EPÍLOGO Hoje, após 2000 anos, o cristianismo é a fé, pelo menos nominalmente, de um terço da população mundial. Iniciada com um punhado de pescadores, coletores de impostos e jovens arruaceiros numa obscura província da Judéia, essa fé se espalhou pelo planeta clamando pela lealdade de cerca de um bilhão de pessoas. Um dos aspectos mais marcantes do cristianismo de hoje é que poucos dos que se professam crentes estudam seriamente a história de sua religião. Antigamente, os adeptos de uma religião raramente se encontravam com os adeptos de outra. Poucos precisavam defender sua religião contra a crítica de uma fé rival. Hoje, contudo, quando os meios de comunicação de massa fazem de todo o mundo nossos vizinhos, a ignorância dos cristãos é difícil de se justificar. O movimento de separação entre Estado e igreja acabou por remover a religião do ensino público. Mas mesmo a “educação cristã” em muitas denominações tem feito pouco para oferecer a seus membros um entendimento adulto da fé que eles professam. Será, então, motivo de surpresa ver um cristão de hoje cometer erros grosseiros sobre sua crença ou defender alguma prática pagã como conduta “cristã”? Cristãos informados podem se sentir tentados a perguntar: “Se ao justo é difícil ser salvo, que será do ímpio e pecador?” (1Pedro 4.18). Mas eles sabem que a falha humana é apenas metade da história. Eles percebem o quanto muitas vezes a própria igreja foi seu pior inimigo e com que freqüência o avivamento vem de um lugar totalmente inesperado. Inúmeras vezes, a igreja descobriu algum poder desconhecido desviar uma ameaça a sua existência ou transformar crise em oportunidade de crescimento. Perseguições ferrenhas serviram para limpar a casa da fé. A proliferação da heresia fez com que se tornassem 548 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS mais claras as crenças básicas da igreja. E a súbita aparição de hordas bárbaras abriu as portas para uma expansão maior. Essa habilidade de encarar novos desafios e fazer jorrar a fonte de avivamento é um dos segredos do crescimento cristão. Em geral, o caminho para se avançar inclui um olhar determinado para o passado, para a imagem de Deus revelada na história de Jesus. Os cristãos sempre consideraram a época de Jesus e dos apóstolos um modelo para todas as outras épocas. Ela deu à igreja sua fé em Jesus, o Messias ressuscitado e a esperança do perdão dos pecados por seu intermédio. E essa época demonstrou, por meio da vida de Paulo, que o evangelho da graça não conhece limites de nações, raça, sexo e cultura. O cristianismo católico que aceitou essa verdade espalhou-se rapidamente pelo mundo mediterrâneo. Confrontou-se com as idéias estrangeiras do gnosticismo, marcionismo, montanismo e chamaram de mentira a mentira apelando para os escritos apostólicos e para os bispos ortodoxos que os guardavam. Ao mesmo tempo, os cristãos se depararam com o poder de perseguição de Roma e ousaram morrer heroicamente como mártires, testemunhas para outros crentes que seguiram seus passos. Essa semente de sangue de mártir, como chamou Tertuliano, deu frutos abundantes na conversão do império. A era imperial começou em 312, quando Constantino teve uma visão de Cristo. Antes do século IV, o restrito cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano em expansão. Uma igreja nas catacumbas era uma coisa, mas o que o cristianismo tinha a ver com os palácios? Sob a tutela do imperador, a igreja aprendeu a servir o poder formulando a fé para as massas. Daí a era dos grandes concílios. Os cristãos que não tinham posses para freqüentar palácios rumaram para regiões incultas em busca de um novo caminho para a graça. Venerandos eremitas se viram à vanguarda de um movimento, o monasticismo, o aceno do futuro. Mas, a maioria dos cristãos viu a mão de Deus no casamento feliz da igreja cristã e do Estado romano. No Oriente, o casamento continuou por um milênio. Uma fé mística floresceu sob a proteção dos imperadores ortodoxos até 1453, quando os turcos muçulmanos levaram o Império Bizantino à ruína final. A queda de Constantinopla significou o surgimento de Moscou, a nova capital da ortodoxia oriental. No Ocidente, a história foi diferente. Depois do século V, quando EPÍLOGO 549 bárbaros germanos e hunos derrubaram as defesas do Império e invadiram a cidade eterna, os homens voltaram-se para a Cidade de Deus de Agostinho em busca de explicações. Encontraram