COMO AS CRIANÇAS ENFRENTAM SUAS ALTERAÇÕES DE FALA OU FLUÊNCIA? Autores: ANA BÁRBARA DA CONCEIÇÃO SANTOS, AYSLAN MELO DE OLIVEIRA, SUSANA DE CARVALHO, INTRODUÇÃO No decorrer do desenvolvimento infantil, seja ele físico, cognitivo, emocional, afetivo ou social, a criança poderá enfrentar determinadas situações nas quais a tensão em sua vida pode atingir altos níveis e estes podem comprometer seu potencial para lidar com os conflitos(1). O estresse na criança é similar ao vivido pelo adulto, com sintomas psicológicos ou físicos também semelhantes como ansiedade, terror noturno, pesadelos, dificuldades nas relações interpessoais, introversão, desânimo, insegurança, agressividade, choro excessivo e depressão(1). Dentre os distúrbios da comunicação, as patologias da fala e da fluência em crianças são problemas frequentes. A maioria das crianças não apresenta outras alterações significativas, entretanto tais dificuldades podem interferir negativamente na socialização, chegando até a idade adulta(2). Torna-se válido trazer à cena o conceito de enfrentamento, que abrange as estratégias que serão utilizadas pelos sujeitos para lidar com algum tipo de ameaça iminente, como um sobrepeso, capacidades cognitivas ou comportamentais do momento(3). Na criança, situações de estresse podem ser originárias de fontes externas ou internas. As fontes externas são aqueles acontecimentos que determinam uma adaptação da criança, o que acaba exigindo muita energia. As fontes internas são geradas pela própria criança e estão relacionadas à maneira com a qual ela confronta as situações vivenciadas, seus pensamentos e atitudes(1). O evento, por si só, não gera situações de tensão, mas o pensamento do sujeito sobre o ocorrido é o fator desencadeante do estresse. Assim, o grau de estresse vivido depende, na maioria dos casos, da interpretação que o indivíduo dá ao acontecimento. Os processos cognitivos pelos quais os indivíduos enfrentam as situações consideradas estressoras constituem o coping(1). Essas estratégias de enfrentamento podem ser diferenciadas, dependendo do lugar e do contexto. Estratégias que são utilizadas para confrontar conflitos familiares podem se diferenciar das empregadas para o enfrentamento de problemas no meio social no qual o individuo está inserido(4). Da mesma forma, os pensamentos podem ser controlados, pois os sujeitos conseguem adaptar sua forma de pensar e agir. Atitudes que, ao longo do tempo, eram avaliadas como ameaçadoras podem passar a ser consideradas inofensivas; devido a pensamentos que contribuam para a diminuição da ansiedade, para que assim o individuo possa compreender que é capaz para lidar com esse estimulo (1). Em síntese, é a partir do tipo de pensamento que a criança cria sobre si mesma e sobre os outros que seus sentimentos serão atingidos. Isso resulta na ativação de pensamentos que se tornam automáticos e que geram comportamentos tidos como funcionais ou não funcionais(1). As estratégias para lidar com o estresse a partir de ações cognitivas ou comportamentais estão situadas em dois extremos: a aproximação e a evitação. As estratégias de aproximação compreendem ações diretas e a busca de apoio social, podendo ser consideradas mais adaptativas e funcionais do que as estratégias de evitação que, por sua vez, incluem a negação e distração(4). Considerando sua função, as estratégias de coping podem ser classificadas de acordo com seu foco: focadas na emoção, no problema ou nas relações interpessoais. O coping cujo foco é a emoção é definido como o estimulo usado para regular o estado emocional relacionado com o estresse. Essas estratégias são direcionadas ao nível somático ou aos sentimentos com o objetivo de modificar o estado emocional do sujeito. O coping focado no problema integra esforços para agir nas situações que dão origem ao estresse, como uma tentativa de modificá-las. No coping focado nas relações interpessoais, os sujeitos buscam apoio de outras pessoas do seu convívio para a resolução da situação estressante(5). As estratégias de coping são importantes e mutáveis, pela