Série
Nº 220
Estudos em Saúde Coletiva
SER MÉDICO:
UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA
JANE DUTRA SAYD
ISSN 1413-7909
AGOSTO
2006
UNIVERSIDADE DO EST
ADO DO RIO DE JANEIRO
TA
REITORA
NIVAL NUNES DE ALMEIDA
VICE-REITOR
RONALDO MARTINS LAURIA
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
DIRETOR
RUBEN ARAUJO DE MATTOS
VICE-DIRETORA
JANE ARAUJO RUSSO
Série
ESTUDOS
É
EM
S A Ú D E C O L E T I VVAA .
ISSN 1413-7909 (VERSÃO IMPRESSA)
UMA PUBLICAÇÃO DE TEXTOS PARA DISCUSSÃO DO
I N S T I T U T O D E M E D I C I N A S O C I A L DA
UNIVERSIDADE DO EST
ADO DO RIO DE JANEIRO,
TA
DE EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES .
EDITOR
GEORGE E. M. KORNIS
PRODUTORA EXECUTIVA
ANA SILVIA GESTEIRA
COPIDESQUE E REVISÃO
ANA SILVIA GESTEIRA
PROJETO GRÁFICO
SILVIA STEINBERG
MARCELLUS SCHNELL
ADAPT
AÇÃO P
ARA A WEB E WEBDESIGN
TA
PA
ELIR FERRARI
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
ELIR FERRARI
CONSELHO EDITORIAL
CID MANSO DE MELLO VIANNA D EP TO . DE P LAN EJA M EN TO E A D MINI ST RAÇÃ O EM S AÚD E
LUIZ ANTÔNIO DE CASTRO SANTOS D EPTO . DE P OLÍTICAS E I NSTITUIÇÕES DE S AÚDE
ROSELY SICHIERI D EPTO . DE E PIDEMIOLOGIA
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / CBC
S274
Sayd, Jane Dutra.
Ser médico: uma perspectiva histórica / Jane Dutra Sayd. - Rio de
Janeiro: UERJ/IMS, 2006.
21p. - (Série Estudos em Saúde Coletiva; n. 220)
Bibliografia: p. 19
ISSN 1413-7909
1. Médicos. 2. Medicina - História. 3. Ética médica. I. Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. II. Título III.
Série.
CDU 614.25
INSTITUTO
DE MEDICINA
SOCIAL
Série
UNIVERSIDADE DO EST
ADO DO RIO DE JANEIRO
TA
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
Estudos em Saúde Coletiva
SER MÉDICO: UMA
PERSPECTIVA
HISTÓRICA
JANE DUTRA SAYD
ISSN 1413-7909
AGOSTO 2006
Nº 220
publicação eletrônica: http://www.ims.uerj.br/sesc
SER MÉDICO: UMA PERSPECTIV
A HISTÓRICA
PERSPECTIVA
05
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06
19
Resumo
Abstract
Artigo
Referências
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
4
Ser Médico:
uma perspectiva histórica
JANE DUTRA SAYD
Resumo
Being a doctor: a historical perspective
This essay presents aspects concerning the doctor’s condition in contemporary society, speaking of traditional values
such as they are cited in the professional oath,suggesting which are the social expectations around the medical activity, i.e.,
curing diseases,comforting families and easing suffering. It points out the impossibility of meeting these expectations in the
present technological, social and economic context without re-discussing the health work process as a whole.Technological
incorporation, the emergence of new professionals and changes in the financing system reduce professional autonomy and
hinder integral health care, then both population and professionals become disgruntled.
It proposes that the tendency to a nostalgia for a poetic professional past is illusionary and harmful for the
construction of work agendas which permit the fulfillment of ethical expectations in the present context.The best way to work
today is facing the reconstruction of this process, that is, towards old expectations around the medical work, but in keeping
with the moment. One must forget the false dichotomy between “art of cure” and“doctor scientist”.The first one is anachronic
and the latter is reductionist.The best understanding is that the doctor is the mediator of multiple stages. Cognitive, ethical
and experiential, able to make him search for knowledge rather than for art or science in his professional exercise.
KEYWORDS: medicine, contemporary society, health work process.
J ANE DUTRA SAYD MÉDICA; DOUTORA EM SAÚDE COLETIVA PELO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO, PROFESSORA ADJUNTA NO DEPARTAMENTO DE PALNEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO EM S AÚDE DO
IMS/UERJ. ENDEREÇO ELETRÔNICO: [email protected]
publicação eletrônica: http://www.ims.uerj.br/sesc
Abstract
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
O ensaio problematiza aspectos relativos à condição do médico na sociedade contemporânea e faz recurso às pautas
de valores tradicionais tal como apresentados no juramento profissional para sugerir o que são as expectativas sociais que
cercam a atividade médica,de ajudar pacientes curando doenças, reconfortando familiares e diminuindo sofrimentos.Aponta
que não é possível atendê-las no presente contexto tecnológico e de organização social e econômica sem rediscutir todo o
processo de trabalho em saúde.A incorporação tecnológica, o surgimento de novos profissionais e as mudanças nas formas
de financiamento do setor diminuem a autonomia profissional e dificultam o atendimento ao paciente de forma integral, de
modo que tanto a população quanto os profissionais encontram-se insatisfeitos.
Propõe que a tendência à nostalgia de um passado profissional idílico é ilusória e prejudicial à construção de
pautas de trabalho que permitam cumprir as expectativas éticas no contexto atual.A melhor forma de se trabalhar hoje é
enfrentar a tarefa de reconstrução deste processo, ou seja, caminhar no rumo de atender expectativas antigas em torno do
trabalho médico mas de forma adequada ao momento.É necessário para tal empreitada se abandonar a falsa dicotomia entre
“arte de curar” e “médico cientista”.A primeira é anacrônica e a segunda reducionista; o melhor entendimento é o de médico
como mediador de múltiplas instâncias, cognitivas, éticas e de experiência, capazes de fazê-lo buscar mais um estatuto de
sabedoria do que de ciência ou arte no seu exercício profissional.
PALAVRAS-CHAVE: medicina, sociedade contemporânea, processo de trabalho em saúde.
5
1. Embora a história da medicina seja contada e interpretada de modos muito variados, há um
consenso na idéia de que a civilização grega trouxe um elemento inédito de racionalidade
para o trabalho médico.
2. Nos escritos hipocráticos há um combate, militante, da idéia de epilepsia como doença
“divina” ou de origem sobrenatural. O autor procura explicar que o fenômeno convulsivo é
“natural”, ou seja, em última instância, cognoscível.