uma visão para a nova era. Esses séculos são chamados de “medievais”. As pessoas que neles viveram consideravam-nos cristãos. Suas razões residem no papel do papa, que se postou nas ruínas do Império destruído no Ocidente e deu início à construção da igreja medieval sobre a extinta glória de Roma. Como única ligação com o passado romano, a igreja de Roma mobilizou os monges beneditinos e os dispôs como embaixadores missionários dentre o povo germânico. Levou séculos, mas os papas, juntamente com os governantes cristãos, lentamente pacificaram e batizaram um continente e o chamaram de cristandade, Europa cristã. As massas batizadas, contudo, significavam pagãos batizados. No século X, fez-se necessário um avivamento espiritual. Ele começou em um monastério no centro da França chamado Cluny e se expandiu até atingir o papado. O maior dos papas reformistas foi Gregório VII. Seus dedicados sucessores levaram o ofício papal ao zênite do poder terreno. Como não era mais a base do Império Romano, a igreja do século XII, por si só, constituía um tipo de império, um reinado terreno e espiritual que se estendia da Irlanda à Palestina, da Terra ao Céu. Os cruzados e a filosofia escolástica foram testemunhas dessa soberania papal. Mas o poder corrompe. A igreja ganhou o mundo, mas perdeu a alma. De qualquer maneira, isso era o que pregava uma torrente de reformistas determinados: waldenses, franciscanos e albigenses. Em meio à luta pelo poder terreno e às evidências de uma religião estéril, muitos cristãos, nos séculos XIV e XV, voltaram-se para a Bíblia em busca de uma visão nova e do avivamento. A Reforma veio com furor. Martinho Lutero tocou a trombeta, mas muitos outros abraçaram a causa. O período denominado de período reformador é caracterizado pela movimentação de protestantes: luteranos, reformados, anglicanos e anabatistas. No meio do século XVI, a Reforma havia arruinado a unidade tradicional da Europa ocidental e legado o pluralismo religioso aos tempos modernos. A igreja de Roma resistiu a esse ataque com a tradição. Ela reuniu novas tropas, principalmente a Sociedade de Jesus. Enviou novas ondas missionárias à Ásia, África e América Latina. Travou batalhas na França, 550 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS Holanda e Alemanha. Mas, no final, a cristandade escorregou para o passado. Em seu lugar, surgiu o conceito denominacional de igreja, que permitia às nações modernas tratar as igrejas como sociedades voluntárias, separadas do Estado. Novas escolas de pensamento fervilharam no século XVII. Nada era mais poderoso do que a razão. Perguntava-se: “Quem precisa de Deus?” O homem consegue viver por si só. Os cristãos manifestaram suas objeções, mas essas idéias se espalharam até que o secularismo tomasse conta da vida pública das sociedades ocidentais. Deus permaneceu, mas como uma questão de escolha pessoal. Os cristãos não podiam mais apelar para a força do exército para suprimir tais heresias. Então, muitos deles voltaram-se para a conduta dos apóstolos, pregação e oração. O resultado foi uma série de avivamentos evangélicos: principalmente os pietistas, metodistas, e o Grande Avivamento. Pela pregação e conversões pessoais, os evangélicos buscaram restaurar Deus na vida pública. A era do progresso viu cristãos de todo tipo travar uma batalha corajosa contra o avanço do secularismo. Dos avivamentos evangélicos surgiram novos esforços para levar o evangelho de Cristo para terras distantes e inúmeros ministros de serviços sociais na Europa industrializada e na América do Norte. Dos baluartes de Roma, um papado defensivo lançou uma carga de mísseis orientados contra os inimigos modernos da fé católica. Apesar de todos os esforços dos cristãos, lentamente os cristãos foram retirados da vida pública no mundo ocidental. Os cristãos foram deixados com um problema que reconhecemos hoje, em nosso próprio tempo: Como os cristãos podem exercer influência moral em sociedades pluralistas e totalitárias, nas quais as colocações cristãs sobre a realidade não mais prevalecem? A profundidade do problema ficou evidente na era das ideologias, quando novos deuses surgiram pedindo a lealdade do homem secular. O nazismo exaltava o Estado; o comunismo louvava o partido; e a democracia americana reverenciava o indivíduo e seus direitos. Supostamente iluminadas, as nações modernas travaram duas batalhas globais numa tentativa de estabelecer a supremacia dessas duas novas divindades. Quando nenhuma delas prevaleceu, uma guerra fria de coexistência se estabeleceu nas nações anteriormente cristãs. Nesses tempos conturbados, as denominações lutaram devido a teologias liberais EPÍLOGO 551 e ortodoxas, encontraram novos caminhos para recobrar a unidade perdida, e demonstraram fome de novas experiências apostólicas. Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiram no Terceiro Mundo lideranças vigorosas de novos cristãos, que ofereciam esperanças de um novo tempo para a antiga fé. Será que os missionários das nações neopagãs da Europa e América do Norte conseguiram garantir uma participação no futuro à África e América Latina ao levar-lhes o evangelho? Só o futuro dirá. Mas os cristãos podem ter esperanças porque a fé sempre vai além das circunstâncias terrenas. Sua confiança reside em uma pessoa. E nenhuma outra pessoa, segundo os registros históricos, influenciou mais pessoas sob as mais diversas condições por tanto tempo do que Jesus Cristo. As cores e sombras de sua imagem parecem mudar segundo as necessidades dos homens: o Messias judeu dos crentes remanescentes, a sabedoria dos apologistas gregos, o rei cósmico da igreja imperial, o logos celestial dos concílios ortodoxos, o governador do mundo das cortes papais, o modelo monástico da pobreza apostólica, o salvador dos predicantes evangélicos. Na verdade, ele é um homem para todos os tempos. Em um tempo em que era visto por todos como alguém sem importância, uma relíquia de um passado rapidamente descartado, a história da igreja oferece um silencioso testemunho de que Jesus Cristo não irá sair de cena. Seu título pode mudar, mas sua verdade permanecerá por todas as gerações. O PERÍODO DE JESUS E DOS APÓSTOLOS 6 A.C.–70 D.C. As raízes do cristianismo remontam à história judaica anterior ao nascimento de Jesus. Contudo, foi Jesus de Nazaré quem atacou o judaísmo instituído e gerou um movimento de renovação da história no século I. Após sua crucificação, determinada por Pôncio Pilatos, oficial romano, os ensinamentos de Jesus espalharam-se pela região do Mediterrâneo. Um apóstolo chamado Paulo teve grande influência nesse processo. Deu ênfase à salvação, dádiva de Deus para todos os homens, e alçou o cristianismo, emergente do judaísmo palestino, à condição de religião universal. A.C. 0 Nascimento de Jesus 25 Morte de Jesus 50 Morte de Estêvão Destruição de Jerusalém Nero 75 Morte de Paulo O período de Jesus e dos Apóstolos 100 1 ANDANDO COM O REI! O cristianismo é a única grande religião que tem como fato central a humilhação de seu Deus. “Amado cordeiro morto”, cantam os crentes, “seu precioso Sangue Jamais perderá seu poder, Até que toda a igreja do Senhor resgatada Seja salva do pecado.” A crucificação era uma morte bárbara, reservada a agitadores, piratas e escravos. A lei judaica amaldiçoava “todo aquele que fosse pregado numa cruz”, e Cícero, o estadista romano, advertia: “Que até o próprio nome da cruz fique distante, não apenas do corpo do cidadão romano, mas de seus pensamentos, de seus olhos, de seus ouvidos.” Parte da punição das vítimas consistia no açoite e em carregar a própria cruz ao local da morte. Quando a cruz era erguida, pregava-se nela uma tabuleta com o nome do acusado e o crime por ele cometido. No caso de Jesus, INRI: Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum — Jesus de Nazaré, rei dos judeus. Pôncio Pilatos, juiz romano de Jesus, aparentemente desejava que essa inscrição fosse uma provocação malévola contra os judeus, mas, da mesma maneira que aconteceu com a cruz, os seguidores de Jesus encontraram um significado especial nessa mensagem. JESUS E A IGREJA Jesus era judeu. Descendia de uma família judia, havia estudado a lei judaica e seguia a religião judaica. Todo estudo sério a respeito de sua 4 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS vida deixa isso tão claro que várias pessoas se perguntam se Jesus de fato teve a intenção de criar esse grupo de seguidores que chamamos de “igreja”. Albert Schweitzer, missionário famoso que esteve na África, acreditava que Jesus era obcecado pelo sonho do iminente fim do mundo e morreu para tornar esse sonho realidade. Rudolf Butmann, importante teólogo alemão, achava que Jesus era um profeta que desafiava as pessoas a optarem radicalmente a favor ou contra Deus. Outros cristãos defendiam a idéia de que o reino de Deus era uma