Linguagem e termos técnicos: junta, solda, chanfro, bisel, filete Almir M. Quites www.soldasoft.com.br 07/2011 1 - Linguagem técnica e linguagem popular Consta que em uma cidadezinha do interior... Interrompo a narrativa para dizer que, felizmente, não sei o nome da cidadezinha. Se soubesse haveria o risco de ferir suscetibilidades regionais. Pois bem, consta que lá, a palavra parafuso é chamada de porco. Os meninos de lá aprendem, com seus mestres, que porco, além de ser o animal, é também o cilindro rosqueado, destinado à fixação mecânica de peças. Eles apertam porcos com a chave de boca. A palavra parafuso continua existindo, mas como “parafusa”, no feminino, significando barafunda, bagunça, confusão. Se alguém sugere que isto está errado, eles se sentem agredidos, feridos em suas convicções. Isto acontece frequentemente. Que fazer? Mais cedo ou mais tarde terão que mudar, a não ser que o linguajar deles se espalhe tanto, por todo o Brasil, a ponto de contaminar os documentos oficiais. Neste caso todos nós teríamos que dizer que as estruturas metálicas podem ser fixadas por porcos. Então seria a maior “parafusa”! Em São Paulo, na capital, quando querem dizer que a pessoa está faminta, dizem que ela está “esganada”. São exemplos da linguagem popular, diferente em cada região do país! A linguagem natural ou popular é aquela que nasce de maneira espontânea no seio da sociedade. Surgem palavras novas e fugazes. “Parafusa” nasceu assim. Esta linguagem não transcende a esfera do senso comum e carrega em si a ambigüidade, a instabilidade e a imprecisão, que empobrecem ou mesmo frustram a comunicação. A linguagem técnica é diferente, é bem elaborada, artificial, própria para atender ao rigor conceitual e destoar da ambigüidade, da mutabilidade e da imprecisão. O conhecimento pode ser obscurecido por certas perplexidades de natureza estritamente linguística. (1) O cientista se apóia numa linguagem eminentemente técnica, precisa e controlável. É por meio da linguagem técnica, que se faz o intercâmbio de informações e conhecimentos e se estabelece um meio de controle desses conhecimentos. Pela linguagem técnica se faz um intercâmbio eficiente entre comunidades muito distantes, inclusive separadas no tempo por muitos séculos. Para esse tipo de linguagem, sempre há o certo e o errado semânticos, os quais são de nenhuma ou pouca importância na linguagem popular. A linguagem tecno-científica é aquela que rompe com o senso comum e requer a evidência de precisão e de rigor técnicológico. Qualquer termo cujo conceito técnico seja mais especializado, mais restrito que o conceito dado nos dicionários comuns, deve ser definido cuidadosamente em Normas Técnicas. Cada Norma Técnica deve guardar coerência não apenas interna, mas também com as das especialidades conexas, porque a maioria dos termos não é exclusiva de uma só área. Na redação de Normas Técnicas há ainda um forte componente de linguagem jurídica, porque estas normas são aderidas em contratos entre fabricantes e clientes, mesmo entre países. A linguagem jurídica é técnica e formal, própria para leis, jurisprudências e doutrinas. A linguagem técnica exige muitos cuidados com o seu uso correto. Sem estes cuidados, que requerem um trabalho perseverante, a linguagem empobrece, torna-se confusa, distorce conceitos e embaraça o pensamento. Em outras palavras, sem este trabalho árduo, a linguagem técnica é embaralhada pela entropia lingüística. Conquistas importantes do pensamento humano se perdem. Atualmente, na área da soldagem, é perceptível o descaso com o significado dos termos técnicos, os quais são correntemente usados com imprecisão, mesmo nas universidades. Esta imprecisão abre caminho para desentendimentos, para erros que podem se disseminar, alastrarem-se como epidemia, vindo a contaminar até mesmo documentos oficiais. É preciso reconhecer que ninguém está imune a esta contaminação. O mesmo provavelmente acontece em outras áreas de conhecimento. 