Vitória, 26 de julho de 2007. Mensagem n º 151/2007 Senhor Presidente: Através do OF. N° 408/SGP/ALES, datado de 04 de julho de 2007, essa Presidência encaminhou ao Poder Executivo o Autógrafo n° 84/2007, objeto de transformação do Projeto de Lei n° 61/2007, depois de aprovado nessa Casa, dando seguimento ao que preconiza o artigo 66 da Constituição Estadual. Esclareça-se, inicialmente, que o projeto de lei é de autoria do Deputado Giuliano dos Anjos e tem por objetivo “Criar o Programa Papel Reciclado no âmbito dos Poderes Públicos do Estado do Espírito Santo”. Da análise do texto proposto pelo ilustre Deputado, constata-se que ele padece de vício de inconstitucionalidade formal, conforme se depreende do parecer emitido pela Procuradoria Geral do Estado, que aprovo e transcrevo. “O que ocorre com o autógrafo sob exame, na medida em que as normas por ele lançadas, embora tenham louvável escopo ambiental, acabam por interferir em diversos ramos e sub-ramos do Direito, tornando necessário que a averiguação de sua constitucionalidade formal seja presidida pela intelecção de plexos normativos distintos daqueles que governam a competência concorrente prevista no 1 inciso VI do art. 24 da CF/88 ; que são: a) competência privativa do Chefe do Executivo disciplinada nos artigos 61, § 1º, inciso I, e 84, inciso VI, “a”, ambos da CF/88; e b) competência privativa para lançar normas gerais sobre licitações, veiculada no inciso XXVII do art. 22 da CF/882. Do malferimento ao princípio constitucional da Reserva da Administração (art. 2º; art. 61, § 1º, inciso I; e art. 84, inciso VI, “a”, todos da CF/88). Lendo o texto normativo sob exame, pode-se concluir, de afogadilho, que se está diante de normas jurídicas editadas sob o acicate da competência concorrente prevista no inciso VI do art. 24 da Lex Legum nacional, circunstância que afiançaria conclusão exitosa acerca de sua validade formal e material. Porém, vasculhando com o devido esmero a eficácia primacial da incipiente legislação capixaba sob análise, a conclusão a que se chega é outra. 1 CF/88: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;[...]” 2 CF/88: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...] XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;[...]” Com efeito, as normas jurídicas que corporificam o autógrafo em disquisição, conquanto tenham por objetivo a adoção de medidas que visam a preservar o meio ambiente, espraiam eficácia que afeta a independência dos Poderes do Estado, já que o Poder Legislativo está determinando ao Poder Executivo a adoção de ações governamentais, cuja implementação limita a discricionariedade inerente ao funcionamento da burocracia estatal no pormenor em debate. A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa exclusiva para disciplinar os temas diretamente afetos à Administração Pública, criando verdadeiro Princípio da Reserva da Administração, que é corolário específico do Princípio da Separação dos Poderes (Art. 2º da CF/88: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”). O contorno jurídico de tal reserva de competência é extraído dos preceitos constitucionais que cuidam da competência normativa privativa do Presidente da República, quais sejam, o art. 61 e o art. 84 da Carta. Numa análise conjunta dos indigitados artigos da Constituição, exsurge que, dentre outras, é competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo dispor sobre a criação, extinção, estruturação, organização, funcionamento e atribuições dos órgãos e pessoas componentes da Administração Pública; in verbis: CF/88 Art. 61 - A iniciativa das leis complementares e Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Presidente da República, ao Supremo Tribunal Procurador-Geral da República e aos cidadãos, Constituição. ordinárias cabe a qualquer membro ou Federal ou do Congresso Nacional, ao Federal, aos Tribunais Superiores, ao na forma e nos casos previstos nesta § 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI. Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] VI – dispor mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; Fica claro, destarte, que somente ao Chefe do Poder Executivo, seja por intermédio de elaboração de projeto de lei (iniciativa), seja por intermédio de edição de Decreto, é permitido lançar disposições normativas regedoras da Administração Pública. Em súmula: a competência veiculada pelas transcritas normas constitucionais, que abarca o “poder” de comandar a criação, a extinção, a composição, as atribuições e o funcionamento dos órgãos e das pessoas administrativas vinculadas ao Poder Público, pertence apenas ao Chefe da Administração Pública. Note-se, a propósito, que a Emenda Constitucional n.