fraternidade de amor e perdão. Se ele fundou uma sociedade, dizem eles, era uma sociedade invisível, uma companhia moral ou espiritual, e não uma instituição com leis e credos. Essa visão não-institucional do cristianismo é tão difundida que o melhor que fazemos é considerá-la. Jesus teve algo a ver com a formação da igreja cristã? E se teve, como moldou seu caráter especial? Cada leitor do evangelho é livre para julgar por si mesmo, mas uma leitura imparcial de Mateus, Marcos, Lucas e João revela os planos de Jesus a respeito de um grupo de seguidores que desse continuidade ao seu trabalho. Durante dois anos, ele trabalhou com um grupo de discípulos fiéis, transmitiu-lhes ensinamentos sobre a vida no que chamava de “o reino de Deus”, e os apresentou as “novas promessas”, que os manteve juntos no amor e no perdão. Pode-se supor que àquele grupo simples faltassem as leis, os oficiais e os crentes da cristandade de hoje, mas era uma sociedade à parte. Jesus enfatizou com insistência o modo de vida especial que separava “o reino de Deus” das autoridades rivais entre os homens. Pouco a pouco, os discípulos foram percebendo que segui-lo significava dizer “não” a outras vozes que clamavam por sua lealdade. De alguma forma, esse foi o nascimento do movimento de Jesus. E pelo menos nesse sentido Jesus “fundou” a igreja. A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS Na época de Jesus, a Palestina carecia de lealdade. Ela era um cruzamento de povos e culturas. Seus dois milhões ou mais de habitantes — dominados por Roma — encontravam-se divididos por regiões, religiões e posições políticas. “Em uma viagem de um dia, podia-se passar por povoados rurais, em que os lavradores aravam a terra com O PERÍODO DE JESUS E DOS APÓSTOLOS 5 ferramentas primitivas, e até em cidades agitadas, onde os homens apreciavam o conforto da civilização romana. Na cidade santa de Jerusalém, sacerdotes judeus ofereciam sacrifícios ao Senhor de Israel, enquanto em Sebaste, cerca de apenas 48 quilômetros dali, sacerdotes pagãos celebravam cerimônias em nome do deus romano Júpiter.” Os judeus, que representavam apenas metade da população, desprezavam seus dominadores e se ressentiram profundamente da presença de sinais da cultura pagã em sua antiga terra natal. Os romanos não eram somente mais um povo de uma longa série de conquistadores. Representavam um modo de vida odiado. Seu reinado trouxe à Palestina a cultura helênica (grega), que os sírios haviam tentado impor aos judeus mais de um século atrás. Todos os descendentes de Abraão desprezavam seus conquistadores; discordavam apenas quanto ao modo de lhes resistir. Séculos antes, os profetas de Israel haviam falado sobre o dia em que o Senhor libertaria seu povo do paganismo e estabeleceria seu reino sobre toda a Terra. Naquele dia, diziam, ele enviaria um soberano ungido — um messias — para dar um fim ao corrupto mundo atual e substituí-lo por um paraíso eterno. Ele venceria a morte e julgaria suas ações neste mundo. Os perversos seriam punidos, mas os retos seriam recompensados com a vida eterna no reino de Deus. Segundo o livro de Daniel e outros escritos judeus populares, o reino de Deus só se estabeleceria após uma batalha final cósmica entre as forças do mal, comandadas por Satanás, e as forças do bem, lideradas pelo Senhor. Ela só cessaria com a destruição da ordem do mundo existente e com a criação de um reino sem limites (Dn 7.13, 22). Essa crença juntamente com as idéias sobre ressurreição e juízo final faziam parte da fé judaica popular. Em decorrência do desgosto de viver sob dominação romana, surgiram várias facções entre os judeus, cada uma com uma interpretação diferente da crise. O movimento de Jesus era uma delas. O grupo dos fariseus enfatizava as tradições e as práticas judaicas que os separavam da cultura pagã. Seu nome significa “os separados”, e eles se orgulhavam de observarem rigidamente cada detalhe da lei judaica e de sua extrema intolerância com as pessoas que consideravam impuras em relação a essa lei. Sua fé e seu patriotismo os tornaram líderes respeitados entre seu povo. Para alguns judeus, no entanto, o domínio romano significava uma 6 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS grande vantagem. Dentre eles, estavam membros da aristocracia de Jerusalém. Desse pequeno, rico e seleto grupo saía o alto sacerdote e os demais sacerdotes do templo. Muitos deles apreciavam