Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente. Onde às vezes param e são morosas por dentro. Há cidades absolutas trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres. (...) entrevista com Helena Araújo a página da educação - PRIMAVERA 2010 Há mulheres que colocam cidades doces e formidáveis no espaço, dentro de ténues pérolas. Que racham a luz de alto a baixo e criam uma insondável ilusão. (...) A I República e a retórica ambígua sobre a emancipação da mulher portuguesa A última entrevista de Rogério Fernandes “Ainda não se dá o espaço suficiente para que os professores recuperem a sua vocação de construir uma escola nova pelas suas próprias mãos e com os seus alunos.” centenário do Dia Internacional da Mulher Semana de Acção Global pela Educação Herberto Hélder Lugar IV, fragmento Série II | nº 188 | PRIMAVERA 2010 | www.apagina.pt | 4€ objectivo: educação para todos DEVESAS Série II | nº 188 DE00472010GSCP/SNC CAPA_A.indd 1 Ousar ousar! Pragmatismo, educação e democracia: o legado universal de Jane Addams É indispensável que as universidades sejam credíveis e ofereçam formação de boa qualidade (Alberto Amaral) | O texto do acordo ortográfico é português, e é bom que os portugueses saibam disto (Lauro Moreira) | Precisamos de um ensino missionário? (Leonel Cosme) 3/15/10 3:43 PM a á ina da educação f ro edições a sua outra editora PROMOÇÃO de LANÇAMENTO válida em 2010 Assinar a página da educação é cómodo, económico e seguro Ao assinar a página da educação, em vez dos 4 euros, pague apenas por número 2,50 euros na assinatura por DOIS anos 3,00 euros na assinatura por UM ano Esta é uma forma cómoda, económica e segura de receber em casa a sua e de fazer parte do colectivo de Assinatura Números por assinatura 1 Ano 3,00 euros 4 números 2 Anos 2,50 euros 8 números Contactos para assinaturas: Telefone: 226 002 790 Correio electrónico: [email protected] CAPA_A.indd 2 Preço por número Valor a pagar por assinatura 12 euros Recebe 4 paga 3 20 euros Recebe 8 paga 5 assinar pensar o ensino e a educação reinventar o sistema educativo O futuro é a ora! Site: www.profedicoes.pt | Mail: [email protected] Telf.: +351 226 002 790 | Fax: +351 226 070 531 Rua D. Manuel II, 51 C, 2.º andar, Sala 25 | 4050-345 PORTO (Portugal) 3/15/10 3:44 PM 001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 1 sumário FICHA técnica a ágina educação da DIRECTORA: Isabel Baptista | DIRECTORA ADJUNTA: Ana Brito Jorge | EDITOR: António Baldaia CONSELHO EDITORIAL: Américo Peres, Ariana Cosme, Fátima Antunes, Fernando Santos, Henrique Borges, Paulo Teixeira de Sousa, Rafael Tormenta, Rui Trindade REDACÇÃO: Ricardo Jorge Costa | COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Teresa Couto (fotografia) SECRETARIADO DA REDACÇÃO: Sílvia Enes e Lúcia Manadelo | CONTACTOS: Telefone (00 351) 22 600 27 90 | Fax (00 351) 22 607 05 31 | E-mail: [email protected] EDIÇÃO IMPRESSA: Trimestral, publica-se no 1.º dia de cada estação do ano | Preço de capa: 4 € | Tiragem desta edição: 19.000 PRODUÇÃO GRÁFICA: Multiponto, S.A.| EMBALAGEM: Notícias Direct | DISTRIBUIÇÃO: Logista Portugal - Distribuição de Publicações, S.A. EDIÇÃO DIGITAL: http://www.apagina.pt Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita e publica as variantes do Português, Mirandês, Galego e Castelhano. São traduzidos para Português os textos escritos noutras línguas. Registo na ERC n.º 116.075 | Depósito Legal n.º 51.935/91 | ISSN 1647-3248 editorial a escola que aprende Educação e res-publica: lições de liberdade e de cidadania Isabel Baptista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 4 ROGÉRIO FERNANDES “O nacionalismo no período republicano tem uma característica diferente da que veio a ter com o fascismo: a ideia de que a universidade e a escola, em geral, devem colocar-se ao serviço dos grandes problemas nacionais e tomar essas questões como eixo da actividade de investigação e de ensino, isto é, de que se deve pesquisar e ensinar em ordem a achar resposta para os problemas do país. É sobretudo o republicanismo positivista que inspira esta concepção. Mas a questão da educação popular ultrapassa o republicanismo. Fora do ensino oficial, por exemplo, aparecem as universidades livres e populares, muitas vezes de teor anarquista”. ................................... pág. 6 À volta do umbigo Avaliação intercalar do objectivo apontado para que, em 2015, todas as crianças do mundo tenham acesso à educação primária apresenta resultados decepcionantes. David Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 20 campanha Objectivo: educação para tod@s De 19 a 25 de Abril, a Semana de Acção Global pela Educação é dedicada ao financiamento da Educação para Todos. Mariana Hancock . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 22 educação especial Escola inclusiva está em risco Em dois anos, através da CIF, o Governo retirou apoios da Educação Especial a mais de 20 mil alunos – números de um estudo divulgado pela Fenprof. António Baldaia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 26 [trans]formações Professor ou contratado? lugares da educação PROPRIEDADE: Profedições, Lda. | Contribuinte n.º 502 675 837 | Capital Social: 5.000 euros | Registo na Conservatória Comercial do Porto: 49.561 SEDE: Rua D. Manuel II, 51/C – 2.º (sala 25) 4050-345 PORTO (Portugal) COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE PROPRIETÁRIA: Sindicato dos Professores do Norte, 90% | Abel Macedo, 5% | João Baldaia, 5% CONSELHO DE GERÊNCIA: Carlos Midões | João Baldaia SECRETARIADO DA ADMINISTRAÇÃO / PUBLICIDADE / ASSINATURAS: Telefone: 22 600 27 90 (Sílvia Enes) | Fax: 22 607 05 31 | E-mail: [email protected] | Livros: [email protected] Avaliação e dominação A falácia da argumentação meritocrática está aí: constrói-se uma pirâmide e afirma-se que todos podem ascender ao topo se revelarem empenhamento, esforço e sofrimento. Manuel António F. Silva . . . . . . . . . . . . . . . pág. 15 entrelinhas e rabiscos Escola de textos ou de paratextos? O texto é a vida. A vida que a Escola tem que ser. Mesmo quando o paratexto se transforma em texto, já muito caminho tem que estar percorrido. E o extratexto... muito mais. José Rafael Tormenta . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 16 discurso directo Agência France Press, AFP Associação Portuguesa de Imprensa, API O contributo do cinema na produção dos discursos pedagógicos Reinventar a Escola passa por transformá-la num espaço potenciador de inteligência e de humanidade, promovendo a participação de todos e a afirmação de cada um como pessoa. Ariana Cosme e Rui Trindade . . . . . . . . . pág. 18 Afinal, se se é contratado, não se é professor? Se se é profissionalizado, com vinte e vários anos de ensino, não se é professor? Ana Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 29 do primário A segunda morte de Anísio O que há de Anísio nas escolas de Caetité? Qual o legado de Anísio que se faça presente nas práticas escolares? José Pacheco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 30 do secundário O legado universal de Jane Addams A democracia exige que a escola valorize socialmente as experiências das crianças e dos jovens que a frequentam. Democracia e educação são, ou deveriam ser, desígnios indissociáveis das sociedades. Domingos Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 32. formação e desempenho A propósito da prova de ingresso na carreira docente 001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 2 sumário A relevância desta prova parece ser incontestável. No entanto, pode tornar-se num episódio isolado e pouco significativo se não tiver impacto na formação inicial e contínua. Carlos Cardoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 34 escritas soltas Um país, três sistemas educativos Não só é possível como desejável que as regiões autónomas disponham de um Regime Jurídico do Sistema Educativo Regional que mantenha o quadro de referência constitucional. André Escórcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 36 Imagem e desafios da profissão docente que a concepção é da exclusiva acção do útero feminino. Maria José Magalhães . . . . . . . . . . . . . . . pág. 51 da escola, da vida O erro (ou a lição de Bento de Jesus Caraça) O erro vale (e vale muito!) quando é detectado e a sua apropriação nos convoca para novo esforço, novas tentativas e novas soluções... Ana Brito Jorge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 53 observatório Para além da homofobia ou porque não se deve referendar a discriminação A missão pedagógica dos professores reveste-se de grande complexidade humana. Trata-se, afinal, de trabalhar com pessoas e numa perspectiva de promover a sua personalidade e humanidade. Se estamos perante um grupo de pessoas fortemente discriminado numa sociedade, há condições para referendar o seu direito a existirem de forma visível nessa sociedade? Evangelina Bonifácio . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 38 Isabel Menezes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 54 em português Precisamos de um ensino missionário? É sábio aquele professor que não se contenta com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar que não é suficiente interpretar o mundo; é preciso transformá-lo. Leonel Cosme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 40 educação e cidadania Educação Ambiental: do 3D ao novo-velho ABC As expectativas que alguns alimentavam em relação a uma sociedade mais justa e solidária foram goradas, continuando a viver-se num supermercado económico e cultural em que uns globalizam e outros são globalizados. Mariana Salgado Peres . . . . . . . . . . . . . . pág. 56 HELENA ARAÚJO “A questão da igualdade de género deu origem, de facto, a fortes controvérsias, marcadas pela conflitualidade e pela ambiguidade. E embora a República tenha dado por vezes a ideia de que as mulheres teriam um papel forte a desempenhar, fica a ideia de uma certa visão utilitária: as mulheres como as grandes educadoras dos filhos da República”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 42 dia internacional da mulher Ousar ousar! A opressão da Mulher na vida profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é a exploração dos homens. Hermínia Bacelar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 48 Entre a lei e a vida, há caminhos a melhorar Responsabilizar apenas as mulheres por uma gravidez constitui, hoje, um acto de medievalismo, sobretudo vindo de pessoas com formação científica, a quem já não se admite que considerem I 2 3 PRIMAVERA 2010 I N.º188 educação desportiva O treinador nacional e o estrangeiro Aposto nos treinadores nacionais, no cotejo com os estrangeiros, para dirigir e orientar as nossas equipas de futebol ou de qualquer outra modalidade desportiva. pedagogia social Recordando Ortega y Gasset, 100 años después “Si educación es transformación de una realidad en el sentido de cierta idea mejor que poseemos y la educación no ha de ser sino social, tendremos que la pedagogía es la ciencia de transformar las sociedades”. José António Caride Gómez . . . . . . . . . . pág. 66 Globalización y acción comunitaria: responsabilidades personales y pactos socioculturales El paso de la heteronomía a la autonomía supone, necesariamente, el paso del contrato al pacto como forma de relación. Un pacto sociocultural que se manifieste y construya sobre la topografía del bucle. Xavier Úcar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 68 afinal onde está a escola Lições do Haiti Um dos países mais pobres do mundo, com os piores indicadores da América Latina, história longa de intervenções e outros absurdos. No entanto, é a tragédia de um terremoto o que nos mobiliza. Roberto Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 70 reconfigurações Educação e desenvolvimento: agora somos todos soldados? O dilema para os voluntários da educação é que as estratégias anti-terroristas e anti-insurreccionais estão a ser percepcionadas como veículo principal para o desenvolvimento de intervenções educativas. Mário Novelli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 72 Manuel Sérgio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 58 educadores pela paz Encontro galego-português em Leiria ALBERTO AMARAL “A criação de um sistema de acreditação comum, que permita a qualquer instituição ser acreditada pelas diversas agências registadas na EQAR – apesar de esta proposta da Comissão ainda não ter sido aceite pelos ministros –, conduzirá à existência de agências com critérios de exigência extremamente altos, que acreditarão universidades como Oxford, Cambridge ou Munique, e de agências que acreditarão universidades regionais e universidades locais. Desta forma, tender-se-á ao estabelecimento de um certo sistema de ranking”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 60 De 23 a 25 de Abril, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 74 olhares de fora O humanismo concreto e a “questão do certo” A efetivação do humanismo concreto é um incessante devir. Uma totalização dialética. A “questão do certo” potencializa-se pela práxis do humanismo concreto. Ivonaldo Neres Leite . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 76 cultura e pedagogia Crianças não escapam à volúpia do mercado “A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente 001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 3 disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias”. Marisa Vorraber Costa e Paula Deporte de Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 78 república dos leitores Justiça global: uma questão politica, antes de tudo o mais Maria Rosa Afonso . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 80 O ensino público deve ser o eixo vertebrador do sistema educativo Rosa Soares Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 81 Na escola há literatura a mais... Desculpe? Paulo Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 83 fora da escola também se aprende canteiro do espírito onde ajardina a matéria sensível excedentária do rasgo pictórico. Descobertas e invenções em narrativas imagéticas Júlio Conrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 106 Encontrar nas narrativas imagéticas indícios da realidade que, supostamente, elas expõem, requer certa abertura para o inesperado. Inês Barbosa de Oliveira . . . . . . . . . . . . . pág. 93 visionarium Mosca do vinagre é modelo biológico A Drosophila melanogaster continua a estar associada a muitos avanços ao nível do conhecimento da genética, do desenvolvimento e das ciências biomédicas Departamento de Conteúdos Científicos do Visionarium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 94 bibliotecas escolares Uma realidade em mudança Aos professores bibliotecários compete desenvolver estratégias que garantam a rentabilização das bibliotecas ao serviço das escolas, dos processos formativos e das aprendizagens dos alunos. José Paulo Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 84 saúde escolar Da literacia em saúde No que diz respeito à educação para a saúde, o currículo escolar e a informação passada pelos profissionais de saúde concorrem em grande desvantagem com outras fontes. LAURO MOREIRA “A lusofonia, muito mais do que um espaço, é um espírito que emerge de 500 anos de um convívio cuja matriz é Portugal, um convívio que acabou formando um património linguístico, cultural, histórico, e que teve um dia para começar, mas não tem para acabar. A lusofonia, portanto, é algo em construção, um fenómeno in fieri, algo que está ocorrendo”. perspectivas Segredo É um instante, um assomo de urgente vontade, uma comoção doce fora de qualquer realidade, misteriosa, breve... Luís Vendeirinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 108 Pedagogia da catástrofe Que o poder pedagógico da catástrofe conduza à correcção de alguma gestão do território, de forma a minimizar danos humanos e materiais. Nélio de Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 109 dizeres Biografia O Manel morreu já há muito tempo. Fiquei muitos anos sozinha. Às vezes passava muito mal e quem me valia era uma vizinha. Morri a 2 de Fevereiro de 2010, com 77 anos. Angelina Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 110 colaboradores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 112 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 96 Nuno Pereira de Sousa . . . . . . . . . . . . . . pág. 90 A construção de um “eu” virtual em idade escolar Para além de aceitar o desafio da internet e de promover os computadores Magalhães, precisamos de nos prevenir para o reverso da medalha Rui Tinoco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 91 cinema Alain Resnais, o cineasta da memória “Não quero falar do meu próximo filme. Gostava de começar a rodar rapidamente, antes do Verão. Mas bom, graças ao Santo Oliveira, estamos protegidos”. Paulo Teixeira de Sousa . . . . . . . . . . . . . . pág. 104 quotidianos Internet A internet não é um meio de comunicação social. Ela engloba os próprios meios de comunicação social. Carlos Mota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 92 textos bissextos Emerenciano: o poeta e o pintor Mesmo existindo um compromisso entre palavra e cor, verso e traço, semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista reserva à poesia o breves Stellenbosch/Famalicão convida Herman José . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 17 Há mais mulheres no mercado de trabalho, mas as desigualdades continuam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 52 Feira tem projecto de intervenção precoce no Pré-Escolar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 75 Alunos e professores colaboram na edição de livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 83 001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 4 Educação e res-publica: lições de liberdade e de cidadania As contradições na História não vão deixar de existir. E a escola no meio dessas contradições não pode ter uma posição de equilibrismo. A escola tem de tomar um partido: o dos valores humanos, da liberdade, da democracia, da justiça social. A escola pública, que por isso é a minha opção, terá de suportar a diversidade de opiniões, mas fomentar a crítica e sobretudo fazer com que não haja uma única visão dos factos. editorial Rogério Fernandes, «A Página da Educação» n.º 81 (Junho.1999) I 4 5 PRIMAVERA 2010 I N.º188 No seguimento do desafio enunciado no último número de 2009 e relativo à reflexão sobre “Educação e Res-publica” enquanto tema de fundo das edições de 2010 – ano em que Portugal celebra o centenário da sua I República –, a PÁGINA quis ir ao encontro de alguém que, a esse respeito, pudesse servir de fonte de inspiração e motivação. De um modo que podemos dizer “natural”, a escolha recaiu, desde logo e sem hesitações, num dos mais ilustres pedagogos da nossa contemporaneidade e reconhecido especialista nas áreas da História e da Filosofia da Educação, com assinatura marcante no campo da organização do sistema educativo, das políticas públicas e da profissionalidade docente – Rogério Fernandes. Alguns dias depois da realização da entrevista agora publicada e concedida em sublime gesto de disponibilidade humana e cívica, recebemos a notícia do seu falecimento, neste mesmo mês, a 4 de Março de 2010. De novo, e num desconcertante “espaço de tempo”, a Morte desafiava as nossas rotinas, privandonos da possibilidade de diálogo com um rosto amigo e familiarmente eloquente. Ainda um pouco atordoados, mas muito conscientes do privilégio de podermos partilhar este último testemunho vivo e, a todos os níveis, histórico, fazemos questão de sublinhar que Rogério Fernandes merece o destaque desta edição por imperativo de honra à sua vida impressionante, face à qual a Morte apenas veio lembrar a nossa humilde condição de aprendentes, justificando uma terna e eterna deferência. Rogério Fernandes não foi apenas um académico eminente, foi também um activista social exemplar e, convém lembrá-lo, um resistente antifascista, tendo-se distinguido no combate ao regime ditatorial que marcou a República durante o chamado Estado Novo. Proibido de ensinar, dedicou-se ao jornalismo, onde marcou presença como um dos fundadores do extinto jornal «A Capital», tendo ainda sido director das revistas «Seara Nova» e «O Professor». Rogério Fernandes desejou ser conhecido como um dos grandes defensores da escola pública, por razões de ordem filosófica, ética e política, como ele próprio gostava de afirmar, recusando indexar a educação a uma racionalidade de tipo 001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 5 cognitivo-instrumental, própria de certas lógicas de poder e hoje tão do agrado de alguns dos nosso políticos e teóricos da educação. Para Rogério Fernandes, o exercício da docência requer uma visão humanista e cultural do mundo como condição de estímulo à liberdade de pensar dos próprios alunos, conforme nos dizia há uns anos numa outra entrevista [«A Página da Educação», Junho.1999]. As pessoas têm as suas próprias doutrinas, que trazem do ambiente familiar, da rua. Se um aluno se dirige ao professor, nada a opor. Se ele pede a minha opinião eu dou-lha. Se me pergunta o que sou, eu digo-lhe o que sou. Mas não digo: vais ser como eu. Desta vez, Rogério Fernandes fala-nos de lições de liberdade e cidadania ligadas a um certo “olhar republicano sobre a educação”, sem deixar de alertar para as contradições e para os limites da experiência republicana que agora se comemora. Entre outros aspectos, lembra-nos a forma como os pioneiros da República percepcionavam a relação entre “uma eficaz e bem distribuída assistência escolar” e o integral cumprimento da escolaridade. A entrevista com Helena Araújo, publicada nesta mesma edição e centrada no lugar sociopolítico das mulheres, permite-nos prolongar esta leitura crítica sobre a I República, cabendo-nos neste caso sublinhar a actualidade das questões de igualdade de género num significativo mês de Março e em Ano Europeu contra a Pobreza e a Exclusão Social. O embaixador Lauro Moreira traz para este debate a dimensão de cosmopolitismo numa oportuna chamada de atenção para a importância da lusofonia enquanto espírito que emerge de 500 anos de convívio e nos faz herdeiros de um património cultural precioso. Ainda neste número, e a par das rubricas assinadas pelos colaboradores permanentes, contamos com as declarações de Alberto Amaral sobre a actividade da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior e com uma abordagem às bibliotecas escolares, em registo de partilha de práticas educacionais, aproveitando aqui para reforçar o apelo à participação dos leitores, seja através do envio de notícias, de críticas ou de sugestões. Em coerência com a sua história e com o seu projecto editorial, a PÁGINA assume-se como um espaço de educação vocacionado para a expressão livre e para a tomada de posição pública. Nesta medida, e na estação do ano que em Portugal convida a reviver Abril, que saibamos “tornar presente” o espírito de criatividade cívica que animou a revolução dos cravos em 1974, porque, como lembrava Rogério Fernandes, é imperioso que a retórica discursiva dê lugar a uma prática viva da solidariedade e de modo a conseguir que a escola portuguesa possa tomar o partido que só pode ser o seu – o dos valores humanos, da liberdade, da democracia e da justiça social. Isabel Baptista 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 6 entrevista Rogério Fernandes em discurso directo Rogério Fernandes era Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Foi também professor convidado da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, e coordenador científico da equipa portuguesa do projecto A infância e a sua educação, 1820-1950. Materiais, Práticas e Representações [Portugal e Brasil]”, que contou com o apoio do Programa de Cooperação Internacional Brasil-Portugal CAPES/GRICES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Gabinete de Relações Internacionais da Ciência e do Ensino Superior]. As suas principais áreas de investigação incidiam sobre a Filosofia e a História da Educação, História da Escola, História do Currículo, História da Infância e Políticas Educativas. A par da vida académica desenvolveu também uma intensa vida cívica, na qual assumiu particular relevo a resistência anti-fascista. Esse activismo contra o Estado Novo valeu-lhe não só a perseguição por parte da polícia política mas também o afastamento do ensino. Resolve, nessa altura, dedicar-se a outro dos seus grandes interesses: o jornalismo. Nessa qualidade, foi um dos fundadores e principais redactores do jornal «A Capital», tendo também dirigido as revistas «Seara Nova» e «O Professor». Após o 25 de Abril foi nomeado Director-Geral do Ensino Básico, funções que desempenhou entre 1974 e 1976, impulsionando algumas das principais reformas no ensino primário. Pertenceu aos quadros da Inspecção-Geral da Educação e integrou também o Conselho Nacional de Alfabetização e o Conselho Nacional de Educação. Foi presidente do Instituto Irene Lisboa. Em 2002 foi agraciado pela Presidência da República com a Ordem da Instrução Pública (Grã-Cruz). Nesta hora, embora com algum pesar, queremos sobretudo deixar um testemunho vivo deste pedagogo, pensador e defensor da Escola Pública ao longo de uma vida dedicada à Educação. Em particular sobre um tema ainda hoje pouco conhecido: a acção educativa do governo republicano na I República. Oportunidade para compreender melhor o que mudou na transição do início do século XX português, fazendo a ponte para os desafios que se colocam à Educação já em pleno século XXI. I 6 7 PRIMAVERA 2010 I N.º188 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 7 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 8 entrevista Foi já no fecho da edição que tomámos conhecimento da morte de Rogério Fernandes, aos 74 anos. Na consciência da responsabilidade que nos cabe, publicamos a sua última entrevista na versão original, gratos e honrados por poder trazê-lo aos leitores. Começaria esta entrevista colocando-lhe uma questão relativamente abrangente, mas que poderá lançar tópicos para a conversa que se seguirá: se lhe pedisse para fazer um balanço geral da acção educativa na I República, o que diria? Começaria por dizer que se trata de uma operação bastante extensa e complexa, e que apenas poderá ser verdadeiramente entendida, tanto nos seus excessos como nas suas insuficiências, em função do respectivo contexto socioeconómico – dimensão que nem sempre é atendida quando nos referimos à educação pública. No início do século XX, o sector de actividade económica predominante no nosso país era o primário. Em 1925, por exemplo, perto de metade da população activa empregava-se na agricultura e apenas as cidades de Lisboa e Porto tinham alcançado um grau de industrialização acima da média, seguidas de Aveiro, Braga e Setúbal. Anos antes, em 1911, a percentagem da população activa empregue na indústria oscilava entre os 1,8% no distrito de Beja e os 20,5% no distrito do Porto. Havia bastante emigração, interna e externa, além de lutas sociais intensas nas zonas agrícolas contra a proletarização e contra os interesses dos latifundiários agrários, por um lado, e, por outro, dos trabalhadores da indústria contra as condições de vida e de trabalho. Para fazermos uma ideia da situação, se apontássemos o índice 11 para os salários do operariado em Londres, em Lisboa o índice seria 32, em Berlim 95 e em Filadélfia, nos Estados Unidos, de 214. É nesta altura também que se desenvolvem grandes unidades fabris, tais como a CUF, no Barreiro, e indústrias como a dos cimentos, das conservas, da cerveja, da moagem, da metalomecânica pesada, etc. Uma industrialização tardia, apesar de tudo… Sim, e além do mais com um carácter restrito. Em 1914 havia 285 unidades industriais; em 1924 eram 1359, agrupando na sua maioria pequenos capitais, ou seja, eram pequenas empresas. Durante a I República, por isso, as pequenas e as médias empresas detinham um predomínio apreciável na indústria, no comércio, na agricultura e até na banca. Sem embargo da existência de monopólios, não existiam, porém, grandes grupos monopolistas e o capital financeiro não dominava a economia portuguesa. O desenvolvimento industrial esbarrava com um fraco nível de acumulação, com a escassez do capital indispensável aos grandes investimentos, com a indigência energética e o primitivismo do sector de produção. O colonialismo português e as posições do imperialismo estrangeiro em Portugal, embora com influências contraditórias, constituíram no essencial entraves adicionais à acumulação I 8 9 PRIMAVERA 2010 I N.