Dona Florinda - Uma benemérita muito especial "O egoísmo, a insensibilidade, a frieza de espírito, nascidos de um sistema que liquida os laços sociais de que a humanidade é fundamento, determinam e talvez expliquem este nosso amargo tempo" Baptista- Bastos Lembrei-me da Dona Florinda que é como afectuosamente a trato. O seu nome completo é Florinda Rosa da Assunção Pilroto. Mas, na Régua, é conhecida como a Dona Florinda. Assim lhe chamam também os seus vizinhos, os amigos, os escuteiros e os nossos bombeiros voluntários que com ela se relacionam. E, não me engano, que lá eternidade, os anjos santos devotos e as alminhas devem fazer o mesmo. Acredito que, na Régua, não haja quem tenho ouvido falar da sua simplicidade e bondade. À sua maneira, ela faz parte do quotidiano social e de uma forma singela e surpreendente marca o ritmo da sua vida, entre o presente e as recordações, a realizar pequenas obras de solidariedade e pequenas acções de benemerência. Já ajudou a igreja a reparar imagens dos Santos, os escuteiros e a associação de bombeiros. Quase à beira dos seus 87 anos, a sua vida é uma lição que quebrou rotinas e as barreiras da sua solidão e a sua forma pessoal de se relacionar com as outras pessoas. Em vez de ficar a viver um vazio existencial consegue ser a protagonista de uma história que é um raro exemplo de participação cívica e cidadania activa. A Dona Florinda teve um berço humilde, nasceu num bairro pobre que existiu à beira rio, no velho cais de baixo, e cresceu no seio de família numerosa abandona à sorte de um destino que lhe trocou as voltas. Viveu rodeada de muitos amigos, gente tanto ou mais anónima como ela, que a morte já levou deste mundo, mas que lhe deixou muitas saudades dos tempos felizes e que fala deles como se fossem fantasmas abandonados num mundo, para nós, inexistente. Apesar da modesta instrução, apenas fez a terceira classe na escola das Rua das Vareiras, depois de deixar de trabalhar, a morar sozinha, sem família próxima, procurou nas suas convicções religiosas um sentido útil para não viver entre o presente e os retratos do passado. Hoje aqueles que a vêem passar curvada no seu pequeno e magro corpo, derreado de lenço atado na cabeça, bengala na mão rugosa, a puxar um carrinho de compras, podem pensar que é uma curiosa e divertida personagem de ficção. Mas estão enganados! Ela é uma mulher afável, perspicaz ao que se passa à sua volta, com necessidade de ainda interagir com a sociedade Sem esconder as obsessões da sua idade, ela gosta calcorrear solitariamente as ruas de uma cidade que, senão a ignora, lhe mostra indiferença e estranheza. O que não a embaraça de fazer com normalidade o seu dia-a-dia. Vai fazer as compras na Mereceria do Arnaldo Marques e do Fernando Azeiteiro. Devota de muitos Santos, com os quais se liga por uma fé inquebrantável, procura os lugares de culto para rezar orações que são mais que meros pedidos de ajuda espiritual. Habitou-se a caminhar ao longo da margem do rio, desfrutando a beleza da paisagem, para travar conhecimento com os tripulantes dos grandes barcos de turismo, ancorados no moderno cais fluvial, para lhes fazer entender com esse lugar mudou e lhe traz saudades de outros barqueiros, como a mítica Felisbela. Também se dedica a cuidar os animais e, houve tempo, que dava nome aos patos selvagens do rio que dela se abordavam para comer as sobras da sua comida. Das muitas missões de carácter filantrópico que se encarrega de realizar, a que faz com mais afeição é a de zeladora das alminhas do Senhor dos Aflitos. É nesse oratório, perto do mercado municipal, que se dedica às alminhas do outro mundo, no qual acredita, mantém acesas as velas, cuida da limpeza e, passa horas a fio, a rezar orações guardadas num novelo emaranhado da sua lúcida memória. Através dessa ligação ao divino e ao transcendente é assim que, através das suas preces, que ajuda quem precisa de paz espiritual. Nunca escondeu que tem pelos bombeiros uma admiração antiga, que remonta aos tempos da sua infância, onde conhecera briosos bombeiros, infelizmente falecidos, como o Quim Laranja, Manuel Paixão, seus primos, e o Quim Santos, um barbeiro estabelecido na rua da Ferreirinha. Lembra-se do Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, figura de respeito, um respeitado poeta, que se lembra de ver à porta do quartel, quando este ainda era numa velha casa do Cimo da Régua e os rituais dos incêndios eram bem diferentes. É ainda do tempo que se ficava a saber em que rua andava o fogo pelos toques do sino da Igreja do Cruzeiro. Para os bombeiros de hoje, a Dona Florinda é também conhecida como a Senhora dos Santos. Este carinhoso qualificativo tem uma explicação. Quando precisaram de substituir a imagem do padroeiro São Marçal, no Quartel Delfim Ferreira, foi ela que tratou de angariar o dinheiro necessário para a adquirir. Mais tarde, voltou a presenteá-los com um outra imagem do Santo para ficar no Edifício Multiusos -Sala Museu. Os bombeiros manifestaram-lhe a gratidão numa cerimónia solene realizada no Salão Nobre do seu Quartel. Nas comemorações do 129º aniversário da associação deramlhe uma Medalha de Serviços Distintos – grau prata, concedida pela Liga dos Bombeiros Portugueses. Quiseram, assim, reconhecer uma mulher simples que contribuiu, à sua maneira, para os valores do associativismo e da causa do voluntariado. Comparado com outro o seu contributo pode até ser diminuto, mas tem um valor simbólico um valor inestimável. Depois faz sobressair uma atitude cívica pouco comum nos tempos difíceis que correm. Quem mais tem, salvas raras excepções, não ajuda a causa humanitária dos bombeiros, nem sequer outras obras de solidariedade. Lembrei-me da Dona Florinda. Ainda bem que o fiz. O que sabemos da sua biografia identifica-a como uma mulher deste mundo e do outro que, anonimamente, se dedicou a acções solidárias que contribuíram sempre para ajudar o seu semelhante. Quando os bombeiros a reconheceram com o estatuto de uma benemérita, quiseram testemunhar não apenas a sua gratidão, mas a da sociedade reguense. Acreditem que esta humilde mulher merecia diferente reconhecimento pelas causas filantrópicas que se empenha e ninguém mais parece acreditar. Para a Dona Florinda, a sua vida não passou em vão. Costuma-se dizer que os bons exemplos, mais que as meras palavras, educam. O seu exemplo de vida alvitra para aqueles que, na sua terra, nada fazem pelo bem comum. Aos 87 anos, o seu rosto cansado guarda uma expressão feliz que espelha bem aquilo que ela é e, porventura, queria ter sido e, verdadeiramente, conseguiu ser. José Alfredo Almeida