LEITORES DE MONTEIRO LOBATO: UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS DE LEITURA Autor: Marco Antonio Branco Edreira Instituição: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP Introdução Este trabalho é parte da pesquisa para dissertação de mestrado, ainda em andamento, sobre práticas de leitura produzidas por leitores de Monteiro Lobato. O objetivo é a compreensão das práticas de um conjunto de leitores do autor a partir da caracterização das estratégias1 do autor/editor, da instituição escolar e das táticas dos leitores2. As fontes utilizadas nesta pesquisa são 246 cartas de leitores de Monteiro Lobato arquivadas no IEB – Instituto de Estudos Brasileiros – da USP, no arquivo Raul Andrada e Silva. Elas fazem parte do Dossiê Monteiro Lobato e foram agrupadas como Correspondência Passiva do autor, no conjunto de Cartas Infantis. Foram enviadas entre 1932 e 1946 por remetentes na faixa etária de 6 a 18 anos, procedentes de todas regiões brasileiras, mas principalmente da região Sudeste - Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Estes documentos têm muita importância para o conhecimento de práticas de leitura do período, pois grande parte do que se sabe sobre estas práticas não tem como fonte de estudo as produções do leitor, considerando apenas questões externas a ele - como o número 1 Os conceitos de estratégia e tática foram utilizados a partir de Michel de Certeau. Quanto à estratégia, o autor assim a define: “Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa)”. In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. São Paulo, Vozes, 1994, p. 99. 2 “... chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. (...) Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas”. In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. São Paulo, Vozes, 1994, p. 48. de livros impressos, os livros existentes nas bibliotecas, os discursos educacionais etc. Analisar estas cartas é procurar compreender as apropriações dos leitores a partir de seus próprios discursos e sua relação com as estratégias do autor. Destaca-se ainda a importância das cartas por procederem de “leitores comuns”, isto é, “desconhecidos”, que nada têm de “extraordinário” (Darnton, 1996, p. 144). Este tipo de leitor está quase sempre fora do conjunto de estudos sobre práticas de leitura. Neste trabalho serão assinalados alguns traços das estratégias autorais e editoriais, obtidos através da bibliografia sobre o tema, e alguns aspectos das apropriações táticas empreendidas pelos leitores, assinaladas nas cartas através das quais se corresponderam com o autor. As estratégias autorais e editoriais de Lobato É sobre o escritor que se concentra a maior parte dos estudos sobre Lobato, permitindo a ampla compreensão de suas estratégias autorais. Aqui, serão destacadas apenas algumas consideradas de maior relevância. A primeira é a construção de uma obra infanto-juvenil a partir de três tipos de livros, podendo ser dividida em três conjuntos: obras de fantasia, didáticas e recontadas (Penteado, 1997, p. 170). Assim, um livro como Reinações de Narizinho – fantasia - pretende contar aventuras envolvendo os personagens que compõem o universo do Sítio do Pica-pau Amarelo. História do Mundo para Crianças – didática -, ao relatar a História, pretende, mais do que narrar aventuras da turma, servir à compreensão da história da humanidade. Já num livro como Fábulas- recontada - a turma fica apenas como pano de fundo, fazendo comentários aos textos. Esta divisão ajuda a compreender diferentes funções dos textos do autor e estabelece marcos de sua produção. Outro traço da obra lobatiana é a reescrita dos textos. Em Reinações de Narizinho, publicado em 1931, diversas histórias escritas ao longo da década de 1920 foram reescritas a fim de comporem o livro. Lobato também aboliu as fronteiras entre fantasia e realidade. A turma do Sítio passeia por diversos universos da Literatura, da História e da Geografia como sendo parte da mesma totalidade. Este é um dos traços pioneiros do autor (Coelho, 1983, p. 181). Esta falta de limite entre fantasia e realidade é evidenciado por outro aspecto, que é o da intertextualidade. Esta é caracterizada pela utilização