º188 do capital e ao desenvolvimento económico do país. Esta análise que acabo de citar e que venho acompanhando quase com as mesmas palavras, é da autoria de Álvaro Cunhal. O desenvolvimento educacional reflectia, portanto, as linhas fundamentais do desenvolvimento económico neste período, no qual o trabalho infantil e juvenil era muito comum. O historiador Armando de Castro, por exemplo, refere que em 1910 se regista um movimento grevista de crianças entre os seis e os onze anos em Lisboa. Noutro ponto do país, em Castanheira de Pêra, em 1921, os menores trabalhavam 16 horas por dia, das cinco ou seis da manhã até à meia-noite. A fuga à escola neste período explicase portanto, em grande parte, pela absorção da mão-de-obra infantil na indústria e no trabalho doméstico. Ao longo da I República – que pode ser dividida em dois períodos, o primeiro iniciado em 1910 e que se prolonga até 1916, com a entrada de Portugal na I Guerra Mundial, e outro entre 1918 e 1926, ano do golpe militar que instaura a ditadura, e que herda uma situação financeira caótica da monarquia – persiste uma insuficiente escolarização ao nível da escola primária elementar. Em 1910, a taxa de analfabetismo era de 76, 1%; em 1920 era de 70,5%, o que representa um decréscimo insignificante. A percentagem de crianças inscritas nas escolas primárias oficiais mostra, aliás, que a escolaridade obrigatória, que se reduzia apenas a três anos, não era cumprida: 43,5% em 1911/12; 30,5% em 1916/17 (aqui muito pelo efeito da guerra); e 25,7% em 1918/19. Existe a ideia, porém, de que uma das principais apostas da República incidia precisamente na educação e na escolarização das crianças e dos jovens... O programa educacional republicano apostava bastante na resolução desse problema e na generalização da educação. Não só por parte do Estado como por parte das diversas forças políticas republicanas – a maçonaria, os anarco-sindicalistas, os socialistas – que tinham iniciativas educacionais próprias, inclusivamente ainda no tempo da monarquia. Mas a falta de “uma eficaz e bem distribuída assistência escolar”, como então se dizia, era apontada geralmente como causa do não cumprimento da escolaridade. A primeira república procura palear esta situação oficializando imediatamente as escolas móveis, distribuídas por freguesias onde não eram exequíveis escolas fixas. As escolas móveis procediam de uma iniciativa da maçonaria no período monárquico, ou seja do movimento das escolas móveis pelo método João de Deus, lançado por Casimiro Freire após um período de quebra de inscrições, em que o total de matriculados nas escolas móveis rondava os 14 mil alunos. 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 9 Houve duas datas que marcaram decisivamente as reformas republicanas relativamente à educação: 1911 e 1923. Em que consistiram essas reformas? que queriam ingressar nas escolas normais para se tornarem professoras, ofício encarado naquela fase como um futuro profissional bastante desejado e prestigiado. O ano de 1923 é marcado pela apresentação de uma proposta de reforma de ensino pelo ministro João Camoesas. Os anos de 1911 e 1919 foram anos de reforma efectiva. Em 1911 há a chamada reforma de António José de Almeida – na altura não existia ainda um ministério da educação – através da qual a instrução primária passa a ter três graus: o elementar, o complementar e o superior. O elementar tem três anos de duração - dos sete aos dez anos de idade; o complementar abrange dois anos adicionais; e o superior alarga-se por mais três anos. O ensino primário superior tem um carácter polivalente e possui por finalidade permitir o prosseguimento de estudos, tendo, ao mesmo tempo, um carácter prático profissional. Tem um currículo geral com Língua Portuguesa, duas línguas estrangeiras, História, Geografia, Economia, Direito, Matemáticas Elementares, Contabilidade, Histórico-Naturais, entre outras, com aplicação ao comércio e à indústria. É uma espécie de ensino liceal e técnico condensado. O certificado do ensino primário superior dará acesso ao ensino liceal, mediante um exame de admissão. É um ensino que também permitia a matrícula nas escolas primárias normais, nos cursos industriais, agrícolas e comerciais. Em muitos lados substituía o primeiro ciclo dos liceus, onde este não existia. Este ensino estava muito associado ao público feminino, porque era essencialmente frequentado por raparigas, habitualmente filhas da pequena burguesia rural e urbana sem liceu nas proximidades, Em 1919 ensaia-se uma outra reforma... Sim, com o ministro Leonardo Coimbra, do Porto, através da qual se pretendia prolongar a escolaridade obrigatória de três para cinco anos, incluindo nos dois primeiros anos as chamadas classes preparatórias, que eram jardins de infância que antecediam o ensino primário. O grande entrave a esta reforma foi a falta de um quadro docente preparado e habilitado para tal tarefa. Estava-se a trabalhar nisso, digamos assim, mas não havia quadros... O Governo dirigiu na altura um convite aos professores para que se aventurassem nesta área, e só duas pessoas responderam: a Irene Lisboa e a Ilda Moreira, amigas e companheiras. Que papel teve a reforma de João Camoesas? Apresentada ao país em 1923 foi uma proposta de reforma que, apesar de discutida e de aprovada, nunca chegou a ser aplicada. Mas que tipo de novidades iria introduzir no ensino da altura? Eu tenho um texto publicado numa revista da Faculdade de Ciências de Lisboa intitulado “Apologia e Censura das Utopias Pedagógicas”. Do ponto de vista teórico, a reforma era extraordinariamente interessante – foi elaborada pelo professor Faria de Vasconcelos, que estava ligado ao movimento da Escola Nova, e que recebeu alguma colaboração do António Sérgio, tendo inclusivamente motivado um 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 10 entrevista desentendimento entre os dois. Previa a criação de faculdades e departamentos de educação, de escolas normais, etc. Nesse sentido, era um clarão extraordinário. Tanto assim que no congresso dos professores primários, realizado em Leiria nesse mesmo ano, houve uma aceitação tácita do documento, refutando-se apenas o ponto relativo à gestão, já que os professores queriam participar na gestão e a reforma não admitia essa hipótese. No entanto, era uma reforma inexequível no contexto português da época porque o governo estava financeiramente falido. Há pouco referia o facto de as taxas de escolarização serem muito baixas. Se houve uma grande aposta na educação, porquê esses números? Porque a obrigatoriedade da escolarização era difícil de cumprir. Por um lado havia insuficiência da oferta – a escola móvel não era uma resposta cabal para a falta de escolas, porque se limitava a acções pontuais de alfabetização – à qual acrescia a irregularidade de inscrição dos alunos, com grandes quebras, em particular no período da guerra. Por outro lado, muitas das vezes os próprios pais não inscreviam os filhos na escola, porque havia a ideia enraizada de que o saber ler e escrever não era assim tão importante... Mas havia obrigatoriedade de frequência? I 10 11 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Teoricamente havia, com multas, ameaças, etc. Mas isso acabava por passar. O ensino preconizado pelo regime republicano era laicizante ou chegou ao ponto de ser anti-religioso? Era aquilo que se poderia designar por ensino neutro. É o que está na reforma de 1911. Tal não impediu que logo nos primeiros dias da República fosse proibida a utilização de imagens religiosas nas escolas e que o ensino tenha sido vedado à classe eclesiástica. Mas se isso era prática corrente nas escolas oficiais, o mesmo não acontecia nas escolas privadas, na sua maioria geridas pela Igreja católica. E isso originou um confronto sério entre a Igreja católica e o regime republicano, fazendo com que muitas dessas escolas fossem nacionalizadas. Estas e outras medidas criaram junto de uma população maioritariamente católica uma certa animosidade relativamente à República. Mas a reforma de 1911 não foi a única actividade reformadora da I República. Assim que foi proclamada a República, os estudantes da Universidade de Coimbra, a única do país, ao tempo, avançou com uma espécie de PREC à sua medida, invadindo as instalações dos professores, destruindo os capelos, recusando o foro académico – que era o direito especial da universidade, que vinha desde a idade média e que implicava a existência de um tribunal próprio. Claro 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 11 que isso teve implicações do ponto de vista disciplinar, e dado que a universidade tinha prisão e polícia próprias, muitos estudantes acabavam por passar pela cadeia da universidade por questões de disciplina. Psicologia, bem como as bases de uma nova constituição universitária, o curso de Farmácia, a Escola de Medicina Veterinária, além da Universidade Técnica, que aparece juntamente com o Instituto Superior Técnico e o Instituto Superior de Comércio. Que outro tipo de actividade reformadora prosseguiu o regime republicano? Até que ponto essas escolas de formação foram pólos de produção e de circulação de novos modelos pedagógicos? Nomeadamente com a criação das universidades de Lisboa e Porto, que é uma medida muito importante. Ao mesmo tempo, extinguiu-se a faculdade de Teologia de Coimbra, não por uma questão de perseguição religiosa, ao contrário do que se diz, mas porque estava a perder alunos de forma considerável. E os professores dessa faculdade foram todos transferidos para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, entretanto criada, a par com a de Lisboa – não sei por que razão o Porto só terá uma Faculdade de Letras muito mais tarde... Destaque ainda para a reforma do ensino médico, para a reforma dos estudos jurídicos – tudo isto nas universidades, onde passa a ser facultativo o uso de capa e batina –, para a extinção do foro académico e a sua substituição pelo direito comum. Além de outra medida que alguns professores, tais como Bernardino Machado, já defendiam antes da República, que era a adopção de um regime de frequência livre, onde não havia lugar para faltas. Muitos professores não viram com bons olhos esta medida porque ficavam sem alunos... Lugar também para a revisão dos planos de estudos das Faculdades de Ciências e para a criação, em anexo às Faculdades de Letras, das Escolas Normais Superiores, destinadas a formar professores para o ensino secundário. Foram-no de facto. E esse é um dos motivos pelo qual, em 1936, o ministro Carneiro Pacheco avança com a extinção das escolas normais primárias, baseado num relatório onde se afirmava que todas elas eram de índole republicana. No seguimento desta medida, durante anos não há entrada de novos alunos, o que conduz a uma falta generalizada de professores. Daí o recurso aos regentes escolares, que só tinham obrigação de ter concluído o terceiro ano do ensino primário, que era obrigatório. Estes regentes trabalhavam sobretudo nos postos escolares, que eram pequenas escolas, com apenas uma sala, dispersas pelo país. Até aí, como funcionava a formação de professores? Os professores do ensino secundário não tinham qualquer tipo de formação especial, até porque só havia uma universidade. O Curso Superior de Letras, em Lisboa, tinha uma estrutura curricular que já apontava nesse sentido, nomeadamente umas cadeiras de psicologia, mas ainda não era nada de solidamente estruturado. Os professores do ensino básico, se lhe podemos chamar assim... Eram formados nas escolas normais primárias. Mas houve alguma alteração de fundo no que se refere à formação de professores? Sim, através da criação das escolas normais superiores para formar os professores para o ensino secundário, por um lado; por outro, através do desenvolvimento significativo que tiveram as escolas normais primárias do ponto de vista do recrutamento do pessoal, da investigação realizada, entre outros aspectos. Algumas escolas contavam com grandes professores... Por esta altura surgem também as escolas de Educação Física, as escolas de Saúde, as escolas de Belas Artes, os laboratórios de Em que princípios assentavam esses modelos pedagógicos? Basicamente os princípios da Escola Nova, do “self support” à inglesa, isto é, da autonomia dos alunos no processo de ensino-aprendizagem, e da escola activa. Muitos professores defendiam este princípio da escola activa, da necessidade de uma postura activa do aluno no processo de ensino-aprendizagem. O papel da Escola Nova, porém, foi mais teórico do que prático, porque as condições de trabalho não eram propícias à introdução de tais metodologias. Havia escolas, por exemplo, situadas nos primeiros andares dos prédios de Lisboa. O espaço ao ar livre cingiase ao quintal das traseiras. E o material escolar faltava na maioria delas. Neste sentido é interessante ver algumas das coisas que a Irene Lisboa escreve na altura – ela foi bolseira em Genebra e critica certos aspectos da Escola Nova postos em prática nas escolas suíças. É autora de uma conferência muito sugestiva, intitulada “O ensino atraente”, onde ela dá uma imagem da escola portuguesa tal como ela era, mostrando que havia um movimento docente, sobretudo aquele mais vanguardista, que estava a par das ideias da Escola Nova e as defendia. Só que a sua aplicação pressupunha condições que não existiam: as escolas eram desconfortáveis, frias, sujas, e as crianças, na maior parte das vezes, andavam descalças e com fome. Começa-se a ver que o essencial não é começar por aí. Aplicar-se-ia aqui o que o filósofo Agostinho da Silva dizia acerca da cultura: “Cultura é comer direito, vestir decente e habitar seguro”... Sim, pressupõe a panela ao lume. Ou seja, esses movimentos pedagógicos inovadores não tiveram a implantação desejada, ficou-se pelos princípios... Escrevia-se muito em jornais e revistas e divulgavam-se viagens de estudo que mostravam exemplos daquilo que se passava em 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 12 entrevista outros contextos. Mas entre as construções reflexivas e a aplicação prática os professores viam que de boas intenções está o inferno cheio... É como o projecto de reforma de João Camoesas. Era extraordinário, mas não tinha qualquer hipótese de aplicação naquele contexto histórico-económico. E esse foi sempre um dos problemas da I República: jogar muito no ideal e descurar o chão que se pisava. Pode falar-se num modelo republicano de formação de professores? Há de facto um modelo que consubstancia o modo republicano de olhar a educação. Há quem defenda que no panorama educativo republicano havia duas vias em oposição: uma essencialmente nacionalista, vertical e hierárquica; outra de teor socialista, horizontal e que procurava romper com o nacionalismo. Concorda com esta ideia? Mas o nacionalismo no período republicano tem uma característica diferente da que veio a ter com o fascismo: a ideia de que a universidade e a escola, em geral, devem colocar-se ao serviço dos grandes problemas nacionais e tomar essas questões como eixo da actividade de investigação e de ensino, isto é, de que se deve pesquisar e ensinar em ordem a achar resposta para os problemas do país. É sobretudo o republicanismo positivista que inspira esta concepção. Mas a questão da educação popular ultrapassa o republicanismo. Fora do ensino oficial, por exemplo, aparecem as universidades livres e populares, muitas vezes de teor anarquista. O Porto, por exemplo, teve uma universidade anarco-sindicalista antes mesmo da República, em 1909. Essa actividade era permitida sem restrições de ordem política? Sim, nesse aspecto havia liberdade. E nessa universidade havia dois grandes professores: Gonçalo Sampaio e Duarte Leite. Mas pode dizer-se que havia duas vias em oposição? Bom, claro que os anarco-sindicalistas criticavam a orientação do ensino, inclusivamente a orientação do ensino primário, considerando-o muito conservador e memorizante. Eles tinham outras propostas, como por exemplo a que se concretizou na Escola Oficina n.º1, que de facto foi uma escola inovadora. Em que aspecto? Na sua ligação teoria/prática, na prática viva da solidariedade. Embora tivesse tido origem maçónica, entram em campo alguns professores como Adolfo Lima, António Lima ou César Porto, anarquistas, que começam a dar àquele ensino outras características. Há um trabalho muito interessante, da autoria de António Candeias, sobre a Escola Oficina n.º 1. Depois temos os liceus, onde, apesar de não ter havido reformas significativas, se lançaram as bases para a criação dos liceus femininos, em 1914, através das secções femininas dos liceus de Lisboa e I 12 13 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Porto, concretizada mais tarde com a inauguração do primeiro liceu feminino em Lisboa, que é o Liceu Maria Pia. O ensino oficial na República foi buscar alguma inspiração ao anarquismo? Alguns autores defendem essa ideia... Não consigo ver no ensino oficial qualquer inspiração de teor anarquista. A nível particular sim, muitas instituições de ensino e cantinas eram de raiz anarquista e anarco-sindicalista. Julgo que será seguro dizer que os governos republicanos não tinham essa inspiração anarquista. Em relação à gestão das universidades, por exemplo, há uma proposta do primeiro presidente da República, Manuel de Arriaga, através da qual os reitores seriam escolhidos a partir de uma lista tríplice (a universidade nomeava três e o Governo escolhia um), mas nem isso o Governo republicano aceitou. Quis continuar a ter a possibilidade de nomear quem muito bem entendesse para o cargo de reitor. Em que outros sectores é que se avançou nessa altura na área da educação? Eu penso que o fundamental está dito. Os liceus foram talvez uma das áreas onde se verificou menos actividade reformadora, assim como no ensino técnico. No ensino infantil tentou implementar-se as tais classes preparatórias, mas todo esse processo é suspenso em 1926 pelo golpe militar, assistindo-se ao desmantelamento da escola republicana. As escolas normais superiores são extintas, sendo substituídas por um curso de Ciências Pedagógicas que tinha a duração de um ou dois anos. Estes cursos eram anexos às faculdades de Letras e havia cadeiras comuns entre o curso de Ciências Pedagógicas e o curso de História e Filosofia da faculdade de Letras, que foi o caso da minha formação. O papel do professor passa a ser mais valorizado com a República? Sim, sem dúvida. Nesse aspecto assiste-se a uma valorização profissional muito grande, o professor é muito respeitado, é uma figura carismática, e vê o seu estatuto socioeconómico melhorado. Que estatuto tinha no tempo da monarquia e depois com a República? Passou a ter um estatuto próprio? Como se organizavam profissionalmente? Os professores tinham organizações sindicais e associações profissionais já antes da República. Os professores primários, por exemplo, dispunham de uma associação denominada União do Professorado Primário. Esta associação agregava muitas escolas primárias no país e publicava uma revista intitulada “O Professor Primário”, que contava com a colaboração de docentes que eram membros do movimento sindical, onde se discutiam os problemas da profissão e questões pedagógicas. Uma das primeiras medidas do regime fascista foi precisamente proibir a União do Professorado Primário e esta revista, encer- 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 13 Por falar nisso, houve um certo movimento auto-gestionário em algumas escolas – eventualmente mais inspirado no anarquismo. Esse movimento foi expressivo ou nem por isso? Não creio que tenha existido propriamente um movimento autogestionário. Houve algumas escolas e alguns professores que defenderam esse conceito mas a prática ficou à distância da convicção. Um “movimento” implica a adesão doutrinal de um número significativo de estabelecimentos e a aceitação de um certo número de práticas. Estou a referir-me ao período do regime republicano... Bom, havia algum movimento cooperativista, como cooperativas de estudantes e de alunos, as caixas escolares solidárias, destinadas sobretudo aos mais pobres, mas não se pode afirmar que tenha inspirado uma verdadeira e expressiva educação autonómica. Houve alguns exemplos, mas na minha opinião não foi nada de sistemático em ordem a abranger todo o edifício educativo. O que era a festa da Árvore? Era uma festa de carácter cívico através da qual se pretendia comemorar a natureza, a necessidade de defendê-la, de promover a árvore, etc. Era uma espécie de pedagogia do ambiente. rando também bastantes instituições educativas. É preciso não esquecer que os professores do ensino público ficam durante quase cinquenta anos, até ao 25 de Abril, sem terem direito a criar sindicatos. Durante todo este período apenas os professores do ensino particular puderam reunir-se. Que tipo de intervenção pública tinham os professores na República, nomeadamente em termos políticos? Alguns professores eram deputados, outros eram senadores. O professorado era uma classe politicamente activa. E nas aldeias, ainda durante muito tempo, até já depois do 25 de Abril, o professor primário foi um actor muito influente nas pequenas comunidades populares. A educação cívica na I República foi também um aspecto importante do sistema educativo. Quer falar-me um pouco acerca disto? A educação cívica na I República fazia-se mais com base nos exemplos dos chamados homens notáveis, o que por vezes permitia um certo culto do caciquismo nos pequenos meios. Não estava, por isso, suportada em projectos pedagógicos... Não. Na minha opinião a educação cívica nunca funcionou bem. Havia manuais, baseados em exemplos, mas uma educação cívica na verdadeira acepção da palavra faz-se através da actividade prática dos alunos, da auto-gestão dos alunos, não através de exemplos dados por outros. A educação cívica ficou então, tal como outras áreas, aquém daquilo que era o objectivo do regime republicano... Deu origem mais a uma oratória discursiva do que a uma verdadeira educação prática. Porque, mais uma vez, não havia no interior da escola um movimento através do qual os alunos tivessem uma real autonomia, o tal “self support” que os ingleses preconizavam. Se pudéssemos tirar algumas lições válidas desse tempo para a actualidade, o que diria? Que o empenho dos professores é fundamental para mudar a escola. E, nesse sentido, há que dizer que os professores estavam, sem dúvida alguma, de uma forma geral, empenhados nas mudanças. O facto de as condições materiais terem travado esse empenho é outra coisa. Todos os anos, por exemplo, se realizava um congresso do professorado primário, ao qual se acrescentavam diversas publicações, de natureza sindical e outras, onde eram debatidos assuntos relacionados não só com a profissão mas também com a pedagogia. E isso é bem significativo. Aqui em Portugal esse movimento foi talvez um pouco mais brando do que em Espanha, onde havia o Instituto Libre de Enseñanza, em Madrid, que já antes da nossa I República tinha um papel muito importante. Aqui teve menos expressão porque a generalidade do contexto socioeconómico não permitia grandes veleidades aos professores. Assistiu-se durante essa época a um movimento profissional e cívico bastante forte em torno da profissão, mas bastante idealizado. 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 14 entrevista das preocupações. E neste momento o que se verifica é que os problemas profissionais dos docentes continuam à espera de resposta. Apesar das mudanças de rumo que se verificaram, ainda não se dá o espaço suficiente para que os professores recuperem a sua vocação de construir uma escola nova pelas suas próprias mãos e com os seus alunos. O que é preciso para que isso aconteça? Mais acção dos sindicatos e das associações representativas dos professores? Os sindicatos e as associações fazem aquilo que é possível e tem sido muitíssimo. Presto-lhes as minhas homenagens. Tendo em conta que a acção dos governos não tem variado muito no que se refere às políticas educativas, a iniciativa terá então de partir da própria classe... Evidentemente. Este é um período de lutas que terá necessariamente de continuar. É habitual ouvir da opinião pública que os professores estão mais empenhados em lutas corporativas do que com a profissão. Qual é o seu comentário? Insistindo um pouco na minha pergunta, podia referir-me duas ou três ideias chave para a acção e para os desafios que se colocam à escola de hoje? A acção unitária dos professores; a discussão dos problemas da profissão; e ao mesmo tempo os problemas que têm a ver com os alunos e a escola. Julgo que uma das questões que se coloca hoje com maior premência é o facto de haver menos discussão relativamente ao que seria necessário acerca das orientações da escola e das suas linhas de acção pedagógica. Isso tem urgentemente de passar para o plano do debate. Essa é uma crítica injusta, porque os professores não se preocupam apenas com as questões de carácter corporativo, longe disso. Se olharmos para a imprensa sindical nota-se que ultimamente há uma certa concentração de temas e de questões mais relacionados com a profissão, mas a classe docente por si própria também não pode agir sozinha. Ao mesmo tempo vemos que existe uma grande preocupação com aquilo que é a escola e que os professores querem que a escola seja algo de diferente daquilo que é hoje. Está a tentar dizer que já houve mais empenho nesse debate relativamente àquilo que acontece hoje? Talvez não tenha havido mais empenho, mas houve recentemente um período de interrupção em que as questões do foro profissional – como foi a avaliação dos professores – cobriram o horizonte RICARDO JORGE COSTA (entrevista) TERESA COUTO (fotografia) ROGÉRIO FERNANDES é autor de uma vasta obra, abrangendo áreas como a Política Educativa, a História e a Filosofia da Educação. Para um conhecimento mais aprofundado da personalidade e da sua obra literária, a PÁGINA aconselha a leitura de «Rogério Fernandes – Questionar a Sociedade, Interrogar a História, (re)Pensar a Educação», da autoria de Margarida Louro Felgueiras e Maria Cristina Menezes (Edições Afrontamento, 2004), assim como uma entrevista anteriormente publicada em «A Página da Educação» (n.º 81, Junho.1999) e disponível em www.apagina.pt. I 14 15 PRIMAVERA 2010 I N.