ENTREVISTA COM O PROFESSOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS DR.
ALÍPIO DE SOUSA FILHO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO
GRANDE DO NORTE - UFRN
1.
Em primeiro lugar, qual o seu posicionamento em relação
a essa proposta de redução da maioridade penal?
R – Sou contra. A ideia da redução da idade penal é mais um dos argumentos
falaciosos no debate público no Brasil sobre os assuntos da chamada violência
urbana e da criminalidade. Estudos mostram que é reduzidíssimo o número
de adolescentes e jovens menores de 18 anos envolvidos em crimes como
homicídio. E já há leis que abordam e estabelecem medidas punitivas para
adolescentes e jovens infratores, não se justificando uma redução da idade
penal pela ideia que as leis existentes não abarcam esses jovens. Depois,
usa-se da ideia que, no país, os chamados menores infratores estão sem
punições severas, que deveriam estar à altura de seus crimes, sendo a
prisão vista como a punição a ser aplicada. Como se sabe, as prisões não
tendo servido para outra coisa que senão recluir pessoas ao fundo de um
sistema perverso, desumano, degradante, que não serve para o fim que a própria
lei penal presume. Hoje, no mundo inteiro, as políticas de encarceramento
são apenas voltadas à pura exclusão de pessoas que praticaram algum
pequeno ou grave crime, todas misturadas, e em situações degradantes,
isolando-as de todas as demais da sociedade, cortando seus laços sociais,
familiares, afetivos, mas sem que sejam aplicadas quaisquer medidas
educativas, de saúde, trabalho, que permitam a reinserção de todas elas na
sociedade, e isso pela concepção dominante hoje que estas são pessoas
incapazes de convívio social, inadaptados sociais, alguns concebidos
como verdadeiros “monstros” psicológicos ou morais. Recluir
adolescentes e jovens menores de 18 anos a prisões, sob esse tipo de
entendimento, é determinar para sempre o destino de todos eles,
vinculando-os ao mundo da violência criminal, ao crime organizado etc.
2.
Em nosso dia a dia percebemos a influência da mídia na
opinião popular sobre o assunto, visto que, tem
disseminado constantemente as infrações cometidas por
adolescentes e jovens. Em pesquisas feitas sobre o assunto a
opinião popular tem se demonstrado a favor da redução. Como
o sr. avalia a participação da mídia nesse ponto?
R – Embora não seja partidário das teses demonizadoras da mídia, nem das
teorias da conspiração que concebem a mídia como um complô organizado e
decidido a tramar contra o pensamento crítico e reflexivo, pois entendo que a
mídia é também um espaço de disputa das ideias, como vários outros, e nela
circulam ideias divergentes, é fato que um certo tipo de jornalismo e
programas sensacionalistas de TV e rádio atuam com esse fim de construir
uma opinião favorável ao endurecimento de penas, para a existência de um
Estado penal mais que social (como denuncia Loïc Wacquant), e até
mesmo para o estabelecimento da pena de morte no Brasil. Esse tipo de
programa e seus apresentadores e locutores praticam o populismo penal:
apelam ao emocional da população, tentam fazer crer que as cidades estão
tomadas pela violência, amplificam casos isolados, transformando-os em
objetos de campanhas de comoções, produzindo pânico social. Tudo isso,
muitas vezes, financiado por empresas interessadas na adoção pelo Estado de
políticas que incluam a participação do capital, o que se chama de “iniciativa
privada”. Como temos parlamentares para criar leis de interesse dessas
empresas, muitos deles eleitos com o apoio financeiro delas, temos aí propostas
no sentido, por exemplo, da administração dos presídios por empresas privadas.