3. A noção de physis para os gregos é, resumidamente, um “princípio que produz o desenvolvimento de um ser e nele realiza um tipo específico”. Uma noção de natureza dinâmica em
que há, simultaneamente, a idéia de desenvolvimento e desdobramento dos seres ao lado da
especificidade de cada um.
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“do conceito médico de physis humana, como organismo corporal
dotado de determinadas qualidades, se passa ao conceito mais
amplo de natureza humana, que significa agora totalidade do corpo
e alma [...]. As enfermidades não são consideradas isoladamente,
como um problema especial [...] o homem se acha submetido a
certas regras que lhe prescreve a natureza, e cujo conhecimento é
necessário para viver corretamente, em estado de saúde3 ”
(JAEGER, 1992, p. 151 e 280).
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
A atividade do médico é antiga. Desde os primórdios de nossa sociabilidade,
desde quando os homens se organizaram em sociedades e culturas, sempre houve
alguém especializado em cuidar dos sofredores. As noções de sofrimento e de cuidado
são diferentes nas diversas culturas e épocas, mas sempre se manteve a prática de que
a pessoa acometida deve ser cuidada por uma outra, e não por si própria. Desde há
muito tempo, igualmente, pensou-se esse cuidado como uma atividade especializada,
que requer conhecimentos não acessíveis a todos.
A presença desse outro, a cuidar do doente, varia de acordo com a idéia que se
tem de ser humano, do mundo à sua volta e do que é o processo de adoecer. A uma
concepção mágica do mundo, cheia de noções sobrenaturais, corresponde um cuidador
capaz de lidar com esse plano – um mágico, portanto, ou sacerdote, quando se fala de
sistemas religiosos mais organizados. Uma concepção de mundo “natural”, acessível
aos cinco sentidos e compreensível pelo raciocínio, pede um outro tipo de conhecimento
– o desse mesmo mundo acessível.
Na Antigüidade (por exemplo, entre egípcios e sumérios), há medicinas
empíricas de boa qualidade, descrições do corpo humano, de epidemias, receitas e
remédios elaborados a partir da observação da natureza. N ão há, no entanto, um
corpo de idéias sistemático, e essas medicinas conviveram com receitas mágicas, para
conjurar demônios e afastar maus espíritos. Só o florescimento da cultura grega, do
séculoVII a.C. em diante, originou uma sistematização da concepção de mundo natural,
em que a doença e a morte perderam seu caráter de mal e castigo divino para serem
inseridas na ordem geral do cosmos.1
Os gregos entenderam a natureza como algo preexistente a ser conhecido e
com uma dinâmica própria.2 Suas próprias explicações míticas acerca do surgimento
do mundo não os atrelaram a tabus ou a dogmas; estavam, assim, aptos a formular
teorias racionais e sistematizar observações empíricas mas de modo organizado, numa
visão de mundo própria, em que o homem é parte da natureza. Dos filósofos présocráticos em diante, a observação da natureza chegou a organizar conhecimentos
sobre o corpo humano e seus fenômenos, terminando por fundar uma nova medicina:
6
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4. Esses escritos foram reunidos em Alexandria, ao final do século III a.C., e ficaram conhecidos,
posteriormente, sob o nome de Corpus Hipocraticum. O juramento, por sua vez, é posterior
a Hipócrates, mas foi agregado como parte dos demais escritos (ACKERKNECHT, 1982).
5. As descrições acerca de Apolo e demais elementos da mitologia grega relativos à medicina
são um resumo dos autores Brandão (1993) e Almeida (1991).
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
O testemunho mais importante desta concepção são os escritos hipocráticos:
um conjunto de textos que já se atribuiu a Hipócrates de Cós (460-390a.C.), mas
originário, sabe-se hoje, de um aglomerado de autores, a chamada Escola de Cós.
Com eles, a cultura ocidental herdou o juramento de Hipócrates, que indica como o
médico deve se conduzir frente aos doentes e seus colegas de profissão.4 É um código
de ética médica, cuja forma original inspira os juramentos pronunciados pelos recémformados nos dias de hoje. Inicia-se com um apelo às divindades gregas, particularizando
aquelas relacionadas diretamente à medicina: “Juro por Apolo médico, Asclepius, Higéia
e Panacéia, todos os deuses e deusas…” (ACKERKNECHT, 1982, p. 57).
As divindades nomeadas refletem as múltiplas faces da medicina, as diversas
fontes de seus conhecimentos e os vários relacionamentos do médico com o doente, a
natureza em seu conjunto e seus colegas ou mestres.
Apolo é a divindade que preside as artes. Foi o inventor da música, da poesia e
da retórica; foi também quem ensinou as artes médicas à humanidade.5 É o deus da
verdade, pois recebeu de Zeus o poder de conhecer o futuro. Para os gregos está
sempre resplandecente de luz e raios de sol, e possui olhar claro e penetrante. Esse
olhar penetra o futuro, dispersa as doenças e cicatriza as feridas. Em sua medicina
confluem o poder de iluminar o mal oculto – diagnóstico – e, além disso, adivinhar o
futuro desenrolar da enfermidade – prognóstico.
Asclepius, segundo o mito, era um mortal, filho de Apolo. Como mortal, não
freqüentava o Olimpo, morada dos deuses e, assim, foi educado pelo centauro Quíron,
na terra. Este era um sábio, conhecedor da natureza e hábil cirurgião (quíron, mesma
raiz de dedos, em grego). Com ele, Asclepius aprendeu tudo sobre a arte de remediar
e aliviar dores e doenças. Quíron logo foi superado por seu aluno; Asclepius tornou-se
conhecido como um benfeitor universal e sua arte chegou ao ponto de ressuscitar os
mortos. Zeus, irado com a pretensão do médico, terminou por fulminá-lo com seus
raios. Asclepius foi venerado, na cultura grega, como nenhum outro mortal, mítico ou
real. Os doentes acorriam ao seu templo em busca de tratamento para os mais diversos
males, cuja prescrição lhes surgia então em sonhos, inspirados pelo sábio médico.
