ainda
que algumas vozes dissonantes começassem a ganhar espaço. O “mito da democracia
racial”, como era entendido pelos movimentos negros da época, provocou nas Ciências
Sociais do país uma enorme dificuldade em tratar da questão da opressão racial e das
heranças do colonialismo escravista, dificuldade que foi reproduzida também no interior
do feminismo em seus primeiros momentos, levando certos grupos de mulheres negras a
observarem que “na leitura dos textos e na prática feminista” o que geralmente se
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constatavam eram “referências formais que denotam uma espécie de esquecimento da
questão racial” (Gonzalez, 1988).
Nesse sentido, quando organizações de mulheres negras começam a se articular
a partir do interior dos movimentos negros, no fim dos anos 1970, estas não o fazem sob
uma autodenominação feminista: há, aliás, um afastamento proposital do termo, à época
visto com muita desconfiança por homens e mulheres negros. Sueli Carneiro, a respeito
do Encontro de Mulheres Negras de São Paulo ocorrido em 1984, apresenta algumas
razões que nos levam a compreender este afastamento:
“a discussão do encontro apontou as dificuldades de relacionamento entre o
movimento feminista e as mulheres negras, marcado por ressentimentos
históricos e desigualdades latentes. Entre outros motivos, porque, mesmo
oprimida, a mulher branca vem se beneficiando da desqualificação
profissional, moral e estética das mulheres negras e não-brancas em geral.
Seja porque é parceira do homem branco dominador, seja porque encarna o
ideal feminino, seja porque possui a chamada “boa aparência” que, nesta
sociedade, é sinônimo de brancura” (Carneiro, 1984: 13).
Se, por um lado, as mulheres negras encontravam-se às margens do movimento
feminista; por outro, a presença de um ideário machista entre os homens que se
encontravam à frente dos movimentos negros à época, aliada à ideia de que outras
questões deveriam se manter subordinadas à questão racial, entendida como prioritária,
levou a “várias investidas de algumas lideranças masculinas negras para tutelar o
Movimento de Mulheres Negras através de mecanismos de controle que vão desde as
tentativas de enquadramento ideológico do [Movimento], passando por várias formas de
desqualificação da importância política do mesmo” (Carneiro, 1993: 15).
Sem espaço de protagonismo nos movimentos feministas e negros, as mulheres
negras organizadas se deram conta da necessidade da criação de seus próprios espaços
de discussão e luta política. Sua autonomização em relação aos movimentos negros e
feministas não depôs estes, contudo, de sua posição enquanto principais interlocutores
do MMN:
vêm sendo construído um movimento específico, cuja originalidade reside no
fato dele surgir determinado pela ação política de dois outros movimentos
sociais, o Movimento Negro e o Movimento Feminista, e buscar redefinir a
ação política destes dois movimentos em função da especificidade que o
inspira: o ser negra. Assim, o Movimento de Mulheres Negras nasce
12
marcado pela contradição que advém da necessidade de demarcar uma
identidade política em relação a esses dois movimentos sociais de cujas
temáticas e propostas gerais também partilha e que, em última instância,
determinam a sua existência e ambiguidades. Estas condições impõem a
discussão sobre os fatores que justificam a necessidade de organização
política das mulheres negras, a partir de suas especificidades, e ainda
investigar no que estas especificidades consistem. (Carneiro, 1993: 14, grifo
meu).
Dado este contexto, o MMN, a exemplo do movimento feminista, enxerga as
hierarquias de gênero; mas, em realidade, acaba por enxergar para muito além destas,
caminhando em direção a uma compreensão de que “raça, gênero, classe social,
orientação sexual reconfiguram-se mutuamente formando [...] um mosaico que só pode
ser entendido em sua multidimensionalidade” (Bairros, 1995: 461). Esta ideia de
mosaico, me parece, está fundamentalmente ligada à proposição descolonial que afirma
a existência de uma matriz de poder colonial. É por esse motivo que “um feminismo
negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas –
como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o
racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria
hierarquia de gênero em nossas sociedades” (Carneiro, 2003).
O frontal embate contra o silenciamento sobre a opressão racial e contra a ideia
da existência de uma democracia racial no Brasil – empreendido não só pelo MMN em
relação ao feminismo hegemônico, mas igualmente pelos movimentos negros mistos de
maneira mais ampla – pode ser entendido como uma “estratégia de visibilização e
rearticulação da diferença colonial” (Walsh, 2007: 57). Esse tipo de posicionamento
“não transcende simplesmente a diferença colonial, mas a visibiliza e rearticula em
novas políticas da subjetividade” (id. ibid.), na medida em que, organizados enquanto
grupo político, e valendo-se da categoria colonial, negras e negros decidem escancarar a
ferida colonial e ressignificar os sentidos atribuídos à sua “raça”:
SOMOS NEGRAS - e o que nos diferencia das demais mulheres não é só a
cor da pele, mas a IDENTIDADE CULTURAL. E é para resgatar esta
identidade de MULHER NEGRA, que precisamos nos organizar a parte sim.
Aprofundar as questões específicas, perceber onde, como e quando somos
oprimidas e partindo deste específico participarmos mais fortalecidas da luta
geral (Nzinga Informativo, 1988: 2).
13
Os anos 1990 expuseram uma mudança de postura por parte do MMN quanto à
sua própria autodenominação, levando algumas mulheres pertencentes aos seus quadros
a falarem em “feminismo negro” já em meados da década para referirem-se ao
movimento a que pertenciam (Lemos, 1997). Ainda é preciso, no entanto, um estudo
mais profundo para que possamos compreender, no caso brasileiro, de que maneira se
deu a passagem da identidade coletiva do Movimento de Mulheres Negras para a do
Feminismo Negro. Independente do que se virá a concluir sobre esta questão, tal
mudança de postura parece indicar um aceite dos “momentos positivos da
Modernidade”, no estilo dusseliano; isto é: aceitando como válidos os aportes
oferecidos pelo feminismo em sua versão hegemônica, mas ampliando e redefinindo a
partir de suas próprias experiências culturais e cosmologias as possibilidades contidas
no termo, engajando-se, assim, na luta pelo significado político da ideia de
“feminismo”.
Como intelectuais críticas localizadas na fronteira entre a cultura própria do
povo negro e mestiço, e a cultura branca dominante, as mulheres negras envolvidas na
construção do MMN parecem manejar a escolha “dos instrumentos modernos que serão
úteis para a reconstrução crítica da sua própria tradição” (Dussel, 2005). Posicionandose enquanto feministas, essas mulheres afastam-se de um fundamentalismo
antimoderno, que credita à modernidade eurocentrada a invenção de uma ideologia de
combate à exploração e subjugação das mulheres; ao passo que inserem suas próprias
perspectivas, interpretações e experiências no projeto feminista, enchendo-lhe de um
significado que em muito exacerba os alcances reais e pretendidos do feminismo
eurocentrado. Nesse sentido, entendo que a construção de uma perspectiva feminista
negra no Brasil, emergindo de um pensamento crítico de fronteira, em muitos sentidos
se aproxima da transmodernidade, enquanto projeto que visa a descolonizar as relações
entre a modernidade eurocentrada e sua alteridade, proposta por Dussel.
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