1 II ENCONTRO MEMORIAL DO ICHS: Nossas Letras na História da Educação De 11 a 13 de novembro de 2009 Mesa Redonda: História de Minas Gerais Minas Gerais e o mito da cornucópia da abundância Profa. Dra. Sônia Maria de Magalhães Universidade Federal de Goiás [email protected] O mito da cornucópia e a escassez A improbabilidade da colheita, a sazonalidade climática, o esgotamento do solo, todos os fatores que culminam na escassez fizeram com que o homem criasse narrativas fantasiosas expressando seu desejo e sua aflição em torno da abundância de alimentos. Na mitologia grega, o símbolo da abastança é oriundo da Amaltéia, cabra fabulosa que amamentou o infante Zeus em Creta. Narra-se que dela se originou a cornucópia, ou Corno da Abundância. Conta-se que certo dia, Zeus estava brincando com a cabra quando quebrou o seu chifre. Para compensá-la, Zeus conferiu a esse corno o poder de se encher com todos os víveres que fossem apetecidos. A cornucópia tornouse, assim, símbolo da abundância e da fertilidade ilimitada, que só pode ser obtida por dom divino (Manguel; Guadalupi, 2003). O mito do país da Cocanha reflete a mesma simbologia dessa lenda no universo medieval. Com algumas variações, a Cocanha é apresentada como uma terra fantástica, na qual doces nascem em árvores, caldas jorram de nascentes, pombos e faisões assados voam pelo ar, vales são formados por manteiga derretida e vulcões lançam sopa quente das entranhas da terra. Lugar quimérico, onde a comida era abundante e o trabalho não era necessário, onde existiam rios de leite e de vinho, queijos e pães eram conseguidos sem dificuldade não era uma utopia em sentido restrito, mas uma fantasia que às vezes era acossada como realidade pelos europeus (Franco Júnior, 2008). 2 Quando o Novo Mundo se tornou conhecido, criou-se uma possibilidade de representação do paraíso na Terra, sonho perseguido pelos cristãos, que agora poderiam enfim encontrar a Cocanha, a terra abundante de víveres, festas e orgias. Em "Visão do Paraíso", Sérgio Buarque de Holanda investiga "os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil". Interpretando as fantasias do Renascimento, comenta: "A idéia de que do outro lado do Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida uma comparação em tudo digno dele. Com a descoberta, o chocolate, a baunilha, o tomate, o milho inundavam, sobretudo a Europa com o sabor do Novo Mundo. Havia também a promessa do Eldorado e de fabulosas minas de ouro. Em referência ao paraíso, Holanda justifica a necessidade de um novo Éden, e posteriormente com o fracasso inicial da luta portuguesa contra o continente selvagem, a edenização da América portuguesa dá lugar à satanização, e de Terra de Santa Cruz a Brasil, era então o lugar infernal, de acordo com Laura de Mello e Souza. Ao encontrar o paraíso, o português denota o quanto estava à procura dele, pois as noticias de uma região, farta em frutos e animais selvagens poderia bem ser o verdadeiro do País da Cocanha. Nos primórdios da colonização do Brasil, os visitantes europeus encantaram-se com a paisagem tropical, as possibilidades que pareciam infinitas, a abundância e a fartura de provisões das terras recém-conquistadas. A História da Província de Santa Cruz e o Tratado da Terra do Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo, descrevem o novo domínio português, nomeiam e designam a utilização de árvores, frutos e animais, exaltam as belezas do céu, a salubridade do clima, as benesses do solo e as riquezas minerais, animais e vegetais. No primeiro livro, Gandavo anima a todos aqueles que viviam na pobreza no Reino que buscassem amparo na nova província “porque a mesma terra é tal, e tão favorável aos que vão buscar que todos agasalha e convida com remédio por pobres e desamparados que sejam” (Gandavo, 1964,p.23). Gabriel Soares de Souza (1971), em seu Tratado descritivo do Brasil, de 1587, realça a existência de duas faixas de consumo, a do europeu e a do povo. O primeiro importava tudo de que necessitava, enquanto a segunda categoria, correspondendo à camada majoritariamente pobre, sofria restrições alimentares. A gente de Salvador, por exemplo, alimentava-se basicamente de farinha de