Asclepius teve filhos, Podalírio e Macaón, simultaneamente guerreiros e
cirurgiões, além de Higéia e Panacéia, citadas no juramento. Higéia é a saúde e a
força vital intrínsecas à natureza, presentes em todos os seres vivos; Panacéia é o
poder curativo presente nas ervas, em sua multiplicidade e variedade. São citadas
como as principais forças auxiliares do médico: a vis medicatrix naturae, Higéia, é a
capacidade de auto-restauração dos organismos, a força vital que os faz desenvolverse e recuperar-se. É a crença nesse princípio que faz a medicina hipocrática ser
expectante, procurar não intervir e, ao mesmo tempo, prescrever dietas, ou seja,
regimes de vida, mais adequados à manutenção e/ou recuperação da saúde. Panacéia,
7
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6. Observe-se que o aborto não é, necessariamente, condenado pela cultura grega. O médico,
como auxiliar da natureza e protetor da vida, é que está interditado de realizá-lo, embora
possua os meios para tanto.
7. Hipócrates (Corppus Hipocraticum), na tradução de Littré, feita em 1839 e empregada até os
dias de hoje.
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
a medicação, é vista com alguma distância – sabe-se do poder ambíguo das drogas, das
surpresas negativas que sua ingesta pode provocar. Para os gregos, o termo Pharmakon
significa simultaneamente veneno, remédio ou poção mágica e, desta forma, algo
pouco claro a ser evitado na medida do possível (ALMEIDA, 1991; DERRIDA, 1991).
No juramento de Hipócrates, Asclepius é o centro de uma constelação, síntese
dos diversos aspectos da medicina: dotado da centelha divina, herdada de Apolo, pode
conhecer os males ocultos e promover curas miraculosas. Ao mesmo tempo é humano,
detentor de toda a sabedoria terrena aprendida com Quíron. Conhece as energias da
natureza e é capaz de preservar a saúde e evitar as doenças por meio de seu
conhecimento dos poderes de Higéia, e prescrever remédios e ervas, recorrendo às
virtudes de Panacéia. Seu poder é ambíguo – Apolo tem um lado negro: suas flechas
podem disseminar a peste quando possuído pela cólera; igualmente, os conhecimentos
do médico sobre o mal podem ser usados tanto para provocá-lo quanto para evitá-lo.
O médico jura, por isso, não faz mau uso de seus conhecimentos e poderes: “não darei
venenos mortais a quem me pedir, não darei abortivos à mulher, não cortarei doentes
de cálculos, mas os deixarei aos cirurgiões…” (ACKERCKNECHT, 1982).6
Segundo a concepção de mundo natural, ou physis, a realidade integral das coisas
pressupõe também a inevitabilidade da doença e da morte, de modo que o médico só
é útil até certo ponto: “Pedir à arte o que não é da arte, ou à natureza o que não é seu,
é ser ignorante [...]. Nas coisas onde nos é dado agir, com a ajuda dos instrumentos da
arte e da Natureza podemos atuar. Mas, nas outras, não podemos”.7
A corporação se protege, ao apresentar sua atividade como de respeito à
natureza. O médico não deve tentar tratar doenças que seu diagnóstico apresente
como incuráveis (se, por um lado, este é um preceito de respeito à integridade da
physis, da natureza de cada ser, por outro não deixa de ser uma maneira de o médico
não se expor ao fracasso). Seus limites estão esboçados: não pode evitar a morte,
como foi mostrado a Asclepius. O juramento também expressa a idéia de corporação
profissional: quem está apto a ser médico presta o juramento para pertencer a um
grupo especial, com responsabilidades peculiares próprias, frente ao conjunto da
sociedade. Ainda como proteção à corporação, aquele que faz o juramento promete
cuidar de seu mestre e sua família na velhice. Estão assim apresentadas, no juramento
do Corpus Hipocraticum, as principais categorias envolvidas na prática da medicina.
Muitos séculos separam a cultura grega da nossa no século XI, e muitas mudanças
na visão ocidental se processaram desde então. O homem não é mais visto como um
ser integrado à natureza e não há, hoje em dia, a idéia de preservar ou respeitar a
ordem natural das coisas. Nossa cultura é intervencionista e sua ética não é mais a
mesma; o médico de hoje pode ser um herdeiro longínquo de Hipócrates, mas não
seu continuador. Mas a constelação, tal como apresentada no juramento, persiste,
8
com suas polaridades: a fonte do saber sobre o mal, artística, divinatória mas também
técnica, humana, terrena. A arte da terapêutica com suas duas faces, Higéia e Panacéia,
expressando maneiras diferentes de buscar a cura, e no centro – como um ponto de
convergência entre arte e saber, humanidade e natureza, doença e cura – o médico.
O juramento de Hipócrates é uma promessa que ainda hoje os médicos fazem
publicamente frente ao restante da sociedade, organizados em corporação: são as promessas
de um grupo, não de indivíduos isolados. A promessa de bem servir, vivendo em virtude
e cuidando dos doentes, preservando suas identidades e vidas na medida do possível:
“Prometo que ao exercer a arte de curar mostrar-me-ei sempre
fiel aos preceitos de honestidade, da caridade e das ciências.
Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha
língua calará os segredos que me forem revelados, os quais terei
como preceito de honra; nunca me servirei da minha profissão
para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir
este juramento com fidelidade, goze eu a minha vida e minha arte
com boa reputação entre os homens e para sempre. Se dele me
afastar ou infringi-lo, suceda-me o contrário” (Colação de grau na
Faculdade de Ciências Médicas da UERJ).
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8. Esse preceito é para ser levado ao pé da letra. Médicos trataram terroristas sob a ditadura militar
sem denunciá-los, tendo sido presos por isso, mas mantendo a postura do sigilo do paciente como
valor máximo e sendo absolvidos rapidamente, mesmo pelos tribunais militares da época.
9. Dicionário Aurélio (1976). A noção de profissão em sociologia utilizada aqui é a de Freidson
(1972).
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
O juramento é inteiramente laico hoje. Higéia e Panacéia não instruem mais o
profissional, substituídas, a primeira, pelas ciências biológicas básicas, e pela indústria
farmacêutica (que os céus nos protejam!), a segunda. Apolo não mais o inspira com
seus poderes divinatórios; é às ciências que se faz recurso. Nem tudo mudou, no
entanto: não se especificam venenos ou abortivos, mas o médico jura cumprir a lei e
ser honesto, não corrompendo costumes nem favorecendo o crime. Seu paciente
permanece protegido: ele não revelará o que ouve ou sabe a seu respeito. Sua lei de
sigilo profissional é maior nesse momento do que um código penal.8 A promessa de
caridade é igualmente importante. Não significa trabalhar de graça e, sim, ter
compaixão e solidariedade junto ao sofrimento do doente, compreender as
circunstâncias de seus problemas e vissicitudes para ter a pequena palavra certa, a
atenção que reconforta.
