ANACORESE (Parte I)
A anacorese cristã
“Jesus, porém, sabendo que viriam buscá-lo para fazê-lo rei, retirou-se
(anechóresen) de novo, sozinho, na montanha” (Jo 6,15). O verbo grego anachoréo
significa “retirar-se”, “partir”, e o substantivo correspondente, anachóresis, “retiro”,
“partida”. Logo no início do monaquismo cristão esses termos adquiriram o significado
técnico de “vida retirada do mundo” – daí “anacoreta”, pessoa que vive separada do
mundo. Todavia, em seu sentido cristão mais profundo, a anacorese é um valor
espiritual não apenas válido, mas até necessário a qualquer batizado que queira levar a
sério a fé que professa.
Para a Bíblia, o mundo é bom, mas dominado pelo mal. No Antigo Testamento,
desde Abraão, a postura do Povo de Deus em relação ao mundo é de ruptura, de saída,
de separação, até mesmo legal e ritual, de tudo o que é contrário a Deus. Para os
profetas, essa ruptura não devia se limitar ao aspecto meramente exterior, mas tinha de
ser, sobretudo, interior. Os profetas relembravam com saudade os quarenta anos de
peregrinação no deserto, após a libertação da escravidão no Egito, como um tempo
privilegiado da história do Povo de Deus, quando foi selada a Aliança. Mais tarde,
surgiram os movimentos monásticos judeus, em Qumran, perto do Mar Morto, e nas
vizinhanças de Alexandria, no Egito, com os denominados terapeutas, cuja anacorese
(retiro, separação) no deserto não se dava apenas em relação aos pagãos, mas aos
próprios outros judeus. Esses dois movimentos desapareceram com a derrota imposta
aos judeus pelos romanos entre os anos 66 e 70. Não podemos igualmente deixar de
notar que João Batista, que era “mais do que um profeta” (cf. Mt 11,7-15), pregou no
deserto a chegada do Messias, e o próprio Jesus lá se preparou para o seu ministério,
retornando depois à solidão diversas vezes.
Para o Novo Testamento, notadamente nos escritos de São João e de São Paulo,
“mundo” tem geralmente uma conotação negativa, não enquanto realidade material,
criada por Deus e boa em si mesma (não há dualismo), mas como uma mentalidade
inimiga de Deus, como o mal que contaminou a criação: “o mundo inteiro está sob o
poder do Maligno” (1Jo 5,19). O demônio é chamado por Jesus de “Príncipe deste
mundo” (Jo 16,11), e São Tiago convida o cristão a “guardar-se livre da corrupção do
mundo” (Tg 1,27). A apostasia torna as pessoas piores do que eram antes de abraçarem
a fé: “Se, depois de fugir às imundícies do mundo pelo conhecimento de nosso Senhor
Jesus Cristo, e de novo seduzidos se deixam vencer por elas, o último estado se torna
pior do que o primeiro” (2Pd 2,20). O apóstata abandona o Reino de Deus, ao qual já
pertencia, e retorna a “este mundo” dominado por Satanás e, por isso, é visto com horror
pela Igreja: “o cão voltou ao seu próprio vômito, e a porca lavada tornou a revolver-se
na lama” (2Pd 2,22). Existe uma incompatibilidade radical entre o Reino de Deus e o
mundo: “Que afinidade pode haver entre a justiça e a impiedade? Que comunhão pode
haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Belial? Que relação entre o fiel e
o incrédulo? Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos?” (2Cor 6,14-16). É
por causa desse antagonismo inconciliável com o mundo que o cristianismo é por ele
perseguido. O motivo dessa perseguição é essencialmente religioso, não político, como
pensam alguns (nada nas fontes justifica tal afirmação).
O cristianismo nasceu e em seguida se difundiu no seio do Império Romano.
Ora, esse Império vasto e multicultural era extremamente tolerante em matéria religiosa.
No extenso território dominado pelos romanos coexistiam muitos povos, e seus
respectivos deuses eram sempre bem-vindos à própria capital, Roma. Ao contrário do
Deus judeu-cristão, os deuses pagãos não eram ciumentos, não se importando com o
culto prestado a deuses vizinhos. Por que, então, os cristãos foram perseguidos? Afinal,
o seu Deus não era apenas mais um entre uma infinidade de outros? Na verdade, essa
tolerância dos deuses (e de Roma) exigia algo em troca: adorar um determinado deus
não podia implicar na negação dos demais, principalmente dos deuses da cidade, nem
na dispensa das cerimônias religiosas oficiais. Além disso, essa condescendência
religiosa requeria também a adoção do modus vivendi da cultura romana. Os judeus
eram mais ou menos aceitos como exceção a essa regra geral, pois constituíam uma
nação bem determinada e com o seu próprio Deus nacional – o que não impediu que
fossem expulsos de Roma mais de uma vez. De início as autoridades romanas não
distinguiam os cristãos dos judeus. O cristianismo era considerado uma seita judaica e,
como tal, não era perseguido. Não demorou muito, porém, para ser identificado como
uma religião diferente e a ser visto com maus olhos pela população pagã.