de textos ou de características deles dentro de outra obra. Assim, no caso de Lobato, vê-se os personagens dos contos de fadas passeando no Sítio de Dona Benta e seus personagens visitando o país das fábulas ou a Grécia de Hércules, por exemplo. De certa maneira, todo texto parece ter um certo grau de intertextualidade, uma vez que toda obra parte do que já foi feito anteriormente, mas em Lobato esta relação com outras histórias é constante e motor de muitas, como Os Doze Trabalhos de Hércules e O Minotauro. Há também em Lobato uma preocupação com a linguagem que usará com o leitor infantil. Procura uma linguagem acessível capaz de atrair o leitor, procurando diferenciar-se dos livros infantis produzidos à época (Koshiyama, 1982, p. 88). Ao considerar as estratégias de Lobato, não basta apenas a análise de seus textos, levando em conta o conteúdo de seus livros e sua preocupação com a escrita e a linguagem. Há em Lobato algo especial, que não costuma estar presente na biografia de muitos escritores: além de autor dos seus livros, foi também, por algum tempo, seu próprio editor. E mesmo depois que abandonou a função direta de editor, nem por isto deixou de ter influência no campo editorial. Pode-se dizer que Lobato fazia livros e não apenas escrevia textos. Participou em alguns momentos de sua produção de todo processo editorial, inclusive da distribuição. É na conjunção destas funções complementares que sua estratégia deve ser compreendida. Não pode ser considerado apenas escritor ou apenas editor, pois uma função pode determinar a outra, uma vez que um livro não é somente o texto, mas a materialidade resultante da produção editorial e gráfica (Chartier, 1991, p. 178). Koshiyama, em seu estudo sobre Lobato, aponta uma relação direta entre as duas funções: “Para Monteiro Lobato, editar livros no período 1918 - 1930 foi também um meio de divulgar sua obra de escritor. Enquanto outros escritores iniciantes dependiam da acolhida dos poucos editores ligados às casas estrangeiras para publicar livros, Monteiro Lobato tornou-se o empresário de sua produção intelectual. E, ao procurar negociar sua produção intelectual, Monteiro Lobato buscou inovações para a empresa do livro no Brasil.” ( p. 67) Atuando como editor, Lobato preocupou-se com diversos aspectos da produção do livro, como por exemplo, os aspectos gráficos: “Objetivando cativar e conquistar um número cada vez mais amplo de leitores, contrata artistas para ‘susbstituir’ as monótonas capas tipográficas pelas capas desenhadas, tornando seu produto mais atraente aos olhos do consumidor. ‘Os balcões das livrarias encheram-se de livros com capas berrantes, vivamente coloridas, em contraste com a monotonia das eternas capas amarelas das brochuras francesas’.” (Azevedo et al, 1997, 130-131) A produção do livro, no entanto, não esgotou a atuação de Lobato como editor e gráfico. Como fica demonstrado em algumas cartas ao amigo Godofredo Rangel, o importante era fazer o público gostar do livro; em outras palavras, adquiri-lo. Neste sentido, a frase seguinte resume seu trabalho editorial: “Editar é fazer psicologia comercial” (Lobato, 1972, p. 299). A venda como o grande objetivo é patente em inúmeras cartas. No início da carreira, comentando defeitos em um livro publicado, explica porque continuava vendendo-o: “Por que o reedita então? Porque se vende. Já que o publico é besta, toca a explorar o publico. Mas isto cá só entre nós. Com os outros eu me tomo a serio e com a maior gravidade”.(Lobato, 1972, p. 182) Para conseguir as vendas, de acordo com alguns autores (Hallewell, 1985; Koshiyama, 1982), adotou formas de distribuição inovadoras para a época, como a consignação para comerciantes não ligados ao setor livreiro. Paralelamente buscou o caminho tradicional, como o vínculo com a instituição escolar. Em 1921, fez um negócio com o Governo do Estado de São Paulo em que vendeu milhares de exemplares da edição de “Narizinho Arrebitado”. As cartas ainda apontam que o autor também dava os livros àqueles que lhe pediam, o que também poderia ser tomado como uma estratégia de distribuição. As táticas dos leitores As estratégias apresentadas acima apenas permitem caracterizar, de modo