Muito importante é observar que, desde a Grécia clássica, os médicos se
apresentam como corporação, um grupo. O juramento, feito coletivamente, significa
um compromisso formal frente à sociedade, o de atender ao código de ética profissional:
daquele momento em diante, a sociedade concede direitos aos membros desse grupo.
Direito de perguntar o que for ao paciente, invadir sua intimidade e investigar sua
nudez, de declará-lo incapaz. Cobra dele, portanto, a responsabilidade de só usar esses
direitos para o benefício do doente, de cada membro da coletividade. O juramento é
expressão desse contrato social específico. Quem o faz ganha o estatuto de profissional:
alguém que professa, publicamente, um saber, uma crença, um modo de ser.9
9
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10. Atenção ao termo “esotérico”, que se refere a fechado, interno a um grupo, restrito a
iniciados. Não quer dizer, necessariamente, ligado a sobrenatural, mágico ou místico. Os
conhecimentos desse tipo, por outro lado, são esotéricos porque geralmente são restritos a
grupos de crenças fechados, onde é necessária uma iniciação.
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
Ser profissional é ocupar uma posição particular na sociedade, por comparação
a outras maneiras de inserção dos homens no mundo do trabalho: ter uma ocupação
não é ter uma profissão. Presume-se que o trabalho profissional seja uma atividade
especializada e de aprendizado dificil, ou seja, que o profissional é detentor de um
saber esotérico, inacessível para os não iniciados.10 Tendo em vista esse domínio particular,
o trabalho passa a ser monopólio profissional – quem não comprova a posse desse saber
(hoje em dia referendado pelo diploma universitário) – não pode exercer a profissão.
Finalmente, o trabalho profissional não pode ser avaliado por membros externos à
corporação – pois não dominam os conhecimentos necessários para tal. Assim, o
profissional trabalha com autonomia – suas decisões não são contestáveis por leigos.
Mantém-se aqui a idéia de corporação: o saber, o monopólio e a autonomia são do
grupo, não de indivíduos. Cabe ao grupo controlar cada um de seus membros face ao
cumprimento da promessa, de manter o ideal de servir para que a sociedade continue
outorgando aos mesmos o monopólio e a autonomia.
A medicina é considerada a profissão por excelência, a que melhor exemplifica
as características acima. O processo de organização da corporação e da prática médica,
tal como elas se encontram hoje, ocorreu no mundo ocidental nos últimos 150 anos.
Nesse período, o Estado, legitimando a opinião da sociedade, concedeu aos médicos o
reconhecimento de um saber avançado, o monopólio da prática terapêutica e o direito
de se controlarem a si próprios, através dos Códigos de Ética Médica e dos Conselhos
de Ética: assim, os próprios médicos garantem à sociedade que fiscalizarão as atividades
do grupo e zelarão pelo cumprimento dos preceitos éticos entre seus membros.
Essas características, no entanto, típicas do que os sociólogos chamam de
profissão, só foram indubitáveis do final do século XIX até os anos 60 do século XX.
Embora o grupo chamado de médico tenha tido sempre algumas das características
de profissão ao longo da história, foi comum, por exemplo, não haver monopólio da
prática terapêutica ou não haver, de parte da sociedade, confiança sólida e unânime no
valor dos conhecimentos empregados – como começou a ocorrer entre nós a partir
da década de 60, com a emergência das práticas alternativas.
O apelo a um período histórico passado, mesmo que ligeiro como feito aqui,
pretende apresentar alguns dilemas e problemas relativos ao trabalho médico. Alguns,
como se verá, são próprios da nossa época; outros, os que se podem chamar dilemas,
não são solúveis, são quase atemporais.
A incorporação tecnológica e a democratização do acesso ao cuidado em saúde
são elementos geradores de mudanças de padrão no trabalho médico, mudanças que
se tornaram problemas, por despreparo tanto dos profissionais como do conjunto da
sociedade para lidar com elas. A democratização, ou o direito universal à saúde, tal
como se realiza no momento, cria condições difíceis de trabalho. Atender pacientes
de outras faixas culturais que não a sua é difícil e cansativo, não só por diferenças de
10
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11. Deve-se observar que o país entrou, recentemente, num processo de crescimento no que
tange ao setor educacional, e pode ser que o analfabetismo se torne fato residual em pouco
tempo. Mesmo assim, persistirão enormes iniqüidades nas condições de vida e trabalho na
sociedade brasileira, pois estes são problemas enraizados em nossa formação social. Por
outro lado, mesmo em países com população em boas condições de vida, o atendimento
médico e sua distribuição são problemas difíceis de resolver, como o atestam as discussões a
respeito, tanto na Europa como nos EUA e Canadá.
Série Estudos em Saúde Coletiva – Nº 220
vocabulário e costumes, embora essas criem problemas consideráveis. Muitas vezes,
ademais, o cidadão chegou a ter direito ao atendimento médico, mas a sociedade não
lhe deu as demais condições de completar um tratamento: não lhe deu condições de
repouso, habitação decente, um familiar disponível para apoiá-lo, alimentação e
vestimenta adequadas – ou mesmo, o direito de obter medicamentos.
O próprio serviço de saúde pode não fornecer condições mínimas de apoio
técnico a esse atendimento, com o que o profissional está impotente e frustrado em
seu desejo de bem exercer a profissão. O mau funcionamento do Sistema Único de
Saúde é, portanto, uma fonte permanente de dissabores a provocar sentimentos de
nostalgia na classe médica – os hospitais do INPS eram bons, o trabalho no consultório
particular era excelente. O retorno ao passado não seria, no entanto, de modo algum
uma solução – como se pode desejar uma situação de iniqüidade social plenamente
instalada e aceita, como era até 30 anos atrás? Quando somente os trabalhadores com
carteira assinada tinham direito aos hospitais da Previdência Social e a maior parte da
população só tinha direito às emergências e Santas Casas.
A solução para este caso não é desejar a volta ao passado – mesmo porque esta
não ocorrerá. É necessário lembrar que outros países também lutam com dificuldades
para realizar atendimento em massa com qualidade. É necessário pensar que a
universalização do direito à saúde chegou, no Brasil, antes de outras medidas igualmente
necessárias de justiça social – o direito à educação formal eficaz, a uma menor exploração
no trabalho com salários melhores, por exemplo. Só resta à classe médica lutar e colaborar
para melhorar a organização dos serviços de saúde e para que as demais condições
sociais façam mais digno e proveitoso o trabalho pela saúde do cidadão.11.