a moda e as maneiras sofisticadas da cultura greco-romana. Alguns chegaram a adotar nomes gregos. Seus interesses eram representados por um grupo politicamente conservador chamado saduceus. Na época de Jesus, esses homens ainda controlavam o alto conselho judeu, ou sinédrio, mas tinham pouca influência sobre as pessoas comuns. Um outro grupo, o dos zelotes, era favorável à resistência armada contra todos os romanos instalados em sua pátria. Eram motivados pelos gloriosos dias dos macabeus, dois séculos atrás, quando o fervor religioso e a espada pronta para a luta derrotaram os suseranos pagãos gregos. Assim, as colinas da Galiléia sempre abrigaram um grande número de grupos guerrilheiros prontos para iniciar uma revolta ou destruir um símbolo da autoridade romana na Palestina. Finalmente, havia também os essênios, que tinham pouco ou nenhum interesse pela política ou pela guerra. Em vez disso, retiraram-se para o deserto. Lá, em isoladas comunidades monásticas, estudavam as Escrituras e preparavam-se para o reino de Deus. Jesus teve de pedir a lealdade de seus seguidores sem confundir os propósitos de sua missão com os objetivos desses outros grupos existentes entre os judeus. Era uma tarefa difícil. O MINISTÉRIO DE JESUS Jesus iniciou seu ministério unindo-se a um novo movimento existente no deserto judaico e liderado por um profeta chamado João. A vau do rio Jordão, ao norte do mar Morto, era um dos locais mais agitados de toda a região, de forma que João Batista tinha a multidão de que precisava para ouvi-lo. Usando roupa feita de pêlo de camelo e com olhar flamejante, ele ficava na margem do rio, aconselhando a todos que por ali passavam a arrepender-se de seus pecados e a preparar-se para o dia do juízo por meio do batismo no rio Jordão. Muitos acreditavam que João era o Messias prometido, mas ele o negava com veemência. Explicava sua missão com as palavras do profeta Isaías: “Voz do que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” (Mt 3.3). Afirmava ser apenas o precursor do O PERÍODO DE JESUS E DOS APÓSTOLOS 7 Messias. “Eu na verdade vos batizo com água”, disse ele, “Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3.16). O apelo de João ao arrependimento e à retidão atraiu Jesus ao Jordão. Ele encontrou na mensagem de João a verdade de Deus, e, para cumprir sua palavra, se submeteu ao batismo de João e logo em seguida deu início a sua própria missão, proclamando: “O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Jesus, contudo, ao invés de permanecer no deserto, preferiu iniciar sua missão na Galiléia, uma terra de suaves colinas e vales verdejantes. Nas primeiras semanas e meses, andou de vilarejo em vilarejo pela Galiléia, pregando nas sinagogas à noite e nos Sabbath. Carregando um saco de pães, um odre de vinho e uma bengala, ele andava pelas estradas empoeiradas. Provavelmente, vestia-se como qualquer outro viajante, com uma túnica de linho rústico coberta por um manto vermelho ou azul. Em um dia típico, Jesus sairia ao amanhecer e andaria quilômetros e quilômetros. Perto do pôr-do-sol, entraria em um povoado e procuraria sua sinagoga. Como diz uma história popular, “lá talvez tivesse uma recepção calorosa dos habitantes da cidade, que muitas vezes não tinham um rabino e dependiam dos serviços de mestres andarilhos, como Jesus. Quando os lampiões fossem acesos, e os homens do vilarejo tomassem seus lugares, Jesus se sentaria numa plataforma central” e começaria a ler uma passagem das sagradas Escrituras. Em voz clara e forte, ele anunciaria o cumprimento de alguma profecia ou contaria alguma parábola. O tema principal dos ensinamentos de Jesus era o reino de Deus. Mas o que queria dizer com isso? Ele acreditava numa intervenção decisiva de Deus na história do mundo? Ou, de alguma maneira, que o reino já estava aqui? Provavelmente, acreditasse nas duas coisas. Elas podem se conciliar se reconhecermos que tratam da soberania de um Deus pessoal e misericordioso, e não de um reino geográfico ou local. Jesus dava a entender que o governo de Deus já estava presente no poder salvador que havia em sua pessoa. E ele ofereceu provas sobre isso. Seus milagres de cura não eram apenas maravilhas, mas sinais, o poder dos tempos por vir já manifesto no presente. “Mas se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus”, disse Jesus, “certamente a vós é chegado o reino de Deus” (Lc 11.20). Por temer que suas curas