mandioca, mariscos e peixes. Sempre 3 exagerado na propaganda do novo domínio, esse autor afirma a superioridade da farinha da terra sobre o trigo português. No século seguinte, a obra Diálogos das grandezas do Brasil, de Brandão, além de louvar as qualidades da colônia, elabora as primeiras explanações socioeconômicas do território. Ressalta com nitidez a divisão entre a lavoura da cana e a de subsistência, esta, extremamente limitada e fora dos domínios do engenho. Assim, considerando-se a estreiteza da produção de alimentos, insuficiente para garantir o sustento da população, já naquela época convivia-se com a falta e a carestia de mantimentos. Mesmo o entusiasmado Brandônio, incansável na tarefa de divulgar a abastança do Brasil em alimentos os mais ricos e variados ao seu amigo Alviano, reconhece que, apesar de raros, havia tempos de esterilidade em que a fuga para os campos se apresentava, praticamente, como único recurso para não se morrer de fome. Dos matos extraíam-se a raiz do caravatá, o fruto da comari, uns coquinhos denominados aquês, a raiz do cipó macuna. As folhas de mandioca cozida, conhecida como maniçoba, também tinham ampla serventia nessas ocasiões (Brandão, 1943, p.195-6). O Frei Vicente de Salvador (1954,p.68), mesmo considerando que [...] é o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão os mantimentos de todas as outras. Dá-se trigo em São Vicente em muita quantidade, e dar-se-á na maior parte cansando primeiro as terras, porque o viço lhe faz mal. Dá-se também em todo o Brasil muito arroz, que é o mantimento da Índia Oriental, e muito milho zaburro que é o das Antilhas e Índia Ocidental. Dão-se muitos inhames grandes, que é o mantimento de São Thomé e Cabo Verde, e outros mais pequenos, e muitas batatas . Prenuncia o encarecimento dos víveres nos centros mais populosos de Recife, São Luís e Rio de Janeiro. Outros escritos, como os do padre Fernão Cardim (1939) e do padre Vieira (1951), reforçaram o panorama de constante precariedade e má qualidade da alimentação regional. Ainda que esses cronistas tenham enaltecido a profusão e a variedade de produtos tropicais, o Brasil já convivia com o desprovimento de mantimentos. Diante deste panorama do Brasil nos primeiros séculos de colonização, Gilberto Freyre (p.38) afirma: 4 País de Cocagne cousa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o suprimento de víveres. Freyre se interessou entusiasticamente pela alimentação no Brasil e na sua narrativa dos anos coloniais dedica muitas páginas a comida, ou melhor, a escassez dela no período. Uma de suas explicações é a de que os portugueses no séc. XVI exceção feita aos açorianos eram uma gente essencialmente comerciante, mercadores que tinham perdido o gosto pela terra e os conhecimentos necessários ao seu cultivo. Freyre fez da alimentação um dos tópicos mais presentes ao longo de toda a sua obra e notadamente em Casa Grande e Senzala, no qual reafirma diversas vezes o quanto era monótona a mesa colonial. Em todo o lugar comia-se farinha de mandioca, substituto do pão, o nutrimento primordial de índios, brancos ou negros, pobres ou ricos, nordestinos ou sulinos. A única exceção, na opinião dele, era o planalto paulista onde a cana tinha obtido resultados medíocres e por esse motivo se instalou uma vantajosa pluricultura de mantimentos. Em sua análise, Freyre não desconsidera os registros dos viajantes europeus que, ao contrario, dão conta da opulência nas mesas. Fernão de Cardim no século XVI, por exemplo, notifica a "fartura de carne, de aves e até de verduras e de frutas" (Freyre, 1977, p.37). No parecer de Freyre, as passagens contidas nos diários de viajantes que relatam banquetes com talheres de prata e fartura devem ser contextualizados e lidos como o depoimento de visitantes recebidos nos engenhos e nas casas como pessoas notáveis, que compartilham uma refeição excepcional. Para ele, esses relatos são amostras de que se tratava de uma sociedade de aparência, no qual o cotidiano precário contrasta com a abundância demonstrada para os visitantes. A obra Casa Grande e Senzala é repleta de referências dessa dicotomia entre o dia a dia e a festa. Para o autor, a precariedade alimentar é motivada pela a cobiça dos senhores de engenho que destinam toda sua mão de obra para a monocultura açucareira negligenciando o cultivo de víveres. Tal situação resulta em uma crise de alimentos, nomeadamente a de farinha de mandioca ao final do século XVIII, que aflige Salvador e leva os governadores, seguindo o exemplo do Conde de Nassau no séc. XVII, a decretar a obrigatoriedade do plantio de mil covas de mandioca por escravo. 