º188 006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 15 lugares da educação Avaliação e dominação Em textos anteriores, tive oportunidade de afirmar que a escola pública portuguesa nunca mais seria a mesma após a investida legislativa protagonizada pelo XVII Governo Constitucional. E essa afirmação estava respaldada empiricamente no amplo movimento desencadeado pelos professores e que culminou nas duas maiores manifestações ocorridas após 1974. Por outro lado, todos os dias me chegavam notícias acerca do clima que se vinha “institucionalizando” no interior das escolas, em que uma das mais distintivas características era o medo – sentimento que há muito estava arredado das fronteiras da Escola. Como é evidente para todos, a razão para o clima de permanente tensão, conflitualidade e medo generalizados devia-se à tentativa de institucionalização de um sistema de avaliação do desempenho profissional, legitimado pelo Governo – e secundado pela maioria dos analistas e comentadores de serviço na Comunicação Social – através de uma argumentação eminentemente meritocrática. De acordo com esta perspectiva, tratavase de colocar “ordem” num sistema injusto, que não premiava os melhores e permitia que todos atingissem, por inércia, o topo da carreira, independentemente das respectivas performances. A atender seriamente neste tipo de argumentação, o escalonamento piramidal assim obtido permitiria recompensar os melhores professores, que teriam acesso ao topo da carreira, e penalizar os piores, que assim permaneceriam na sua base, apesar dessa situação poder ser alterada se revelassem interesse em melhorar profissionalmente, o que poderia ocorrer se se esforçassem seriamente nesse sentido. A falácia desta argumentação já há muito se encontra estabelecida e deso- cultada, desde logo por aquele a quem é atribuída a invenção da palavra meritocracia: Michael Young, em «The Rise of Meritocracy» (1958). Mas basta olhar para uma pirâmide para se perceber que a sua forma (e respectivo conteúdo) nunca são alterados sem entrar em ruptura com o próprio conceito, isto é, transformando-a numa outra figura qualquer. Portanto, a falácia da argumentação meritocrática está aí: constróise uma pirâmide – o sistema de quotas define-lhe adequadamente a forma, pelo menos no topo – e afirma-se que todos podem ascender a esse topo se revelarem empenhamento, esforço e sofrimento. Na opinião de Young, um sistema meritocrático não pode ser confundido com um outro que se designe por democrático. Estes dois regimes são conceptual e empiricamente opostos. E esta confusão tem vindo a estabelecer-se com a difusão da ideia segundo a qual tudo estaria dependente da implementação de um correcto sistema de avaliação. Deste modo, envolvem-se eminentes “peritos” no campo, atribuindo-lhes a responsabilidade de legitimação científica – no respeito pelo pior que a modernidade nos ofereceu neste domínio das relações entre a Ciência e a sociedade – de uma prática que é eminentemente política e que, assim, está dependente dos princípios e valores hegemónicos numa determinada época. E a que vivemos diz-nos que esses princípios e valores são “pósliberais”, isto é, orientados pelo individualismo mais radical, pela competição desenfreada, por um darwinismo social acentuado. É por tudo isto que me parece preocupante a aceitação da introdução do princípio da avaliação do desempenho profissional como inquestionável, tratandose agora de atenuar os piores dos seus previsíveis efeitos. Seja qual for o modelo a introduzir, do que se trata é de classificar e punir – numa palavra, dominar. Assim, o problema torna-se irresolúvel e uma coisa está garantida: a democracia fica mais distante e o medo tem todo o espaço para se institucionalizar, transportando consigo todo um sistema de dominação que importa desde já questionar. Ora, uma sociedade onde o medo é rei não é uma sociedade boa para se viver. Manuel António Ferreira da Silva Universidade do Minho, Instituto de Educação 016-017 entrelinhas e rabiscos 3/15/10 7:15 PM Page 16 entrelinhas e rabiscos Escola de textos ou de paratextos? José Rafael Tormenta Escola Secundária de Oliveira do Douro (V. N. Gaia) I 16 17 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Dá-se um salto ali a Madrid, em low coast, entra-se no Centro Nacional Rainha Sofia e fica-se integralmente a oscilar – entre os pés que se afundam no chão para tentarem segurar-se e a cabeça que esvoaça e voluteia para além das nuvens – só por se olhar para a Guernica de Picasso. E o que é que se vê? Pessoas, animais, edifícios, um braço sozinho ainda com um candeeiro aceso na mão, um cavalo que espelha os horrores da morte e da dor nos seus pêlos eriçados, uns braços que bradam aos céus a sua passividade, destruição. A emoção avassala-nos como se cada momento tivesse sido colado, aposto ou sobreposto a três dimensões, para irromper por nós dentro e se entranhar de forma intemporal, fora de qualquer espaço. E só quando formos capazes de resgatar a respiração e de recobrar o móbil que eventualmente ali nos terá levado é que começaremos a pensar no resto: a cidade de Guernica; o intenso bombardeio da Luftwaffe; Hitler aliado de Francisco Franco. Tudo aquilo para que a obra remete. E, mais tarde, nas técnicas do quadro, ou mural: o preto e o branco, a narração objectiva da sobreposição dos pedaços de corpos irreais acinzentados que retratam a realidade mais profunda, o amarelado-morte, a Pietá, o surrealista Minotauro, a ténue representação da estátua da Liberdade acinzentada, de candeeiro na mão. E por aí fora. Não fora, inicialmente, aquele arrepio visceral e ter-nos-ia parecido que valia a pena uma outra abordagem da obra? 016-017 entrelinhas e rabiscos 3/15/10 7:15 PM Page 17 O estudante de 11.º ano dirigiu-se ao professor que conhecia de vista e perguntou: – Bocê é professor de Português, num é? Que sim. – Bocê é que me podia explicar isto do Frei Luís de Sousa, que não percebo nada. Já me disseram que bocê é muito bom a explicar. Parece que é lixado, dá testes muito difíceis, mas como não é meu setôr, explicava-me e prontos. Quando é que posso ir ter consigo à sua sala? Que fosse. Meio pasmado, o professor nem hesitou. Um negócio assim tão rápido… E lá começaram. Primeiro contar a história: Madalena e depois Telmo, o que faziam, o que diziam, porque comunicavam. Como era Maria, Manuel, que medos pairavam naquela casa. E o aluno retorquia: porquê o fogo?, ai D. João de Portugal não era rei?, era conde de Vimioso?, mas o meu professor explicou o sebastianismo e eu pensava que ele era rei..., Almada não é em Lisboa? e por que é que não tinha peste? Ah! Agora é que eu estou a perceber isto! Vou escrever tudo direitinho! O moço conhecia as análises críticas sobre a “Guernica”, mas nunca a tinha visto, nem sequer em figurinha. Nunca tinha vivido a emoção, não tinha sido arrastado por essa torrente que nos leva atrás de uma obra. Nunca tinha lido «Frei Luís de Sousa», mas conhecia as fichas dos manuais, os diagramas, até alguns extratextos da História de Portugal. Extratextos, paratextos – tudo andava por ali. Mas faltava-lhe o texto, afinal. Muitos dos nossos professores (não só os de Língua Portuguesa) continuam a não proporcionar aos seus estudantes o elemento fulcral: é preciso passar pelo laboratório e fazer a experiência de Ciências Naturais; é preciso praticar a modalidade de desporto; é preciso apreciar as obras plásticas, ouvir as peças musicais, ouvir falantes das várias línguas, contactar com o património histórico, social, cultural; observar a Matemática nos azulejos de inspiração árabe... E depois – ou a par e passo, devagarinho – registar a experiência e analisar, reflectir, concluir, aprender bem as regras do jogo, conhecer as escolas de Arte, aprender a notação musical, as várias gramáticas, os estilos arquitectónicos, enfim, utilizar os vários métodos que nos permitem engrandecer o conhecimento que, afinal, não existe sem as emoções. Muitos professores de Português continuam a acreditar (e a cumprir os programas que assim o pressupõem) que os alunos de hoje vão ler em casa um clássico do romantismo como «Frei Luís de Sousa». Não lêem. Não têm. E a Escola tem que garantir que interpretam o máximo, tem que os entusiasmar, que lhes contar a historinha toda, e até ler com eles, pelo menos as partes mais importantes. Se ficamos por uma Escola só de paratextos, nada faz sentido. É preciso abraçar o âmago das coisas. Não há crosta sem miolo. E tudo serve de alimento. O texto é a vida. A vida que a Escola tem que ser. Mesmo quando o paratexto se transforma em texto, já muito caminho tem que estar percorrido. E o extratexto... Muito mais. Stellenbosch/Famalicão convida Herman José De 5 a 11 de Abril, o Festival Internacional de Música de Câmara de Stellenbosch (África do Sul) regressa à Casa das Artes de Famalicão, numa extensão promovida pela autarquia em colaboração com a Universidade de Stellenbosch. Com direcção artística de Luís Magalhães, pianista famalicense radicado na África do Sul, o festival conta com a participação de um convidado não exactamente óbvio – Herman será narrador no concerto de encerramento (Carnaval des Animaux, de Saint-Saëns). De acordo com Magalhães, o festival de Stellenbosch (em cuja universidade é professor) é único na África do Sul, distinguindo-se por “oferecer a estudantes de música a oportunidade de interagirem com instrumentistas de calibre internacional”, através da participação em masterclasses de cordas e piano ou mesmo no concerto de encerramento, se para isso forem seleccionados. Os convidados são Claudio Bohorquez (violoncelo), Elizabeth Bradley (contrabaixo), Eugene Osadchy (violoncelo), Frank Stadler (violino), Nina Schumann (piano), Predrag Katanic (viola) e Searmi Park (violino), além do pianista português. Os concertos terão lugar nos dias 9 (abertura) e 10, às 21h, e no dia 11 (encerramento), às 17h, e incluem composições de Elgar, Korngold, Lyapunov, Mendelssohn, Rachmaninoff, Saint-Saëns, Schumann e Shchedrin. “Em Famalicão, vamos praticar a base de Stellenbosch: transparência total entre alunos e professores relativamente a proces- sos de ensino e práticas de palco”, assegura Luís Magalhães – na foto, com Nina Schumann, com quem forma o duo TwoPianists, nomeado na categoria de melhor álbum clássico para os South African Music Awards 2009, a atribuir em Abril. 018-019 discurso directo 3/15/10 7:17 PM Page 18 discurso directo Mongrel O contributo do cinema na produção dos discursos pedagógicos Reinventar a Escola passa por transformá-la num espaço potenciador de inteligência e de humanidade, promovendo a participação de todos na construção de produtos culturais, partilhando-os, e a afirmação de cada um como pessoa portadora e construtora de saberes. Ariana Cosme Rui Trindade Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação I 18 19 PRIMAVERA 2010 I N.º188 A Escola como espaço onde se torna possível vislumbrar os gestos através dos quais a humanidade se constrói não poderia deixar indiferentes muitos daqueles que utilizam o cinema como instrumento de expressão e de comunicação artística. De algum modo, pode até considerar-se que a assunção da Escola como objecto temático do cinema é expressão da sua existência, hoje, como um espaço suficientemente interessante do ponto de vista das dramaturgias que aí se constroem e desenrolam. Se, no entanto, esta dimensão da relação entre a Escola e o cinema nos parece ser inevitável, importa abordar uma outra, menos visível, mas não menos interessante, que diz respeito ao modo como o cinema tem vindo a contribuir para alargar o campo da produção dos discursos pedagógicos. Trata-se de um fenómeno recente, sendo necessário, por isso, recuar a 1967 para, em To Sir, With Love («Ao mestre, com carinho»), vermos Sidney Poitier no papel de Mark Thackeray, um engenheiro desempregado transformado em professor de circunstância, a enfrentar e a vencer a hostilidade dos seus alunos, numa escola situada no bairro operário do West End londrino. E não vale a pena lembrar Le Quatre Cents Coups («Os incompreendidos») ou L’Argent de Poche 018-019 discurso directo 3/15/10 7:17 PM Page 19 («Na idade da inocência»), de Truffaut, porque nestes, a Escola não passa de um dos cenários que se privilegia para invocar o drama das adolescências perturbadas. «Jonas que terá 25 anos no ano 2000» também não entra nestas contas, porque, igualmente, não é a escola que mobiliza Alain Tanner – as cenas onde vislumbramos o espaço escolar que os oito personagens, enquanto comunidade alternativa, construíram, apenas servem para ilustrar a utopia que esses personagens perseguem. É, pois, no dealbar da década de 90 que a Escola passa a ser entendida definitivamente como um objecto cinematográfico. Foi a partir desta época que pudemos assistir a filmes como «Filhos de um Deus Menor» (1986), «Clube dos Poetas Mortos» (1989), «Mentes Perigosas» (1995), «Mr. Holland Opus» (1995), «Melodia do Coração» (1999), «Finding Forrester» (2000), «O Sorriso de Monalisa» (2003), «Os Coristas» (2004), «Ser e Ter» (2004), «The Ron Clark Story» (2006) ou os «Escritores da Liberdade» (2007). Trata-se de filmes que encontram nas escolas, e nas respectivas salas de aula, os espaços nucleares das narrativas que propõem, uma opção através da qual o cinema pode ser definido, hoje, como um espaço privilegiado de produção de discursos pedagógicos, que, nos filmes em questão, se caracterizam por um registo de tipo épico, a resvalar, quantas vezes, para o voluntarismo. Um registo em função do qual se contribui para transformar as situações exemplares que esses filmes retratam em propostas que podem ser consideradas como modelos de acção educativa tidos como ideais. Por isso é que importa questionar quer esses filmes, quer o seu eventual impacto na construção de uma corrente de opinião que pode influenciar a discussão pública sobre as finalidades e os modos de funcionamento das escolas. Uma corrente de opinião que, assim, se pode constituir como referência da reflexão que se produz, hoje, quer sobre as escolas, quer, igualmente, sobre a acção dos professores e o estatuto e o papel dos alunos. O que está em jogo é demasiado sério para ser confundido com um devaneio intelectual. Trata-se, pois, de um assunto sobre o qual vale a pena reflectir de forma mais aprofundada. Um assunto que merece, enquanto contributo para esse debate, que se deixe de olhar para a lista de filmes acima enunciada e se chame a atenção para um que propositadamente não consta dessa lista – «A Turma» (2008). Entre les Murs é um filme cuja importância advém, entre outras razões possíveis, do facto de estabelecer uma ruptura com o, já referido, registo épico e, também, com qualquer modo linear de abordar as escolas como espaços de relações que os seus propósitos de socialização cultural contribuem para delimitar. É que em «A Turma» a escola afirma-se, acima de tudo, como espaço paradoxal, mais do que como espaço de redenção. Há professores e alunos que entendem os respectivos ofícios como razão suficiente para o investimento que protagonizam. Outros há para quem a permanência naquela escola é uma obrigação perante a qual parecem não ter opção. Há personagens previsíveis e imprevisíveis que alimentam um jogo onde entre o gato e o rato há, por vezes, pausas e momentos de comunicação autêntica, capazes de alimentar a esperança de que todos precisamos para continuarmos a ser docentes e discentes. Razões bastantes para não acreditarmos que «A Turma» possa constituir uma espécie de roteiro de orientação pedagógica dirigido para jovens aspirantes a professores, a não ser para utilizar como instrumento de suporte didáctico onde, no remanso das salas de aula do Ensino Superior, se possam apontar os erros de comunicação de François, o professor, e de alimentar um falso debate sobre as alternativas de que ele dispunha para enfrentar as provocações dos alunos. «A Turma» é, por isso, um filme que para além de, aparentemente, não alimentar ilusões sobre a Escola, não pretende, igualmente, assumir-se como um discurso de carácter pedagógico, apenas porque Laurent Cantet, o realizador, sabe que não é, nem quer ser, um pedagogo travestido de cineasta. Condição, esta, que todavia não o impede, na cena final, de desnudar a ausência de sentido da Escola, através da voz de uma das alunas que não alinha no jogo de faz-deconta em que se envolvem François e os seus alunos, quando se esforçam por recordar o que aprenderam ao longo desse ano lectivo. Provavelmente, só ela e Esmeralda é que ousaram dizer a verdade. Uma, quando diz que não aprendeu nada na escola, e a outra, quando nos mostra que, apesar da escola e sem ser por causa dela, foi capaz de ler «A República» de Platão. Se Cantet (na foto) sabe qual é o seu papel, será que nós, os professores, sabemos qual é o nosso? Descontando o facto de que, hoje, é mais fácil ser realizador de cinema do que professor, importa compreender que, malgré tout, é na Pedagogia que teremos de encontrar o nosso refúgio último, o refúgio onde poderemos aceder aos instrumentos que nos capacitem, não para educar com tal certeza que não seja possível não obter bons resultados, como pretendia Coménio na sua «Didáctica Magna», mas para alargar o campo das possibilidades educativas de que dispomos para nos assumirmos como professores. Uma opção que nem nos isenta de cometer erros nem nos obriga a ter sempre uma resposta pronta para todos os desafios que enfrentamos. Uma opção que, apenas, nos pode ajudar a repensar os caminhos de uma Escola que continua a justificar aquilo que é no facto de continuar a alimentar a sua importância como um passaporte para o futuro. Tal como afirmámos atrás, não será a reinvenção da Escola que nos libertará de viver situações de conflitos ou de insucessos profissionais. Não é essa a razão que justifica a necessidade de tal reinvenção. O que a justifica, tem a ver, sobretudo, com um outro tipo de desafio – aquele que permita que a Escola se transforme num espaço potenciador da inteligência e da humanidade de cada um, no momento em que possibilita que cada um possa participar na construção de produtos culturais, partilhando-os e aprendendo, no decurso de tal processo, a afirmar-se como pessoa; como gente que é gente porque é também portadora e construtora de saberes. 020-021 A escola que aprende 3/15/10 7:18 PM Page 20 a escola que aprende À volta do umbigo Em Janeiro, a UNESCO publicou um relatório sobre a avaliação global do programa “Educação Para Todos”. Trata-se de uma avaliação intercalar do objectivo que tinha sido apontado para que, em 2015, todas as crianças do mundo tivessem acesso à educação primária. Os resultados são decepcionantes. David Rodrigues Universidade Técnica de Lisboa Fórum de Estudos de Educação Inclusiva I 20 21 PRIMAVERA 2010 I N.º188 O relatório refere que 72 milhões de crianças estão ainda fora da escola e que, por este andar, 56 milhões ainda o estarão em 2015. E isto porquê? Segundo Irina Bokova, directora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), “enquanto os países ricos alimentam a sua recuperação económica, muitos países pobres enfrentam um cenário iminente de atrasos educacionais. Não podemos permitir-nos criar uma geração perdida de crianças privadas da sua oportunidade de educação, que as poderia elevar do seu estado actual de pobreza”. No mesmo sentido, o coordenador do relatório, Kevin Watkins, escreve: “Os países ricos mobilizaram montanhas financeiras para estabilizar os seus sistemas financeiros e proteger a sua infra-estrutura social e económica, mas só conseguiram mobilizar pequenas colinas para os pobres do mundo”. E, na verdade, estima-se que faltam 16 mil milhões de dólares para conseguir atingir o objectivo da educação primária em todo o mundo, em 2015. Estes números e opiniões são eloquentes. Antes de mais, por reporem uma verdade que a propaganda tende a ocultar – o apoio à educação em países em vias de desenvolvimento é completamente ineficaz até para remediar os aspectos mais básicos. Quando se sabe que a educação é a primeira e essencial condição para a existência de um desenvolvimento sustentado, verificamos que muitos Estados não colocam esta prioridade entre as mais prementes. Mas também é certo que os países mais desenvolvidos não apostam suficientemente em criar as bases que poderão levar os países mais pobres a sair da pobreza. Estamos muito longe de um apoio efectivo que permita escorar a derrapagem para a (cada vez maior) pobreza de muitos países. Assim, a retórica de dinamizar o desenvolvimento local nos países pobres, para evitar as desesperadas migrações para os países mais ricos, também não é fundamentada em medidas concretas. Podemos perguntar: e o que tem esta desafortunada situação mundial a ver connosco? As nossas carências ao nível educacional são de outra ordem e de outra escala. Nos alvores da Revolução de Outubro, na Rússia, os revolucionários debatiam a questão de saber se seria possível haver socialismo num só país. Não teria que ser um movimento mundial? Afinal os que duvidavam que o socialismo num só país pudesse prevalecer tinham razão… A necessidade de alimentar uma política de preservação acabou por exaurir os recursos que deviam fazer das sociedades socialistas, não só igualitárias, mas sobretudo prósperas. A pergunta é também esta: pode haver efectiva qualidade e inclusão educativa num só país? Em 2010? Lembro-me de ver, no princípio dos anos 80, vídeos sobre as classes especiais de crianças com deficiência, em França. Eram classes com uma percentagem elevadíssima de crianças argelinas e portuguesas. Os colegas franceses eram tentados a dizer que os problemas eram importados pelos imigrantes. E também agravados pela sua própria condição de imigrantes, dado que, para além das condições de deficiência, havia a cultura, a língua… Vivemos, em Portugal, situações que têm alguma simetria com esta, de há 30 anos: 020-021 A escola que aprende 3/15/10 7:18 PM Page 21 um número significativo de crianças de outras etnias e com outras capacidades desafiam o conceito de escola de qualidade. Mas será que podemos pensar que a escola de qualidade em Portugal é só para alunos portugueses? Os alunos de outras cidadanias não entram neste projecto? Pensar que a Educação pode passar incólume por toda esta heterogeneidade e desculpar-se com os males da globalização, seria um erro. Na educação pública ninguém se salva sozinho. É tempo, pois, de – em lugar de continuarmos a olhar para o ponto de maior centralidade do nosso corpo, que parece ser o umbigo – olharmos para as periferias. Encaremos de que forma um sistema mundial sem solidariedade, sem justiça e auto-centrado tem contribuído para que os países mais pobres não disponham de meios que lhes permitam assumir os destinos das suas crianças. É tempo de pensar que a Educação Inclusiva, para além de uma reforma educacional que se passa em cada um dos países (ricos ou pobres), é também uma postura ética mundial. Uma postura que recusa o fatalismo da exclusão escolar ou o acesso a uma Escola tão debilitada que seja incapaz de promover a mobilidade social. Já sabíamos que era difícil pensar uma Escola inclusiva numa sociedade que não o fosse. Sabemos agora, pelos dados deste relatório, que o caminho da inclusão não deve respeitar fronteiras. Não são apenas as crises que são mundiais; as soluções também têm que o ser. “Um conceito alargado de Educação Inclusiva pode ser visto como um princípio geral orientador para fortalecer a educação para um desenvolvimento sustentável, para a aprendizagem ao longo da vida para todos e acesso igual de todos os níveis da sociedade às oportunidades de aprendizagem” – das conclusões e recomendações da 48.ª Conferência Internacional de Educação (Genebra, 2008). 16 mil milhões de dólares!?... Uganda – © UNESCO/Marc Hofer Bucareste – © UNESCO/Petrut Calinescu Monróvia – © UNESCO/Glenna Gordon 022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 22 Objectivo campanha I 22 23 PRIMAVERA 2010 I N.º188 educação 022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 23 para tod@s Global Campaign for Education 022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 24 campanha Actualmente, a ajuda global para a educação básica é de 4 mil milhões de dólares por ano, mas o valor estimado de ajuda pública ao desenvolvimento para preencher as necessidades é de entre 11 mil milhões de dólares por ano (só para o ensino primário) e 16 mil milhões de dólares (para todos os objectivos de EPT). Existem muitos desafios para não se regredir nos esforços para se alcançar a EPT e, num contexto de crise financeira, os governos estão sujeitos a pressões para reduzirem, em vez de aumentarem, os apoios à Educação. No contexto actual, é necessário garantir que as políticas sociais não serão afectadas e que o acesso à EPT e a qualidade do ensino não serão prejudicados, sobretudo nos países com economias mais frágeis e em desenvolvimento. Nas regiões em desenvolvimento, a América Latina e as Caraíbas lideram o progresso alcançado no âmbito da EPT, embora com resultados diversificados de país para país. A África Subsaariana é a região mais problemática, embora a escolarização tenha quintuplicado desde 1990, com países como Benim e Moçambique a registarem rápido progresso. Em média, 65% das crianças da América Latina e 74% das das Caraíbas foram matriculadas no ensino pré-escolar em 2007, tendo sido alcançada a paridade de género em praticamente todos os países – no Brasil, as probabilidades de uma rapariga frequentar a escola são mais fortes do que no caso dos rapazes. Por sua vez, o analfabetismo adulto afecta mais homens do que mulheres na América Latina, invertendo-se a tendência nas Caraíbas. I 24 25 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Global Campaign for Education 022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 25 A CGE responsabiliza o governo de Portugal, enquanto país doador, pelo cumprimento da promessa de contribuir com os esforços necessários para se alcançarem as metas de EPT a nível mundial. Pretende, por outro lado, mobilizar a comunidade educativa, em particular, para uma cidadania mais activa e exigente. Este ano, a Semana de Acção Global pela Educação – 19 a 25 de Abril – é dedicada ao financiamento da Educação para Todos (EPT), para que se mantenha como investimento prioritário nos países mais e menos desenvolvidos. A semana de acção é mais uma iniciativa da Global Campaign for Education (Campanha Global pela Educação, CGE), uma plataforma internacional constituída na convicção de que a educação tem um papel fundamental no processo de desenvolvimento humano, social, político, económico e cultural. Para a CGE, as pessoas que têm acesso à educação desenvolvem competências e capacidades, bem como autonomia para assegurarem os seus outros direitos. Com representação em mais de 100 países, a CGE surge em Portugal no contexto de uma coligação de longo prazo (19992016), envolvendo organizações não-governamentais, sindicatos da área educativa, centros escolares e diversos movimentos sociais. A CGE apela a todos os membros da comunidade educativa, enquanto actores fundamentais de transformação do mundo, para participarem na Semana de Acção e realizarem uma “Grande Aula” no dia 20 de Abril, juntando-se a milhares de pessoas que em todo o mundo apoiam a iniciativa. Este ano, especificamente, apela, também, a todos os adeptos do futebol para que apoiem a causa da EPT em www.join1goal.org/pt e permitam que o Campeonato Mundial de Futebol, a realizar na África do Sul, constitua um pontapé de saída para uma efectiva educação para todas as crianças do continente e do mundo inteiro. Embora a educação seja um direito inerente a todos os seres humanos reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1949) e noutros textos internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais, existem ainda vários desafios para que todos possam usufruir plenamente deste direito. Em 2000, no Fórum Mundial de Educação (Dakar, Senegal), governos de todo o mundo reiteraram as promessas para se atingir a EPT declaradas dez anos antes, em Jomtien (Tailândia). Nesse mesmo ano, na Cimeira do Milénio, 189 líderes políticos assumiram oito objectivos de desenvolvimento até 2015, entre eles garantir o ensino primário universal, gratuito e de qualidade para todos e todas. No entanto, à medida que se aproxima 2015, torna-se claro e urgente que são precisos mais esforços para cumprir as promessas feitas. De acordo com o último Relatório de Monitorização Global da EPT, da UNESCO, cerca de 72 milhões de crianças continuam sem ir à escola, milhões de jovens terminam os seus estudos sem adquirirem as competência básicas e um em cada seis adultos não consegue ler este texto, escrever ou efectuar cálculos. Renovar o compromisso político e melhorar os mecanismos de apoio financeiro para se atingirem os objectivos da EPT são, por isso, uma necessidade premente, tanto mais que a tendência actual indica que em 2015 ainda haverá 59 milhões de crianças sem ir à escola e que, mais uma vez, as promessas não serão cumpridas [mais informação em www.educacaoparatodos.org]. MARIANA HANCOCK Campanha Global pela Educação 026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 26 educação especial Escola inclusiva está em risco Jorge Pimentel Em dois anos, através da CIF, o Governo retirou apoios da Educação Especial a mais de 20.000 alunos. Os docentes dos quadros de agrupamento apenas respondem a metade das necessidades, para além de faltarem psicólogos, auxiliares e terapeutas, entre outros profissionais. É o “quadro negro” pintado pela Fenprof, que convocou uma conferência de imprensa para divulgar os resultados de um inquérito que realizou à escala continental. António Baldaia I 26 27 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Portugal foi um dos países subscritores da Declaração de Salamanca (1994) sobre a Escola Inclusiva e, em 2009, ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, comprometendo-se na sua promoção. Uma adesão natural, uma vez que, desde 1991, a legislação portuguesa já apresentava um cunho muito positivo, definindo as condições em que os alunos com necessidades educativas especiais tinham acesso à Educação Especial, estabelecendo, também, formas de organização, nomeadamente quanto à constituição de turmas, existência de recursos ou eliminação de barreiras de diversa natureza. Vigorava, então, o Decreto-Lei n.