fossem mal- 8 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS interpretadas, que as pessoas o vissem como mais um mágico, sempre pediu àqueles que curava que se mantivessem em silêncio. Mas as notícias se espalharam, e rapidamente as pessoas das vilas e cidades de toda a Galiléia comentavam sobre o novo operador de maravilhas capaz de curar cegos, aleijados e doentes com o poder de sua voz e o simples toque de suas mãos fortes de carpinteiro. Logo, multidões se formavam onde quer que ele falasse. A crescente popularidade de Jesus gerou controvérsias, principalmente entre os fariseus, que detestavam ver as pessoas seguindo e ouvindo um homem que nunca estudara com seus cultos escribas. E não hesitaram em questionar abertamente suas referências. A MENSAGEM DE JESUS Jesus aceitava os desafios dos fariseus por lhe oferecerem oportunidade de confrontar sua mensagem de arrependimento e graça com o fato de se auto-exaltarem. Em certa ocasião, provavelmente quando os peregrinos dirigiam-se a Jerusalém para uma das grandes festas, Jesus falou sobre dois homens que haviam se dirigido ao templo para orar. Que tremendo contraste havia entre eles! Um era fariseu, e o outro, surpreendentemente, coletor de impostos. Com a perícia de um ator, o homem sem pecados ficou em pé e orou: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens que praticam a extorsão, são injustos e adúlteros, tampouco como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes na semana e dou os dízimos de tudo o que possuo” (Lc 18.11-12). Seja como for, era isso o que ele pedia para si mesmo e não apenas uma falsa ostentação vazia. Os fariseus destacavam-se nos “atos de retidão” — jejuando e dizimando —, o que os mantinha afastados dos homens depravados. A falha desse indivíduo estava na exaltação que fazia de si mesmo e no olhar cruel que tinha em relação aos outros. Os fariseus se consideravam os únicos justos e viam aos demais mortais sob uma rígida condenação. Enquanto isso, o coletor de impostos, disse Jesus, estando em pé e afastado, era a imagem da contrição. Seus olhos voltavam-se para baixo, e a cabeça estava curvada pelo sentimento de culpa. Sua oração era um O PERÍODO DE JESUS E DOS APÓSTOLOS 9 soluçar de remorso, uma súplica por misericórdia: “Ó Deus, tenha misericórdia de mim, pecador!” “Digo-vos”, disse Jesus, “que este desceu justificado para sua casa, e não aquele” (Lc 18.14). Impossível haver maior contraste do que aquele entre a fé dos fariseus e a atitude do movimento de Jesus. Uma se baseava na observância das centenas de leis religiosas dos judeus, e a outra na negação de si mesma e na crença na misericórdia de Deus. Jesus escolheu um grupo de homens, dentre as centenas de seus seguidores, para andar com ele todo o tempo. Passaram a ser chamados de “apóstolos”, que significa “enviados”. No início, era um grupo heterogêneo — doze homens ao todo —, pescadores e cobradores de impostos, que devotavam forte lealdade a Jesus. Para eles, Jesus mostrou a distinção entre seu reino e os reinos do mundo. Seus seguidores, disse ele, representavam um outro tipo de sociedade e de grandeza. Nos reinos deste mundo, líderes poderosos dominam os outros homens, mas o reino de Deus é governado de maneira santa, pelo serviço e pelo amor. “Não temam”, disse-lhes ele, “é vontade de seu Pai dar-lhes o reino.” A popularidade de Jesus tornou-se evidente um ano antes de sua prisão em Jerusalém. Na Páscoa, depois de haver alimentado cinco mil peregrinos numa colina da Galiléia, vários de seus discípulos tentaram proclamá-lo rei. Jesus sabia, entretanto, que eles sequer imaginavam quais eram os planos de Deus para a sua vida — e morte. Assim sendo, abandonou o local com apenas alguns homens. Jesus sabia que tinha um papel único nos planos de redenção de Deus, mas temia os títulos tradicionais oferecidos a redentores messiânicos. As multidões confundiam as coisas facilmente. Sua imagem ensinando aos doze homens forma-se ao longo das linhas de Isaías que compõem o retrato do Servo Sofredor: “desprezado e rejeitado pelos homens (...) pelas suas pisaduras fomos sarados (Is 53.3,5) e da descrição de Zacarias que falava de um rei humilde, montado em um jumento” (Zc 9.9). A ÚLTIMA SEMANA Com essas imagens proféticas em mente, no domingo anterior à Páscoa, Jesus entrou em Jerusalém montado em um burro, cumprindo as profecias de Zacarias. A multidão atirava ramos de palmas em seu