Nos presídios, já temos a distribuição da comida (vendida ao Estado por
empresas), os serviços de higienização (vendidos também ao Estado), e agora
começamos a ter a administração dos cárceres. Assim, nada melhor para essas
empresas que patrocinar programas de TV e Rádio criando o pânico social, com
a ideia de uma escalada de violência, conjugado com o financiamento de
campanhas para eleição de parlamentares que aprovam leis que incluem a
“iniciativa privada” na participação lucrativa das medidas para “acabar” o que
eles chamam de violência e criminalidade. Fecha-se um circuito: faz-se a
propaganda da violência na mídia, sugere-se as medidas repressivas,
novas prisões são construídas e estas são entregues para a administração
privada (em parceria com o Estado). Certos programas de TV e rádio e o
jornalismo do populismo penal não estão no ar para noticiarem os fatos da
presumida violência urbana, mas para alimentar esse circuito perverso e
cínico. E como já desmascarou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, de um
modo bem foucaultiano, opinião pública, como um ente próprio, que
existiria por si mesmo, é coisa que não existe. O que existe é opinião
pública socialmente e ideologicamente construída, produzida. Assim, todas
as vezes que nos deparamos com pesquisas de “opinião pública” que trazem os
resultados de posições da população sobre assuntos como pena de morte,
redução da idade penal, aborto, casamento gay, entre outros assuntos, é sempre
bom lembrar que são posições não de um ente divino, neutro e isolado chamado
“povo” mas posições que estão atravessadas da influência de opiniões, visões,
concepções e ideias ideológicas que circulam na sociedade, e principalmente
através da mídia ou de instituições como família, igrejas, partidos políticos etc.
Nesse sentido, o provérbio “a voz do povo é a voz de Deus” esconde duas coisas:
por um lado, o que pensa a maioria (o tal “povo”) não é “opinião divina”, pois, em
moral, ética, política, consciência social e mesmo em ciência, a verdade não está
na quantidade, e, por outro lado, nenhum deus existe, não havendo nenhum a
falar a qualquer povo (por mais que se represente como “povo eleito”).
3.
A ONU declarou dia 11 de maio que é contra a redução da
maioridade e afirma que "se as infrações cometidas por
adolescentes e jovens forem tratadas exclusivamente como uma
questão de segurança pública e não como um indicador de
restrição de acesso a direitos fundamentais, a cidadania e a
justiça, o problema da violência no Brasil poderá ser agravado."
O sr. concorda com essa afirmação? Por quê?
R – Concordo totalmente. Todos sabemos que o que chamamos de “violência”
não é algo simples. Primeiro, é preciso situar a questão de um modo sempre
complexo. Como já alertou a filósofa brasileira Marilena Chauí, a violência
não é algo que esteja fora da sociedade e que é introduzida, de fora para
dentro dela, por indivíduos violentos. A violência integra as estruturas da
sociedade que vivemos, pois estamos em sociedades violentas. Suas
violências são múltiplas: desigualdades sociais, econômicas, exclusões,
marginalizações, discriminações, preconceitos, subordinações, negação
de reconhecimento a diversos sujeitos sociais. Em segundo lugar, e por
essas próprias razões, nossos jovens e adultos, vivem em uma realidade
que os violenta, oprime, exclui. Assim, a tal da violência que é todo dia
falada e alardeada é somente uma aparência da profunda violência que está
nas estruturas sociais e, portanto, não pode ser enfrentada com mais
violência: prisões, controle social ampliado, redução da idade penal etc.
como um assunto de polícia e esta como a base das políticas de segurança
pública. Violência não é assunto de polícia, é questão social complexa.
Somente poderá ser enfrentada se forem abordadas e solucionadas as
outras violências estruturais. Enquanto houver exclusão social,
marginalização, discriminação e abandono de partes inteiras da população
às misérias que nos sufocam na vida cotidiana haverá a violência de que
se fala tanto nas TVs, rádios e jornais.
4.
E em relação aos argumentos contra e a favor da redução,
como o sr. avalia?
R - Os argumentos a favor são mentirosos. São sofismas. Populismo penal.
Jogam com o desconhecimento da população sobre o que funda a
violência profunda nas nossas sociedades. E jogam com o
sensacionalismo que apela ao emocionalismo que escorre pelas veias da
população brasileira. Os argumentos contrários à redução da idade penal
são autênticos, verdadeiros. Pretendem emancipar culturalmente a
sociedade brasileira, instituir um Estado verdadeiramente moderno,
democrático e laico no país, sem populismo de nenhum tipo. Aqueles que
defendem essa posição acreditam na justiça social, acreditam que podem
existir sociedades sem prisões, com outras medidas para coibir aquilo que, à luz
de uma legislação específica, constitui prática de crimes. Sabem que o horizonte
da punibilidade social não pode ser unicamente as prisões. Um modelo falido
desde sua origem. Um modelo destinado a fins que, como modelo oficial, está
impedido de revelá-los, como denunciou, no fim dos anos 1970, o filósofo francês
Michel Foucault.
5.