5 Recuperando o mito da Almatéia, ou o poder do corno ou dos chifres, Câmara Cascudo nos adverte que tais alegorias: [...] recordam os animais votivos aos deuses da fecundação e reprodução da espécie[...].Multiplicando a vida pelo seu prolongamento no tempo, por um processo associativo, o povo transformou o corno num amuleto afugentador da esterilidade e das forças invisíveis e inimigas. Erguem o chifre ou mesmo o esqueleto da cabeça bovina no alto de uma vara, dominando a plantação. É um uso que nos veio da Europa e conserva em todo Brasil, especialmente nas zonas agrícolas. Evoca o corno da abundância, arrancado à cabra Almatéia, que amamentara à Júpiter,símbolo da fortuna material, especialmente alimentar, inextinguível. O chifre nos roçados sertanejos e caipiras do Brasil provém, confusa e teimosamente dessas fontes (Câmara Cascudo, 1993,p.254). A representação de uma fonte infinita de recursos é muito enraizada em sociedades para a qual a prática agrícola sempre foi uma atividade incerta, como em Minas Gerais que vivenciou, ao longo da sua história, vários períodos de crises de abastecimento. Minas e o mito da mesa farta A historiografia mostra que as condições de vida nas Minas na aurora da colonização eram extremamente precárias. As primeiras referências a uma grande crise de fome remontam ao ano de 1698, quando o governador Artur de Sá Meneses escreve ao rei para notificá-lo que os mineiros haviam deixado de minerar por causa da anormalidade. Mesmo quando a região já contava com o fornecimento dos mercados de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, uma estiagem prolongada ou chuvas inesperadas podiam significar o retorno do espectro da fome, pois “bem frágil era o equilíbrio entre as roças de mantimentos e as necessidades da população” (Romeiro, 2008, p.172). Foi o que aconteceu nos anos de 1700-1701, quando a região ficou isolada, acarretando um gravíssimo estado de fome. Se a míngua de víveres dos anos anteriores tinha sido grave, a daqueles anos alcançou níveis extremos. O resultado não poderia ser outro: dezenas de 6 pessoas morreram por inanição e as perdas com os escravos foram incalculáveis. De acordo com as informações contidas no Códice Costa Matoso (p.173 e SS), a fuga em massa de gente para as matas, resultou, em pouco tempo, na dizimação da fauna e flora local: Em pouco tempo, porém, os víveres silvestres se esgotaram, e nada havia para caçar ou coletar. A tal ponto chegaram a escassez de víveres que, no ano de 1700, os matos ficaram silenciosos: não se ouvia sequer o pio de pássaros (Romeiro, 2008, p.173). Para Zemella, essas crises se verificaram inicialmente por não haver ainda sido sistematizado o sistema dos fornecimentos. Em outras ocasiões houve apenas a escassez de sortimentos, e não a sua falta absoluta. Os preços dos alimentos chegaram a níveis absurdos e, assim, a morte por inanição atingia apenas os miseráveis e a escravaria. As graves crises de abastecimento e de fome não ficaram restritas aos anos de 1697-1698 e 1700-1701. Em 1713, em Pitangui, houve um novo surto. Assim, a crise alimentícia e a carestia dos gêneros constituíram os dois traços preponderantes daquele período. A escassez, somada à careza dos alimentos, não abandonou totalmente a região, mesmo quando a agricultura passou a fazer parte definitivamente das unidades produtivas mineiras. A presença da fome no século XIX, na região de Mariana – precisamente no ano de 1830 – pode ser demonstrada por meio do informante: Capitão João dos Santo França [?] Juiz de Paz do Presidio de São João Batista expondo a necessidade sumária por Edital o lugar da praça da Nova Matriz para vendagem de mantimentos por haver fome e resolveu que o senhor presidente expressa o Edital e Ofício necessário.1 Se por um lado a fome foi a grande inimiga dos primeiros mineiros que se estabeleceram ao longo do ribeirão do Carmo, ocasionando um breve despovoamento do arraial, por outro lado fez com que essa gente se tornasse mais previdente. Ademais, a fuga para os matos em busca de víveres acarretou no desbravamento em torno do ribeirão, e o estabelecimento de novos povoados e das primeiras unidades produtivas agrícolas na região. De acordo com Diogo de Vasconcelos, nesse período se instalaram as mais antigas fazendas do Carmo, do Gualaxo do Norte e do Gualaxo do Sul, 16971698, (Vasconcelos, 1974). 