Mais difícil de enfrentar, talvez, sejam as condições de trabalho e remuneração
impostas pelas atuais empresas de seguro saúde: o SUS, ao menos em intenção, é uma
estrutura explicitamente voltada para resolver problemas de saúde, onde as dificuldades
podem ser debatidas num contexto geral de homogeneidade de propósitos. Uma
operadora de seguro saúde segue, porém, a lógica da lucratividade, e assim uma série
de fatores ética e tecnicamente esdrúxulos passa a limitar as decisões médicas e a
diminuir sua capacidade de resolver problemas, mesmo no reduto de trabalho liberal
mais tradicional, o consultório.
A maior nostalgia do profissional hoje gira em torno do trabalho autônomo, de
consultório privado.Ao contrário do que ocorre hoje, quando os pacientes o escolheram
apenas por fazer parte de uma lista de credenciados de uma empresa, seus pacientes
eram conhecidos; freqüentemente o médico atendia toda uma família por mais de
uma geração, e recebia por isso, além da remuneração, respeito e carinho. Neste
ponto, pacientes também estão saudosos de seus médicos de antanho; adultos hoje,
queixando-se de um atendimento médico apressado ou impessoal, lembram-se do
11
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12. Ackerknecht (1973). O autor faz uma história da terapêutica apontando ser a mesma uma
longa história de erros e atitudes insensatas.
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médico de família na infância, consultando em casa, uma espécie de amigo distante –
já que pessoa superior (lembranças, que, é bom frisar, pertencem a um segmento
mínimo da sociedade).
Essa figura do médico antigo é, no entanto, muito mais mítica do que real.
Distorcer fatos históricos não ajuda a refletir sobre as atuais condições de trabalho.
Antes da organização da medicina contemporânea (um pouco posterior à Revolução
Industrial e concomitante à ascenção das classes médias urbanas), médicos de reis e
aristocratas não eram seus confidentes ou amigos, eram serviçais qualificados; sua
clientela comum, não raramente, eram clientes ocasionais e o profissional podia ter
vida itinerante, como um mascate. Seu senso de corporação era disperso, seu trabalho
mais solitário – não havia associações médicas. O profissional tão sonhado existiu por
um curto período, de algum momento no século XIX até a década de 50 do século
XX, sustentado pela ascenção da classe média, à qual ele pertence. Fala-se de momento
tão efêmero como se fora uma realidade multissecular, a “verdadeira” medicina, perdida
por um erro dos dias de hoje.
Sem intenções demolidoras, mas atendo-se a um maior realismo nas análises
históricas, também é importante ressaltar, para os saudosos que criticam o atual
emprego de tecnologia, que a medicina ocidental é iatrogência desde longa data.12
Muitos pacientes podem ter morrido de desidratação e choque após sangrias sucessivas,
da Antigüidade ao final do século XIX, quando a prática declinou. O médico amigo, à
beira do leito, intoxicava os pacientes com mercúrio, arsênico e antimônio no século
XIX e início do século XX. Foi essa medicina liberal que inventou e praticou a lobotomia
em milhares de pessoas, causando-lhes uma verdadeira morte em vida nos anos 30.
Ainda na vigência da medicina liberal, esses médicos estragaram os dentes de toda
uma geração, ao empregar tetraciclina indiscriminadamente nos anos 50 e,
candidamente, prescreveram talidomida às gestantes em 1960, na maior epidemia de
iatrogenia conhecida, uma tragédia social da qual todo médico deve estar ciente. Seu
“desarmamento tecnológico relativo”, em relação à espiral vertiginosa da tecnologia
nos últimos 20 anos, nunca foi, portanto, garantia de não-maleficência.
As inovações tecnológicas, por outro lado, fizeram com que aspectos do trabalho
desse profissional sejam hoje substituídos por uma certa disseminação de saberes e
práticas: o médico à beira do leito de uma diarréia nos anos 50 pode ser substituído
agora por uma hidratação caseira; o médico ansioso, esperando pela evolução de seu
doentinho com poliomielite, é simplesmente dispensado por gotinhas – com resultados
infinitamente melhores. A visita inócua desse profissional ao paciente idoso e imóvel
também está substituída por programas de fisioterapia, executados por profissionais
especializados, cujo saber pode dispensar a prescrição médica para propor e realizar
um tratamento eficaz de recuperação dos movimentos do velhinho. O médico de
outrora à beira do leito pode ser, portanto, muito simpático à memória, mas tornouse anacrônico; não saberia evitar, sozinho, a poliomielite, nem, igualmente, prescrever
12
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o programa do fisioterapeuta, embora já estivesse amplamente habilitado a tomar
medidas iatrogênicas e fosse, nunca é demais insistir, acessível a poucos.
O real problema, de onde outros decorrem, está no que se pode chamar de
uma situação de desprofissionalização relativa, originada principalmente pelo
desenvolvimento tecnológico: a tradição de autonomia, em que o médico tinha liberdade
de decisão técnica mudou suas características; agora ele toma decisões com colegas e
ao lado da equipe de saúde, pois não domina mais o conjunto completo de técnicas
disponíveis para o suporte dos pacientes e está limitado pelos custos, seja restrito
pelo orçamento do SUS ou pelos cálculos das operadoras de seguro saúde. Seu saber é
menos esotérico, compartilhado que está entre especialistas e os novos profissionais
de saúde (nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiros especializados, por exemplo).
O monopólio do cuidado sobre o doente tornou-se, por conseqüência, atributo de grupos,
não mais do profissional individual. A relativa perda da hierarquia tradicional nessa
situação, quando antes um médico era autoridade incontestável, cria dificuldades de
relacionamento humano entre os profissionais e dilui a responsabilidade de cada um
frente ao paciente, temas ainda mal equacionados tanto pelos sistemas de saúde quanto
pelos próprios trabalhadores envolvidos.
E, por causa dessas novas relações impostas pela fragmentação tecnológica, a
saudade que o médico “antigo” evoca não é descabida. É um sentimento difuso e geral a
perpassar discursos de pacientes e médicos, tão freqüente que não pode deixar de ser
levado em conta: embora haja mais opções terapêuticas para os pacientes hoje, a quebra
de vínculos e a impessoalidade no atendimento são problemas a dificultar o sucesso
dessas mesmas terapêuticas. Essa impessoalidade é o produto mais ambíguo do emprego
de tecnologia no tratamento das doenças. Sua força se manifesta mais presente à medida
que novos procedimentos analisam, dissecam e retalham as funções orgânicas, pois assim
aumenta a tendência de se propor soluções restritas, parciais, ao paciente.