º 319/91, de 23 de Agosto, que, interpretado na aplicação por diversos diplomas de hierarquia inferior, se manteve em vigor até 2007. Nesse ano, contra a opinião generalizada da comunidade educativa e de entidades como a Sociedade Portuguesa de Pedopsiquiatria, o Fórum de Estudos de Educação Inclusiva ou a Associação Portuguesa de Deficientes, o Governo revogou o quadro legal em vigor, substituindo-o pelo Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de Janeiro, o qual, adoptando a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como único instrumento para avaliação do direito a apoio no âmbito da Educação Especial, reduziu significativamente a natureza do conceito de escola inclusiva, uma vez que – à luz da nova 026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 27 Entretanto, considera a Fenprof, foi o próprio Ministério da Educação (ME) quem revelou, sem o querer, o “atentado” cometido – só num ano (de 2007/08 para 2008/09), 15.986 alunos foram afastados da Educação Especial nas escolas públicas. Um saldo negativo revelado por números do próprio ME, explica a Federação, já que os dados revelados em Junho de 2008 pelo então responsável da Direcção Geral da Inovação e do Desenvolvimento Curricular (DGIDC) apontavam que o número de alunos de escolas públicas apoiados pela Educação Especial, em 2007/08, era de 49.877. Ora, no ano seguinte, um balanço inscrito no documento «Educação Inclusiva - da retórica à prática», divulgado pela mesma DGIDC/ME, o número de alunos de escolas públicas apoiados pela Educação Especial, em 2008/09, era de apenas 33.891. Para a Fenprof, o ME considerava essa quebra não apenas natural, como indispensável, pois, de acordo com os dados disponibilizados, aquele número de alunos correspondia, em 2007/08 e 2008/09, a respectivamente 3,9% e 2,85% da população escolar – uma taxa extremamente elevada, uma vez que os critérios da CIF apontavam para que apenas 1,8% dessa população pudesse ser abrangida pela Educação Especial (não mais do que 23.000 alunos). Cortesia NOPBC, EUA interpretação legal, e consequente aplicação no terreno – exclui as crianças e os jovens que não apresentem dificuldades provenientes de situações clinicamente comprovadas ou deficiências de carácter permanente ou prolongado. Ao tempo, a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) alertou para as consequências da adopção da CIF, que considerava irresponsável, e protagonizou diversas iniciativas de denúncia, assumindo maior importância as que tiveram lugar junto da Assembleia da República, onde, por força da então maioria absoluta, a aplicação da CIF e o essencial do decreto-lei se mantiveram. Relativamente ao ano em curso, e à falta de dados oficiais, a Fenprof decidiu antecipar o conhecimento desta realidade, não só para preparar a avaliação da situação no âmbito do seu 10.º Congresso, a realizar em Abril, como para elaborar propostas que permitam intervir no plano legal e alterar a situação, que reputa de muito negativa. Fê-lo através de um inquérito recolhido em 424 agrupamentos de escolas (mais de metade do total) distribuídos por todas as regiões educativas do continente, por ser aí (agrupamentos) que se encontra a esmagadora maioria dos alunos com necessidades educativas especiais, uma vez que oferecem a escolaridade obrigatória de nove anos. 026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 28 educação especial ESTUDO CONFIRMA LÓGICA DE EXCLUSÃO Em nota à Comunicação Social o Secretariado Nacional da Fenprof considera que o estudo levado a cabo “denuncia mais uma vez as consequências da implementação de um modelo de organização da Educação Especial que, apesar de se afirmar inclusivo, institui, na prática, uma lógica de exclusão: – exclui, porque restringe os apoios especializados aos alunos com necessidades educativas especiais de carácter permanente (e utiliza a CIF como instrumento de avaliação dessas necessidades); – exclui, porque, ao confundir “necessidade educativa especial” com “deficiência”, cria no sistema uma lógica de segregação e um enorme retrocesso educativo; ALGUNS DADOS DO ESTUDO DA Alunos que perderam apoios. O estudo revela que 2.933 alunos foram afastados da Educação Especial nos 424 agrupamentos, o que significa uma média de 6,9 por agrupamento. Por projecção, a Fenprof calcula que este ano o número seja próximo dos 5.300. Tendo em conta os cerca de 16.000 do ano lectivo anterior, significa que, com a CIF, cerca de 21.000 alunos com NEE terão sido afastados. Condições das escolas/unidades. Em 29,12% dos casos, a dimensão da sala não é adequada; 32,67% não se adequam às necessidades de trabalho específico; em 38,9%, o equipamento é insuficiente. O estudo verifica, também, grande desequilíbrio na rede de escolas/unidades: algumas são frequentadas pelo triplo dos alunos para que foram concebidas; no pólo oposto, há escolas de referência criadas, nomeadamente para alunos cegos e com baixa visão, com docentes especializados, mas que não têm alunos ou cuja frequência fica muito abaixo do calculado. Colocação de docentes. A falta de docentes de Educação Especial nos respectivos quadros, obriga as I 28 29 PRIMAVERA 2010 I N.º188 – exclui, porque preconiza uma Educação Especial em ambientes segregados (unidades de apoio especializado e de ensino estruturado) ou afastados da comunidade dos alunos (escolas de referência para a educação de alunos cegos e com baixa visão ou para a educação bilingue dos alunos surdos)”. A Fenprof considera que a actual equipa ministerial “deverá colocar a reorganização da Educação Especial como prioridade, sob pena de condenar ao fracasso e ao abandono escolares milhares de crianças e jovens apenas por apresentarem necessidades educativas especiais”. FENPROF escolas a recorrerem a diversas formas de recrutamento: deslocação de docentes colocados noutros grupos, mas que têm especialização ou experiência; deslocação de docentes de outros agrupamentos, mesmo sem especialização ou experiência; aproveitamento de situações de destacamento; contratação, nomeadamente por oferta de escola. Insuficiência do docentes. A maior parte dos agrupamentos afirmam ser insuficiente o número de docentes especializados de que dispõem face às suas necessidades. No total, os agrupamentos abrangidos afirmam necessitar de mais 312 docentes. Carência de outros profissionais. É notória a falta de técnicos especializados, com destaque para psicólogos, terapeutas e auxiliares de acção educativa. Foram contabilizados apenas agrupamentos que quantificaram as suas necessidades – a maioria refere simplesmente que necessita de “mais” ou “muito mais”, mas sem especificar. 026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:22 PM Page 29 [trans]formações Professor ou contratado? Há mais de vinte anos que ouvira esta pergunta pela boca de colegas que descreviam o seu início de carreira, na altura ensinando com habilitação suficiente. A Rita, ela própria professora contratada com habilitação suficiente, no ano de 1985, terminou, entretanto, o curso ‘via ensino’, ficando, portanto, profissionalizada. Como ingressara no ensino privado quando ainda era estudante, aí ficou. Tanto mais que a casa dos pais era ali perto. Ascendeu quase ao topo da carreira do ensino privado, com vencimento calculado no âmbito do respectivo contrato colectivo de trabalho. Duas décadas volvidas, a vida tomou novos rumos e a Rita decidiu tentar a sorte no ensino público. Com 20 anos de serviço, admitiu que seria relativamente fácil alcançar colocação numa escola da região. Nada... Apesar de bem classificada, a verdade é que ficou no 2.º escalão do concurso para contratados, não tendo obtido colocação nesse ano. No ano lectivo seguinte, conseguiu ser colocada por dois anos na mesma escola, e percebeu que tinha de começar, de novo, toda a progressão na carreira, já que os anos de serviço que tinha do ensino privado, onde era profissionalizada e do quadro, apenas lhe contariam depois de ficar efectiva. O vencimento, esse, passou a ser bem mais baixo – o de início de carreira, para quem já tinha 20 anos de serviço. Novo concurso, nova oportunidade – agora muito bem classificada, pois estava no 1.º escalão de contratados e em 6.º lugar nacional. Concorreu a todo o país, na esperança de obter um lugar de efectiva e ver terminada a incomunicação entre estes dois sistemas do Ensino Básico e Secundário, com o seu tempo de serviço contabilizado para progressão. Nada. À sua frente estavam muitos colegas com muito menos tempo de serviço que, estando já em quadro de zona pedagógica, lhe passaram à frente. Mesmo assim, nem todos estes ficaram efectivos. O concurso foi feito por quatro anos e, dessa vez, a Rita ficou bem mais longe de casa. O cansaço e vários problemas com os ascendentes levaram-na a ficar doente. Teve de apresentar atestado. Foi ao médico da especialidade, que lhe disse que tinha de ficar em casa por uns tempos. Atestado médico passado e entregue na escola, passado um tempo, foi informada de que aquele atestado não servia – como era “contratada, e não professora”, as regras tinham-se alterado e, agora, deveria ir ao médico de família, para que lhe fosse passado um atestado da Segurança Social. Instituição que lhe pagaria 65% do vencimento, já por si bem aquém do que estava habituada a receber. Confusão para todos: para a docente e para a médica de família, que não estava habituada a passar estes atestados a professores e, por isso, lhe perguntou: – Então a senhora não é professora? – Sou! Mas sou professora contratada, e agora a ADSE, para a qual desconto há anos, não paga aos professores contratados quando estão de baixa. Efectivamente, até no colégio privado, onde leccionara por duas décadas, a Rita descontava para a ADSE. Confusão, também, para a própria funcionária da escola, que, ao telefonar à Rita, a informar que o atestado não era válido, explicou: – É que nós aceitámos o atestado porque pensámos que era professora, mas afinal é contratada... Afinal, se se é contratado, não se é professor? Se se é profissionalizado, com vinte e vários anos de ensino, não se é professor? Então, mas agora os funcionários públicos não têm já quadro? Não pertencem a uma lista? E os contratados, não são funcionários públicos (professores), mesmo que por períodos de contrato anuais ou plurianuais? Valeria a pena pensar nisto. O dito do século passado, numa altura em que havia falta de professores e se recorria muito a contratados com habilitação suficiente, está de novo aí, mesmo para profissionalizados, que, quando não são efectivos, não são considerados professores. Mesmo que, além disso, sejam pós-graduados, mestres e quase doutores... Ana Vieira Instituto Politécnico de Leiria, Centro de Investigação Identidade(s) e Diversidade(s) 030-031 do primário 3/15/10 7:23 PM Page 30 do primário A segunda morte de Anísio José Pacheco Professor aposentado Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto I 30 31 PRIMAVERA 2010 I N.º188 O primeiro parágrafo do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova reza assim: “Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional”. Decorria o ano de 1932. Entre os signatários estava Anísio Teixeira. Em 2010, fui ao sertão baiano à procura do que resta desse insigne brasileiro. Acolheram-me na casa que foi sua. Mostraram-me o leito em que dormia, o berço que se presume ter sido o seu, livros e objetos vulgares, que foram tocados pelas mãos de um gênio. À saída, detive-me junto a uma das derradeiras fotos de Anísio – está na melhor companhia a que um educador pode aspirar: crianças. Em Caetité, encontrei uma Secretaria de Educação feita de boa gente e com muita vontade de melhorar. Mas não resisti a perguntar: o que há de Anísio nas escolas de Caetité? Qual o legado de Anísio, que se faça presente nas práticas escolares? Respondeu-me um embaraçado silêncio. Apercebo-me de que os professores brasileiros conhecem Anísio somente de nome. Quase nada terão lido do muito que escreveu. Conhecem Freire de meia dúzia de leituras mal digeridas. Ornamentam projetos de escola com citações dos mestres, mas não os cultivam nas salas de aula. Na formação, adquiriram vagos contributos de ilustres pedagogos estrangeiros, mas não conhecem a obra de Eurípedes e nunca ouviram falar de Lauro ou de Agostinho. Foram muitas as horas de viagem pelas estradas do interior da Bahia, vendo garrafas e latas arremessadas por energúmenos, que dirigiam automóveis, ultrapassando em curvas. No rádio do carro, quase tudo era lixo – na terra de Caymi, Caetano e Bethânia, nem uma só vez escutei as suas vozes. Os anúncios mais escutados falavam de mensalidades reduzidas na compra de eletrodomésticos e na matrícula em escolas. O nome mais escutado na rádio foi o de um deputado – coronelismo versão século XXI. A caminho de Caetité, passei por Brumado. Ali, na margem do São Francisco, o povo sofre de... falta de água. O que terá tudo isto a ver com a Educação e com o Anísio Teixeira?... Dirvan Procurei na cidade uma lápide ou um busto que evocasse Anísio. Não encontrei. A única estátua de Caetité é de alguém que ainda está vivo e cujos méritos desconheço. Mistério e silêncio encobriram as circunstâncias da morte de Anísio. Consta que foi encontrado em posição fetal, entre as molas do fosso de um elevador, sem vestígios de com elas ter colidido Fundação Anísio Teixeira 030-031 do primário 3/15/10 7:23 PM Page 31 numa presumível queda... Talvez com marcas de agressão. Talvez... Mas estávamos em 1971, e questionar esses tenebrosos tempos ainda é tabu. Ao que parece, sepultaram-no sem que as conclusões de qualquer inquérito fossem dadas à luz. E a luz que Anísio lançou sobre a Educação do Brasil também se extinguiu com ele. Anísio morreu duas vezes. Cito o mestre: “O professor prelecionava, marcava a seguir a lição e tomava-a no dia seguinte. Os livros eram feitos adrede, em lições. Os programas determinavam o período para se vencerem tais e tais lições. Exames que verificavam se os livros ficaram aprendidos, condicionavam as promoções (...). Ora essa escola (...) é inadequada para a situação em que nos achamos” – Anísio fazia a crítica da Escola do passado, em 1934... O tempo aliou-se à incúria dos homens para apagá-lo da memória dos educadores brasileiros. Memória não é feita de inócuas homenagens, mas no fazer jus à sua vida de incansável lutador por uma educação que não aquela que, decorridos quase quarenta anos sobre a sua morte, infelizmente, ainda temos. 032-033 do secundário 3/15/10 7:25 PM Page 32 do secundário Pragmatismo, educação e democracia Jane Addams Memorial Collection (University of Illinois at Chicago, EUA) o legado universal de Jane Addams (1) Domingos Fernandes Universidade de Lisboa, Instituto de Educação I 32 33 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Em 2003, o Pestalozzianum Research Institute for the History of Education e o Institute of Education da Universidade de Zurique organizaram uma conferência em que se relacionou o pragmatismo, a educação e a democracia. A ideia era contribuir para que o pensamento sobre educação fosse mais consistente com a discussão internacional nos domínios das humanidades e das ciências sociais. Os trabalhos deram origem a um livro – «Pragmatism and Education» – onde se reuniram 11 artigos de nove autores europeus (alemães, suíços e suecos) e de dois norte-americanos. Os autores discutem concepções filosóficas pragmatistas da chamada Escola de Chicago, onde predominaram, entre outros, John Dewey, George Mead e James Tufts, dando voz a perspectivas pouco debatidas sobre educação, ética, política e democracia. Jane Addams, uma destacada activista social, que veio a receber o prémio Nobel da Paz em 1931, estava associada àquele grupo, sendo considerada uma percursora das práticas pragmatistas. Efectivamente, em 1899, Addams fundou um centro social comunitário, Hull House, onde desenvolveu um intenso e invulgar trabalho pedagógico, social e cultural para crianças e jovens e, em geral, para imigrantes pobres que trabalhavam, em condições inqualificáveis, nos matadouros e nas fábricas dos arredores de Chicago. O trabalho social, político e pedagógico acompanhou Jane Addams ao longo de toda a sua vida e está largamente documentado na literatura («The Education of Jane Addams», Victoria Bissell Brown, University of Pennsylvania Press 2003). Porém, foi o seu trabalho autobiográfico, «Twenty Years At Hull House», publicado em 1910, que acabou por ter um significativo impacto académico, social e político (Penguin Books, 1961). 032-033 do secundário 3/15/10 7:25 PM Page 33 Swarthmore College Peace Collection (Filadélfia, EUA) A reflexão e a discussão teórica sobre o pragmatismo na educação, a teorização acerca do papel dos centros comunitários no desenvolvimento da educação cívica e democrática e o papel e o poder das iniciativas da sociedade civil na educação e na formação dos cidadãos, são exemplos de efeitos das narrativas autobiográficas de Jane Addams. Além disso, o seu trabalho contribuiu para que se compreendesse como o pragmatismo da Escola de Chicago esteve estreitamente associado aos esforços que se fizeram para responder ao caos generalizado, decorrente da imigração massiva e da rápida industrialização, que se vivia naquela cidade nos princípios do século XX – entre 1840-1930, a população urbana de Chicago cresceu 800 vezes, de 4.470 para 3.376.438 habitantes. Addams, ainda que intuitivamente, parece ter seguido um dos princípios básicos do pragmatismo: aprender é, no essencial, resolver problemas que, uma vez resolvidos, dão origem a novos problemas para resolver. Desta forma, perante o problema real de milhares de crianças, jovens e adultos pobres e iletrados, sem qualquer enquadramento cultural e social, a Hull House procurou garantir que todos se tornassem participantes activos da vida social, política, cultural e económica da sociedade. Os cidadãos e as cidadãs, dizia Addams, não podem ser meras criaturas das máquinas e, por isso, têm que aprender, têm que estudar, têm que ser escolarizados. A indústria tem que ser humanizada através de uma boa educação geral para todas as crianças e jovens, e o equilíbrio entre a democracia e a indústria não se pode fazer com base na comercialização da escola... Addams fundou a Hull House acreditando, tal como Dewey, que a democracia não se limitava a um conjunto de procedimentos formais ou a uma via para a sociedade sem classes. Era, antes do mais, uma forma de viver em conjunto, uma experiência de interacção social e de cooperação entre as pessoas. Era, assim, mais do que uma forma de governar. A casa da democracia é a comunidade. É a vizinhança. A democracia tinha uma dimensão e uma função social. E, por isso mesmo, Addams criticava o sistema público de educação, porque apenas se preocupava com a dimensão política da democracia, ignorando e desvalorizando as experiências, as tradições e os valores dos imigrantes. Para Addams, as experiências do dia-a-dia das pessoas estavam na base da construção da democracia. Consequentemente, a democracia exige que a escola valorize socialmente as experiências das crianças e dos jovens que a frequentam. Democracia e educação são, ou deveriam ser, desígnios indissociáveis das sociedades. Já assim o entendia Jane Addams, nos finais do século XIX... 034-035 formação e desempenho 3/15/10 7:25 PM Page 34 formação e desempenho A propósito da prova de ingresso na carreira docente Carlos Cardoso Escola Superior de Educação de Lisboa, Centro Interdisciplinar de Estudos Educacionais I 34 35 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Desconheço avanços recentes – se os houve – nas negociações entre Ministério da Educação e sindicatos sobre a prova de ingresso na carreira docente. Sobre o assunto, mantenho como referência o artigo 22.º do Estatuto da Carreira Docente e os decretos regulamentares n.º 3/2008, de 21 de Janeiro, e nº 27/2009, de 6 de Outubro. Este último dispensa da realização da prova os candidatos que cumulativamente: (a) contem pelo menos quatro anos completos de exercícios docentes, (b) que um desses anos tenha sido prestado nos quatro anos escolares anteriores ao da realização da primeira prova e (c) tenham obtido avaliação de desempenho igual ou superior a ‘Bom’. Para além destes, são dispensados da realização da prova os candidatos que tenham obtido avaliação de desempenho igual ou superior a ‘Muito Bom’ em data anterior à realização da primeira prova. Portanto, todos os novos diplomados candidatos à docência terão de se submeter à prova de ingresso. A relevância desta prova parece ser incontestável. No entanto, pode tornar-se num episódio isolado e pouco significativo se não tiver impacto na formação inicial e contínua dos professores e educadores (FIPE), no percurso futuro do jovem docente e na afirmação profissional pessoal e colectiva. A prova surge, em primeiro lugar, como garantia para a entidade empregadora de quem se espera que escolha os candidatos com as disposições e competências para desempenhos de qualidade numa área que diz respeito a toda a colectividade. Espera-se, portanto, que seja adequada e útil e que constitua, de facto, mais um meio de reconhecimento da qualidade do candidato, para além da sua certificação académica. Deverá desafiar melhorias na qualidade da formação inicial, na iniciação e no percurso profissional futuro do jovem professor. Deverá ter significado no acesso formal dos novos professores ao contexto real da acção, abrindo novas possibilidades ao seu desenvolvimento profissional. Como outras formas de iniciação profissional, pode constituir parte de um rito de passagem com as características e o peso que tais ritos têm nas representações individual e colectiva, com reflexo na sua aceitação pelos pares e pela comunidade e, 034-035 formação e desempenho 3/15/10 7:25 PM Page 35 por isso, mais um meio de afirmação do seu estatuto e da profissão docente. Nas actuais circunstâncias, parece fazer sentido a necessidade de uma prova de ingresso. Para quem tem estado envolvido na FIPE, é uma evidência que a qualidade dessa formação não tem, em todas as instituições, os níveis desejados. A consolidação de um sistema credível de acreditação virá certamente contribuir para a realização de tais níveis de qualidade em todas elas. Também as provas de ingresso – se adequadamente elaboradas – poderão constituir referências para que as instituições de FIPE melhorem a qualidade dos currículos e das práticas de formação. Sendo essas provas o passaporte no acesso ao mercado de trabalho dos seus diplomados, as escolas de formação ajustarão, inevitavelmente, alguns dos seus critérios de formação pelas características de tais provas. A prova de ingresso poderá constituir mais um pretexto para recon- siderar procedimentos no acesso aos cursos de FIPE e estabelecer pontes mais autênticas entre o espaço de formação e o espaço do desempenho profissional. Refiro-me, em concreto, à necessidade do estabelecimento de critérios específicos para a candidatura aos cursos de FIPE e da criação de mecanismo de indução profissional dos estudantes-professores e/ou dos novos diplomados. A ausência de um processo específico de selecção na candidatura aos cursos de FIPE constitui um factor que afecta o processo e os resultados da formação inicial de docentes. Apesar das significativas mudanças ocorridas nas últimas décadas na FIPE, a profissão docente é ainda, em muitos casos, uma segunda escolha, contribuindo para manter a ideia, ainda prevalecente, de que pode ser professor quem quer. Estou com Nóvoa quando afirma, numa recente entrevista a esta revista, que “é urgente introduzir um recrutamento mais individualizado que permita perceber as inclinações e as disposições de cada um para o ensino. É preciso criar as con- dições para que os melhores alunos do ensino secundário escolham a profissão docente”. Embora sendo uma condição desejável para a melhoria da formação, ela tem vindo a ser adiada. Na situação actual parece mesmo haver novas resistências. Acentuou-se a competição entre instituições formadoras, na procura de clientes. A selecção com base na disposição e na qualidade dos candidatos no acesso aos cursos colide com lógicas (politicas, administrativas, financeiras, de sobrevivência institucional e pessoal, etc.) estranhas a critérios de qualidade formativa. Na actual estrutura dos cursos de FIPE, em 2 ciclos, a entrada no 2.º ciclo, poderia constituir o momento para realizar tal selecção, salvaguardando, no entanto, alternativas profissionais e/ou de continuidade formativa para os candidatos não admitidos. O facto de o 1.º ciclo – licenciatura em Educação Básica – não assegurar qualquer formação profissionalizante específica deixa aos candidatos não admitidos poucas ou nenhumas alternativas, senão ingressarem em formações de 2.