1 Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana –Atas da Câmara de Mariana–Livro 206. 7 Se a escassez e por vezes fome declarada faz parte da história de Minas Gerais, compensa indagar sobre a construção do mito da mineiridade associado à fartura e abundância alimentar que predomina na atualidade. O mito é aqui compreendido como uma representação de fatos frequentemente, desfigurados, amplificados por intermédio do imaginário coletivo e de longas tradições literárias orais ou escritas. Uma construção mental de algo idealizado, conjuntura aspirada e desejada, porém sem comprovação prática. A mitoloda mineiridade, muito bem abordada pela professora Maria Arminda Arruda procura conexões entre mito e identidade, investigando a origem do fenômeno mítico contíguo com a construção da identidade. A compreensão do conceito tornou-se necessária, considerando que os mitos, de acordo com a autora, conferem material para elaboração das identidades culturais, caracterizados por exprimir a coerência da fala. Ela não percebe somente a dimensão do poder das idéias da elite mineira na elaboração de estratégias na forma de agir local e nacionalmente. Busca, sobretudo, averiguar como esses políticos exprimem seus sentimentos, no que concerne o que é ser mineiro. Para efetivação dessa empreitada, a obra estabeleceu diálogos entre a produção literária e a história de onde abrolham. A associação entre identidades e cozinha constitui objeto de pesquisa de Mônica Abdala que em “Receita de Mineiridade” tenta compreender a cozinha mineira como aspecto de sociabilidade, aventando construir uma proposta que elucidasse a associação entre cozinha e identidades. De maneira mais específica, a pergunta que se colocou foi a seguinte: por que, e por meio de que vieses, a cozinha se constituiu em componente tão formidável na constituição da imagem regional de Minas Gerais? “por que a cozinha?”; “que papel a cozinha assume na construção da imagem regional mineira?”. Nesta tarefa refletiu com a literatura que evidenciasse a associação entre o chamado “típico mineiro” e a cozinha em um período que abrange desde a produção literária dos viajantes do século XIX, até algumas obras do início da década de 1990. O mancal norteador desta reconstrução histórica consistiu numa periodização que reconhece duas temporalidades distintas na História de Minas: a referente ao auge da mineração e aquela que corresponde à ruralização da economia. Incorpora também uma terceira etapa correspondente à industrialização. A proposição que a autora sustenta 8 é de que a tais temporalidades distintas, correspondem ritmos sociais e também sociabilidades peculiares e, por conseguinte, feitios distintos da cozinha. Neste intento, intenciona não só recuperar tal processo histórico, mas também e a memória, com variação das receitas, ingredientes disponíveis, e níveis diferenciados da importância atribuída à cozinha no dia-a-dia e nos festejos. O empenho de captação do lugar e do tempo da culinária simbólica mineira no imaginário sobre os mineiros não tem a intenção apenas de contar a história de Minas Gerais a partir deste ponto de vista. Insere a discussão que propõe no contexto do tempo presente, caracterizado pela rapidez das mudanças e pela prescrição das idéias de facilidade e funcionalidade inclusive no universo da cozinha. Os primeiros apontamentos sobre a hospitalidade adjunto ao hábito de servir alimentos como características dos habitantes das Minas Gerais, se encontram nos relatos dos viajantes estrangeiros do século XIX, ressaltando uma espécie de modo de receber dos mineiros diferenciado