No ano 64 dois terços da cidade de Roma foram devastados por um terrível
incêndio, e as suspeitas recaíram sobre o imperador Nero como possível responsável
pela tragédia, algo, aliás, nunca provado até hoje. Em todo caso, para desviar de si as
atenções, Nero acusou os cristãos de terem posto fogo na cidade. Ao fazer isso, o
imperador tinha consciência de que estava lançando a culpa sobre um grupo que já era
detestado pelo povo, que, assim, não teria dificuldade em acreditar que os cristãos
tinham mesmo cometido esse crime. Em seguida foi promovido um massacre que
causou muitos mártires, entre os quais São Pedro e São Paulo. O cristianismo foi
definido como superstitio illicita (“superstição ilícita”) ou superstitio malefica
(“superstição maléfica”) e colocado na ilegalidade, passando doravante a ser perseguido
pelo Estado, situação que persistiu até o início do século IV. Em consequência, o
simples fato de alguém ser cristão acarretava um risco de vida, pois se tratava de um
crime passível de morte. Com isso, naturalmente, o nível de fé e de moral das
comunidades era bastante alto, pois apenas pessoas inteiramente comprometidas com a
Igreja pediam o batismo – lembremos que nessa época a grande maioria dos cristãos era
de convertidos provenientes do paganismo. Além disso, quando um adulto pedia para
ser inscrito entre os catecúmenos, a comunidade o acompanhava atentamente, a fim de
verificar se, de fato, havia mudado de vida. A população pagã, por outro lado,
considerava esse novo comportamento como antissocial. De fato, os cristãos não
assistiam às lutas de gladiadores, não frequentavam os espetáculos no circo (que
frequentemente eram acompanhados de atos idolátricos), não iam ao teatro (havia
muitas peças imorais e, não raramente, também atos de idolatria). As mulheres cristãs
não abortavam e os pais não podiam abandonar os filhos recém-nascidos (dois costumes
frequentes e aceitáveis na época). Além disso, se houvesse um perigo iminente para o
Império ou para determinada cidade, ou se ocorria alguma calamidade, eram
convocados atos de culto público para aplacar a cólera dos deuses, mas os cristãos não
compareciam a eles. Em uma sociedade religiosamente relativista e de moral laxa, e que
não separava as obrigações civis e as religiosas, os cristãos foram oficialmente acusados
de “ateísmo” (por renegarem os deuses) e de “ódio ao gênero humano” (por se
ausentarem de muitos atos da vida civil “normal”), embora fossem pacíficos, não
contestassem a legitimidade do poder do Estado e se submetessem às leis (com exceção
daquelas que os obrigavam a praticar atos de idolatria).
Além da crença em um Deus único, com exclusão de qualquer outro deus, o
comportamento público é que diferenciava os cristãos dos outros súditos do Império – e
essas duas características os tornavam socialmente irritantes e antipáticos em extremo:
“o mundo os odiou porque não são do mundo” (Jo 17,14). Conforme o famoso texto de
um cristão anônimo do século III, que é uma resposta a um amigo pagão chamado
Diogneto, os cristãos assumiam as culturas locais onde se encontravam, mas, ao mesmo
tempo, constituíam uma poderosa e incômoda contracultura: “Não se distinguem (os
cristãos) dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. Não
habitam cidades à parte, não empregam idioma diverso dos outros, não levam gênero de
vida extraordinário. Moram alguns em cidades gregas, outros em bárbaras, conforme a
sorte de cada um; seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação
e ao restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável e sem dúvida
paradoxal. Casam-se como todos os homens e como todos procriam, mas não rejeitam
os filhos. A mesa é comum; não o leito. Estão na carne, mas não vivem segundo a carne.
Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus. Obedecem às leis
estabelecidas, todavia superam-nas pela vida. Os cristãos residem no mundo, mas não
são do mundo” (Carta a Diogneto 5,1-2.4-10; 6,3; trad. de Dom Frei Fernando
Figueiredo, OFM). A conversão ao cristianismo exigia uma completa mudança de
mentalidade, a adesão a uma inteiramente diversa escala de valores fundamentais (é o
que significa o termo metánoia) e, por conseguinte, supunha um estilo de vida coerente
com essa nova compreensão da realidade.
Em resumo, na Igreja dos primeiros séculos (paradigma para a Igreja de
sempre), todos os cristãos deviam praticar uma “anacorese espiritual” em relação ao
mundo. O “retiro do mundo” ou a “separação do mundo” eram entendidos como retiro
ou separação do “mundanismo”: “Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes
do Maligno” (Jo 17,15). Nesse sentido, com o justo e urgente objetivo de adaptar a
Igreja ao mundo moderno, o Concílio Vaticano II, notadamente com a Constituição
Pastoral Gaudium et Spes, assumiu uma postura bastante positiva diante das realidades
humanas e das legítimas conquistas da modernidade, sem esquecer, por outro lado, que
a Igreja tem a missão de evangelizar o mundo, não de ser mundanizada por ele.
“Moderno” não é, necessariamente, sinônimo de “bom”. Ninguém pode ser um cristão
autêntico estando impregnado por uma mentalidade que é contrária ao Evangelho.
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