O sr. acha que inserir adolescentes no sistema prisional
hoje, que terão quando sair em torno de 40, 50 anos de acordo
com a pena, seria uma forma de profissionalizar criminosos?
R – Não seria profissionalizar criminosos. Não creio que o resultado seja
esse. Me parece que essa ideia ainda está dentro da visão do populismo penal
e do conservadorismo. Ou de um certo senso comum sobre as coisas. A prisão
é algo muito pior, e temos que denunciá-la: ela fará algo pior e mais
desumano. Sobretudo no sistema brasileiro, pelo fato de historicamente
descuidarmos de todos os serviços públicos, nossas prisões destituem
nossos prisioneiros de toda sua humanidade. Alguém na prisão é visto
como sem direitos, um bicho, fera horrenda, menos que animal, que
merece ser torturado, machucado, submetido a sevícias sexuais,
alimentado com comida azeda, estragada, sem direitos a tratamentos de
saúde, advogados. Em pesquisa recente, vi prisioneiros plenos de feridas,
chagas, dores de dente, reclamando de dores, sem qualquer atendimento
médico. A ideia que domina entre boa parte da população é que eles
“merecem sofrer”, como uma espécie de pena, paga, punição pelo que
fizeram. Ainda que essa mesma parte da população não tenha a menor ideia do
que estes prisioneiros fizeram, que “crimes” cometeram, alguns que estão
pagando penas de prisão sem ainda julgamentos ou sentenças, são os
chamados “presos provisórios”, ou que praticaram pequenos delitos que não
explicam suas prisões. Para muitas penas de prisão ou situações de presos
provisórios, o judiciário brasileiro poderia aplicar penas alternativas e
mesmo realizar os julgamentos que não faz, evitando injustiças absurdas,
exageros, quando não negligência na observação da própria lei penal. Do
judiciário se espera a justiça e não a injustiça!
6.
As opiniões que se mostram a favor, principalmente do
senso comum, afirmam que quem não quer a redução da
maioridade penal é porque ainda não foi afetado. Como o sr.
acha que se conciliaria esse dilema das pessoas afetadas com
a dos adolescentes e jovens infratores?
R – Esse argumento é o do emocionalismo: quando você experienciar a
emoção negativa do roubo, do furto, do assalto à sua própria casa, do estupro
ou da morte de alguém querido, mudará de opinião. Ao ser afetado no plano
pessoal, mudará de ideia. Esta é uma falsa compreensão. Falso argumento.
A taxa de participação de menores de 18 anos em homicídios e outros
crimes é tão pequena no Brasil que ela não explica a adesão de mais de
80% da tal opinião pública favorável à redução da idade penal. Apenas um
pequeno número de pessoas da população foi afetada por ações de
menores de 18 anos. Vê-se que a adesão a essa tese é fruto da construção da
opinião pública pela persuasão produzida pelo pânico social produzido pela
mídia, ao alardear uma violência que é reflexo de uma outra mais profunda.
7.
Se fôssemos pensar em culpados, quem seria, os menores
infratores, o Estado?
R – Culpados? O culpado é um sistema de sociedade que devemos pensar
revogar todas as suas instituições. Se tudo é construído, como sabemos,
tudo é revogável! Esse deve ser nosso lema daqui por diante!
8.
Tendo em vista a crise do nosso sistema prisional, o que o
sr. acha que devemos fazer, ou melhor, qual seria uma possível
saída para diminuir o número de jovens envolvidos em crimes?
R – Só há uma saída: Estado de bem-estar-social, que no Brasil
não existe; com muito atraso, apenas está iniciando; políticas
públicas de educação, cultura, lazer, direitos humanos, políticas de
reconhecimento da cidadania de sujeitos excluídos. Nas nossas
cidades, precisamos urgentemente de teatros, cinemas,
bibliotecas, escolas, quadras de esporte, espaços de
sociabilidade, e em todos os bairros, não apenas naqueles onde
moram camadas que já são favorecidas por seus ganhos
econômico-financeiros. Equipamentos que sejam construídos e
mantidos pelo poder público ou pelos empresários. Estes que
são agentes sociais que precisam aceitar que devem investir em
bens públicos/coletivos, sem ganhos, sem lucros, mas sabendo
que estarão ajudando a construir uma sociedade que pode ser
melhor, mais democrática, mais igualitária.
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entrevista com o professor de ciências sociais dr. alípio de sousa