em relação às outras províncias. Durante o século XX, crônicas e memórias também reforçaram este imaginário. A autora desvenda ainda, por intermédio das fontes consultadas, um investimento governamental na caracterização e divulgação da cozinha mineira como elemento central de uma identidade dos mineiros. Tal investimento tem início em meados dos anos de 1970 e, de acordo com a autora, dura até meados da década de 1980. Ao longo do século XIX, os viajantes estrangeiros que passaram pelo território mineiro contribuíram, sem dúvida, para estabelecer e projetar a província associada à terra da cocanha, a hospitalidade dos mineiros pertinente ao hábito de servir grande quantidade de alimentos. Luccock (1975), por exemplo, reforçou esta alegoria no seu diário. Neste, relata que durante o jantar na casa de um fidalgo em São João: “[..] a parte que maior impressão causou em meu espírito foi a sobremesa, na qual serviram-se vinte e nove variedades diversas de frutas nacionais, feitas em compota, cultivadas e fabricadas nas vizinhanças do lugar[... ]”. A hospitalidade dos mineiros, na forma de servir grande quantidade de alimentos aos visitantes, labora como reforço da idéia de abundância e prosperidade. Para Maria Arminda, a transição da sociedade mineira de urbana para rural condicionou a “tessitura do mito da mineiridade”. A ruralização transformou a fazenda mineira no microcosmo 9 do universo cultural, material e social. A autonomia relativa presente nas Minas desde o século XVIII foi transplantada para o universo agrário, contribuindo para a solidificação do sentimento regional e abrindo espaço também para as “invenções das tradições”. Assim, no século XIX a fazenda passou a ser o núcleo vital e definidor da economia mineira. Muitas dessas propriedades eram auto-suficientes, importando apenas alguns produtos, como ferro, sal, vinho e cerveja, charutos, cigarros, manteiga, louças, drogas e poucas outras coisas (Arruda, 1990). O pomar fornecia grande variedade de frutas consumida in-natura ou na forma de doces e compotas. Das hortas provinham os legumes e hortaliças. A proteína animal era completada, normalmente, pelos porcos e aves de quintal. No período que perdurou todo o século XIX e as primeiras décadas do século XX, por exemplo, de acordo a periodização tomada por Abdala, a agricultura sobrepôsse à mineração e estabeleceu-se um novo quadro econômico que teve como espaço central as fazendas diversificadas e auto-suficientes. Essa combinação específica, de um passado urbano e a vida rural imprimiram uma dinâmica própria à sociabilidade da região. Tropeiros e viajantes faziam parte do cotidiano e hospedavam-se nas fazendas. A fartura de alimentos possibilitava a hospitalidade e por vezes até o esbanjamento, dando a idéia de recursos ilimitados. As questões envolvendo o enigma da abundância seguem essencialmente as mesmas desde os tempos mitológicos: quem confere abundância e quem dela se beneficia. A abundância existe e pode ser usufruída, desde que se tenha titularidade e acesso a ela. A abundância, para ser percebida, deve conviver com a carência, ou má fortuna, daqueles que dela são despossuídos. Atualmente, abundância corresponde tanto a uma produção de alimentos acima das necessidades de consumo como a produção de alimentos maiores e com maior quantidade de nutrientes do que os alimentos tradicionais. Entre os mineiros, a presença angustiante da fome confere copiosas leituras para se pensar a construção da mineiridade associada abundância. A fartura de gêneros, tão propalada pelos viajantes estrangeiros no século XIX, servia também como reforço para esquecer as penosas privações de alimentos decorrente dos primeiros anos do povoamento do território. 