º ciclo. A prova de ingresso é, de facto, uma nova condição–chave, exigida pelo empregador, para que os novos entrem na arena profissional. Esta exigência deve implicar compromissos por parte da entidade empregadora, de modo a que o novo docente seja acolhido e acompanhado numa estrutura formativa com apoio e supervisão que assegure um processo de indução na nova realidade profissional. 036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 36 escritas soltas Um país, três sistemas Uma outra mentalidade política urge, subordinada a três aspectos: necessidade de um novo olhar para a organização social e para as políticas de família; assunção do princípio de que a prioridade primeira da Escola é estar ao serviço do Homem e não ao serviço do Poder; a reinvenção do sistema tem de varrer a centralização que mata a identidade de cada estabelecimento de ensino. André Escórcio Escola Básica e Secundária Gonçalves Zarco (Madeira) I 36 37 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Desde a regionalização do sector educativo na Região Autónoma da Madeira, tem sido evidente uma preocupação política baseada na adaptação da legislação produzida pela Assembleia da República e pelo Governo da República. Neste pressuposto, nunca foi cumprido o estipulado na alínea o) do Artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região, que considera matéria de interesse específico a “educação pré-escolar, ensino básico, secundário, superior e especial”. A questão que se tem colocado tem sido a interpretação do Artigo 164.º, alínea i), da Constituição da República, que sustenta ser “reserva de competência da Assembleia da República” as designadas “bases do sistema educativo”. Partiuse, então, do princípio da necessidade de acatamento dos princípios básicos essenciais definidores das grandes linhas orientadoras nacionais. Por outro lado, na esfera dos poderes da região autónoma, o Artigo 227, n.º 1, alíneas a) e c), da Constituição confere competência legislativa, a definir no respectivo Estatuto: a) legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania; c) desenvolver para o âmbito regional os princípios ou as bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam. Daqui decorre a possibilidade de a Assembleia Legislativa da Madeira poder desenvolver a Lei de Bases do Sistema Educativo, embora sem subverter os princípios básicos nucleares. 036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 37 educativos Jorge Pimentel Sustento, assim, que não só é possível como desejável que as regiões autónomas disponham de um Regime Jurídico do Sistema Educativo Regional que mantenha o quadro de referência constitucional, mas que desenvolva, sem subversão dos respectivos princípios orientadores da Lei de Bases, os aspectos organizacionais do sistema educativo, curriculares e programáticos e demais legislação, aliás, de acordo com o n.º 4 do Artigo 1.º da própria Lei: “O sistema educativo tem por âmbito geográfico a totalidade do território português – Continente e Regiões Autónomas – mas deve ter uma expressão suficientemente flexível e diversificada (…)”, como se extrai do n.º 4 do Artigo 50.º sobre o desenvolvimento curricular. Neste pressuposto, defendo o princípio de um país, três sistemas. Isso obrigará, certamente, ao desenvolvimento da inovação e da criatividade no quadro da reinvenção do sistema. Reinvenção que acabe com as rotinas burocráticas, com a irresponsabilidade política, a indisciplina e a Escola como mero lugar de convívio. É evidente que apenas a Lei não resolverá as questões de fundo. Uma outra mentalidade política urge, subordinada a três aspectos: primeiro, necessidade de um novo olhar para a organização social e para as políticas de família; segundo, assunção do princípio de que a prioridade primeira da Escola é estar ao serviço do Homem e não ao serviço do Poder; terceiro, a tal reinvenção do sistema tem de varrer a centralização que mata a sadia construção da identidade de cada estabelecimento de ensino. Não perceber o porquê da desmotivação dos docentes; não compreender que estamos a enfrentar um período marcado pela pobreza e pelo desemprego, que implica que o sistema, obrigatória e universalmente, seja gratuito; admitir que os problemas da educação se resolvem com a aplicação de pensos-rápidos perante uma infecção profunda e provo- cadora de dor política, económica, cultural e social – é estar, com toda a certeza, a comprometer o futuro. E neste quadro, pela dimensão das regiões, convicto estou que podem constituir-se em laboratórios de excelência educativa. Basta um olhar pela história dos países do topo do rendimento escolar (PISA); compreender o que significam escolas de pequena dimensão; o efeito multiplicador de cada euro investido na educação; a autonomia pedagógica e a importância da diferenciação; a assunção de um pensamento estratégico autónomo nos domínios organizacional, curricular e programático; como não se avalia a actividade docente; a separação do 2.º do 3.º ciclo do Básico; um outro olhar para a formação inicial, complementar e especializada; a formação profissional dos assistentes operacionais; compreender, entre tantas áreas, como se estrutura o ensino vocacional – bastará isto para entender a importância da reinvenção e descentralização no desenvolvimento do país. 036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 38 escritas soltas Imagem e desafios da profissão docente A missão pedagógica dos professores reveste-se de grande complexidade humana, dada a responsabilidade antropológica que lhe é inerente. Trata-se, afinal, de trabalhar com pessoas e numa perspectiva de promover a sua personalidade e humanidade. Evangelina Bonifácio Direcção Regional de Educação do Norte, EAE Nordeste, Terra Fria e Arribas I 38 39 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Tal como sublinha Isabel Baptista, “a relação entre educador e educando, que sustenta a experiência educativa, constitui uma modalidade de encontro humano que, de forma muito particular, contribui para a realização do projecto antropológico”. Deste modo, o professor é colocado face a novos reptos que, para além dos saberes inerentes à profissão, exigem um conjunto de competências sociais e humanas sem as quais se torna inexequível o exercício de uma nova profissionalidade configurada pelos desafios do século XXI. Na mesma linha de raciocínio, os professores são convidados a desenvolver e a liderar “um processo de transformação social” (Roberto Carneiro). No entanto, ainda hoje, como refere Andy Hargreaves, “a imagem popular do trabalho do professor retrata-o como uma actividade desempenhada com crianças no interior de salas de aula – fazer perguntas, emitir orientações, dar conselhos, manter a ordem, apresentar materiais, aliviar o trabalho das crianças ou corrigir os seus erros. Estas actividades e a preparação que é necessária para as organizar constituem, para a maior parte das pessoas, a própria definição do ensino”. Mas a verdade é que poucos não acreditam que ser professor e ensinar é uma tarefa cada vez mais complexa e mais exigente. Ora, tendo em referência a nova realidade da profissão docente, julgamos que importa reflectir a prática docente no quadro de uma sociedade educativa, desejavelmente solidária e justa, contrariando a posição de alguns investigadores que recorrentemente admitem “a morte do professor” (Jean-François Lyotard, António Teodoro). No seguimento do que já foi afirmado, a emergência do tempo contemporâneo reclama um professor pedagogo, capaz de compreender, de intervir e de contribuir para o aperfeiçoamento humano. Nesse sentido, será decisivo educar para a compreensão, (des)construindo o significado da informação, encontrando a melhor forma de a utilizar como benefício, acautelando um sentido de responsabilidade individual e colectivo na educação e no sucesso dos alunos. Por isso, espera-se, sobretudo, que o professor privilegie o pensamento dos alunos, os ajude a pensar criticamente, contribuindo para a construção hermenêutica do seu conhecimento no sentido de lhes facultar a transição da informação para o conhecimento e do conhecimento para a sabedoria. Entendemos, por isso, que o seu papel está longe de se esgotar. Parafraseando Roberto Carneiro, “os professores são cada vez mais necessários”, porque a matriz humana na Escola prevalece sobre o mito tecnológico. Nesta perspectiva, num estudo recente, procurámos evidenciar os factores que desafiam a profissionalidade docente no quadro da nossa contemporaneidade e 036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 39 Cortesia Montclair State University, New Jersey / USA que influenciam a imagem social da profissão [«Professores e Escolas: a imagem social dos professores do ensino básico no Portugal contemporâneo, 19732005»]. Os resultados permitem-nos concluir que a percepção geral dos cidadãos face à profissão professor é claramente traduzida por uma imagem social valorizada, no dizer da maioria de inquiridos, quando consideram que “ser professor” é exercer uma profissão de prestígio social (64,3%). Por outro lado, quando perguntamos “o professor é para si”, sugerindo oito possibilidades, averiguámos que a imagem social percepcionada é, ainda, associada ao papel tradicional de “um transmissor de conhecimentos” (96,7%) e que na “primeira qualidade para ser professor” evidenciam a competência técnica/científica (39,3%), contrariando os desafios do trabalho do professor no mundo con- temporâneo, que sublinham o seu papel como formadores, como mediadores, como construtores do conhecimento e “como profissionais da relação e agentes privilegiados da relação humana” (Isabel Baptista). Constatamos, ainda, que, apesar de frequentemente ser evidenciada uma imagem negativa (difundida por alguns), em contraponto, emerge neste estudo uma imagem pública positiva (quando a sociedade é convocada a opinar). Parecenos que entre estas duas realidades existe o questionamento e o conflito permanente das sucessivas tutelas e de alguns fazedores de opinião pública, cujo acesso facilitado à Comunicação Social permite a divulgação das suas ideias, construindo e desconstruindo imagens com efeito público imediato. Assim, confirmando o que foi dito, revemo-nos nas palavras de Gimeno Sacristán, quando afirma que “podría decirse que su función es muy importante, pero las figuras que lo desempeñan, no tanto“. Pretendendo representar os desafios do trabalho do professor do Ensino Básico no século XXI, recorremos a três metáforas: – professor-arquitecto, no sentido de que desenhará os alicerces da educação básica de cada aluno ao contribuir para a construção hermenêutica do seu conhecimento; – professor-influenciador, porque lhe caberá motivar, com o seu exemplo, a personalidade humana, o reforço dos direitos humanos, favorecendo a tolerância e compreensão entre todos; – professor-construtor, porque lhe caberá juntar as peças do puzzle, respeitar a singularidade de cada um e edificar o futuro, juntando a memória do ontem e a oportunidade do amanhã. 040-041 em português 3/15/10 7:27 PM Page 40 em português Precisamos de um ensino missionário? A Escola de Atenas (Raffaello Sanzio, 1483-1520) Leonel Cosme Escritor e jornalista I 40 41 PRIMAVERA 2010 I N.º188 É sábio aquele professor de meninos, de jovens ou de adultos que, a coberto ou à margem das prescrições curriculares, não se contenta com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar que não é suficiente interpretar o mundo; é preciso transformá-lo. 040-041 em português 3/15/10 7:27 PM Page 41 Quando ouvimos as falas (ou o falazar, quando inócuo e desconcertado) de muitas figuras públicas, que se elevam ou são elevadas em todos os quadrantes da nossa vida colectiva – fale-se de governação, política partidária, economia, justiça, educação, indústria, comércio ou agricultura – e nos interrogamos se estarão pensando no país real, somos levados a imaginar que os portugueses se conformam com a ideia de que uma nação pode sobreviver sem uma verdadeira elite, aglutinadora de princípios e forças vitais, e – não menos grave – por ausência de horizontes mobilizadores, se remetem à resignação de salvar o que existe, “já que o futuro a Deus pertence”... Vem a propósito uma passagem da entrevista do professor António Nóvoa inserta no número anterior da PÁGINA: “… o horizonte não existe para nos trazer de volta à origem, mas para nos permitir medir toda a distância que temos a percorrer” e uma máxima do grande poeta espanhol António Machado: “O caminho faz-se caminhando”. Conjugando estas reflexões com outras de Spencer, respigadas de um livro escrito há cem anos, «Primeiros Princípios», que marcou a fase voluntarista de um filósofo que privilegiou a observação do comportamento humano, no terreno, à tranquila meditação em claustro, apraz-nos avocar dele especiais momentos de exortação ou de apelo a como que um espírito de missão que, reconhecendo a circunstancialidade de todas as vivências, do passado e do presente, modela os projectos do futuro. Mas não é fácil o caminho do missionário… No fim da vida, o voluntarista Spencer, que primeiro foi louvado, depois contestado, e por fim esquecido, quando morreu, em 1803, perguntava-se se não teria sido inútil todo o seu trabalho e se não teria errado em sacrificar ao estudo dos homens os prazeres da vida... Na sua fase positivista, ainda reflectia: ”Não é sem fundamento que o homem tem simpatias por alguns princípios e repugnância por outros. Com toda a sua capacidade e aspirações e crenças, ele não é acidente, mas um produto da época. Ao mesmo tempo que é um filho do passado é um pai do futuro; e os seus pensamentos formam uma prole que ele não pode permitir que pereça. (…) O sábio não considera adventícia a fé que o anima. A mais alta verdade que vê, ele enunciá-la-á sem temor, sabendo que, venha o que vier, está representado com honestidade o seu papel no Mundo; sabendo que, se pode conseguir o que mira, bem; e se não pode, igualmente bem – embora não tão bem.” Quem navega pelas filosofias dos grandes pensadores de todos os tempos há-de concluir, muitas vezes, como Salomão, que nada há de novo sob a roda do Sol. Ou, parafraseando Hamlet, que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia… Em consonância lembremos ainda António Nóvoa, dirigindo-se aos colegas professores: “A história é o que somos mais o que podemos fazer. (…) Ao longo deste tempo, os professores estiveram, de algum modo, relegados para um plano secundário. As realidades do século XXI, as grandes problemáticas do conhecimento, da aprendizagem, da criação e da diversidade, trazem os professores, de novo, para o centro do espaço educativo”. Face à vastidão e complexidade do espaço educativo, entendemos naquelas palavras como que um convite ou um desafio à assunção de responsabilidades específicas da profissão, compreendendo que nela está implícito um sentido de missão que só é reconhecível em actividades virtuosamente potenciadas para distinguir o Certo e o Errado, a Bela e o Monstro. A pensar isto, já escrevíamos neste mesmo espaço, em Junho de 2004, num artigo intitulado Meditações sobre a Escola em Abril: “Quem elucidará o ignorante e o indiferente sobre a diferença abissal que existe entre Democracia e Demagogia, Popularidade e Populismo, Liberdade e Licenciosidade, Cultura e Alienação, Universidade e Confraria, Informação e Manipulação, Emulação e Competição, Progresso e Desenvolvimento, Urbanização e Predação, Mercado e Monopólio, Consumo e Desperdício, Trabalho e Exploração, Lucro e Especulação, Socialismo e Liberalismo, Universalidade e Globalização, Capitalismo e Imperialismo? (…) Se não for a Escola a assumir a Ética com o mesmo sentido de ‘missão’ (antes de tudo individualmente assumido) que induz o médico a socorrer quem desfalece à sua frente, um bombeiro a apagar um incêndio ou um samaritano a orientar um cego na rua – que outro papel mais crucial se há-de esperar dela? Escatologicamente falando: se a Escola só servir para reproduzir o statu quo ou o déjà-vu, e nada explicar, nada questionar, nada estimular, porque é amorfa, acrítica ou conformada e se satisfaz fabricando produtores e consumidores em série, consignados ao Mercado, onde tudo se compra e tudo se vende, (..) essa Escola para pouco mais servirá do que continuar a Confusão – como quem engorda crianças para alimentar o Monstro.” Poderá objectar-se, em contraponto, que a educação é tarefa dos pais, da família, dos governantes. Mas se opusermos uma pergunta crucial – sejam como forem, valham o que valerem? –, a resposta seria a de Spencer: a educação dos homens deverá ser dada por uma “prole que não pereça”, a dos sábios. É sábio aquele professor de meninos, de jovens ou de adultos que, a coberto ou à margem das prescrições curriculares (pense-se nas oportunidades do Português e da História), não se contenta com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar, como dizia outro filósofo mal-amado, que não é suficiente interpretar o mundo; é preciso transformá-lo. Seria esta uma missão clandestina? Pois que o seja, em nome do Futuro. 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 42 entrevista HELENA ARAÚJO A I República e a retórica ambígua sobre a emancipação da mulher portuguesa I 42 43 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Helena Araújo é Professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Univer sidade do Porto, onde é docente de Sociologia da Educação, de Estudos de Género e de Cidadanias e Diversidade. É coordenadora de uma área de investigação – Cidadania, diversidade e conhecimento histórico, do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE/FCT). Um dos seus trabalhos de investigação incidiu sobre os percursos profissionais de professoras primárias no período 1870-1933, acentuando sobretudo dois períodos particulares – o do final da Monarquia e o da República. Várias publicações suas estão ligadas a esta linha de pesquisa. As professoras republicanas têm uma visibilidade particular em Pioneiras na Educação – as Professoras Primárias na Viragem do Século (2000), não só através da sua produção na imprensa pedagógica, mas também através de histórias de vida. Outras temas de pesquisa têm incidido sobre percursos biográficos de jovens que abandonaram a escola; a representação de mulheres docentes e a partilha do processo de decisão no ensino superior; história da educação de raparigas no ensino secundário, séculos XVIII-XX. Nesta entrevista, Helena Araújo abre luz, entre outros temas, sobre a forma como a I República encarou o papel sociopolítico das mulheres, as principais lutas travadas pelo movimento feminista e a perspectiva ambígua sob a qual o regime republicano encarou a emancipação educativa e o papel das professoras nesse processo. 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 43 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 44 entrevista Que mudanças preconizava o regime republicano relativamente ao papel social e político das mulheres? Pelo que me pude aperceber das leituras que fiz sobre este tema, existia uma certa divisão entre as diferentes facções republicanas. Confirma esta ideia? Sim, obviamente que existiam diferenças. Mas julgo que acima de tudo prevalecia o ideal de igualdade, de liberdade e de fraternidade, aplicado tanto a homens como a mulheres. Penso que a República demonstrou muita esperança nessa abertura, que se estendia também às questões educativas e ao direito das mulheres à educação. Esse direito é uma ideia bem presente nos discursos republicanos. Estava, aliás, presente na legislação. A forma como foi concretizado é que deixa reticências. Mais concretamente, que mudanças ocorrem quanto ao papel social e político da mulher? Embora este direito fosse caro ao regime republicano, havia por parte de certos sectores desconfiança em relação à formação das mulheres pela sua ligação à Igreja Católica. Ao mesmo tempo, há também outros sectores que consideram as mulheres como as grandes educadoras dos filhos republicanos, numa perspectiva de regeneração social. Essa ideia, aliás, já não era nova - vinha do tempo da monarquia – e deriva de um conjunto de influências que se centram no pensamento sobre o papel da mulher. Estou a pensar no positivismo, nomeadamente nos trabalhos de Comte, mas também nas ideias do Darwin, ambas influenciam o pensamento republicano. Tende-se a pensar no movimento republicano como um fenómeno homogéneo, quando ele não o é. Há diferentes tendências, quer no que se refere à acção quer no que se refere ao debate em torno do papel da mulher. Temos personalidades como Adolfo Lima, ligado ao anarco-sindicalismo que enquanto educador e membro deste movimento tem posições de grande abertura; assim como Jaime de Almeida, um médico do Porto que escreve uma obra sobre as mulheres e o feminismo em contra corrente ao que outros sectores afirmavam – nomeadamente que as mulheres estavam dependentes dos seus genitais, que eram seres basicamente expressivos e emocionais, e que por isso nunca seriam capazes de qualquer forma de racionalidade. A irracionalidade, portanto, era uma característica inerente à mulher, por oposição à racionalidade, à luz, que emanava do homem. Num dos capítulos da sua tese de doutoramento, dedicado precisamente a este tema, cita muitos dirigentes republicanos que defendiam que o lugar da mulher na esfera doméstica era a melhor forma de estas contribuírem para a hegemonia do Estado sobre a Igreja Católica... Exactamente. Há uma grande retórica em torno deste tema, com diversos autores a defenderem a igualdade entre ambos os sexos, mas uma igualdade onde as mulheres desempenham o seu papel de educadoras em casa, como boas donas de casa e “as melhores companheiras do homem”. Num dos seus discursos no Parlamento, aliás, Afonso Costa refere que às mulheres competiria a grande tarefa de educar as mentes I 44 45 PRIMAVERA 2010 I N.º188 dos jovens e das crianças segundo os melhores princípios da República, e que delas tanto esperava. Ou seja, um conceito de igualdade um pouco ambíguo, inclusivamente por parte de sectores que podiam ser considerados mais vanguardistas, como os anarquistas e os socialistas... Sim, para mim foi uma surpresa descobrir que alguém como Emílio Costa, um anarco-sindicalista que marcou muito o campo social e que escreveu sobre o papel das mulheres, e o prórpio jornal “A Batalha”, questionar-se sobre o que iriam afinal as mulheres fazer com a liberdade conquistada, reflectindo, no fundo, um certo receio generalizado. E estamos a falar de um contexto urbano, não de um contexto rural... Ou seja, muitas destas personalidades ligadas a esses campos políticos demonstram maior abertura do ponto de vista da luta social e da defesa dos grupos desprivilegiados, não tanto das mulheres. Alguns chegam mesmo a ter posições que se podem considerar conservadoras. A questão da igualdade de género deu origem, de facto, a fortes controvérsias, marcadas pela conflitualidade e pela ambiguidade. E embora a República tenha dado por vezes a ideia de que as mulheres teriam um papel forte a desempenhar, fica a ideia de uma certa visão utilitária: as mulheres como as grandes educadoras dos filhos da República. Dir-se-ia uma perspectiva quase instrumental sobre as mulheres... Sim, obviamente que nem todos os republicanos pensariam nesse sentido. Há um sector que se revê na importância da educação das mulheres e na sua assumpção como seres autónomos. Mas é também compreensível que existisse esta tremenda conflitualidade, num país maioritariamente católico, onde os governos republicanos se tentavam impor a uma Igreja que, na generalidade, era extremamente conservadora. Alguns autores afirmam que esta luta foi exagerada e que afrontar a Igreja de forma tão agressiva e frontal foi um dos aspectos negativos da República. Mas é preciso perceber que estávamos perante uma estrutura extremamente oligárquica e intimamente ligada ao poder monárquico. Que papel teve o movimento femininista neste processo? As lutas das feministas orientaram-se sobretudo em que domínios? Eu penso que uma das principais lutas do movimento feminista incidiu no direito à educação e à instrução. Depois de 1913, quando as mulheres perdem a possibilidade de ter o direito de voto – essa possibilidade esteve bastante perto de se concretizar através da luta/negociação, por feministas – relembremos duas feministas eminentes ligadas ao partido republicano como Ana Castro Osório e Adelaide Cadete – julgo que esse continuou a ser central nas suas lutas. Depois, há também a questão da luta pela democratização do espaço doméstico. Neste sentido, há um importante conjunto de medidas aprovadas pelo regime republicano, do qual se poderá destacar o direito das mulheres a deixarem de ter a correspondência vigiada, o de passarem a poder exercer uma actividade comercial 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 45 sem autorização do marido, o de passarem a poder sair sem a sua prévia autorização, entre outros. Outra questão de extrema importância diz respeito ao direito de propriedade, que o regime republicano não altera. Diz Afonso Costa em 1913: “Nós vemos a mulher como a melhor companhia do homem.Vemos a mulher vivendo no lar, assumindo funções mais delicadas, tomando cada vez melhor a posição na educação dos filhos. Não lhe é dado apenas o governo do lar, a administração superior da família. Ela é a guarda atenta da unidade familiar, a principal educadora dos que amanhã hão-de dirigir o destino do seu país, a mulher é a defensora do património do marido, administrando-o e multiplicando-o.” Ou seja, embora lhe fosse confiada, em teoria, a gestão do património familiar, e ainda que a mulher fosse detentora de bens, o património mantém-se nas mãos do homem. Voltando à questão educativa: embora o regime republicano tenha defendido o alargamento do direito à educação, no caso das mulheres não se pode dizer que essa medida tivesse propriamente um propósito emancipatório. Qual é o seu comentário? Antes de mais diria que mesmo antes do final da monarquia – sensivelmente desde 1830 - essa intenção está já declarada. Mas é com o advento da República que se torna claro que a educação deve ser alargada a ambos os sexos, sem qualquer distinção. Mas em muitos aspectos Portugal mantinha-se um país muito fechado e conservador. Convencer as pessoas de que as raparigas deveriam ter o mesmo percurso escolar do que os rapazes era uma tarefa difícil. Mas, embora com percalços, esse objectivo foi sendo expandido. É com a República, aliás, que as professoras na escola pública primária se encontram em maioria, não é com o Estado Novo. Ao nível da estrutura económica dão-se igualmente muitas transformações. Tais mudanças introduzem a noção de que as mulheres devem trabalhar como forma de ganhar autonomia e de escapar a situações de pobreza extrema – que muitas vezes conduzia à prostituição e à indigência. Todo o debate do final do século XIX e princípio do século XX, aliás, centra-se muito em torno de uma nova ortodoxia para o trabalho das mulheres, conduzindo a uma significativa iniciativa legislativa por parte da República. Uma das questões que mais dividiu o debate educativo nessa altura foi a coeducação, que esteve longe de ser uma medida pacífica... A questão da coeducação – medida através da qual se pretendia introduzir turmas mistas nas escolas públicas – surge no debate educativo em 1919, num momento de reconfiguração política e já com a República na sua segunda fase, digamos assim. Quando consultei os jornais e as revistas da