Surge uma contradição: por mais intuitiva ou mal definida que seja a idéia de
saúde para a nossa cultura – tanto médica como popular – ela se refere a uma situação
geral de plenitude de vida, bem-estar, uma coisa geral, portanto. Em busca da mesma,
corre-se atrás do desenvolvimento tecnológico, mas a tecnologia desconhece essa
idéia. Pode oferecer rins saudáveis, o fim de uma infecção, um coração revascularizado,
mas não há nenhuma máquina, equipamento ou droga que sejam, por si sós, capazes
de produzir uma cura, ou a transição do estado de doente para o de sadio em uma
pessoa. O emprego acrítico de tecnologia, ou seja, a confiança de que seu emprego
basta para devolver a saúde a alguém, é questão crucial. A fragmentação dos
procedimentos e decisões, da qual decorre a excessiva especialização, cria com freqüência
situações de tratamentos específicos em que ninguém é responsável, afinal, pelo que
realmente importa: a vida da pessoa atendida.
É uma situação iatrogênica, socialmente criada, pela qual não só os médicos são
culpados: a própria população tende a procurar especialistas e só lhes relatar o que
considera relevante naquela especialidade. O reumatologista negligente prescreve,
então, corticóides ao paciente que não lhe relatou o diabetes e assim por diante. O
maior problema decorrente do emprego de tecnologia em medicina, não é, portanto,
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13. Maulitz (1996) aponta o surgimento da clínica em 1790, a revolução da microbiologia em
1890 e a parafernália tecnológica de 1990.
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o aumento de riscos iatrogênicos. A avaliação de que estes aumentaram, insistimos, é
leviana: não há método seguro para se estabelecer comparações e medições entre a
relação impotência médica x iatrogenia no passado e as mesmas categorias hoje. Os
antibióticos, por exemplo, com certeza não são inócuos e seu uso pode originar efeitos
adversos. Mas não há como medir exatamente se o número de pessoas atingidas por
complicações decorrentes do seu uso é muito maior, menor ou equivalente ao número
de incapacidades e mortes dos tempos anteriores à sua existência – com certeza,
porém, são menos nocivos do que sangrias em casos de infecção.
O verdadeiro perigo reside na nova modalidade de iatrogenia, desconhecida
anteriormente, decorrente da fragmentação dos procedimentos: a perda do vínculo
terapêutico, em que um profissional se responsabiliza por um doente. O potencial iatrogênico
de uma intervenção aparece com muito mais facilidade quando uma série de terapeutas
atua numa só pessoa e cada um acompanha a evolução de apenas um “pedaço” do
paciente. Uma desatenção coletiva para as condições gerais de vida da pessoa pode
fazer com que esta se torne cada vez mais “normal” à medida que as intervenções se
sucedem e, paradoxalmente, piorem seu estado geral. Resultados de exames ou
medidas normais não significam saúde, e isto é o máximo que a tecnologia acrítica
pode fornecer, não sendo raro que as múltiplas intervenções tenham efeitos
contraditórios no organismo, particularmente no que tange ao uso de drogas.
A sensação de desamparo vivida pelo paciente também influencia negativamente
na sua recuperação. Este não tem, assim, uma pessoa em quem se apoiar, afetiva e
psicologicamente; perde-se um dos elementos terapêuticos mais úteis, a própria
disposição do doente para, apoiado e confiante, retomar sua vida. Novamente, devese lembrar que não vale a pena culpabilizar o profissional de saúde, médico ou outro,
por essa situação. A própria família, que poderia acompanhar o paciente, ao acreditar
mais na série de especialistas e suas engenhocas do que na sua própria força de apoio
afetivo e integral, pode se declarar incapaz de ajudar e deixar o doente na solidão de
um sofrimento não compartilhado.
A busca de saúde, ou seja, de um estado de plenitude geral, através de medidas
oriundas de conhecimentos fragmentários e fragmentadores, é um dilema
contemporâneo, específico de nossos tempos, para o qual não se encontrou ainda
solução pronta e acabada. É interessante registrar aqui as idéias de MAULITZ (1996):
para este, há pelo menos três séculos os conhecimentos e equipamentos médicos
sofrem transformações radicais a cada década de 90, originando crises na prática, que
são resolvidas nos anos 20 do século seguinte.13 Profecia desalentadora para os jovens,
que só alcançariam tranqüilidade profissional após 20 anos de trabalho: segundo o
autor, nesses momentos as atitudes predominantes entre os médicos são de nostalgia
pelo passado e de realização de tentativas de retorno – infrutíferas tanto para a satisfação
dos pacientes quanto dos próprios profissionais. Trabalhar para equacionar o papel da
tecnologia e harmonizar uma equipe em torno do doente pode ser, no entanto, um
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trabalho estimulante e criativo. A intranqüilidade reflexiva, neste caso, será a menos
desgastante das possibilidades. A alternativa de mergulho no trabalho mecânico e
não-pensante de apenas reproduzir a prática contraditória atual, acompanhada da
nostalgia amargurada a respeito de um passado idílico e irreal é muito pior, pois leva,
necessariamente, à insatisfação total com o próprio trabalho e à falta completa de
perspectivas para o futuro.
Sem dúvida uma nova realidade será construída aos poucos, resultado do conjunto
de reflexões, debates e celeumas acerca da prática atual e suas conseqüências. Ao
médico de hoje cabe o papel de não se furtar a observar sua própria prática com
espírito crítico, de propor alternativas e debatê-las. O trabalho nas unidades intensivas,
por exemplo, só pode ser feito em condições de compartilhamento de decisões e
atividades, de verdadeiro trabalho em equipe, e permite situações satisfatórias de
orgulho profissional da parte de cada um dos trabalhadores envolvidos. O paciente,
igualmente, pode se sentir amparado e cuidado: cartas aos jornais, relativamente
freqüentes, expressam o agradecimento de pacientes e suas famílias à equipe tal ou
qual. A iatrogenia decorrente da impessoalidade e do múltiplo atendimento pode ser
evitada no local onde a tecnologia mais impõe sua presença; é possível elaborar,
portanto, a idéia de responsabilidade coletiva em outras situações de saúde.