10 Só nas sociedades atuais que é possível regular a produção de alimentos nas diversas épocas do ano. Contudo, na maior parte das sociedades tradicionais a fome e a abundância alternam-se ritmicamente. Na Indonésia oriental, por exemplo, as pessoas saúdam-se perguntando delicadamente se já cozinharam, ou seja, se já comeram. Na China, uma saudação comum entre amigos é :”Já comestes?” (Valeri, 1989, p.183). As sensações opostas da saciedade e da fome são objeto de interesse constante. A oposição entre ventre vazio e ventre cheio, entre fome e saciedade não se trata apenas de um prodígio psicológico, mas sobretudo social. A época de abundância está associada a um rito social intenso, pois possibilita a troca e o estreitamento das relações sociais. Durante o período que predomina a fome, em oposição ao anterior, diminui a solidariedade e a sociedade é ameaçada (Valeri, p.184) Valeri (p.198) enfatiza que em algumas sociedades “a maior desonra – mais temida que a fome – é ter as despensas vazias e não poder oferecer nada aos hóspedes”. Dessa forma, a função simbólica e social do alimento parece ser mais determinante que a sua função nutritiva. Neste sentido, a alimentação torna-se o centro de um dos mais vastos complexos culturais, abrangendo normas, símbolos e representações. A vida, o grupo e o meio se integram e se unificam, muitas vezes, em função dela. E a relação do homem com a alimentação pode se considerar semelhante à sua relação com a linguagem. Ambas obedecem a regras indiscutíveis e inconscientes, podendo sofrer modificações com a alteração do ambiente, demonstrando situações sociais, econômicas e religiosas. Do ponto de vista social, a alimentação só se legitima como necessidade na medida em que está ligada a uma organização para obtê-la e distribuí-la. Desta maneira, o meio natural aparece, inicialmente, como grande celeiro potencial, que será utilizado conforme as necessidades do grupo, uma vez que os animais e as plantas não constituem em si alimentos da perspectiva da cultura e da sociedade. É o homem que os cria como tais, enquanto os reconhece, seleciona e define. Qualquer que seja a sociedade, a alimentação está pautada com uma forma de comunicação, a ocasiões de trocas e de atos de ostentação, um conjunto de símbolos que constitui, para determinado grupo, um critério de identidade. As opções alimentares são acuradas, por sua vez, por um código cultural que define se certos produtos são 11 comestíveis e outros não. E a sua aplicação é associada a uma profunda consciência de identidade étnica. Destarte, a alimentação assume aspectos peculiares em diferentes sociedades. Contudo, vale o intento de recuperar a literatura de viagem e perceber que, mesmo quando as práticas agropecuárias estabeleceram-se no território, os mineiros mantinham uma alimentação banal, sem importantes alterações. Saint-Hilaire, por exemplo, registrou em seu diário de viagem: Galinha e porco são as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da Província de Minas Gerais. O feijão preto é indispensável na mesa do rico, e esse legume consiste quase na única iguaria do pobre. Se a esse prato grosseiro ainda se acrescenta alguma coisa, é arroz, ou couve, ou outras ervas picadas, e a planta geralmente preferida é a nossa serralha...como não se conhece o fabrico da manteiga, é substituída pela gordura que escorre do toucinho que se frita. O pão é objeto de luxo; usa-se em seu lugar a farinha de milho [...]. Um dos pratos favoritos do mineiro é a galinha cozida com os frutos do quiabo [...] mas os quiabos não se comem com prazer senão acompanhados de angu (Saint-Hilaire, 1975, p.96). John Mawe, em suas andanças pelas terras mineiras nos arredores da província de São Paulo, descreve a refeição dos escravos e dos administradores da fazenda, na localidade de Barro. No almoço, os administradores comiam feijão preto misturado com farinha de milho e torresmo de toucinho ou carne cozida. O jantar, por sua vez, constituía-se de um pedaço de carne de porco assada, farinha de milho e feijão. Os negros eram alimentados, ao almoço e à ceia, com farinha de milho misturada com água quente, na qual acrescentava-se um pedaço de toucinho, e no jantar, serviam-lhes feijão. Não havia muita variação nas quantidades protéicas entre a alimentação de um grupo e de outro. A segregação social ficava evidente na distribuição das partes das carnes: os administradores ficavam com os melhores cortes, enquanto os escravos consumiam as “peças” de segunda. Tanto o milho quanto o feijão eram consumidos por todos os segmentos daquela sociedade. Nesta época o ato de comer possuía um significado bastante peculiar, que era o empanturrar até atingir a plenitude gástrica. Deixar de ser pobre para os marianenses, por exemplo, significava poder comer muito: empanzinar de angu com carne de porco. 