muito geral, o universo no qual se move o leitor de Lobato, estabelecendo um quadro que orientou as diversas práticas de leitura. Entretanto, esta orientação não determina os modos de ler (Chartier, 1991, p. 179-181). Através da análise das táticas dos leitores em conjunto com as estratégias do autor e de outras instituições, como a escola, é que se pode obter uma compreensão melhor destas práticas. Assim como em relação às estratégias, serão apresentados apenas alguns aspectos das apropriações apontadas nas cartas dos leitores, mas que podem dar uma idéia da importância deste recorte. Onde lêem Um dos aspectos evidenciados em algumas cartas é o lugar em que as leituras foram feitas ou em que foram discutidas. A maioria das que fazem referência a este aspecto é oriunda de alguma instituição escolar, dando pistas de que entre as leituras nela feitas incluise a obra de Monteiro Lobato. Entretanto, ainda é necessário investigar se estas leituras ocorrem durante as aulas ou preponderantemente em horas de leitura livres nas bibliotecas e clubes de leitura, ou ainda como atividade extra-escolar. Infelizmente não são muitas as que remetem a outros espaços de leitura – apenas quatro das que não têm origem escolar. Tomo duas destas cartas como exemplo da exposição desta tática. Ambas foram enviadas pela mesma leitora, de São Paulo, em 1932 e 1934, quando tinha dez e doze anos, que nos informa explicitamente o lugar onde a leitura de um livro de Lobato é feita. Foi, ainda, enviada uma foto mostrando a leitura das crianças, que infelizmente não chegou até o arquivo. A primeira foi enviada em seu nome e de outros três irmãos - de cinco, sete e oito anos. Além de fazer comentários sobre os personagens, relata as leituras feitas no “sítio” para onde costumavam viajar, comparando-o ao reino maravilhoso que é o Sítio descrito e narrado por Monteiro Lobato. Explicando a foto enviada, comenta que, através dela, ele pode vê-los "...no reino maravilho por onde viajam seus pequenos leitores". Aqui, há uma identificação total com o Sítio de "Reinações de Narizinho", que é o livro a que ela se refere, pois, para ela, ler num "sítio" é como estar mais presente nas histórias que estão sendo lidas, é fazer parte mais diretamente do reino maravilhoso das histórias. Dois anos depois, a cena ainda é presente. Lembrando da foto enviada na primeira carta, ela diz que é possível vê-la "...em flagrante delito de imaginação, a solta lendo os adoráveis contos daquele país". Há até uma expressão dúbia confundindo ainda mais os dois sítios - o que freqüenta e o das histórias. A menina relembra que quando ia para o sítio vivia "...horas agradáveis no Reino das Maravilhas".Qual dos dois sítios é o "Reino das Maravilhas"? Sua identificação com as histórias é tanta, que ela pede para "viver" no próximo livro com a "turma de Dona Benta". Como os livros chegam às mãos dos leitores Devido às características próprias à faixa etária em estudo, não é difícil perceber que o acesso aos livros dependia quase sempre de outras pessoas, os adultos. As cartas apontam algumas formas de aquisição dos livros ou de como foi possível ter o livro em mãos para a leitura. Uma das formas possíveis é ser presenteado. Alguns remetentes dizem ter ganhado seus livros. A ocasião em que dois foram presenteados demonstra a importância do livro para estes leitores. Uma é exemplar, pela intensidade emocional da carta. Ela relata que “Papai Noel” prometeu-lhe História do Mundo para Crianças, mas no dia do Natal, havia outro livro “no sapato”. Afirma ter ficado muito triste e ter se acalmado somente quando sua mãe consolou-a dizendo que daria o livro desejado no Dia de Reis. Alguns presentes revelam a dificuldade de acesso aos livros em algumas cidades, como uma leitora de Sorocaba que afirma ter ganhado de uma tia de São Paulo. Apesar da dependência dos adultos, alguns leitores demonstram uma certa autonomia comprando eles mesmos os livros, ainda que possivelmente dependam dos pais para obterem dinheiro. Outros referem-se a passeios à livrarias para adquirir os livros desejados. Uma leitora de Botucatu, em 1937, diz ter procurado por todas as casas comerciais da cidade sem ter encontrado. Vale notar