O médico não tem sua autonomia necessariamente restringida por trabalhar
em equipe; pode-se realizar um trabalho satisfatório à medida que a situação cria
novas hierarquias e pontos de tomada de decisão. Isto é possível, do mesmo modo que
o fim da prática liberal, já há tempos, não impediu que, hoje, profissionais encontrem
condições satisfatórias de trabalho, bom relacionamento com pacientes e sejam
assalariados. Uma questão é preponderante no aspecto da responsabilidade sobre o
paciente: por mais que se compartilhem decisões, por mais que outros profissionais
estejam habilitados em condutas que o médico não domina, é ele, até hoje, o responsável
legal pela vida do paciente.
É necessário ter consciência de que o médico é, na nossa sociedade, o profissional
encarregado da morte. E, apesar de todas as mudanças nas características do trabalho,
o papel do médico, de profissional socialmente encarregado de combater a morte,
ainda persiste: assim como não se conhece sociedade sem um terapeuta formalmente
definido, não se conhece sociedade sem um encarregado da morte, papel assumido
pelos médicos na nossa cultura quando os sacerdotes tiveram sua importância social
diminuída (ARIÈS, 1977). Por mais compartilhado que seja o trabalho de uma equipe
de saúde, somente do médico se espera essa atividade impossível, qual seja, controlar
o evento brutal, avassalador em todas as comunidades, pois definitivo e sem retorno.
Só o médico preenche um atestado de óbito, e seu substituto nessa hora não é
outro profissinal de saúde eventualmente disponível: é a polícia. Em nossa cultura, a
morte não atestada pelo médico assume o caráter de fato desviante, anormal. Tocar
nesse ponto hoje é essencial – é necessário se ter claro que, com mais ou menos
autonomia, com saberes mais ou menos compartilhados, o médico ainda é diferenciado
em relação aos demais profissionais de saúde. O problema da fragmentação de ações
sobre o doente é, em última instância, do médico, pois a ele é dado o encargo social
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14. É freqüente que os críticos da prática médica atual reforcem essa dicotomia, argumentando
que o real trabalho médico deve ser o exercício da arte de curar. Ver Luz (1996).
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– obviamente de realização impossível, ao final – de dar a vida e evitar a morte, ou
seja, acompanhar a trajetória global do paciente.
Duas questões decorrem deste fato inconteste: em primeiro lugar, a organização
de uma equipe de saúde tem que ser balizada por essa responsabilidade diferenciada.
O médico e os demais profissionais têm que definir como se pratica, no dia-a-dia, a
tomada de decisões em que o médico, por ter maiores responsabilidades, terá, de
modo correspondente, voz mais ativa – o que não significa autoritarismo,
distanciamento e falta de polidez no seu relacionamento com os colegas. Ao contrário:
uma liderança só se exerce com conhecimento das capacidades dos demais profissionais,
com ouvidos para escutar contribuições específicas e visão de conjunto sobre a saúde
do paciente.
Em segundo lugar, uma questão mais difícil de equacionar. Estando a própria
atividade médica fragmentada em subespecialidades, nem sempre está claro, para o
próprio profissional, o fato de sua responsabilidade global sobre o paciente. A formação,
o próprio ensino, cindido em especialidades e restrito a discussões técnicas, tende a
obliterar o aprendizado dessa responsabilidade, e daí as dificuldades hoje do
relacionamento médico-paciente, o desencontro das expectativas e a insatisfação
paradoxal: quanto mais eficiente a intervenção médica, menos gratificação para os
pacientes em geral, e grandes os riscos de intervenções intempestivas e iatrogências.
Ser médico hoje é, portanto, pretender trabalhar em prol da recuperação da
saúde de doentes, munido de recursos tecnológicos, mas muitas vezes sem uma direção
clara de como, quando e de que modo empregá-los. Sinal dessa falta de clareza é um
falso dilema que persiste já há mais de um século, perceptível no juramento profissional
contemporâneo: o médico jura, frente à sociedade, usar de sua ciência e,
simultaneamente, jura ainda exercer a arte de curar. Esta foi a ambivalência da prática
médica no século XX: ou se é Senhor da Ciência das Doenças ou praticante da Arte de
Curar, terapeuta (cuja origem grega, Therapeuien, é servir, auxiliar a natureza). Explicase: a medicina sempre foi vista, no Ocidente, como uma arte: não no sentido estético,
mas no de um ofício, uma artesania delicada e sutil, não exata, a depender do talento,
de um dom.14
A emergência de conhecimentos biológicos de base científica pretendeu diminuir
o grau de incerteza inerente ao exercício artesanal. Ao possibilitar uma universalização
e padronização do ensino e da prática, permitiu também certa uniformização dos
profissionais e seu trabalho, o que possibilitou, por sua vez, a formação da corporação
nos moldes sólidos de hoje.
Os conhecimentos científicos foram recebidos, portanto, com grande apreço
por médicos e doentes. Paradoxalmente, a crença na ciência adquiriu um caráter de
fé e assim abandonou o domínio racional: o desejo persistente na história da
humanidade, impresso no imaginário de todos, de extinguir as doenças e, mesmo,
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15. Essa afirmativa não é mística. São conclusões de filósofos da fenomenologia, como MerleauPonty e, na área médica, principalmente de Canguilhem. Entre os estudiosos da neurofisiologia também surge a tendência de se entender as complexidades da mente como processos
biológicos até certo ponto indetermináveis, como aponta Damázio, em seu O Erro de Descartes (1996).
16. Esta idéia está mais desenvolvida em Sayd (1998).
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vencer a morte, passou a ser depositado na ciência. Daí o desejo de chamar a medicina
de ciência, ou seja, de conhecimento exato, acima das dúvidas, a dissipar de vez os
temores permanentes acerca do sofrimento e do fim da vida. Os livros-texto de
medicina não hesitam mais, hoje, em recomendar aos estudantes: sejam científicos;
cuidado com a antiga idéia de medicina como arte, ela pode estar ocultando a
ignorância, o abuso da experiência individual, do reles empirismo como guia
(WINGAARDEN et al., 1992).
Esta proposta é, no entanto, insatisfatória por ser irreal. Por mais que a ciência
tente padronizar e racionalizar seus diagnósticos, definições de doenças e o uso de
drogas, o corpo vivo, os seres viventes não são padronizados – cada um adoece e se
cura de modo peculiar, reage a medicamentos de forma própria, e este fenômeno –
dos seres vivos serem únicos, singulares, ímpares – não é redutível ao conhecimento
científico.15 Não se está a falar de aspectos psicológicos ou de fatores sociais apenas,
embora também estes contribuam para que cada doente tenha um contexto e, portanto,
uma solução própria mais adequada para seus problemas. Radicalmente, na própria
estrutura biológica de cada um, existe este fenômeno de unicidade, de relativa
imprevisibilidade. Assim, mesmo que se possa considerar a fisiologia ou a imunologia
uma ciência avançada, sua aplicação a cada caso deixará sempre a desejar. A medicina
tem um princípio de incerteza clínica irredutível, no diagnóstico e no tratamento.