º 32/01 promoveu alteração na redação do art. 61, § 1º, “e”, da CF/88, retirando a palavra “atribuições” dantes contida nesse preceito, substituindo-a pela remissão expressa ao art. 84, VI, da Carta Política. Nesses termos era anteriormente redigido o citado artigo: CF/88 Art. 61 (Antes da EC n. 32/01). A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. § 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública. Essa mudança acaba por reforçar o caráter privativo da competência destinada ao Chefe do Poder Executivo para dispor sobre as atribuições (direitos, deveres, competências) dos entes componentes da Administração. Decerto, se antes a competência do Chefe do Executivo sobre esse tema limitava-se à iniciativa privativa do procedimento constitucional para a feitura de lei, agora, com o advento da EC n.º 32/01, e sua expressa remissão ao art. 84, VI, ela se amplia em prol de possibilitar a regulação privativa integral da matéria, por meio de Decreto, sem a intromissão do Poder Legislativo no processo, consoante dispõe o já transcrito art. 84, VI, “a”, da CF/88. Na verdade, o novel desenho constitucional dessa questão revela que a criação e a extinção de órgãos, bem como a especificação de atribuições, direitos e deveres da Administração Pública, que acarretem aumento de despesas, só podem ser disciplinadas por lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Por outro lado, a extinção de cargos vagos e a determinação da estrutura, do funcionamento e das atribuições da Administração Pública, que não implique aumento de gastos, são temas que podem ser tratados por Decreto dimanado pelo Chefe do Executivo. E o regramento constitucional dessa matéria não poderia ser diferente, porquanto a intromissão do Poder Legislativo na organização do Poder Executivo, estatuindo deveres e atribuições à Administração Pública Direta ou Indireta, ou regrando sua forma de funcionamento, fere de morte o princípio da separação dos poderes, por menoscabar a autonomia necessária desse último Poder, especialmente no que toca a sua função típica: administrar. O entendimento esposado pelo Excelso Pretório vai ao encontro dessa afirmação, como se nota dos seguintes julgados: Ementa AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 239/02 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. DISPOSIÇÕES CONCERNENTES A ÓRGÃOS PÚBLICOS E A ABERTURA DE CRÉDITO SUPLEMENTAR. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO FORMAL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a observância compulsória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. 2. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente. (ADI 2750/ES, Relator(a): Min. EROS GRAU, Julgamento: 06/04/2005, Órgão Julgador: Tribunal Pleno) Ementa CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F., art. 61, § 1º, II, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo. I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F., art. 61, § 1º, II, e, art. 84, II e VI. II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. III. - Precedentes do STF. IV. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 2719 / ES Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO Julgamento: 20/03/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ DATA-25-04-2003) Ementa AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL, DE INICIATIVA PARLAMENTAR, QUE INTERVÉM NO REGIME JURÍDICO DE SERVIDORES PÚBLICOS VINCULADOS AO PODER EXECUTIVO - USURPAÇÃO DO PODER DE INICIATIVA RESERVADO AO GOVERNADOR DO ESTADO INCONSTITUCIONALIDADE - CONTEÚDO MATERIAL DO DIPLOMA LEGISLATIVO IMPUGNADO (LEI Nº 6.161/2000, ART. 70) QUE TORNA SEM EFEITO ATOS ADMINISTRATIVOS EDITADOS PELO GOVERNADOR DO ESTADO - IMPOSSIBILIDADE - OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA, COM EFICÁCIA EX TUNC. PROCESSO LEGISLATIVO E INICIATIVA RESERVADA DAS LEIS. [...] RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais. (ADI-MC 2364/AL, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 01/08/2001, Órgão Julgador: Tribunal Pleno) Importante frisar que, sobre ser plenamente aplicável a força vinculante dos aludidos preceitos (art. 61, § 1°, e art. 84, inc. VI, “a”, ambos da CF/88) na esfera estadual, tese assente na doutrina e na jurisprudência pátrias, há também na Constituição do Estado do Espírito Santo bem-lançado dispositivo que corrobora a afirmação nesta sede pugnada: Constituição Estadual Art. 63. A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Ministério Público e aos cidadãos, satisfeitos os requisitos estabelecidos nesta Constituição. Parágrafo único – são de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que disponham sobre: [...] III – organização administrativa e pessoal da administração; Nesta altura, pode-se concluir que