altura, para realizar o meu trabalho, pude aperceber-me da dimensão que este debate assumiu: a coeducação foi considerada desde uma medida comunista e bolchevista, até ser comparada a um lupanar... todos estes epítetos são trazidos para o debate público de uma forma inacreditável pelos sectores mais conservadores. Na prática, queria-se fazer crer que as jovens raparigas iriam perder as suas qualidades femininas para se tornarem numas autênticas viragos... Paralelamente a esse debate, discutia-se também qual o tipo de organização curricular que o ensino deveria adoptar para o público feminino... Penso que esse debate tem um impacto menor. As aulas de lavores, por exemplo, mantêm-se, mas adquirem menos expressão no currículo. E essa é uma diferença significativa relativamente ao período da monarquia, no sentido em que deixa de haver um currículo tão especificamente destinado às raparigas. Mas o que está sobretudo no centro do debate é, por um lado, a questão da escola única – isto é, a defesa de uma escola que deixe de estar dividida entre as classes mais pobres e as elites –; a questão da coeducação, à qual já nos referimos; e a questão da influência e da presença da religião católica nas escolas. Nesse sentido, é curioso ler as narrativas que aparecem em alguns jornais educativos da altura, sobretudo em 1911 e 1912, que nos dão conta dos conflitos surgidos em pequenas localidades do interior entre o poder do padre local e o novo professor ou profes- 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 46 entrevista sora que ali chega. Eu própria tive oportunidade de ouvir algumas dessas narrativas a partir de professoras que partilharam comigo a história do seu percurso profissional nesses contextos. Com a criação das escolas do ensino primário superior, pode falarse do aparecimento de um ensino predominantemente feminino. Este tipo de escolas, paralelas ao Liceu e que se seguiam aos cinco anos de escolaridade obrigatória, ministrava um tipo de ensino que se pode considerar mais avançado, ao estilo das escolas francesas. Estas escolas acabam por ser extintas em 1927, com a ditadura. Tendo em conta a visão de certa forma conservadora e ambígua com que o regime republicano encarava o papel da mulher no plano social e político, de que forma viam as mulheres no papel de professoras? Refere no seu livro que a imagem republicana do professor, ao nível da produção de políticas educativas, era essencialmente masculina... Absolutamente. A imagem que o regime passa sobre os professores é essencialmente uma imagem masculina. Apesar disso, eram as mulheres que estavam em maior número no ensino primário. Em 1932, o jornal “A República” refere-se à sua presença de forma claramente negativa, designando-a como um “aluvião” de professoras. É preciso lembrar que em 1932 as professoras primárias não tinham direito de voto. Quando as mulheres perdem a possibilidade de adquirir o direito de voto em 1913, o movimento feminista defende que ele deveria ser conferido às mulheres que tivessem uma formação superior. Mas as professoras não tinham formação considerada de nível superior. Era, portanto, uma classe profissional desprotegida em termos de cidadania politica. Depois, a maioria delas estava colocada no interior do país, nos locais mais recônditos. Era habitual nestas situações levarem consigo um ou mais filhos como forma de se protegerem e de salvaguardarem a sua imagem de respeitabilidade. De que forma lidaram com essas pressões contraditórias? Isto é, por um lado esperava-se que enquanto professoras educassem as crianças como futuros cidadãos republicanos, por outro, não eram consideradas dignas de uma completa cidadania – e refirome concretamente ao direito de voto... Não posso falar na generalidade, porque esse estudo infelizmente não está feito. E a grande maioria dessas professoras já não estão vivas para o testemunharem. Mesmo este grupo de cinco professoras que tive oportunidade de entrevistar já não se encontra entre nós. Presto-lhes, aqui, a minha sincera homenagem. Mas torna-se difícil dar uma resposta quando olhamos para estas vidas através de uma perspectiva de quem não viveu o contexto social e cultural da altura, das situações reais, das condições de vida... Nessas aldeias, as professoras com quem comuniquei eram em geral as únicas assalariadas localmente pagas pelo Estado. Poderia haver na aldeia trabalhadoras rurais, eventualmente uma outra que trabalhasse como doméstica, mas ela era uma funcionária pública. Para todos os efeitos, é uma figura de relevo local e com um estatuto próprio, neste caso inerente a alguém que é detentor do saber. Apesar disso, refugia-se e retira-se do meio social local. Um professor primário, pelo contrário, facilmente se integrará no meio I 46 47 PRIMAVERA 2010 I N.º188 042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 47 a par das restantes personalidades locais, como o farmacêutico, o padre ou o regedor. Sendo mulher está mais isolada. Para conseguir ter uma imagem mais fidedigna do quotidiano destas mulheres, pesquisei as fontes literárias à procura da figura da professora primária, questionando-me se ela teria ou não captado a atenção dos nossos romancistas. E de facto não captou. Quando se fala da educação das crianças nas casas burguesas, a referência habitual é a perceptora, muitas vezes estrangeira. Entre os vários romances sobre os quais incidiu a minha pesquisa, encontrei apenas referência a uma jovem professora, filha de um sapateiro, retratada como alguém preocupada sobretudo preocupada com a sua imagem e cujo principal objectivo na vida é casar, motivando a seguinte reflexão por parte do narrador “são estas as professoras que vão ensinar as nossas crianças nas escolas?”, revelando uma imagem menos positiva para certos grupos sociais. ocupado por mulheres. Ou seja, se por um lado se vão criando aberturas, por outro há também muitas frentes de luta para as mulheres. Sobretudo, penso que elas lutam por serem consideradas como seres dotados de autonomia e de racionalidade. Resumindo, o espaço de intervenção cívica das mulheres passou de um período de quase euforia no período inicial da República, para uma curva descendente, em que esse espaço de intervenção cívica se reduziu, sobretudo após 1926, ano do golpe militar que instaurou a ditadura. RICARDO JORGE COSTA (entrevista) TERESA COUTO (fotografia) A partir de 1919 foi introduzida legislação que veio prejudicar claramente as professoras nas suas expectativas e nos seus direitos profissionais. Em que consistiram essas medidas? Eu penso que esse terá sido um processo bastante doloroso para as professoras primárias. A partir dessa data, ficaram limitadas a leccionar os três primeiros anos do ensino primário obrigatório, ficando os dois últimos anos a cargo dos professores. O argumento avançado pelo regime republicano para justificar esta medida era basicamente de que a aprendizagem se devia basear nos afectos nos três primeiros anos de escola e que só nos anos seguintes as crianças ficariam aptas a desenvolver-se intelecutalmente. Quer a imprensa educativa quer os congressos pedagógicos da altura dão conta da dificuldade das professoras em aceitar uma regulamentação desta natureza, que afirmava claramente que as mulheres não possuíam nem conhecimentos suficientes nem capacidade para uma racionalidade mais elaborada; que estavam, portanto, condicionadas pelo seu afecto e pelo carinho que demonstravam para com as crianças mais pequenas. Esta medida, que promove uma desigualdade gritante, vem obviamente causar alguma conflitualidade na classe, expressa nomeadamente nos jornais e revistas da área educativa. A outra medida dizia respeito à impossibilidade de as professoras atingirem a direcção das escolas num contexto de ensino coeducativo – tema ao qual já nos referimos nesta entrevista – quando antes, num contexto de escolas divididas por sexo, isso era possível. O que nos leva mais uma vez a questionar a limitação imposta pela República à capacidade de intervenção das mulheres no espaço público e à assumpção da sua cidadania... É um assunto controverso, porque se por um lado há toda uma retórica em torno do trabalho fantástico desempenhado em casa pelas mulheres e do seu importante papel enquanto educadoras dos filhos da República, por outro limita-as a meras reprodutoras e regeneradoras sociais. Ao mesmo tempo, existem expectativas de que elas venham a ocupar outras funções a nível social e mesmo de virem a exercer algumas profissões. É durante o período republicano, por exemplo, que existe uma abertura em relação ao funcionalismo público BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA PELA ENTREVISTADA (2010) “Girls’ Secondary Education in Portugal (XVIIIth-XXth century)” in Rebecca Rogers, Joyce Goodman & James Albisetti (orgs) Girls’ Secondary Education in the Western World, XVIIIth –XXth centu dry. Nova Iorque: Palgrave (c/ Cristina Rocha e Laura Fonseca) (2009) “Changing Femininity, Changing Concepts in Public and Private Spheres” in M. Arnot Educating the Gendered Citizen, London: Routledge, 95-112 (c/M Arnot et al). (2008) Jovens, percursos e transições em instituições e comunidades educativas, Educação, Sociedade e Culturas, 27, 172pp, c/ Paul Willis (2008) “Teachers’ perspectives in Portugal and recent institutional contributions on citizenship education” in Journal of Social Science Education, 6, (2) ISSN 16185293, pp 73-83, http://www.jsse.org/2007-2/index.html (2006) Mulheres, Participação e Democracia, ex-aequo, 13, Porto: Afrontamento, 234 PP. (2004). “Em Torno de Subjectividades e de Verstehen em Histórias de Vida de Professoras Primárias nas Primeiras Décadas do Século XX. In M. Helena Abrahão (org.). A Aventura (Auto) biográfica – teoria e empiria. 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Middleton (eds) Telling Women Teachers’ Lives, Buckingham/Philadelphia: Open University, 113-129. 048-053 dia da mulher 3/16/10 2:10 PM Page 48 Mariana Bacelar, 2008 dia internacional da mulher ... o combate da mulher é um combate da humanidade... Samora Machel Hermínia Bacelar Agrupamento de Escolas Maria Lamas (Porto) I 48 49 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Muito se avançou neste século no que respeita às conquistas emancipatórias da Mulher, mas sabemos todos que, quer a Oriente quer a Ocidente, quer a Norte quer a Sul, a opressão da Mulher na vida profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é a exploração dos homens. 048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 49 Ousar ousar! Comemorar datas centenárias que mudaram o curso da história dos homens constitui acto de toda a importância por variadíssima ordem de razões. Em primeiro lugar, pelas razões ideológicas que impulsionam a acção e que pragmatizam o sonho que vem crescendo no seio de um grupo sempre minoritário e que, a dado momento, se torna imperioso para um largo número de pessoas. Em seguida, para não deixar esquecer aqueles que ousam pôr em prática o que consideram fazer avançar a História, a heroicidade dos feitos de tantos anónimos, nomes que os arquivos não retêm, actores da verdadeira mudança. Por último, pela relevância dos próprios factos que fazem com que o mundo pule e avance, como diz Gedeão. Vem este intróito a propósito de 2010 ser ano de duas grandes datas centenárias: da implantação da República Portuguesa e da resolução de se organizar um Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Dada a importância dos dois factos, não questionamos, nem por um segundo, a necessidade de se comemorar e lembrar, com toda a seriedade, solenidade, rigor e alegria, as ideias neles contidas, os seus heróis e as consequências deles advindas. A primeira data, nacional, como é do conhecimento comum, está já a ser comemorada com um vasto e diversificado programa, público e privado, que permite a instauração da polémica, o confronto de opiniões e, por inerência, melhorar o conhecimento histórico, assim o queiramos todos. A segunda data, essa, tem vindo a ser ridicularizada por uns, descontextualizada das suas razões objectivas por outros e passou a ser mais um belo dia para o consumo. Façamos um pouco de história e logo veremos que não podemos deixar o assunto por tão pouco. Em 29 de Agosto de 1910, na 2.ª Conferência das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhaga, foi aprovada a resolução de se organizar em todos os países um dia dedicado às mulheres, tendo como primeiro objectivo (entre outros) lutar pelo direito ao voto. Proposta por um grupo de mulheres americanas socialistas, a resolução foi aceite por todos os presentes, de várias nacionalidades, não fixando o dia ou mês para tal comemoração – as primeiras manifestações para assinalar este dia aconteceram sempre por finais de Fevereiro ou Março, só se fixando o 8 de Março em 1919. Homenageavam-se as operárias tecelãs e costureiras nova-iorquinas que, em Março de 1857, morreram queimadas em plena greve por melhores condições de trabalho e pela redução das 12 horas laborais diárias. Honravam-se as 600 trabalhadoras russas que morreram às mãos da polícia Triste fado, ou a genealogia da passividade (Mariana Bacelar, 2010) 048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 50 dia internacional da mulher czarista durante a greve dos 86 dias (22.11.1909 a 15.02.1910). Lembravamse as feministas americanas e europeias que lutavam pelo direito ao voto. Celebrava-se a consciência da desigualdade. Celebrava-se a coragem de tantas mulheres que exigiam paz, pão, condições seguras no local de trabalho, horários compatíveis com a vida familiar e a capacidade humana, direito a intervir pelo voto nos destinos dos seus países, direito à educação, direito à igualdade de oportunidades, direito, direito, direito... Desta época destacam-se os nomes de Clara Zetkin, socialista alemã, directora do jornal «A Igualdade» e membro da Internacional Socialista, e Alexandra Kollontai, revolucionária bolchevista, contemporânea de Lenine, a quem se deve a fixação da data no dia 8 de Março – mais tarde, em 1975, a Organização das Nações Unidas adoptaria essa data para lembrar quer as conquistas sociais, políticas e económicas das mulheres, quer as discriminações e violências a que muitas estão sujeitas em todo o mundo. O rigor de alguns factos que se apresentam carece ainda de investigação isenta, se tal pode acontecer. As interpretações que existem, sobretudo a partir da década de 60 do século passado, valorizam certos acontecimentos e privilegiam intervenientes em detrimento de outros, construindo a história a partir do seu ponto de vista ideológico. Mas uma coisa é certa, e é isso que nos faz afirmar que este centenário não pode passar em branco: a resolução de dedicar um dia do ano às causas da Mulher é fundamental para a emancipação dos povos. Muito se avançou neste século no que respeita às conquistas emancipatórias da Mulher, mas sabemos todos que, quer a Oriente quer a Ocidente, quer a Norte quer a Sul, a opressão da Mulher na vida profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é a exploração dos homens. Falar desta forma nos dias que correm provoca em alguns um sorriso amarelo, I 50 51 PRIMAVERA 2010 I N.º188 sobretudo nos que pensam que o questionamento pós-modernista e as suas teorizações resolveram os problemas modernistas e fizeram caducar as revindicações elementares. Grassa por aí uma fraseologia “pacifista” e de “luta pela paz”, quando, afinal, todos os dias nos é declarada guerra no local de trabalho, na escola, no escritório, na fábrica, na empresa, no campo, na clínica, no banco – guerra, essa, que temos vindo a perder, por falta de consciência do valor que tem a nossa capacidade de trabalho. O que todos sabemos, e não podemos esconder atrás de discursos aparentemente progressistas, é que a Mulher continua a sofrer na carne a opressão física: baixos salários, horários laborais longos, idade tardia para a reforma, falta de apoio eficaz ou inexistente para os filhos, desemprego por ser mulher, desemprego por maternidade, duplicação do horário de trabalho por, na maior parte dos casos, ser a responsável por todas as tarefas domésticas e de educação dos filhos, discriminação salarial e em relação a cargos de chefia... A lista de situações objectivamente opressivas é longa, mas não está completa. Mas não é só fisicamente que a Mulher sofre opressão, sofre-a também no plano moral e psicológico. É sobretudo entre as mulheres que os poderes da superstição, do obscurantismo, da ignorância, mais se alimentam, mantendo-as num estado de medo permanente, destruindo-lhes o espírito de iniciativa criadora, liquidando-lhes o sentido de justiça e crítica, reduzindo-as à passividade, à aceitação do estado de exploradas e oprimidas como próprio do facto de nascerem mulheres. E deste modo as mães educam as filhas, perpetuando, sem querer, uma condição imprópria de subalternidade. É esta aparente inevitabilidade da condição da Mulher – que ainda hoje continua a ser fomentada em todo o mundo – que conduz à sua alienação relativamente aos assuntos sociais, económicos e políticos, por mais leis e quotas que se decretem. Alienação que não é só dela, é também do Homem, pois sofre dos mesmos medos de humilhação, de ser oprimido, de ser despedido, de ganhar pouco por muito trabalho. Os mecanismos usados para o alienarem, e assim contarem com a sua passividade, são os mesmos, e, muitas vezes, eles próprios os usam contra as mulheres suas companheiras, não compreendendo que ambos fazem parte da imensa massa de explorados. Aqui chegados, muitos dirão que este assunto está esgotado, que, olhando à nossa volta, já nada se passa assim. Que o mundo avançou, as leis laborais evoluíram, a maternidade é respeitada, o voto é um dado adquirido, há muitas mulheres emparceirando com homens em cargos de chefia; só é oprimido quem se deixa oprimir, o assunto passou a ser do foro privado e cada um é que sabe da sua vida e daquilo de que gosta... E é então que convidamos os leitores a olharem para o mundo, para a situação das mulheres africanas, das árabes, das chinesas, das sul e norte-americanas, tailandesas, coreanas, tantas europeias, licenciadas, mestradas, doutoradas, e observemos os seus estatutos laborais e sociais – não excluimos da lista a Mulher portuguesa, que, cem anos passados sobre a 1ª República e mais de três décadas sobre o 25 de Abril, continua a ver os seus direitos conquistados serem-lhe subtraídos num abrir e fechar de olhos, em nome de uma crise de que não tem culpa e com a qual não colaborou. Chega então o 8 de Março e abraçamo-nos e beijamo-nos, alienados das razões que motivaram as mulheres que morreram na fábrica de Nova Iorque, as que morreram nas ruas de Moscovo, as que morrem todos os dias por razões étnicas, religiosas, de insalubridade no trabalho, por excesso de esforço, por maternidade, infecções sexuais ou outras, por violência doméstica. Os motivos que, em 1910, levaram à resolução de ser marcado um dia específico para lembrar os problemas das mulheres em todos os países continuam pertinazes, quer os específicos quer os comuns aos homens. Basta olhar à nossa volta. Vamos continuar assim? 048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 51 Entre a lei e a vida há caminhos a melhorar Maria José Magalhães União das Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) Responsabilizar apenas as mulheres por uma gravidez constitui, hoje, um acto de medievalismo, sobretudo vindo de pessoas com formação científica, a quem já não se admite que considerem que a concepção é da exclusiva acção do útero feminino. Já lá vai o tempo, em séculos passados, em que se pensava que a mulher engravidava sozinha. Sabemos que o país em geral tem baixos níveis de literacia e que os comportamentos e atitudes que constituem o quotidiano de um português e de uma portuguesa nem sempre se pautam pela interiorização de dados relativos às informações veiculadas em matéria de saúde, quer seja reprodutiva, quer não, ou de bem-estar, quer noutras dimensões da vida social. Importa também dizer que a vida das pessoas nunca é completamente racionalizável e existem sempre dimensões em que a nossa razão não é a única a mandar. No que se refere à contracepção e ao aborto, diversos estudos têm evidenciado que as práticas sociais e as representações são um conjunto complexo e heterogéneo que mistura crenças religiosas com informações científicas e o 048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 52 dia internacional da mulher nosso olhar sobre o comportamento de determinada pessoa deve ter em conta o contexto cultural e social em que ela vive, mais do que produzir afirmações descontextualizadas, pelo risco de enviesar o entendimento dos factos. Sabemos que existem ainda algumas pessoas que tentam recorrer ao aborto clandestino. Sabemos que alguns casais não usam qualquer método contraceptivo eficaz. Mas sabemos também que há alguns sectores sociais que continuam a divulgar uma mensagem de que os métodos contraceptivos não devem ser utilizados – estranhamente, muitos desses sectores são os primeiros a culpar as mulheres quando aparecem grávidas. Sabemos, igualmente, que toda a sociedade, com a publicidade na vanguarda, socializa para o princípio do prazer, sexualizando diversas práticas da vida social, incentivando à sensualidade e ao hedonismo. E sabemos que, face a esta corrente na sociedade, outras existem que querem fechar os olhos e negar o direito a uma educação sexual real, assente nas vidas concretas dos nossos rapazes e das nossas raparigas, tapando o sol com a peneira, fazendo de conta que estamos num mundo ideal ou culpabilizando as e os jovens se elas e eles não conseguirem construir esse mundo de relações ideais – coisas que as e os adultos/as das gerações anteriores não conseguiram. Sabemos ainda que há muitas mulheres que vivem num contexto familiar de violência, em que estão proibidas de usar contraceptivos (usando-os muitas vezes às escondidas). Sabíamos, também, quando lutámos pela despenalização do aborto, que o processo social de mudança das práticas não se ia fazer com nenhum passe de mágica – como, aliás, nada na vida se faz com passes de mágica. E temos trabalhado. Consciencializando, informando, formando. A Associação de Planeamento Familiar (APF), assim como a UMAR, têm sido incansáveis na formação para práticas responsáveis, no apoio a jovens e menos jovens para a racionalização das suas atitudes e comportamentos e decisões informadas e seguras, quer no que se refere à sexualidade, quer às relações de intimidade. Por isso, a UMAR está solidária com a APF na luta pelos direitos humanos das mulheres e dos homens e contra todas as formas de discriminação e obscurantismo. Mais ainda, constitui uma mentira maldosa e perigosa afirmar-se que se gasta mais dinheiro dos contribuintes com o aborto depois da sua legalização. A memória não pode ser tão curta. Ou já esqueceram os custos do aborto clandestino? Ou será que lhes interessa esquecer? Trazer um caso para pôr em causa a legalização do aborto, quando o aborto clandestino rondava as dezenas de milhares de casos, constitui uma manobra demagógica para encobrir o salto civilizacional que Portugal deu com a Lei 16/2007, de 17 de Abril. Que há muito para fazer, temos a certeza. Mas também temos a tranquilidade e serenidade de tudo estarmos a fazer, dentro de todas as nossas forças e recursos, para melhorar ainda mais as condições das mulheres no acesso à informação e formação no que se refere a uma vida com direitos, em todas as suas dimensões, do trabalho à maternidade, da sexualidade à contracepção, da cultura ao namoro, da família à política. É fácil atirar pedras. Criticar quem faz, é a arma preguiçosa de quem não quer que o país avance em igualdade. Há mais mulheres no mercado de trabalho, mas as desigualdades continuam A percentagem de mulheres que entram no mercado de trabalho aumentou sensivelmente nos últimos 30 anos, mas elas continuam a ganhar menos do que os homens, segundo um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicado por ocasião do Dia Internacional da Mulher. “Mais de uma década após a adopção por parte da 4.ª Conferência Mundial Sobre as Mulheres de uma ambiciosa plataforma de acção, as desigualdades de género permanecem fortes na sociedade e no mercado de trabalho”. Assim, apesar de alguns avanços, “existem fortes disparidades em ter- I 52 53 PRIMAVERA 2010 I N.