2 – Termos técnicos em soldagem É essencial construir, se possível em acordo com todos os países de língua portuguesa, um dicionário oficial de termos técnicos de soldagem. Não é aceitável nos limitarmos a traduzir as normas norte-americanas, sem levar em conta as peculiaridades do nosso idioma, intrincadamente ligado à nossa cultura. Estas tentativas de simples tradução sempre acabam por esbarrar em incongruências com outros conceitos. Os termos técnicos em alemão não guardam uma correspondência biunívoca com os do inglês. Por exemplo, “Fillet”, deriva do latim e foi adaptado ao inglês, mas a correspondência com “Kehle”, em alemão, é precária. As idéias subjacentes são diferentes. Cada idioma deve ter seus próprios termos técnicos. Por outro lado, nem sempre normas estrangeiras são bem feitas e não se devem reproduzir seus erros. É preciso lê-las criticamente. Por exemplo, a AWS(2) A3.0:2001 (Standard Welding Terms and Definitions) define junta assim: “Joint: the junction of members or the edges of members that are to be joined or have been joined”, que significa “a junção dos membros ou das bordas dos membros que devem ser juntados ou foram juntados”. Isto não é definição (“junta é a junção de partes que devem ser juntadas”!?). É um pleonasmo inútil. A AWS não define junção, logo este termo tem o significado dado por qualquer dicionário comum. Como a definição oficial da AWS não informa nada além de que junta é uma junção (e não define junção), então junta é sinônimo de junção, ou seja, não é um termo técnico. Logo, não deveria ser definido numa norma de terminologia soldagem. Na língua alemã a palavra usada para junta (“Fuge”) já expressa o espaço (“Zwischenraum”), o vão (“Aussparung”) a ser preenchido. O significado de “Fuge” dado no wiktionary(3) alemão é “trennender, länglicher, unter Umständen auch aufgefüllter Hohlraum, zwischen zwei Objekten”, cuja tradução é “separação, alongada, igualmente se for preenchida, entre dois objetos”. Trata-se, portanto, de um volume entre dois objetos. A DIN 2559 (EN ISO 9692-1)(4) evidencia isto quando define a geometria da seção reta(5) da junta pelo ângulo de abertura, pela folga, a largura da face de raiz e a profundidade do chanfro. O volume da junta é o gerado por sua seção reta ao longo de seu comprimento. Em português, a palavra junta tem vários significados na linguagem popular. Para lê-los basta ir a um dicionário comum. No entanto, como termo técnico de engenharia, há um significado bem específico. Por exemplo, na área da construção civil, “junta é o espaço entre pedras ou tijolos contíguos na mesma fila e que será preenchido com uma argamassa” (6); junta de dilatação é o espaço preenchido por materiais elásticos, destinado a absorver os movimentos provocados por dilatações e retrações dos materiais envolventes (7). Entre nós, há muitas evidências de imprecisão lingüística na área da soldagem. Por exemplo, há confusão entre solda, junta, chanfro e filete. Na sequência, faço uma tentativa de esclarecer estes conceitos, segundo minha concepção pessoal. Em soldagem, junta é o volume a ser preenchido com metal de adição e delimitado pelas bordas dos elementos a unir, depois que estes estão posicionados para soldagem e corretamente fixados. A geometria da junta é depende da geometria das bordas a unir e da distância entre elas. A junta será preenchida com material de adição durante o processo de soldagem, por meio de um ou de vários passes (demão), mas não deve ser confundida com a solda. O volume da solda é maior que o volume da junta, porque a soldagem solubiliza as bordas a unir e acrescenta um reforço de material de adição para evitar o risco de redução da seção resistente, causada pela falta de material de adição e pela contração deste material durante o seu resfriamento. Há dois tipos básicos de junta: a) de canaleta ("groove", em inglês), na qual as faces da junta são as bordas dos elementos a unir. Estas bordas podem ser retas (90°) ou chanfradas (em ângulo). b) de filete ("fillet", em inglês), na qual pelo menos uma das faces da junta é a própria superfície do elemento a unir. Na linguagem popular filete é um fio fininho, mas, na linguagem técnica, filete é a moldura côncava ou convexa, cujo perfil faz a concordância entre duas superfícies que se interceptam (“fillet: a filling in of a reentrant angle where two surfaces meet, forming a rounded corner” (8); “a rounded relief at an inside edge, added for a finished appearance” (9)). Quando esta moldura for côncava, é também chamada de caveto. Estes termos chegaram à soldagem advindos da fundição, da marcenaria, da arquitetura e da arte. Segundo o Dicionário e-Civil 2008 (10), filete é um tipo de moldura que pode ter: a) perfil curvilíneo simples: cavetos, bocel, toro, meia-cana, caneluras, nacela, escócia. b) perfil curvilíneo com um ponto de inflexão: gola ou talão, ducina (moldura côncava numa