que ela não se refere a livrarias, mas a “casas comerciais”, indicando que a venda de livros não ocorria somente nas livrarias e a estratégia de Lobato de pode ter sido bem sucedida. Outra forma de acesso aos livros é o empréstimo. Algumas vezes ele é de familiares, outras ocorrem na escola, através da biblioteca ou do clube de leitura. Um leitor, entretanto, depois de dizer que não pode “comprar estes livros boníssimos”, esclarece que os empresta da diretora do grupo escolar. Há uma forma, contudo, presente em grande número de cartas: pedir o livro diretamente ao seu autor. Esta é uma forma de ganhar o livro, mas bem diferente das anteriores, pois revela a relação direta com o autor da obra, dando um novo significado ao ganhar, como atesta uma leitora paulistana em 1944: “... foi o melhor presente que recebi em minha vida mesmo porque veio de suas mãos”. Nas escolas, muitas turmas de alunos pedem livros a Lobato e em algumas consta o recebimento, através do agradecimento feito. Mas não é só através do universo escolar que esta forma de aquisição está presente. Cartas de origem particular também revelam o agradecimento prestado pelo livro enviado pelo autor. Alguns dizem que querem pagar pelos livros, outros, entretanto, pedem justamente por não terem dinheiro. Relação pessoal com o autor É possível perceber num conjunto grande de cartas um tom marcadamente pessoal. Muitos leitores têm necessidade de apresentarem-se para o autor. Através destas apresentações é possível conhecer alguns aspectos da vida pessoal dos remetentes que vão além da leitura da obra do escritor. Os principais aspectos comentados referem-se à família, à prática de alguma atividade artística e a aspectos do comportamento – como, por exemplo, uma leitora mineira de cerca de 11 anos que enviou uma carta em 1945 dizendo ser “...das tais meninas que o senhor aprecia, isto é, ‘das meninas bastante corajosas para dizerem o que pensam’, como disse o senhor em uma de suas cartas (...)Digo ou não digo o que penso? Não tenho medo de Zeus nem de Hera nem de ninguém”. Outro aspecto relativo a este caráter pessoal é a necessidade demonstrada por inúmeros leitores de estabelecer um contato com o autor. Este contato freqüentemente ocorre através da troca de fotografias. São muitos os leitores que afirmam ter recebido uma foto de Monteiro Lobato. Alguns também dizem ter enviado a sua. Uma leitora carioca de 12 anos, em 1937 envia uma carta em que é evidente a importância da fotografia como forma de contato com o autor. Ela diz que pediu sua foto, pois “queria ter a honra de possuí-lo em minhas mãos” e justifica o envio da sua, dizendo: “achei que o senhor merecia”. Para mais de um leitor, ter uma foto é “como conhecê-lo pessoalmente”. Personagens A referência às personagens do Sítio está presente em quase todas as cartas. Nelas, os leitores nos dão idéia de como vêem cada personagem. Em muitos casos há uma identificação profunda com eles, como demonstram várias delas, que tratam as personagens como seres reais. Uma leitora, da qual não se sabe nem a idade nem a procedência, convida a turma do sítio para seu aniversário para poder conhecê-los pessoalmente. O maior exemplo é o de um leitor que, pelo que indica a letra, é recém-alfabetizado. Ele diz que um tal de Edgar contoulhe que uma empregada de Lobato havia varrido Emília para o lixo e só soube que era “peta” quando ela apareceu no novo livro. Há outra carta que contrapõe esta visão. Ao invés de alimentar o caráter real das personagens, lamenta não poder ser verdade: “Quisera eu conviver com eles, todos ao menos um dia, uma hora, devia ser tão engraçado, tão bom. É pena que eles não existam”. É interessante notar que Lobato alimenta esse caráter real, escrevendo algumas cartas em nome dos personagens ou contando como eles estão. As táticas de leitura são indicadas sutilmente nestas referências às personagens. Há tanto atitudes de concordância quanto de discordância em relação às opções do autor. Emília, a personagem mais querida de Lobato, é também a que mais suscita comentários dos correspondentes. Ela aparece dez vezes mais do que qualquer outra personagem. Em geral os comentários são de apreciação, identificando-a como