º188 mos de possibilidades e de qualidade de emprego”, acrescenta o documento, intitulado As Mulheres no Mercado de Trabalho: medir os progressos e identificar os desafios. Entre os progressos, a OIT assinala que a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho aumentou de 50,2% para 51,7% entre 1980-2008 – enquanto a taxa de participação masculina diminuiu de 82% para 77,7% – e que esse aumento ocorreu “em todas as regiões, com excepção” da Europa Central e do Sudeste (fora da União Europeia), assim como da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e do Leste da Ásia. Entretanto, as mulheres “ainda não gozam dos mesmos benefícios que os homens”, lamenta a coordenadora do relatório. “Os homens não enfrentam essas limitações” e “ainda encontramos mais mulheres do que homens em empregos precários ou com baixos salários”, refere Sara Elder, citada pela OIT. A autora acredita que é necessário adaptar o mercado de trabalho e as políticas sociais aos “valores e limitações próprios das mulheres e dos homens”. Segundo a OIT, em 2009, a taxa de desemprego mundial entre as mulheres aumentou de 6% para 7%, “ligeiramente” mais do que a masculina. Fonte: AFP 048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 53 da escola, da vida a lição de Bento O erro (ou de Jesus Caraça) Quando se fala em conhecimento e, em particular, em conhecimento científico, nunca é demais destacar o papel da persistência na procura, da insistência no esforço e da humildade na avaliação do resultado do nosso trabalho! Construir conhecimento, crescer cientificamente, preparar um futuro mais sustentado e desenvolvido, obriga a um constante investimento na aprendizagem, na investigação e na confirmação das conclusões. Como se descobre? Como se conhece? Sem falhas? Sem hesitações? Sem passos atrás?... Esta é uma questão que se coloca a muito diferentes escalas. À dos grandes vultos da Ciência e da Cultura, em geral, e à nossa pequena escala, a de cada um de nós, que vive, no seu dia-a-dia, os problemas do ensino e das aprendizagens. O exemplo de tantos homens e mulheres dedicados à Ciência ao longo dos anos, ao longo de muitos séculos, faz-nos olhar com respeito e, ao mesmo tempo, com responsabilidade, para o seu trabalho e para as suas lições de vida. E uma dessas grandes lições é a da humildade no reconhecimento da própria falibilidade, da necessidade de tentar muitas vezes até adquirir certezas, da admissibilidade do erro. A História do Conhecimento é fértil em exemplos de erros célebres que precederam conquistas gigantescas, mas inúmeros e secretos foram os erros que ficaram pelo caminho e serviram de alavancas na procura de novas leis e novos conceitos. Uma importante personalidade na história da Ciência em Portugal, no século XX, o matemático, docente universitário, pensador e combatente pelos ideais humanistas e republicanos, Bento de Jesus Caraça (1901-1948), deixou-nos, a este propósito, um importante legado. A par da relevância da sua obra no âmbito da Matemática e do ensino da Matemática, este incansável defensor da “cultura integral do indivíduo” – tema da célebre conferência que proferiu em descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições”, escreveu Bento de Jesus Caraça. Numa parede da escola onde leccionou como professor catedrático – o, então, 1933 – foi, ele próprio, um exemplo de humildade só possível em quem tem grande estatura intelectual e cívica. “A Ciência pode ser encarada sob dois aspectos diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como foi sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente – Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras – está transcrita a sua frase exemplar: “Se não temo o erro, é porque estou sempre disposto a corrigi-lo”. Aproveitemos a lição, à nossa pequena escala. O erro vale (e vale muito!) quando é detectado e a sua apropriação nos convoca para novo esforço, novas tentativas e novas soluções... Ana Brito Jorge 054-055 observatório 3/15/10 7:31 PM Page 54 observatório Para além da homofobia ou porque não se deve referendar a discriminação Isabel Menezes Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação I 54 55 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Nos últimos meses, temos assistido a uma intensa discussão pública a propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, dando origem às mais diversas expressões de acordo e desacordo: debates, abaixo-assinados, crónicas de opinião, cartas-abertas, manifestações... Neste processo, as posições que defendem a indesejabilidade de estender o estatuto jurídico do casamento a pessoas do mesmo sexo têm apelado à realização de um referendo. Os argumentos predominantes tendem a salientar duas ideias: embora ninguém esteja contra os homossexuais, esta extensão de direitos atenta contra a figura do casamento e questiona o lugar da Família como pilar da sociedade, ou é desnecessária e artificial, porque não aborda um problema real, que se coloca apenas a um grupo minoritário. Assim, o que há a fazer é ouvir as famílias. Desta linha de argumentação podem inferir-se várias coisas. Para os objectores: a) é possível estar “contra” ou a “favor” da homossexualidade; b) os direitos de minorias não devem ser objecto de preocupação dos legisladores; c) o casamento entre pessoas de sexo diferente “desvaloriza-se” com a extensão desse direito a pessoas do mesmo sexo (veja-se a excelente crónica de Laura Ferreira dos Santos, no «Público»); d) a “família” é uma entidade de definição fixa (pai, mãe, filhos) e um exclusivo dos heterossexuais – e, poderíamos acrescentar, dos heterossexuais casados e que decidem (ou podem decidir) ter filhos. Faço uma clarificação. Dou aulas sobre desenvolvimento psicológico de jovens e adultos desde o final da década de 80 do século passado. Por esses dias, era relativamente rara a discussão pública sobre a homossexualidade e, por isso, era essencial trazer a questão para análise nas aulas, apresentando a homossexualidade como uma forma “normal” de expressão amorosa – em linha com o 054-055 observatório 3/15/10 7:31 PM Page 55 que ia acontecendo internacionalmente na investigação e clínica da Psicologia e da Psiquiatria – e discutindo as implicações devastadoras de atitudes discriminatórias dos profissionais de educação e de psicologia. Nesse sentido, defendia a importância de perspectivas afirmativas que contrariassem o discurso social dominante, profundamente negativo e estereotipado, sobre os homossexuais. Também por esses dias, costumava citar o argumento de Quentin Crisp de que, enquanto não fosse um tema completamente maçador e banal, a homossexualidade não seria verdadeiramente aceite. Desse ponto de vista, poderia dizer que esta discussão pública intensa é um bom sinal. Contrariamente ao passado, a homossexualidade tem estado amplamente presente no espaço público – muito por mérito das várias associações de defesa dos direitos de pessoas gays, lésbicas, bissexuais e trangénero, mas também de representantes dos partidos políticos e da sociedade civil –, o que certamente contribui para a difusão de visões que não só legitimam como valorizam a diversidade da expressão do amor. No entanto, e infelizmente, os acontecimentos recentes revelam também que a intensa discriminação da homossexualidade não é coisa do passado, mas está profundamente enraizada na sociedade portuguesa. É, aliás, por isso que os argumentos homofóbicos que referimos começam por enunciar que não são contra os homossexuais – como se, moralmente, alguém tivesse legitimidade para ser “contra” outras pessoas. E como se não fosse porque “confiam” no preconceito que querem, agora, ouvir as famílias – como se a extensão de direitos a grupos discriminados tivesse condições (objectivas ou subjectivas, agora ou no passado) para ser objecto de referendo. A questão que se deve colocar é: se estamos perante um grupo de pessoas fortemente discriminado numa sociedade, há condições para referendar o seu direito a existirem de forma visível nessa sociedade? Onde estariam as conquistas, hoje por todos nós valorizadas, dos movimentos de extensão de direitos civis em função do género ou da raça se, na altura, tivessem sido objecto de referendo? Creio que todos sabemos a resposta – nem sempre a posição maioritária é moralmente certa, especialmente quando assenta no preconceito e no desejo de negação do outro. Volto a Quentin Crisp: quando a homossexualidade for completamente banal, quando a ninguém ocorrer se se pode “ser contra”, contestando os direitos de existência a pessoas em função da sua orientação sexual, então talvez sejamos capazes de apreciar genuinamente um mundo onde o amor se expressa de muitas e diversas formas. P.S. Não tive ocasião de expressar publicamente o meu profundo respeito pelo José Paulo Serralheiro, responsável primeiro por este espaço de debate e análise e que generosamente me convidou para aqui ir escrevendo. Do mesmo modo, gostaria de igualmente reconhecer o trabalho da equipa que mantém vivo este seu projecto, prestando-lhe a homenagem que certamente mais aprovaria. 056-057 educação e cidadania 3/15/10 7:32 PM Page 56 educação e cidadania Educação Ambiental: Do Desenvolvimento-Desigualdade-Destruição ambiental ao Amor-Biodiversidade (como diversidade da vida, também humana) Conflito/Cooperação/Comunidade/ Cidadania Mariana Salgado Peres Psicóloga Doutoranda da Universidade de Santiago de Compostela I 56 57 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Nós, seres humanos, somos apenas uma pequena partícula no espaço e no tempo. Ao longo da nossa existência como espécie, temos buscado não apenas a sobrevivência, mas também o desenvolvimento e a transformação (a nossa e a do mundo) dos ecossistemas que integramos e partilhamos. Segundo o que hoje nos conta a história, fundamentalmente a partir do século XIX, onde começou a ter expressão a grande transformação tecnológica, a intervenção humana intensificou-se por todo o planeta. A par destas transformações, ocorreram importantes mudanças políticas, sociais, económicas, culturais e ambientais, grande parte associadas aos modelos de desenvolvimento da sociedade capitalista e liberal ou neoliberal, sobre os quais não nos vamos aqui deter. Numa dinâmica de inter-relações complexa, verificou-se, gradualmente, um afastamento entre o Homem e a Natureza e talvez mesmo o afastamento, em alguns aspectos, dos outros seres da mesma espécie (contraditório à aproximação possibilitada pela comunicação digital) e ainda de si próprio. Este jogo de forças, tendo possibilitado inúmeros desenvolvimentos e a melhoria das condições de vida do ser humano, perpetuou e, em alguns casos, agravou a pobreza e a exclusão social, bem como as desigualdades entre os países ditos desenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento, e mesmo dentro destes. Como refere Caride [Educación Ambiental, Desarrollo y Pobreza: estrategias para “otra” globalización, 2004], vivemos num mundo marcado por grandes con- 056-057 educação e cidadania 3/15/10 7:32 PM Page 57 dos 3DS ao novo-velho ABC trastes e injustiças, onde cerca de dois terços da população vivem na miséria, abandono e fome. É de salientar, contudo, que, embora em circunstâncias diferentes, pobres e ricos, esfomeados e sobrealimentados, indivíduos de países em desenvolvimento e indivíduos de países desenvolvidos, todos integram o mesmo planeta e vivenciam uma época histórica marcada por um conhecimento à escala global, apesar deste conhecimento não ser partilhado por todos e ser, frequentemente, manipulado pelos veículos da comunicação, à mercê do poder. Recuando um pouco no tempo, no século XIX, surgem algumas vozes críticas dos efeitos nocivos e destruidores, associados aos novos processos de industrialização e urbanização, corporalizando-se num movimento conservacionista e protector da natureza que, ao longo do século, se foi abrindo à escala mundial. No século XX, os anos 60, marcados pelo lançamento da obra Primavera Silenciosa de Rachel Carson, constituíram um marco importante no despertar da consciência ecológica mundial. Seguiram-se alguns acontecimentos marcantes, entre os quais destacamos a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano (1972); a Carta de Belgrado sobre Educação Ambiental (1975); a primeira conferência internacional dedicada à Educação Ambiental, em Tiblisi (1977); a publicação do Relatório Brundtland (1987); a Conferência da ONU sobre Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (1992), onde se envolveu grande parte do mundo em busca do desenvolvimento sustentável e a proclamação da Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS, 2005-2014) pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 2002. Estes são apenas alguns marcos visíveis na história da Educação Ambiental, que se enquadraram num contexto de transformações ambientais, culturais, económicas, espirituais, políticas, sociais, como referimos. Constituindo-se a Educação Ambiental como um “objecto hiper-complexo” que conjuga a actuação de diversas áreas científicas (ecologia, biologia, educação, etc.), passou-se de uma abordagem conservacionista a uma abordagem ambientalista, ecologista; de uma visão dicotómica entre o Homem e a Natureza a uma visão como um todo; oscilou-se entre o afastamento da esfera ambiental e as esferas cultural, económica, espiritual, política, social e uma integração de todas; problematizou-se entre uma visão organicista e holística e uma visão construtivista e da complexidade. Actualmente, integram o campo da Educação Ambiental discursos e práticas divergentes, que contemplam aspectos das várias abordagens agora referidas, configurando um mapa das educações ambientais complexo e múltiplo. A este propósito, estamos de acordo com González Gaudiano [«Educação Ambiental. Horizontes Pedagógicos», 2006], quando afirma que, na actualidade, o campo da Educação Ambiental é caracterizado pelas seguintes tendências: – persistem, ainda, em muitos educadores preocupações conservacionistas e ecológicas extremas (que negli- genciam a dimensão social e económica dos problemas ambientais), bem como propostas que, apesar de aparentemente bem intencionadas, apresentam lacunas importantes, quer na sistematização, quer na adequação da sua orientação aos problemas e condições locais e regionais; – apesar de ser considerado prioritário nos discursos, planos e declarações institucionais, verifica-se a desvalorização do papel da Educação Ambiental por parte das políticas públicas; – a intenção de substituir a Educação Ambiental pela Educação para o Desenvolvimento Sustentável tem sido fonte de conflitos e alvo de fortes críticas, sobretudo pela opacidade e vacuidade do conceito de desenvolvimento sustentável e outros que integram a proposta, questionando as suas intenções e apontando também a falta de inovação da proposta relativamente a anteriores referentes no âmbito da Educação Ambiental. Aparentemente, quase nada mudou. As expectativas que alguns alimentavam em relação a uma sociedade mais justa e solidária foram goradas, continuando a viver-se num supermercado económico e cultural em que uns globalizam e outros são globalizados. Contudo, há esperança e há sementes de mudança! Caber-nos-ia agora fazer a ponte entre as expressões referidas no título deste texto. Vamos, no entanto, deixar em aberto, possibilitar que as palavras sejam por si só tomadas em consideração e se transformem em acção, antes de serem levadas pelo vento! 058-059 educação desportiva 3/16/10 8:46 AM Page 58 educação desportiva O treinador nacional e o estrangeiro Manuel Sérgio Universidade Técnica de Lisboa I 58 59 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Tratemos hoje de um tema que, sem dar ares de adivinho, parece manter alguma actualidade: qual o melhor treinador para o futebol (ou o basquetebol, ou o andebol, ou o voleibol, etc.) de um país, o treinador nacional ou o estrangeiro? Em Portugal, a concluirmos pelo enlevo que certas pessoas sentem por tudo o que chega da estranja e o pessimismo demolidor que lançam sobre os homens e as coisas de Portugal, os treinadores portugueses são muitas vezes minimizados, com enfatuada ironia. A enriquecer esta tese, adianta-se, de fisionomia aberta e jubilosa, o facto incontroverso de, com Luiz Filipe Scolari, Otto Glória, Bella Guttman e Tomislav Ivic, o futebol português ter alcançado êxitos retumbantes (e o mesmo poderia dizer de outras modalidades, como, por exemplo, o voleibol). Eles instigaramno a novos métodos que nele se repercutiram, durante anos. Mas por que se esquece repetidamente que é nosso o que, há bem pouco tempo, foi considerado o melhor treinador do mundo, e ainda Fernando Vaz, José Maria Pedroto, Artur Jorge, Carlos Queirós, Jorge Jesus, Paulo Bento, Manuel José e outros? Num país de velhas tradições e de longa caminhada histórica, até no futebol gostamos de ser colonizados! E, como veremos, não há razão para mais um complexo de inferioridade. Mas a pergunta continua teimosamente de pé: qual o treinador que melhor serve o futebol de um país, o nacional ou o estrangeiro? Em igualdade de circunstâncias, o nacional, indubitavelmente! Ao treinador estrangeiro, em terra alheia, sem o domínio da língua nativa (e não é linguagem o desporto?) e desconhecendo o futebol como expressão de uma cultura que lhe é estranha, escasseiam-lhe, normalmente, ao nível do agir e do ‘inteligir’, uma larga soma de dados imprescindíveis ao exercício da sua profissão... longe do seu país. É uma antiga questão, esta, da existência ou não-existência de características nacionais no futebol. De facto, que realidade traduz a designação brasileiro, inglês, russo, aposta ao vocábulo futebol? Há futebol brasileiro, ou futebol no Brasil? Há futebol inglês, ou futebol na Inglaterra? Há futebol coreano, ou futebol na Coreia? 058-059 educação desportiva 3/16/10 8:46 AM Page 59 Tentemos estabelecer a noção de futebol: é um desporto colectivo, com as regras por todos conhecidas e dependente do génio individual dos jogadores, da capacidade de liderança do treinador principal e da organização global dos clubes. Mas os elementos raça, geografia, língua, tradições, cultura, etc. singularizam o futebol dos diversos países? Indubitavelmente! Por isso, existe o “futebol sambado” do Brasil, o “futebol atlético” dos ingleses, o “futebol racionalista e geométrico” de alguns países da Europa Central. O futebol também interpreta o real, à sua maneira; também ele é uma visão do mundo, existindo no plano do conhecimento não consciencializado; também ele resulta da sensibilidade peculiar de um povo. O futebol pode fazer suas as palavras de Ortega y Gasset: eu sou eu e a minha circunstância! Tudo isto, para concluir que aposto nos treinadores nacionais, no cotejo com os estrangeiros, para dirigir e orientar as nossas equipas de futebol (ou de qualquer outra modalidade desportiva). Desde que sejam treinadores que aliem uma prática incessante (de treinadores, logicamente) a uma teorização rigorosa. A grande mensagem que José Mourinho, Jesualdo Ferreira, Carlos Queirós, Nelo Vingada, José Peseiro, Mariano Barreto, Manuel Machado, Carlos Carvalhal, Rui Dias, e outros mais, licenciados em Desporto, pretendem transmitir ao futebol português (e não só) é esta: também é preciso estudar para se obterem vitórias no futebol. Também aqui a teoria e a prática deverão existir em função uma da outra, visando não só um saber, mas uma sabedoria. Recordo, a terminar, Cândido de Oliveira, Fernando Vaz, Mário Wilson, Manuel Oliveira, José Maria Pedroto, Artur Jorge, Jorge Jesus, Manuel Cajuda, que, sem um curso universitário de Desporto, anunciaram, à sua maneira, que a teorização é indispensável à prática de treinador de futebol – o que fazem os que tiveram como professores o Jesualdo Ferreira, o Mirandela da Costa, o Carlos Queirós e o Nelo Vingada no Instituto Superior de Educação Física de Lisboa e o Vítor Frade no ISEF do Porto! No entanto, é de exigir aos licenciados que escutem com humildade os que levam anos e anos de futebol. É que também o futebol se teoriza no quadro de uma inegável dimensão histórica, social e política. Ocorre-me o conceito de “prática-teórica” de Louis Althusser, ou mesmo a “teoria-prática” de Gyorgy Lukács. Por mim, quero denunciar tanto o idealismo da “teoria pura”, como o pragmatismo de uma prática acéfala; tanto uma dialéctica unicamente de categorias e de conceitos, como a “consciência espontânea” (altamente tributária da tradição e do passado) dos que não estudam e abdicam do papel orientador da teoria. 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 60 entrevista ALBERTO AMARAL É indispensável que as universidades sejam credíveis e ofereçam uma formação de boa qualidade Iniciou a sua carreira académica como professor e investigador da faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP), tendo-se tornado reitor desta instituição entre 1985 e 1994. Em 1998 passou a dirigir o Centro de Investigação e Políticas do Ensino Superior (CIPES). Mais recentemente, assumiu o cargo de direcção da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, que terá por missão avaliar as instituições de ensino superior portuguesas e estabelecer critérios de qualidade reconhecíveis a nível europeu. É nesta última qualidade que entrevistamos Alberto Amaral, procurando saber aquilo que está na agenda da A3ES para o futuro próximo, as tendências nas quais se inscreve o ensino superior europeu e as implicações que daí poderão advir para as instituições de ensino portuguesas. I 60 61 PRIMAVERA 2010 I N.º188 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 61 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 62 entrevista A agência já está em funcionamento há dois anos, mas não há muita informação sobre a sua actividade... O diploma que cria a A3ES é de 2007. O conselho de administração só foi nomeado em 17 de Dezembro de 2008, tendo iniciado o seu trabalho em Janeiro de 2009. A isto há que acrescentar a implementação de toda a estrutura de apoio, nomeadamente o sistema informático, que demora meses a instalar. Só em 2011 o sistema entrará no seu ritmo normal, num ciclo que se prolongará por cinco ou seis anos. Que papel irão ter as próprias instituições de ensino nesse processo? Qual é a agenda de actuação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) para os próximos anos? Uma das primeiras tarefas diz respeito à decisão sobre propostas de novos cursos, que estão actualmente em análise e sobre os quais será tomada uma decisão em Abril. Se anteriormente estas propostas eram enviadas à Direcção Geral do Ensino Superior, desde Outubro do ano passado que as instituições de ensino superior passaram a fazer os pedidos directamente à A3ES. A segunda questão prende-se com a acreditação de todos os cursos actualmente em funcionamento. A legislação determina que até ao final do ano lectivo 2010/2011 essa acreditação esteja concluída, mas havendo milhares de cursos não penso que isso seja literalmente exequível. Porém, a intenção do Governo é de eliminar os cursos que possuem menor qualidade sem ter de esperar por um ciclo completo de avaliações, isto é, entre cinco a seis anos. Neste processo, que terá de estar concluído até Outubro do próximo ano, as universidades – até ao final de Março – e os politécnicos – até à primeira semana de Abril – terão de indicar à A3ES quais os cursos, daqueles que estão aprovados, que querem ter em funcionamento no futuro e demonstrar que têm recursos para o fazer. Esta constituirá a primeira fase de reorganização do sistema. É uma análise meramente documental dirigida fundamentalmente para a qualificação do corpo docente e para a análise dos cursos. Depois disso, uma equipa de peritos determinará o que está bem e o que está mal, e aqueles que oferecerem menos garantias de qualidade passarão depois a uma acreditação mais completa entre Outubro deste ano e Outubro do próximo ano, decidindo os que irão permanecer em funcionamento e os que irão fechar. I 62 63 PRIMAVERA 2010 I N.º188 As instituições irão ser as primeiras responsáveis por garantirem a qualidade da formação que oferecem. E um dos aspectos mais importantes deste processo vai precisamente no sentido de, em conjunto com as instituições, se definirem quais os respectivos mecanismos e sistemas internos de qualidade, nomeadamente no que se refere à qualificação do corpo docente e às metodologias de ensino. É indispensável que estas sejam credíveis e ofereçam uma formação de boa qualidade. Depois, naturalmente que as instituições terão de começar a olhar para estes padrões, percebendo que se os cursos que oferecem não cumprirem esses padrões mínimos eles não serão acreditados e terão, portanto, de desaparecer. Partindo deste pressuposto, quando o sistema entrar em regime de cruzeiro, a partir do termo do ano lectivo 2010/2011, haverá instituições e cursos que irão fechar e outras que cumprirão os mínimos para continuarem em funcionamento. Neste sentido, haverá naturalmente um número mais restrito de cursos e de instituições. Por outro lado, um departamento que tenha, por exemplo, 90 por cento do pessoal doutorado e que faça investigação considerada de excelência terá, em princípio, uma maior margem de autonomia para criar novos cursos. Actualmente, a lei diz que para uma instituição de ensino superior ser universidade ou politécnico deve ter um determinado número de cursos aprovados em termos de primeiro ciclo, de mestrado e de doutoramento. Se a instituição não tiver esse número mínimo de cursos aprovado, deixa de poder ser considerado universidade ou politécnico. De que forma se articulará este processo de acreditação com a vertente de investigação? Posso dar o exemplo mais simples, o dos doutoramentos. A lei determina que apenas uma instituição cujo corpo docente possua uma determinada qualificação ao nível de doutoramento e que produza investigação reconhecida possa atribuir doutoramentos. Isto aplica-se particularmente às universidades. Mesmo nos ciclos mais baixos, uma das componentes de avaliação diz respeito à integração dos alunos nos projectos de investigação da instituição. Como está a decorrer este processo a nível europeu? 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 63 Em princípio, cada país tem o seu próprio sistema de avaliação e de acreditação. Há países que já têm uma tradição muito longa de sistemas de avaliação, como a Inglaterra, a Holanda, a França… Estes sistemas, aliás, existem há já bastante tempo em países como os Estados Unidos, onde a primeira agência de acreditação regional data do século XIX. Mas independentemente da sua situação de países centrais ou periféricos, o processo é relativamente homogéneo? Embora possa variar em termos de organização - há casos em que se optou por uma agência única, casos, como na Alemanha, em que se optou por agências a nível estadual, à semelhança da Espanha, onde cada região autónoma possui a sua própria agência – em termos de metodologia ela é mais ou menos comum a todos. De uma maneira geral há sempre um relatório de auto-avaliação, seguida de uma avaliação externa e da sua publicitação pública, sendo dada a cada instituição a possibilidade de responder ao relatório. Entretanto, e na sequência do processo de Bolonha, instituíram-se os European Standards and Guidelines, que definem os padrões a que devem obedecer as agências europeias no sentido de serem reconhecidas e que incluem a independência em relação às instituições e em relação aos governos. De que forma está garantida a independência face ao poder político? Em primeiro lugar, o conselho de administração é nomeado por quatro anos e ninguém o pode demitir das suas funções. Em segundo lugar, a legislação prevê que nenhum curso que não tenha sido acreditado pela agência poderá ser homologado pelo Governo. Da mesma forma que a agência poderá acreditar um curso e o Governo decidir não o financiar – porque pode chegar à conclusão que há mais não sei quantos cursos iguais e dizer que não se justifica a aplicação de verbas públicas. Há, portanto, uma clara separação e independência face ao poder político. Nós somos nomeados por um determinado período e mesmo achando que somos muito ou pouco rigorosos, não podem, em princípio, exonerar-nos do cargo. De que forma é que se está a articular este processo em Portugal com as restantes agências europeias? Por um lado, através do facto de as diferentes agências estarem associadas na European Network of Quality Agencies (ENQA); por outro lado, porque as agências reconhecidas deverão vir a ser registadas num organismo denominado European Quality Assurance 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 64 entrevista Register for Higher Education (EQAR). E a condição indispensável para fazer parte quer de uma quer de outra é o cumprimento dos tais European Standards and Guidelines, bem como um conjunto de regras mínimas que têm de ser cumpridas pelas agências. Costumava ser bastante crítico de modelos de avaliação e de acreditação, nomeadamente daqueles que se aproximavam mais daqueles que são postos em prática nos EUA e no Reino Unido – e que agora estão a ser introduzidos na Europa. Como vê essa situação e de que forma ela pode condicionar a actuação da agência? Não sei se será verdade que o modelo americano esteja a ser introduzido na Europa... Concordará que existe uma tendência para fazer convergir os dois modelos... Tenho as minhas dúvidas, porque nos EUA eles distinguem entre agências que acreditam as instituições e outras agências que acreditam as diferentes áreas académicas, como o direito, a medicina, etc. E as agências de acreditação têm um carácter regional, o governo federal não intervém nisso. Ou seja, eles têm um sistema completamente diferente que não pode ser comparado. Não me refiro tanto à organização do sistema mas mais aos princípios que estão por detrás dele... Nos EUA há uma enorme diversidade no que toca à qualidade das instituições de ensino superior, muito maior do que na Europa. Isso significa que a mesma agência que acredita Harvard ou Yale, por exemplo, também tem de acreditar instituições de menor prestígio, usando uma metodologia que permita fazê-lo em igualdade de circunstâncias. Essa metodologia designa-se “Fitness for Purpose” e baseia-se na declaração de missão da instituição. É um mecanismo que, na sua essência, procura proteger essa imensa diversidade que não existe nos sistemas europeus. A grande diferença entre o sistema americano e os sistemas europeus é que nos EUA as instituições têm sido capazes, até agora, de resistir a qualquer interferência por parte do governo federal, que em várias ocasiões tem procurado exercer influência sobre os processos de acreditação. Por comparação a este país, na