metade e convexa na outra). Mais remotamente, o termo filete provém do francês, mas sua origem latina localiza-se na arquitetura e na arte da Roma Antiga, tal como caveto (cavetto). Em inglês, a etimologia destas palavras é a mesma. A junta pode unir elementos que se encontrem: a) de topo (de ponta); b) em ângulo; ou c) paralelos e justapostos. Por conseguinte é possível classificar as juntas conforme a posição relativa dos elementos a unir. A junta pode ser formada por elementos posicionados de topo (de ponta), isto é, de modo que cada um seja a continuidade do outro. Na figura 1, tem-se uma junta de topo na qual as bordas que definem sua geometria são retas. Bordas retas são aquelas que formam um ângulo reto (90°) com as superfícies dos elementos a unir. Fig. 1: Junta de bordas retas representada por sua seção reta. A área da junta está hachurada. As juntas de topo também podem ter bordas chanfradas. Chanfrar, na linguagem popular, é falar mal de alguém, mas, na linguagem técnica, chanfrar (palavra derivada do francês "chanfrer") significa cortar em ângulo ou de viés, cortar as arestas ou quinas. Este termo não é exclusivo da área da soldagem. Existe desde muito antes da soldagem industrial (11). Chanfrar e biselar são sinônimos, assim como chanfro e bisel (12). Chanfro (ou chanfradura ou bisel) é um corte oblíquo. O ângulo do chanfro é o ângulo em relação ao plano perpendicular aos elementos a unir. O ângulo de abertura da junta é o ângulo entre suas bordas delimitadoras. É corriqueiro encontrarem-se documentos técnicos que confundem os conceitos de junta e de chanfro. Esta confusão conduz a outros erros: o ângulo de abertura da junta passou a ser chamado de ângulo do chanfro e, então, o ângulo do chanfro tem sido chamado de ângulo do bisel(13). Estes erros contaminaram as normas técnicas brasileiras. Aliás, muitos dos problemas da nossa linguagem técnica decorrem da má tradução de idiomas estrangeiros. Um destes problemas está na tradução da palavra inglesa “groove”, frequentemente traduzida como chanfro. A tradução correta de "groove", em inglês, não é chanfro, mas canaleta, ranhura, sulco. Chanfrar, em inglês, é "to chamfer", que significa "cortar enviesado, obliquamente". Na figura 2, tem-se uma junta de topo na qual as bordas que as limitam são chanfros. Este tipo de junta é simplificadamente chamado de junta de chanfro. Fig. 2: Junta de bordas chanfradas. No caso, junta em V. A área da junta está hachurada. Os elementos a unir podem não ser posicionados de topo, mas fazendo um ângulo qualquer entre si. Neste caso, tem-se uma junta de ângulo. Na figura 3, têm-se duas dessas juntas, cujos elementos a unir estão dispostos num ângulo de 90°. Em ambos os casos não há chanfros. No caso (a) tem-se uma junta externa ao ângulo dos elementos a unir e a geometria da junta é definida por bordas retas (90°). No caso (b) tem-se uma junta interna ao ângulo dos elementos a unir e a junta é delimitada não por bordas, mas pela própria superfície dos elementos. Essas juntas em ângulo, que não são limitadas por chanfros, são chamadas de juntas de filete. Fig. 3 – Juntas de filete. As juntas em ângulo também podem ser chanfradas, limitadas por, pelo menos, um chanfro. As juntas em ângulo também podem ser compostas dos dois tipos descritos, uma parte de filete e a outra de chanfro (fig. 4). Fig. 4 - Junta composta. Quando os elementos a unir não estiverem de topo, nem em ângulo, eles estarão paralelos e sobrepostos. Neste caso, ter-se-á juntas de filete (juntas filetadas) ou de chanfro (juntas chanfradas), como mostrado na figura 5. Fig. 5 - Elementos a soldar sobrepostos: (a) junta de filete; (b) junta chanfrada. Considerando a seção reta da junta, chama-se de raiz da junta ao volume a ser preenchido com material de adição delimitado pelas faces mais próximas do metal de base. Considerando apenas a seção reta da junta, a raiz é uma área. Chama-se de folga ou abertura da junta à largura da raiz. Deve-se atentar para o fato de que este não é o conceito da AWS A3.0. Esta, define a raiz da junta assim: “Joint root - That portion of a joint to be welded where the members approach closest to each other. In cross section, the joint root may be either a point, a line, or an area. See Figure 4”. A tradução é: “Raiz da junta - A porção de uma junta a ser soldada onde os membros mais se aproximam um do outro. Na secção transversal, a raiz da junta pode ser um