12 Convém também lembrar que, as técnicas antigas de armazenar alimentos — salgar, defumar, colocar em conserva, na calda rala de rapadura, na banha de porco, secagem ao sol, no mel, no azeite etc., —, que atualmente regalam o nosso paladar, foram aprimoradas pelo impulso da cultura da fome e, rapidamente suplantaram a dimensão da escassez e incorporadas a alta gastronomia. Percebe-se, então, que a invenção culinária não é oriunda somente da sofisticação, mas também da inópia e da penúria, como adverte Massimo Montanari. Este, afirma que o gosto faz parte do patrimônio cultural das sociedades. O sentido pelo qual se distinguem os sabores baseiase em critérios subjetivos de preferência em diferentes culturas, as predileções são mutáveis e condicionadas historicamente, mudando ao longo dos séculos. Neste sentido, as preferências gustativas são influenciadas pelas modas, pela acessibilidade ao mercado, ao consumo, entre outras determinações. O mecanismo de formação do gosto também tem uma intrínseca relação social, inerente a riqueza e a pobreza. Os pobres apetecem com gêneros mais acessíveis, pouco perecíveis, peculiarmente pelos feculentos, capazes de preencher o vazio do estômago e proporcionar a sensação de ventre cheio, livrando-os do espectro da fome. O objeto de desejo do rico, por sua vez, não é o acepipe corriqueiro, ordinário, mas o mais raro, mormente aquele que aguça o apetite, que estimula a comer mais. É interessante observar como a qualidade daquilo que se come vai ganhando mais espaço, ao longo do tempo, em relação à quantidade da porção ingerida. Se anteriormente, a capacidade do indivíduo em ingerir grande quantidade de comida e possuir reserva de víveres consistiam em relevante valor social (poder, superioridade física, prestígio social, ostentação), posteriormente as propriedades nutricionais daquilo que se ingere vai granjeando mais espaço na sociedade. A projeção da imagem do mineiro por intermédio da sua cozinha e das práticas alimentares, extrapolando os limites regionais, faz parte da “invenção das tradições” que, apesar de consideradas antigas, são muitas vezes recentes, quando não criadas. Entende por tradição inventada um conjunto de práticas, implicitamente aceitas, e que a partir do seu estilo ritual, ou simbólico, acabam imprimindo preceitos de comportamento por intermédio da reprodução de um passado selecionado (Hobsbawn, 2008). 13 A confraternização e a hospitalidade – esta caracterizada pela abundância de alimentos tantas vezes registrada pelos viajantes – eram acessíveis e possíveis a um determinado segmento, e em contextos sociais específicos. Até mesmo no cumprimento das normas religiosas impostas pela Igreja, a realidade econômica e as variações sazonais mostraram-se contundentes. No meio rural, constituído por grandes fazendas produtivas, tornavam-se viáveis as acolhidas generosas, tão comentadas pelos viajantes. Nessas ocasiões, a função simbólica e social dos alimentos era considerada superior à sua função nutritiva. As dádivas feitas na forma de comida possuíam um papel de grande importância para a obtenção de prestígio, servindo também para ostentação de riqueza. Riqueza que, verdadeira ou falsa, muitas vezes se ostentava no fausto da avocada “mesa mineira”, reavivando o mito da cornucópia da abundância. Fartura esta, que só pode ser abarcada na compreensão das crises alimentícias, espectro que permeava o cotidiano dos brasileiros ao longo da história. BIBLIOGRAFIA ABDALA, Mônica. C. Receita de mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro? Uberlândia: Edufu, 1997. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da Mineiridade.São Paulo: Brasiliense, 1990. BRANDÃO, A. B. Diálogos das grandezas do Brasil. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1943. CARDIM, F. Tratados da terra e da gente do Brasil (1583-1593). São Paulo: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1939. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1993. 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