flexibilidade e mudança. Estratégias que aliviam instantaneamente o estresse podem causar dificuldades futuras. Novas questões exigem novas estratégias de coping, pois determinadas estratégias podem não ser eficazes em todos os tipos de estresse (5). No bojo do conceito de enfrentamento, este trabalho se propôs a compreender como as alterações de fala e fluência são enfrentadas por crianças de cinco a 12 anos. Conhecer como os problemas na comunicação afetam a vida da criança e modificam a sua rotina, comportamentos e relações sociais pode contribuir para um melhor suporte na prática clínica. OBJETIVO Compreender como as crianças enfrentam suas alterações de fala ou fluência. MÉTODOS Trata-se de um estudo observacional e descritivo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o no. CAAE 0185.0.107.000-11 e realizado no Laboratório de Voz, Fala e Fluência do Departamento de Fonoaudiologia de uma universidade pública. Todos os responsáveis pelas crianças participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que permitia o acesso aos dados registrados em seus prontuários. A fim de atingir o objetivo deste estudo, foram examinados todos os prontuários das crianças que compareceram ao Laboratório, voluntariamente e acompanhadas dos seus responsáveis, com a queixa de alterações de fala e/ou fluência. Os participantes foram selecionados a partir dos seguintes critérios de inclusão: idades entre cinco e 12 anos e que tivessem respondido a anamnese infantil (que faz parte do material de avaliação inicial do Laboratório) no período compreendido entre 20 de setembro de 2011 e 20 de julho de 2014, com os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinados pelos responsáveis e anexados aos prontuários, sem relatos de comorbidade cognitiva ou anatômica dos órgãos fonoarticulatórios, sem registro de atendimento fonoaudiológico anterior e que estivessem frequentando a escola. A opção por crianças a partir dos cinco anos deu-se pelo fato de que estas já apresentam habilidades cognitivas suficientes para fornecer as respostas da anamnese infantil, uma entrevista adaptada com o propósito de investigar o ponto de vista da própria criança sobre sua dificuldade de fala ou fluência(6). Respeitando os critérios citados, foram selecionadas 15 crianças e examinadas as respostas fornecidas às questões da anamnese infantil. Para a análise de tais respostas, foram utilizados os procedimentos próprios da análise de conteúdo (7). Durante a fase de exploração do material, realizou-se a leitura e a transcrição literal das respostas das crianças para uma planilha, desenvolvida especificamente para facilitar a análise das mesmas. A partir daí, os participantes foram distribuídos em dois grupos de acordo com a patologia: alteração de fala ou alteração de fluência, resultando nos grupos designados como GFluência (para crianças com alteração de fluência) e GFala (para crianças com alteração de fala). A fase de tratamento dos dados corresponde à inferência e à interpretação, nas quais os pesquisadores procuraram tornar os resultados brutos, significativos e válidos. RESULTADOS O estudo contou com 15 participantes, distribuídos em dois grupos: GFluência composto por 10 crianças, todas do sexo masculino e idades entre cinco e 12 anos (IM: 9,9 anos) e GFala, com cinco crianças, uma do sexo feminino e quatro do sexo masculino, com idades entre cinco e 11 anos (IM: 8,4 anos). A Tabela 1 apresenta as questões formuladas às crianças e os padrões de resposta. Os resultados mostram que crianças com alteração de fluência percebem que tem um problema e denotaram preocupação com sua maneira de falar. Como consequência para algumas crianças, isto resulta em não gostar ou até ter medo de falar com determinadas pessoas, o que caracteriza uma estratégia de evitação. Quando questionadas sobre a percepção da própria maneira de falar, as crianças com alteração na fala não denotaram preocupação, o que pode estar relacionado com a não percepção das dificuldades. Dificuldades encontradas em crianças com distúrbio fonológico na