há um Princípio da Reserva de Administração, corolário do Princípio da Separação dos Poderes, composto pelas competências normativas exclusivas do Poder Executivo, que coloca à disposição deste qualquer impulso inovador do arcabouço jurídico regedor da Administração Pública. Fixada essa premissa, conclui-se, necessariamente, que o texto normativo em testilha encontra-se eivado de inconstitucionalidade formal. Isso porque a Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo iniciou o processo legislativo da lei em tela, malferindo a competência privativa do Governador do Estado de regrar a Administração Pública, conforme descrito acima. Enfim, o texto normativo sub examine, ao determinar o modo como deve ser materializada determinada ação do Poder Executivo, acaba por dispor sobre o funcionamento da administração, especificamente no que toca ao modo de seu funcionamento interno, o que denota a patente intromissão do Legislativo em assuntos intestinais do Executivo. Não se olvida que o funcionamento da Administração deve respeitar as normas protetoras do meio ambiente, ocorre que tais normas não podem representar ingerência nas escolhas a serem efetivadas pela Administração Pública em assuntos internos, ditando o seu funcionamento burocrático. Vale frisar: o texto normativo faz com que o Poder Legislativo substitua o Executivo no exame da conveniência e oportunidade acerca do meio mais adequado para a materialização de seus atos, em flagrante menoscabo ao plexo normativo que disciplina a competência legislativa garantidora do Princípio da Separação dos Poderes e do Princípio da Reserva da Administração3. Pelo quanto foi dito, tem-se que o autógrafo de lei em questão é inconstitucional por não ser concebido pelo Chefe do Poder Executivo deste Estado. Do malferimento à competência legislativa privativa para lançar normas gerais sobre licitações, veiculada no inciso XXVII do art. 22 da CF/88. Avançando na constatação versada no tópico predecessor, exsurge outra noção: a ingerência perpetrada pelo texto sob exame no funcionamento da Administração Pública representa inobservância do conteúdo da lei nacional de licitações, cristalizando ofensa, ainda que reflexa, ao inciso XXVII do art. 22 da CF/88. Desenvolvendo a competência legislativa prevista no preceito constitucional supramencionado, a União Federal editou a Lei n.º 8.666/93, que lança normas gerais sobre licitações. Tal diploma é repleto de dispositivos garantidores da concorrência, da isonomia entre os participantes e da possibilidade de o administrador escolher in concreto a melhor proposta para o Poder Público. Eis os dispositivos que espelham a deferência prestada aos valores em foco: 3 Tal ingerência também será verificada na Administração em sentido amplo, em todos os Poderes do Estado. Lei n.º 8.666/93 Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. § 1º É vedado aos agentes públicos: I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato; [...] Ocorre que a fixação peremptória do tipo de produto que dever ser utilizado pelo Poder Público na materialização de determinada atividade administrativa representa violação (quando menos, limitação) a tais paradigmas regedores da licitação. Isto é, a obrigatoriedade da utilização de determinado produto representa, obviamente, obrigatoriedade da compra desse mesmo produto. Decerto, a predeterminação da escolha do papel que será utilizado nas publicações e nos convites confeccionados pelo Poder Público estadual implica predeterminação invencível do tipo de produto que será comprado, donde se infere que o texto normativo em tela: (a) de um lado, afeta a concorrência e a isonomia que deve presidir os certames licitatórios, já que limita antecipadamente o campo de fornecedores hábeis a contratar com o Poder Público, por meio de restrição, geral e abstrata, do tipo de produto desejado, o que somente poderia ser efetivado por meio da legislação nacional, editada com base no inciso XXVII do art. 24 da CF/88; (b) de outro, estabelece preferência genérica e vinculante por determinado produto, valoração que somente poderia ser feita in concreto, no bojo do processo licitatório. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar, em sede de argumentação adminiculativa, que franquear ao Poder Legislativo (ou mesmo ao Executivo) a possibilidade de especificar por meio de lei geral e abstrata qual tipo de produto que deve ser utilizado pela Administração em sua atividade hodierna pode gerar conseqüências indesejadas. Realmente, aceitando tal sorte de eleição legislativa, nada impede que seja determinado à Administração o uso de madeiras de reflorestamento em suas obras e construções, a aquisição de produtos alimentícios light para os seus hospitais e escolas, a adquisição de veículos menos poluentes, entre outros. Não é tarefa hercúlea identificar produtos que podem ser beneficiados por preferências legislativas de aquisição, sob o fundamento de salvaguarda a um dos valores que estão encartados na Constituição Federal. Tudo isso em prejuízo (em maior ou menor grau, dependo do caso e da escolha) da concorrência e da isonomia que deve reinar na licitação, uma vez que limitado será o universo dos possíveis contratantes. Na verdade, o que fica cristalizado é que a questão ambiental é, sim, importante fator que deve entrar no cômputo das compras governamentais, mas esse fator deve atuar como um dos critérios de escolha, não como o critério de escolha. Ademais, tal preferência não se coaduna com o espírito da lei nacional de licitações, que somente presta tratamento preferencial a certos tipos de fornecedores/produtores, nunca conferindo primazia a determinado produto ou serviço de forma apriorística. No que toca ao postremeiro aspecto elencado, tem-se que, realmente, o papel reciclado representa, na maioria dos casos, a melhor opção para a feitura de convites e publicações, seja pela proteção ao meio ambiente, seja pela economia que representa a sua aquisição. Mas isso não pode servir de justificativa para alçar tal produto à condição de eleito por antecipação. Ora, o caráter multifacetado da realidade torna viável a existência de casos onde o uso do papel reciclado pode ser economicamente desvantajoso ou flagrantemente inadequado. Nem se argumente que o texto normativo do autógrafo em apreço permite que o Executivo exclua, a partir de Decreto, determinados impressos da obrigatoriedade de utilização de papel reciclado. Isso porque essa exclusão também será prévia, genérica e abstrata, indo de encontro à escolha da proposta mais vantajosa para a Administração, que deve ser feita, repisa-se, diante do caso concreto. O Supremo Tribunal Federal já determinou a ilegitimidade de legislação estadual que interfere na isonomia, concorrência e possibilidade de escolha da melhor proposta em sede de licitações: Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: L. DISTRITAL 3.705, DE 21.11.2005, QUE CRIA RESTRIÇÕES A EMPRESAS QUE DISCRIMINAREM NA CONTRATAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA: INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. 1. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da Federação (CF, art. 22, XXVII) e para dispor sobre Direito do Trabalho e inspeção do trabalho (CF, arts. 21, XXIV e 22, I). 2. Afronta ao art. 37, XXI, da Constituição da República – norma de observância compulsória pelas ordens locais - segundo o qual a disciplina legal das licitações há de assegurar a “igualdade de condições de todos os concorrentes”, o que é incompatível com a proibição de licitar em função de um critério – o da discriminação de empregados inscritos em cadastros restritivos de crédito -, que não tem pertinência com a exigência de garantia do cumprimento do contrato objeto do concurso. (ADI 3.670-0 DISTRITO FEDERAL, RELATOR : MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, JULGAMENTO 02/04/2007, ORGÃO JULGADOR: TRIBUNAL PLENO) Ementa MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DE AGREMIAÇÃO PARTIDÁRIA COM REPRESENTAÇÃO NO CONGRESSO NACIONAL PARA DEFLAGRAR O PROCESSO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM TESE. INTELIGÊNCIA DO ART. 103, INCISO VIII, DA MAGNA LEI. REQUISITO DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA ANTECIPADAMENTE SATISFEITO PELO REQUERENTE. IMPUGNAÇÃO DA LEI Nº 11.871/02, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUE INSTITUIU, NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SUL-RIO-GRANDENSE, A PREFERENCIAL UTILIZAÇÃO DE SOFTWARES LIVRES OU SEM RESTRIÇÕES PROPRIETÁRIAS. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA TESE DO AUTOR QUE APONTA INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGIFERANTE RESERVADA À UNIÃO PARA PRODUZIR NORMAS GERAIS EM TEMA DE LICITAÇÃO, BEM COMO USURPAÇÃO COMPETENCIAL VIOLADORA DO PÉTREO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. RECONHECE-SE, AINDA, QUE O ATO NORMATIVO IMPUGNADO ESTREITA, CONTRA A NATUREZA DOS PRODUTOS QUE LHES SERVEM DE OBJETO NORMATIVO (BENS INFORMÁTICOS), O ÂMBITO DE COMPETIÇÃO DOS INTERESSADOS EM SE VINCULAR CONTRATUALMENTE AO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. (ADI-MC 3059/RS, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Julgamento: 15/04/2004, Órgão Julgador: Tribunal Pleno) Por ser oportuno à escorreita compreensão da questão em exame, eis trechos do voto vencedor dimanado pelo Exmo. Ministro CARLOS BRITTO no julgamento da medida cautelar requerida no bojo da ADI n.