ponto, uma linha, ou uma área. Veja figura 4”. Portanto, a AWS entende raiz da junta como o volume definido pelos encostos dos bordos (as superfícies mais próximas) independentemente do objetivo de preencher a junta. Como a raiz é parte da junta, este conceito inclui na junta partes que jamais serão preenchidas com material de adição e que jamais serão fundidas! Veja-se, por exemplo a figura 4D da AWS, onde, na verdade, ter-se-á duas juntas e duas soldas, uma em cada borda das duas chapas sobrepostas. Analogamente o mesmo problema acontece com as juntas em ângulo, tal como quando os elementos a unir formam um T ou um L. A figura 6, seguinte, reproduz a referida figura 4 da AWS. Sempre que os elementos a unir forem paralelos e sobrepostos, a junta da AWS incluirá na junta da soldagem todo o vão da porção sobreposta das chapas. Isto é correto na rebitagem, na qual se calcula o número de rebites necessários para serem distribuídos por toda a junção. A soldagem é diferente da rebitagem. Aliás, este problema decorre do fato de a AWS não fazer de junta um termo técnico, não o distinguindo de junção (“junction”). Em minha opinião, estes conceitos da AWS trazem complicações desnecessárias. Mais uma vez: não se devem copiar normas estrangeiras sem uma análise cuidadosa para que se possam fazer as necessárias correções e/ou adaptações ao nosso sistema de normas técnicas. Fig. 6 – Reprodução da fig. 4 da AWS A3.0 3. Considerações finais Foi feita uma explanação sobre as diferenças entre a linguagem técnica e a popular e, depois, fez-se um esclarecimento sobre alguns termos técnicos fundamentais da área da soldagem. Cabe agora, neste final, ressaltar as seguintes considerações: 1- Algumas expressões corriqueiras são tecnicamente erradas como, por exemplo, as expressões “chanfro reto” e “chanfro em V”. O chanfro é um corte oblíquo. A junta pode ser em V, não o chanfro. Um filete não é um passe feito numa junta de ângulo; filete é um tipo de junta. 2 – Muitos termos técnicos são similares ou mesmo idênticos aos de outras especialidades que tem conexão com a soldagem. Portanto, nesses casos, qualquer mudança na terminologia oficial da soldagem deve manter coerência com as Normas Técnicas das áreas conexas. O sistema de normas deve ser coerente. 3 – A simples tradução de normas estrangeiras, ainda que bem feitas, além de não refletir as reais necessidades de nosso estado tecnológico, costuma introduzir conflitos com outros termos técnicos da língua portuguesa ou introduzir neologismos de significação duvidosa na nossa cultura. Os termos técnicos importados de outros idiomas não podem ser introduzidos na nossa cultura sem um cuidadoso estudo de suas implicações. Os nossos termos técnicos, os já existentes em nossa língua, foram estabelecidos por muitas gerações de técnicos. Eles têm certo grau de coerência que não deve ser comprometido. Numa analogia biológica, poder-se-ia dizer que é como introduzir uma planta estranha num ecossistema. Referências: (1) WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem, p. 37. (2) AWS – “American Welding Society” (3) http://de.wiktionary.org/wiki/Fuge (4) ISO - "International Organization for Standardization". Esta sigla, derivada do grego "isos", que significa "igual", foi escolhida para que fosse igual em qualquer país e qualquer idioma. (5) Seção reta ou seção perpendicular é a figura geométrica produzida pela intercepção de um plano que intercepta um sólido formando ângulos adjacentes iguais (ângulos retos). Seção “transversal” é um termo menos preciso, usado para referência à forma geométrica obtida do perfil ou da vista de topo de um material com perfil constante ao longo de seu comprimento. (6) CONSTRUÇÃO CIVIL, Glossário de Termos Técnicos. The Gujarat Institute of Civil Engineers and Architects (GICEA - http://www.gicea.com/aboutus.htm). (7) http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_termos_ t%C3%A9cnicos_de_engenharia_civil#J (8) http://ardictionary.com/Fillet/2373 (9) http://en.wiktionary.org/wiki/fillet (10) http://www.ecivilnet.com/dic2008/download.htm (11) Leroy, F.; Terminologie de l’architecture et de la sculpture romanes. Université du Maine; Faculté des Lettres, Langues et Sciences Humaines; 2007. (12) Bisel: borda de peça de madeira, pedra, etc., cortada obliquamente, isto é, sem aresta ou quina viva. [Cf. dic. Aurélio)] (13) Palavra de origem francesa (francês antigo: bisel; atual: biseau).