execução de tarefas metalinguísticas podem ser explicadas pelo tipo de conhecimento linguístico acumulado. Por mais que elas tenham obtido um tipo de conhecimento fonológico e capacidades de análise semelhantes aos de crianças com desenvolvimento normal, as respostas de tarefas linguísticas serão incorretas, pois sua representação fonológica é distinta(8). As estratégias de enfrentamento (coping) representam ações, comportamentos ou pensamentos que são utilizados para lidar com o fator estressante. Embora nem todas as crianças refiram sentir-se aborrecidas, suas reações são emocionais. Foi possível observar contrastes entre a percepção da dificuldade, o sentir-se aborrecido e reagir. A maioria das crianças não demonstrou preocupação quanto às alterações, no entanto ficam aborrecidas e reagem negativamente diante de situações comunicativas. É possível considerar que o estresse gerado pelas alterações na fala e na fluência pode levar a esse tipo de conflito interno. O sentimento de raiva e o brigar como estratégias de enfrentamento revelam um coping focado na emoção. Tabela 1: Questões e padrões de resposta pelos participantes dos grupos Participantes Você gosta de falar? Sim Não GFala (n=5) 5 GFluência (n=10) 5 1 Mais ou menos; Um pouco Você se preocupa com sua maneira de falar? Você tem medo de falar com alguém? 4 Sim 1 4 Não Mais ou menos; Um pouco 4 4 Sim 1 3 Não 4 5 2 Mais ou menos Você acha que tem algum problema para falar? 2 Sim; Tenho 2 7 Não; É normal 3 3 2 3 3 4 Quando o problema para falar acontece, você Sim fica aborrecido? Não Mais ou menos; Um pouco 3 Como você se sente? Como você reage? Normal 2 1 3 9 Você acha que pode melhorar? Raiva; Fico com raiva; Brigo; Falo rapidinho Sim; Sim, pode; Um pouco 5 10 Sim; Pode 3 8 Não 2 2 Você acha que alguém pode ajudar você a melhorar? Questão Padrões de resposta As estratégias de enfrentamento variam de acordo com o desenvolvimento e, ao relacionar a idade e o coping, um estudo anterior identificou que sujeitos de 11 a 15 anos buscam entender mais sobre o problema (9). A maioria dos participantes acredita que pode melhorar e, em algumas respostas, foi possível identificar que as crianças veem os seus pais como os adultos que podem auxiliá-los. A referência aos pais pode ser vista como um apoio à fragilidade imposta por suas dificuldades comunicativas, configurando-se assim, como uma estratégia de enfrentamento focada nas interações. Diante disso, fica evidente a importância da família para o processo terapêutico. CONCLUSÕES Conclui-se que crianças com alterações de fala ou fluência percebem suas dificuldades e utilizam estratégias de enfrentamento focadas, principalmente, na emoção. REFERÊNCIAS 1. Bignotto M.M. A eficácia do treino de controle do stress infantil [tese]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica - Centro de Ciências da Vida, Pós-Graduação em Psicologia; 2010. 2. Amorim R. Avaliação da criança com alteração da linguagem. RN&C. 2011; 20(3): 174-6. 3. Folkman S, Lazarus RS, Gruen RJ, De Longuis A. Appraisal, coping, health status, and psychological symptoms. J Pers Soc Psychol. 1986; 50(3): 571-9. 4. Antoniazzi AS, Souza LK, Hutz CS. Coping em situações específicas, bem-estar subjetivo e autoestima em adolescentes. Gerais Rev Interinst Psicol. 2010; 2(1): 34-42. 5. Antoniazzi AS; Dell’Aglio DD, Bandeira DR. O conceito de coping: uma revisão teórica. Estud psicol. 1998; 3(2): 273-94. 6. Jakubovicz R. A gagueira: teoria e tratamento de adultos e crianças. 6. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Revinter. 2009. 7. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70. 2009. 8. Magnusson E. Consciência metalingüística em crianças com desvios fonológicos. In: Yavas MS. (org.). Desvios fonológicos em crianças: teoria, pesquisa e tratamento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 109-48. 9. Dell”Aglio DD, Hutz CS Estratégias de coping de crianças e adolescentes em eventos estressantes com pares e com adultos. PsicoL USP. 2002; 13(2): 20325. Descritores: Fala; Gagueira; Estratégia de adaptação.