travessa, asneirenta, pestinha e engraçada. Mesmo assim, muitos leitores criticam suas atitudes como, por exemplo, sua forma de tratar Tia Nastácia e Visconde. As referências ao Visconde – não coincidentemente o personagem menos apreciado de Lobato - são as mais abundantes em críticas e sugestões, revelando percursos de leitura diferentes dos imaginados pelo autor. Um leitor carioca reclama que o Visconde sumiu do livro Circo de Escavalinhos, outra, do interior de São Paulo pede a Lobato para não o matar mais. Um leitor, em 1945, reclama dos espancamentos sofridos pela personagem: "Não sei como o Visconde pode viver sempre ameaçado de ser depenado". Estas apropriações das personagens podem indicar a influência dos leitores sobre as estratégias de Lobato. No caso do Visconde, por exemplo, é possível que o autor o tenha ressuscitado depois da morte em Reinações de Narizinho atendendo aos apelos dos leitores. Escola e conhecimento Pouco mais de um terço das cartas está de alguma maneira relacionada à escola. Elas podem ser divididas em dois grupos: aquelas remetidas a partir da escola, ou seja, tiveram origem em algum tipo de prática de leitura ocorrida na instituição e aquelas que, mesmo não procedendo da instituição, a ela fazem alguma referência. No primeiro conjunto, os remetentes dizem-se representantes de uma turma escolar do 3o. ano primário até a escola normal. Quase todas são formais. A maioria tem um conteúdo parecido e apresenta um texto característico, dando a entender que tiveram, possivelmente, um modelo que orientou a escrita. Apesar destas características gerais, algumas a partir deste modelo, inserem conteúdos e modos de dizer, que fogem da formalidade. A maior parte serve para informar Monteiro Lobato de que foi escolhido como patrono ou homenageado do Clube de Leitura, da biblioteca da classe ou da biblioteca da escola. Algumas são quase exclusivamente de agradecimentos, quer seja por sua visita, por livros enviados ou pelo atendimento à solicitação de fotos feita pelo grupo. Muitas cartas de agradecimento são de remetentes que em cartas anteriores fizeram algum tipo de solicitação e foram atendidos. As solicitações giram em torno de dois aspectos principais: pedido de livros e de retratos. Mas também pedem biografia e autógrafo. No segundo conjunto, as cartas não representam uma turma escolar. São enviadas, aparentemente, por iniciativa pessoal e dentre as questões abordadas há alguma referência à escola. Este conjunto pode ser aumentado se levarmos em conta as cartas que de alguma forma demonstram a preocupação com a aquisição de conhecimentos, em sua grande parte veiculados pelas disciplinas escolares. Podemos dizer, a partir deste raciocínio, que um pouco mais da metade das cartas compõe o universo de documentos que podem contribuir para a compreensão da relação entre as práticas de leitura da obra de Monteiro Lobato e a escola. O conteúdo destas cartas refere-se a diversos aspectos, dentre os quais alguns serão apontados. Um deles reforça o que já foi observado nos conteúdos das cartas que tiveram origem na escola: Lobato está presente no currículo escolar. A biblioteca é um dos espaços em que há sua presença, como relata uma leitora de São Paulo, em 1941, que diz ser fácil ler seus livros, pois na biblioteca da escola há muitos deles. É indicado também o uso do autor pelos professores. Um leitor carioca, em 1944, comenta aula de Português em que a professora trabalhou com um livro de Aníbal Machado, em que leu uma história de Lobato: Morte e o lenhador. O remetente alude a esta história para comentar que o texto "prova mais uma vez o seu modo de arranjar um meio de ensinar a juventude". Outro aspecto que pode ser destacado é a participação dos diretores e professores no que diz respeito aos seus posicionamentos em relação a Lobato. Podemos observar, inclusive, exemplos contrastantes. Um leitor de São Paulo, em 1945, comenta o novo acordo ortográfico, lembrando que Lobato o antecipou – “o insubmisso”. Afirma que seu professor de Português não gosta de Lobato. Ele teria dito isto depois do aluno dizer que o autor também não seguia a gramática imposta. Outro leitor, de Castelo, apenas um ano depois, relata