º 3.059, onde se discutia a validade de lei estadual que determinava a aquisição preferencial de softwares denominados livres ou abertos: [...] 18. Uma proposição de mérito, contudo, se me afigura sólida o bastante para conferir à presente ação direta de inconstitucionalidade um desfecho cautelar exitoso. Refiro-me à proposição de que a Lei nº 11.871/2002 ofende o artigo 22, inciso XXVII, da Lei Republicana, desde que esse dispositivo seja interpretado de forma geminada com o inciso XXI do art. 37 da mesma Constituição Federal de 1988 (“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”). 19. Bem, aqui, imperioso é proclamar que a lei em debate se revestiu de atributo que a Magna Lei Federal lhe sonegou: o de produzir normas gerais, em tema de licitação. Além de materializar usurpação de competência constitucionalmente deferida ao Poder Executivo, pois é fato que a preferência nela consubstanciada fez o Poder Legislativo estadual se substituir à Administração Pública sul-rio-grandense. 20. Deveras, o inciso XXI do art. 37 da Norma Normarum faz da licitação um obrigatório processo-competição de caráter administrativo. Um puro dever administrativo de igualitária concorrência, mas que admite, sim, exceção. Exceção, todavia: I - figurante de lei congressual, por ser o processo licitatório um proceder administrativo de aplicabilidade irrestritamente federativa. Logo, de aplicabilidade federativamente uniforme, o que já patenteia sua obrigatória veiculação por aquele tipo de norma geral que a Magna Carta estatui no seu art. 22, inciso XXVII; II - somente admissível naquelas situações em que a disputa abriga um componente jurídico de preordenada desequiparação entre os contendores, ou então se revele factualmente impossível, quando não francamente dispensável. 21. Ora, no âmbito objetivo da lei estadual guerreada, o que se fez foi uma tão declarada quanto antecipada preferência por um tipo de produto eletrônico: o software da espécie aberta ou completamente isento de restrições proprietárias. Logo, a própria lei estadual a excepcionar o caráter isonômico da licitação para se substituir à Administração Pública na emissão de um prévio e superior juízo de prestimosidade de um determinado bem informático ante os demais concorrentes. Que são concorrentes sabidamente numerosos e igualmente caracterizados por crescente sofisticação tecnológica de seus produtos. Corresponde a dizer: a lei mesma é que se encarregou de criar uma preferência e assim antecipar uma avaliação administrativa concreta ou empírica; avaliação traduzida na presunção de que um dado software satisfaz melhor aos interesses da Administração do que os outros. E satisfaz melhor a tais interesses por uma forma atemporal, acrescente-se, como se o mercado de bens informáticos não se tipificasse por um tão vertiginoso quanto ilimitado teor de aprimoramento. 22. Daqui resulta que a lei invectivada parece desconhecer: a) que a relativização ou flexibilização do princípio isonômico, em tema de licitação pública, é matéria de competência legislativa da União Federal, como assentado; b) que o software de sua declarada preferência pode até mesmo ser o que melhor consulta aos interesses da Administração, em termos de preço, técnica e gradativa apropriação autóctone de uma tecnologia reconhecidamente de ponta, entre outras vantagens comparativas. Mas todas essas virtudes só podem ser aferidas é no processo mesmo do certame em que a licitação consiste. É algo somente aferível caso a caso, dia-a-dia, momento-a-momento, disputa-a-disputa, conforme a natureza das necessidades e dos objetivos da Administração Pública, de um lado, e, de outro, a sempre cambiante qualidade intrínseca dos produtos em foco. Uma coisa a puxar a outra, necessária e ininterruptamente, como num aparelho auto-reverse. Ou como na feliz inspiração do poeta santista Vicente de Carvalho: “Eu sou quem sou, por serdes vós quem sois”. Logo, circuito relacional-concreto por definição e por indissociável imbricamento, de modo a se incompatibilizar com a abstratividade dos comandos que timbram a lei em sentido material. [...] Em súmula: seja por qualquer desses prismas acima expostos, a legislação capixaba contida no autógrafo em análise não encontra guarida na lei nacional de licitações, criando preferências com ela incompatíveis, de modo a evidenciar o transbordo da competência legislativa conferida pela Carta de Outono ao Estado-membro.” Conclui-se, portanto, que o inteiro teor do Projeto de Lei n° 61/2007 padece do vício de inconstitucionalidade formal, ora por apresentar ofensa aos artigos 61, 1°, inciso I e 84, inciso VI, “a”, ora por apresentar ofensa ao artigo 22, inciso XXVII, todos da CF/88, eis porque veto totalmente. Atenciosamente PAULO CESAR HARTUNG GOMES Governador do Estado