Medicina não é ciência. Utiliza conhecimentos científicos, mas de forma adaptada,
parcial. Ademais, o objetivo do cientista é produzir conhecimento, e o do médico é
produzir curas e aliviar pessoas, coisas muito diferentes. Mas, será hoje, uma arte?
Em que pese a unicidade de cada doente, uma intuição que ainda se usa na formulação
de hipóteses diagnósticas, o valor da experiência do profissional, coisa não-científica,
os livros-texto têm razão. A base de conhecimentos deve ser mais o conhecimento
técnico atualizado e menos as impressões individuais do médico, mais os levantamentos
epidemiológicos do que sua experiência de muitos casos (sempre menor do que as
meta-análises de hoje).
Falso dilema, este, se a medicina é ciência ou arte, como falsa são as propostas de que é “um pouco de cada”, conciliação inconsistente, retórica vazia. Medicina
é mediação.16 Esta é sua origem etimológica, e significa que o médico está no meio,
na encruzilhada de todos os caminhos. Seu trabalho é facilitar passagens, transportar instâncias, criar encontros. E assim, em meio a ressonância magnéticas e transplantes reencontramos Asclepius, a mostrar aspectos quase atemporais no exercício de cuidar de doentes. É este o grande elogio que Platão faz ao médico hipocrático, seu contemporâneo:
17
“o representante especial do mais alto refinamento metódico e, ao
mesmo tempo, a encarnação de um ética profissional exemplar
pela projeção do saber sobre um fim ético de caráter prático,
motivadora de confiança na finalidade criadora do saber teórico na
construção da vida humana…” (JAEGER, 1992, p. 783).
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O médico, portanto, realiza uma difícil tarefa intelectual: detém o método de
aplicação de saberes teóricos a uma prática. Desta forma dá um exemplo louvável de
que o conhecimento teórico não é estéril, pois se aplica, eticamente, à práxis humana.
O médico se situa entre o doente e um saber, medianeiro entre um e outro. Tanto
recebe o saber, de um lado, como recebe a queixa do doente; a ele cabe aplicar o
conhecimento ao sofrimento de cada um. A ele cabe levar o aprendizado de cada
processo de tratamento de volta à bagagem de conhecimento, sua e de seus colegas.
A idéia de médico como sendo fundamentalmente um mediador pode trazer
certa dose de melancolia, pois assim lhe são retiradas as auréolas místicas que cercam, na nossa cultura, tanto a figura do cientista quanto a do artista, ou seja, dos
gênios criativos, das figuras ímpares, insubstituíveis, cujas idéias mudam os destinos
da humanidade – não necessariamente para melhor. Nas disputas em torno da falsa
dicotomia ciência/arte, no fundo, estão em questão a vaidade e o modelo de auréola
preferido (mais engraçada, no caso, é a figura que quer portar as duas, uma sobre a
outra, na idéia de que se pode ser ainda mais poderoso). É necessário discutir e combater, enfaticamente, o apelo fácil desses mitos contemporâneos, e a melancolia é
dispensável: o médico tem sua posição própria, não carece de atributos postiços.
A etimologia pode esclarecer mais: med, a raiz indo-européia de mediar e
medicar, está igualmente associada a meditar, e este meditar é tomar decisão e liderar (BOISACK, 1923). Mediação é meditação, avaliação, uso de critério, e o bom
médico é aquele capaz de manejar a técnica, misturá-la com sua experiência e tomar
uma decisão. É esse o verdadeiro significado da idéia, tão presente em discursos críticos sobre a prática atual, de que o médico deve deixar de se voltar para as doenças
e se tornar um profissional de saúde – ou seja, deve estar voltado para um objetivo de
cunho geral e para isto deve fazer apelo a inúmeras habilidades e capacidades distintas.
O método clínico, de procurar doenças focais no organismo, distúrbios específicos, é o único recurso que possuímos para instaurar terapêuticas eficazes, e também
é o guia para elaboração de propostas de prevenção: seria estupidez abandoná-lo. Mas
deixar de refletir sobre o objetivo último da busca diagnóstica ou da intervenção na
vida de cada paciente é abandonar a responsabilidade que a sociedade outorgou ao
médico, pela saúde dos que o procuram. Obedecer acriticamente à tecnologia e deixar de ver o conjunto da pessoa é desprofissionalizar-se por conta própria: ao se renunciar à responsabilidade social por uma atividade, renuncia-se, obrigatoriamente, ao
poder de que a mesma está investida. A real responsabilidade médica não é se exibir
com mágicas diagnósticas à beira do leito, frutos da intuição e experiência; também
não é fazer um diagnóstico de subespecialidade, prescrever de acordo e se dar por
satisfeito cumprindo protocolos mecanicamente. É necessário ir um pouco mais além,
18
e, meditando sobre a vida do paciente, mediar o caminho de seu retorno à saúde,
inclusive ponderando junto com os demais profissionais nesse processo, cuja maioria
também não está formada para uma visão de conjunto da vida das pessoas.
Bem mediar é, portanto, mais do que ciência e arte, uma aplicação de valores,
um trabalho ético, um exercício de sabedoria. E de nada servem à humanidade ciência e arte sem sabedoria, ou seja, sem capacidade de avaliação, meditação e ponderação. Só alguém em busca da sabedoria será um médico excepcional: capaz de aprender a técnica e ponderar sobre o seu uso no momento adequado, renunciar ao seu
emprego quando deletério e estabelecer pontes entre o paciente e uma série de
instâncias disponíveis para o controle ou a minoração de seus problemas. Tirar o
paciente da margem onde está, isolado em seu sofrimento e medo, e conduzi-lo para
a outra, do consolo, conforto e compartilhamento, é o trabalho de mediação. Para
bem cumpri-lo, o médico não faz ciência, mas tem certo domínio sobre ela; não
renuncia à sua intuição, mas a emprega com cautela; não pode ser despótico, mas tem
autoridade; precisa, portanto, saber avaliar, desejar crescer em sabedoria.
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