que recebeu de Lobato o livro Geografia de Dona Benta e o levou para mostrar na escola. O diretor do colégio o elogiou dentro da classe como um exemplo a ser seguido: "Não vivo só de brinquedo e procuro relação com pessoas elevadas como o sr. (...) O professor gostou muito do livro. Todos estão com inveja na classe". Vale o destaque a uma carta que permite a reflexão sobre a diferença entre o que proposto pela escola e por Lobato, ou mais do que isto, explicita a incompatibilidade entre as duas propostas, ao contrário do que a maioria das cartas que trata da escola aponta, que é a complementaridade. Um leitor paulista que afirma ter concluído o curso graças aos livros de Lobato, em 1945, afirmou um ano antes que Emília o libertou e que ela era responsável por uma nova visão de mundo que adquiriu. Esta nova visão, segundo o leitor, entrou em conflito com a escola. Ele diz que quando passou “a viver como Emília, passei a ser tratado como ela na escola”. Tratado como se fosse ela: o que seria este tratamento? Isto aponta para o fato de que o comportamento emiliano, caro a Lobato, não combinava com a escola. Há cartas que não remetendo diretamente à escola, apontam para aspectos do currículo. Em geral, demonstram a preocupação dos leitores em adquirir ou discutir conhecimentos com o autor. Alguns leitores apenas indicam esta importância dizendo simplesmente que seus livros despertam-lhes a curiosidade, outros que aprendem muito com seus livros, sem entrar num assunto específico. Há os que apenas fazem comentários gerais sobre determinado livro, como em relação a O Minotauro, em que o leitor diz haver muitos ensinamentos, e à História do Mundo para Crianças, em que o remetente escreve que "ensina muita coisa que ignorava inteiramente". Mas não falta também aquele que enxerga erros de informação, como um leitor carioca, em 1945, que afirma ter visto no livro Geografia de Dona Benta que a capital do Canadá é Montreal e comenta que "todas as Geografias dizem que é Otawa”. Conclusão Estes apontamentos apenas permitem uma idéia geral de algumas práticas de leitura deste conjunto de leitores de Monteiro Lobato, que lhe enviaram cartas nas décadas de 1930 e 1940, através da caracterização de alguns aspectos das estratégias do autor/editor e das táticas dos leitores. Alguns aspectos podem ser salientados. As apropriações dos leitores evidenciam os vínculos entre a escola e a obra do autor. De certa maneira, alguns leitores usam os livros como táticas de estudo. A escola, apesar de muitas mudanças buscando adaptar-se às condições da modernidade, parece não ter conseguido eficiência no ensino de alguns conteúdos, segundo os alunos/leitores; em vez de verem complementaridade entre a forma de ensino da literatura e da escola, os alunos tendem a opor as duas. Outro aspecto a ser considerado é que embora as cartas sejam amistosas e cordiais, pode-se perceber que nem todos correspondentes aceitam passivamente as idéias do autor, uns mais explicitamente, discordando de algumas opiniões, outros indiretamente, sugerindo novas aventuras e personagens. Apesar das diferenças de interesse de cada leitor, é possível estabelecer alguns marcos que caracterizam o conjunto dos leitores. Em primeiro lugar, eles identificam conteúdos escolares e de áreas do conhecimento humano nos livros do autor e se interessam em aprofundá-los. Os leitores demonstram a necessidade de conhecer o autor pessoalmente, ou pelo menos através de fotos; o vínculo apenas através dos livros não parece suficiente. Esta necessidade remete a outra conclusão: assim como Lobato aboliu as fronteiras entre real e fantasia nas histórias, os leitores também o fazem tratando dos personagens como entidades reais, conhecidas de Lobato e sobre as quais ele talvez não tenha controle. BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA AZEVEDO, C. L. de, CAMARGOS, M., SACCHETTA, V.. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo, SENAC, 1997. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira: séculos XIX e XX. São Paulo, EDUSP, 1995 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 5, n.11, 1991, p. 173-191. DARNTON, Robert. 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