Europa a Comissão Europeia acabou por ter uma maior influência sobre o sistema de acreditação. A minha crítica baseia-se no facto de na Europa não ser possível avançar com um processo de discussão da legislação: o Parlamento Europeu não serve, a Comissão Europeia não nos liga; não se sabe se é a Comissão se são os ministros que decidem. Ora isto é uma confusão enorme... De qualquer forma, não há propriamente metodologias que permitam pôr em prática o sistema de lobbying que existe nos EUA. Este processo de acreditação levará inevitavelmente à concorrência entre instituições... I 64 65 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Na minha perspectiva, os sistemas de acreditação aparecem essencialmente para colocar um pouco de ordem no desenvolvimento desordenado e extremamente rápido do ensino superior privado nos países do leste europeu após a queda do muro. Ao mesmo tempo, e do meu ponto de vista, a Comissão Europeia pretende acabar com a ideia de que as universidades europeias são todas iguais. A criação de um sistema de acreditação comum, que permita a qualquer instituição de ensino superior ser acreditada pelas diversas agências registadas na EQAR – apesar de esta proposta da Comissão não ter sido ainda aceite pelos ministros –, conduzirá à existência de agências com critérios extremamente altos de exigência, que acreditarão universidades como Oxford, Cambridge ou Munique, e de agências que acreditarão universidades regionais e universidades locais. Desta forma, tender-se-á a estabelecer um certo sistema de ranking. Neste sentido, aliás, a União Europeia aprovou e financiou muito recentemente um projecto que visa a criação de um ranking de universidades europeias. Ou seja, não há dúvida nenhuma que se caminha para uma crescente estratificação das instituições de ensino superior, na qual haverá lugar para universidades de investigação, universidades regionais, locais etc. Em Portugal, este processo de acreditação derivará inevitavelmente num ranking... Esperemos que o objectivo deste processo em Portugal não seja meramente criar um ranking. Porque os rankings das universidades, na minha opinião, não fazem muito sentido, já que as universidades são organizações demasiado complexas para serem avaliadas através de um sistema que está, em larga medida, dependente de critérios que podem ser discutíveis. Um dos grandes problemas dos rankings - nomeadamente dos rankings que se baseiam em meia dúzia de critérios - é que a ordenação que daí deriva depende do peso que se atribui a cada um deles. Uma pequena universidade do interior do país, por exemplo, pode perfeitamente ficar à frente de Harvard se o critério principal for o do custo por alunos mas perderá se o critério se basear no número de prémios Nobel, ou o número de alunos estrangeiros. Na minha opinião, o objectivo de um processo como este deveria ser o de fornecer toda a informação existente para que, com base nela, cada qual possa estabelecer o seu próprio ranking... Porque haverá alunos que com certeza estarão mais interessados num curso que seja fácil e que dê emprego, haverá professores com interesse em instituições onde se aposte sobretudo na investigação, e governos mais interessados em financiar cursos que não representem grandes encargos públicos. Concretamente no caso português, não se correrá o risco de as assimetrias entre as principais universidades do país se tornarem ainda maiores? Certamente que sim. Actualmente, a nível europeu, é fácil perceber que há um conjunto de governos claramente apostados na 060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 65 criação de um número restrito de universidades de excelência. O governo alemão, por exemplo, investiu recentemente na criação de cinco universidades de excelência. Na Finlândia, mais propriamente em Helsínquia, vão criar uma universidade de carácter fundacional que pretende concentrar num único organismo as universidades de tecnologia, economia e gestão e arte e design, cujo investimento inicial ronda qualquer coisa como 650 milhões de euros. Em Inglaterra a tendência é a mesma, com o governo a concentrar a investigação num número limitado de instituições. Concordará, então, que este processo de acreditação e avaliação caminhará inevitavelmente para algo que se assemelhará a uma hierarquização de assimetrias? Poderá caminhar nesse sentido. Por outro lado, devemos questionar-nos até que ponto será possível a um sistema de ensino superior massificado oferecer ao mesmo tempo ensino para todos e excelência. Ou seja, não é possível ensinar alunos medianos usando o mesmo sistema que é utilizado, por exemplo, na universidade de Cambridge, na qual o processo de aprendizagem se baseia sobretudo no esforço do próprio aluno, onde este é “puxado” ao máximo. Um aluno mediano necessita de maior apoio e estará, digamos, ao nível de um liceu avançado. Estas duas realidades não podem coexistir num mesmo espaço, parecendo-me por isso inevitável que a massificação do ensino superior conduza a essas diferenças. Eu diria até que será muito possível que no futuro o actual primeiro ciclo de Bolonha corresponda ao actual ensino secundário. E se o primeiro ciclo de Bolonha for de facto generalizado a toda a população estudantil, é evidente que será preciso haver algumas instituições que se ocupem de alunos mais capazes e mais interessados em investigação. O processo de ensino-aprendizagem não pode ser igual para todos. Porque se os sistemas massificados não se diversificam acabam por comprometer os melhores alunos. Admito, no entanto, que esta perspectiva não seja assim tão fácil de encarar. Citando Chris Duke, um professor australiano, “é impossível que a torrente caudalosa da massificação e o delgado riacho da excelência caminhem lado a lado pelo mesmo campus universitário”... Para terminar pergunto-lhe: que implicações poderão advir daquilo que foi dito para as instituições de ensino superior do país e para o próprio país? Acho que o objectivo essencial é melhorar a qualidade do sistema do ensino superior, das instituições e da sua oferta em termos formativos. Esperemos, por isso, que as instituições compreendam a necessidade de garantir a qualidade daquilo que oferecem e deixem de inventar cursos com designações esquisitas e para as quais não têm corpo docente adequado, etc. RICARDO JORGE COSTA (entrevista) TERESA COUTO (fotografia) 066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 66 pedagogia social Recordando Ortega y Gasset, 100 años después La pedagogía social como programa político Si educación es transformación de una realidad en el sentido de cierta idea mejor que poseemos y la educación no ha de ser sino social, tendremos que la pedagogía es la ciencia de transformar las sociedades. Antes llamábamos a esto política: he aquí, pues, que la política se ha hecho para nosotros pedagogía social y el problema español un problema pedagógico. [Ortega y Gasset, 1910] José Antonio Caride Gómez Universidad de Santiago de Compostela Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto I 66 67 PRIMAVERA 2010 I N.º188 El 12 de marzo de 1910, en la Sociedad “El Sitio” de Bilbao, un histórico foro del liberalismo vasco, por el que han pasado como oradores algunas de las figuras más relevantes de la vida pública española de los últimos 130 años, José Ortega y Gasset (1883-1955) nos legaba uno de los lemas más emblemáticos de cuantos han acompañado los avatares de la Pedagogía Social desde los inicios del siglo XX hasta la actualidad: La Pedagogía Social como programa político. Y, con él, la inequívoca necesidad de vincular la educación al quehacer político y moral que los ciudadanos han de adquirir consigo mismos y con la sociedad que los acoge. Hablamos de un Ortega y Gasset joven, atraído por las ideas filosóficas del neokantismo, cultivado en la Universidad alemana de Marburgo al amparo de las enseñanzas de Hermann Cohen (18421918) y Paul Natorp (1854-1924), en una estancia realizada en el curso académico 1906-07. Un Ortega que impartirá lecciones de Pedagogía Social en la Escuela Superior de Magisterio de Madrid tomando como referencia los textos de Natorp, el primer autor que sistematizará y divulgará científicamente sus contenidos con la publicación, en 1899, de su obra «Sozialpädagogik. Theorie der Willensbildung auf der Grundlage der Gemeinschaft». 066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 67 Cuando la Educación Social, a la que identificamos como el objeto de estudio formal y abstracto de la Pedagogía Social, está adquiriendo un creciente protagonismo en los estudios universitarios de Grado y Posgrado en el Espacio Europeo de la Educación Superior (EEES), prolongado en líneas de investigación y desarrollos profesionales de amplio recorrido temático, volver a las palabras que Ortega y Gasset pronunciaba hace ahora cien años, va mucho más allá de un simple – y, sin duda, merecido – testimonio histórico, al que avalan, hoy como ayer, la relevancia de sus argumentos, en clave política y pedagógica. En los escenarios de la política, su afán de entonces y el nuestro de ahora por observar a Europa y a sus realidades nacionales como una tarea a cumplir, un problema a resolver, un deber… Al que las reiteradas crisis han ido laminando en sus múltiples tentativas de construir un proyecto civilizatorio más inclusivo y compartido, por mucho que se haya avanzado en la apertura de sus fronteras interiores o en la integración de algunas de sus estructuras más visibles en el orden político, económico y social. Una Europa a la que Ortega veía como solución de los males de España (también de los que afectaban a otros países), haciendo de su regeneración un deseo y de la europeización – que no del eurocentrismo – el medio de satisfacerlo. Y en el terreno de la pedagogía su anhelo, con el que también coincidimos, de ver satisfecho el ideal de una educación que transcienda al individuo biológico para hacerlo partícipe del tejido social que abarca la familia y la ciudad, el aire de las calles y de los paisajes. O, más aún, de un espíritu democrático que ha de llevar a cada comunidad y a todos los pueblos a constituirse en auténticas escuelas de humanidad. Lo expresaba Ortega y Gasset rescatando las visiones profundas de Platón, cuya pedagogía – social – parte de que “hay que educar la ciudad para educar al individuo”, y las genialidades de Pestalozzi, para quién la escuela “es sólo un momento de la educación: la casa y la plaza pública son los verdaderos establecimientos pedagógicos”. No estamos muy lejos de esta paideia, vieja y nueva a la vez, que nos recuerda cotidia- namente que la vida educa densa e intensamente. Que muy a menudo lo hace allí donde la “ejemplaridad pública” (Gomá, 2009) posibilita que la individualización y la socialización coincidan en un mismo proceso. Aunque, para lograrlo, debamos adentrarnos en las propuestas concretas y en las acciones tangibles. Algo que Ortega y Gasset, siempre atento a las incitaciones de su tiempo y a las misiones pedagógicas que deberían emprenderse, no supo traducir suficientemente en hechos… Acaso porque su acción, más allá de sangrar por las heridas de cierto “aristocratismo” intelectual y social – que según Gomá inhabilita definitivamente la ejemplaridad orteguiana “para el proyecto de una paideia democrática” –, tenía otros horizontes y logros: los de un magisterio creativo, vitalista e iluminador, cuyos tránsitos por el conocimiento, el pensamiento y la palabra pocos alcanzaron como él. De igual modo que fueron y son pocos los que se atreven a referirse a la pedagogía como “la ciencia de transformar las sociedades”, aunque sean muchos los que expresen hasta la saciedad de la retórica que los nuestros son problemas pedagógicos. 066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 68 pedagogia social Globalización y acción comunitaria: responsabilidades personales y pactos socioculturales Xavier Úcar Universitat Autònoma de Barcelona, Departament de Pedagogia Sistemàtica i Social Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto I 68 69 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Hace años que desde los diferentes informes mundiales elaborados sobre la cultura se enfatizó la necesidad de entender el desarrollo no como crecimiento económico, sino como un proceso que aumenta la libertad efectiva de sus beneficiarios para llevar adelante cualquier actividad a la que atribuyen valor (UNESCO, 1997). Para que esta libertad sea realmente efectiva es necesario apostar por un pacto sociocultural a nivel global. La diferencia entre un pacto y un contrato es que el segundo es legitimado por una instancia externa que asegura – con incentivos o sanciones – su cumplimiento. En el pacto, sin embargo, la legitimidad es asegurada por la confianza mutua entre las agencias implicadas y, en este sentido, el incumplimiento del mismo ni siquiera se contempla. Desde mi punto de vista, el paso de la heteronomía a la autonomía supone, necesariamente, el paso del contrato al pacto como forma de relación. Un pacto sociocultural que se manifieste y construya sobre la topografía del bucle. Que se inicie en lo comunitario y en lo local y se extienda, con niveles progresivos de complejidad, a lo regional, a lo nacional, a lo transnacional y a lo global. Y que se reencarne de nuevo, cada vez con un rostro emergente, en lo local y comunitario. En realidad lo único que diferencia a las dinámicas comunitarias de las de la globalización es el nivel de complejidad. Un pacto sociocultural que sea el resultado de la puesta en juego de los principios metodológicos básicos de la acción comunitaria. Un pacto que, en consecuencia: – se enmarque en la democracia; – se construya a través de la participación de las diferentes voces implicadas; – se desarrolle a través de la deliberación y el diálogo; 066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 69 – se comparta y contraste a través de la negociación; – se cosifique o, en otros términos, se tangibilice en consensos que muestren los acuerdos y desacuerdos, las convergencias y divergencias. Han de ser estas cosificaciones – en forma de protocolos globales que se actualizan y encarnan en los diferentes niveles intermedios hasta llegar a lo local y comunitario – las que den forma a una verdadera glocalización, que, por un lado, maximice las ventajas la globalización en lo local, por ejemplo posibilitando el conocimiento y el acceso de las personas a realidades y culturas que, de otro modo, les resultarían inaccesibles. Y maximice también las ventajes de lo local en lo global. En este caso, comunicando y compartiendo singularidades. Una glocalización de estas características ha de buscar, también, minimizar los riesgos y problemáticas derivados de aquellas relaciones, sobre todo, las de lo global al encarnarse en lo local. Demasiadas veces relaciones colonialistas, enculturadoras o, simplemente, homogeneizadoras, han amenazado la diversidad y creatividad de las comunidades y las singularidades. Hemos imaginado estos pactos socioculturales sobre la topografía de una espiral que debería ser dinámica y estar en perpetuo estado de actualización. Desde nuestro punto de vista este itinerario de pactos socioculturales dibuja una geografía que puede ayudar en la ecualización de los riesgos y las ventajas de las relaciones entre lo global y lo local. Un pacto de estas características puede parecer utópico en unos contextos socioculturales como los actuales en los que, entre otras cosas, se habla – como han apuntado Bauman y Sennett – de un debilitamiento progresivo del carácter por efecto, precisamente, de dichos contextos. Requiere, sin embargo, desde mi punto de vista de, al menos, dos requisitos. En primer lugar, la creencia y la confianza en que tales pactos son posibles. Una confianza que, como señala Giddens, supone arrojarse a la entrega, manifestar una fe irreductible. Sin confianza básica no hay acción, no hay actividad y como apunta Dahrendorf, ésta última se constituye como uno de los pasos ineludibles en cualquier política de libertad que pretenda aumentar las oportunidades socioculturales de las personas. En segundo lugar, hay que apostar por unos compromisos que son, antes que nada, personales; cada uno de los cuales – ya sean comunitarios, nacionales, transnacionales o globales – son asumidos por personas concretas, autónomas y, por tanto, responsables. Coincido con Touraine en ubicar al sujeto en el centro de la revolución, si es que aún somos capaces de encontrar algún sentido en un concepto tan devaluado. Los pactos – al igual que los compromisos – son necesariamente personales aunque sean tomados en contextos organizativos o institucionales. Y eso sólo puede significar reasunción de protagonismos y responsabilidades ya que, como atinadamente apunta Sousa Santos, los conflictos de responsabilidad siempre acaban condicionando, de una u otra manera la democracia, la participación y la transparencia de las organizaciones e instituciones. Las estructuras no pueden ser, de ninguna manera, coartadas para la difuminación y disolución de las responsabilidades. Las decisiones en cualquier ámbito de la vida, sean individuales o colegiadas, son siempre tomadas por personas, aunque lo hagan en nombre de las organizaciones o instituciones a las que representan. Es a esas personas a las que hay que exigir la responsabilidad y el compromiso con las decisiones tomadas, las acciones realizadas y las consecuencias de las mismas. Entiendo que la responsabilidad es uno de los valores claves sobre los que fundamentar la intervención socioeducativa y el trabajo comunitario. Un último apunte en relación a la responsabilidad. Numerosos autores se han referido a las actividades y conductas de desresponsabilización generadas por efecto de las nuevas tecnologías. Entramos en los mundos virtuales bajo la piel de avatares que diluyen nuestro sentido de la responsabilidad respecto a las acciones que desarrollamos actuando a través de ellos. No es extraño que este sentido de desresponsabilización, sobre aquello que hacemos en el ciberespacio, haya podido extenderse también a las relaciones y acciones desarrolladas en el mundo físico. Como hemos apuntado, las intervenciones socioeducativas que configuran el trabajo comunitario – sea en el plano físico o en el virtual – buscan precisamente lo contrario: la responsabilización de cada persona de las acciones que realiza y de las consecuencias de las mismas. 070-071 afinal onde está a escola 3/16/10 9:13 AM Page 70 afinal onde está a escola Lições do Haiti Roberto Marques Marcello Casal Jr / ABr Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro I 70 71 PRIMAVERA 2010 I N.º188 São muitos os exemplos de utilização da Escola com o intuito de fortalecer o sentido de pátria ou unidade de uma nação. Algumas disciplinas, nessas horas direcionadas para isso, ganham força, como a História, o ensino de uma língua e a Geografia. Há algum tempo tomei conhecimento disso em relação à unificação alemã, no século XIX. Se, nesse caso, houve mesmo um projeto tão intencional assim, a sua efetivação ou não, ou mesmo os seus desdobramentos, são questões que não despertaram tanto interesse em mim quanto a própria exis- tência do projeto. A percepção de que os conhecimentos escolares (o que quer que sejam) ultrapassam as paredes das salas de aula, é algo que deveria estar na raiz de qualquer discussão sobre a Escola, em qualquer canto. Por exemplo, no Rio de Janeiro, a atual Secretaria de Educação constatou que os alunos não aprenderam alguns conteúdos julgados por ela importantes. Nesse caso, considera como ‘falha’, aquilo que não aconteceu, a falta. Porém, entendo que o mais grave, o que poderia ser discutido com mais profundidade é o que a Escola veio e vem ensinando. Mesmo 070-071 afinal onde está a escola 3/16/10 9:13 AM Page 71 Tal compartimentação tem conseqüências que a questão do Haiti coloca na ordem do dia. O terremoto não é o problema daquelas pessoas, mas um dos problemas. Talvez se torne mais grave UN Photo / Logan Abass O que acontece hoje com o Haiti – e não no Haiti – é algo emblemático. Vejo campanhas de arrecadação de alimentos, leite, água, dinheiro, etc., para ajudar as vítimas do terremoto que derrubou sem piedade praticamente toda a capital do país. São ações muito bem realizadas, em gestos claros de solidariedade, numa demonstração de que o ser humano e as sociedades são capazes de se mobilizar e utilizar energia na construção de propostas comuns e que existem valores compartilhados para além das nacionalidades e diversidades culturais. As pessoas que aderem às campanhas fazem suas doações a partir das informações que recebem e daquilo que aprenderam que pode e deve ser feito. Aprenderam nas escolas dados estatísticos sobre o Haiti: um dos países mais pobres do mundo, com os piores indicadores da América Latina, sua história longa de intervenções e outros absurdos. No entanto, é a tragédia de um terremoto o que nos mobiliza. O conhecimento desses dados e da sua história, contada numa linearidade e nos fatos destacados, não é capaz de nos mobilizar para as questões do Haiti. Só o terremoto. Aprendemos que cada país cuida de si e alguns cuidam dos outros, pois aprendemos a objetificar as relações entre pessoas e entre povos, de maneira superficial e sem pertencer a elas. UN Photo / Logan Abass porque a simples constatação do hiato nesse ou naquele conteúdo, pode levar a um tratamento, equivocado, do conhecimento como um objeto pronto e acabado. Se a Escola é uma construção social, mergulhar nessa questão significa questionar, também, o contexto e a construção dessa mesma sociedade e pensar o seu tempo e espaço. do que a destruição material porque fragilizou ainda mais o país e o abriu a mais intervenções. Mas, nessa mesma lógica que fraciona e segmenta o conhecimento, o mundo e as coisas, e que é ratificada na escola, sentimos que nossa tarefa não vai muito além da doação – material ou não, seja de forma individual ou em conjunto. Porém, se realmente aprendêssemos que o Haiti é produto e obra local de relações em escala ampliada, sucesso de um modelo, provavelmente as ações de apoio não seriam apenas as pontuais. É possível que cobrássemos dos governos a suspensão das dívidas e o ressar- cimento do que lhes foi espoliado ao longo de décadas e décadas. Ou que não nos limitássemos a comprar alimentos para doação, mas obrigássemos as multinacionais do setor, que a tantos haitis devem seus fantásticos lucros, a enviar o que fosse necessário ao país. Talvez fizéssemos o mesmo com os bancos. Mas, isso seria romper com lógicas que nos aprisionam no individualismo e sustentam o cinismo. Por isso, entendo que outra forma de ajuda é pensar qual Haiti trazemos para a Escola: o que nos pertence ou a parte de uma ilha caribenha? 072-073 reconfigurações 3/16/10 9:23 AM Page 72 reconfigurações Educação e desenvolvimento: agora somos todos soldados? “Neste momento, como eu, e seguramente os nossos diplomatas e os nossos militares, as ONG americanas estão no terreno servindo e sacrificando-se nas linhas da frente da liberdade. (...) Falo a sério quando digo que devemos manter as melhores relações com as ONG, que são para nós uma força multiplicadora, tão importante como a nossa equipa de combate”. [Colin Powell, ex-secretário de Estado dos EUA] Mario Novelli Universidade de Amesterdão (Holanda) I 72 73 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Este discurso de Colin Powell numa Conferência Nacional de Política Externa para líderes de organizações não governamentais (ONG) tornou-se um exemplo muito citado da crescente preocupação de muita gente da comunidade internacional do desenvolvimento acerca da cada vez maior militarização do sector. Quer dizer, as agendas das organizações humanitárias e do desenvolvimento estão a ser apoderadas pelos poderosos interesses militares do ocidente. O ambiente pós-11 de Setembro levou os Estados Unidos da América (EUA) e outras potências ocidentais a darem prioridade à preocupação com o ‘terrorismo’ e a integrar todos os outros aspectos da política governamental sob o chapéu deste objectivo. Em Junho de 2008, a USAID [United States Agency for International Development] publicitou a sua nova ‘política de cooperação civil-militar’, explicando a sua abordagem “3Ds”, que incorpora a defesa, a diplomacia e o desenvolvimento, assumindo o desenvolvimento como um “elemento-chave de qualquer esforço governamental contra-terrorista e contra-insurreccional”. Vários governos ocidentais (p. ex. Austrália, Canadá, Rússia) seguem agora explicitamente esta abordagem dos 3Ds. Enquanto que, para alguns, o renovado compromisso dos governos ocidentais com a importância do desenvolvimento pode ser bem-vinda, para a comunidade do desenvolvimento, esta ‘perspectiva governamental’ traz consigo o perigo de ser hegemonizada pela ainda mais poderosa ala da segurança dos governos nacionais. À medida que o fracasso no Iraque e no Afeganistão é cada vez mais evidente, assiste-se a uma crescente ênfase, por parte das forças de ocupação, nas estratégias do ‘coração e das mentes’ (ler desenvolvimento), a par das suas actividades militares. Isto levanta a questão de saber como é que as ONG internacionais, em zonas de conflito e de pós-conflito, separam os interesses ‘militares’ e de segurança e as suas actividades de ‘desenvolvimento’ e ‘humanitárias’. A fusão da segurança com o desenvolvimento parece funcionar como um processo de reinterpretação dos objectivos e das práticas do desenvolvimento – perspectivando as suas actividades como possuindo um potencial de ‘benefícios de segurança’, ocupando o sector da educação um lugar central. Uma ilustração desta prevalência das referências ao papel da educação nas estratégias contra-terroristas pode ser encontrada nos «Relatórios Nacionais sobre o Terrorismo» do Departamento de Estado dos EUA. Por exemplo, no relatório de 2007, Capítulo 5 (Paraísos de Segurança para o Terrorismo), a subsecção 7 centra-se na Educação Básica nos Países Muçulmanos, sublinhando um “aumento 072-073 reconfigurações 3/16/10 9:23 AM Page 73 da atenção na educação em países predominantemente muçulmanos e naqueles com uma significativa população muçulmana. (...) O desafio foi o de aumentar a capacidade do país para fornecer acesso universal à educação básica e à literacia”. Claramente, no caso do Afeganistão, a educação tornou-se num campo de batalha central da guerra, e o mesmo parece estar a ocorrer na Somália e no Iraque. O dilema para os trabalhadores voluntários da educação é que as estratégias antiterroristas e anti-insurreccionais das potências ocidentais estão a ser percepcionadas como veículo principal para o desenvolvimento de intervenções educativas. E se as actividades podem permanecer inalteradas, a sua representação discursiva significa que elas podem ser interpretadas como parte do esforço de guerra: modos civis de contra-insurreição, com o objectivo de ganhar os corações e as mentes e de produzir certos tipos de subjectividades. A situação piorou com o estabelecimento, por parte das tropas de ocupação ocidentais no Iraque e no Afeganistão, de equipas provisórias de reconstrução, que, sob controlo dos militares, também levam a cabo actividades como a construção de escolas. Em 2009, uma aliança de ONG a operar no Afeganistão produziu um relatório condenando o comportamento das tropas de ocupação ocidentais. Alegaram que os militares (particularmente dos EUA e da França) continuavam a usar “veículos brancos, não sinalizados, convencionalmente usados pelas Nações Unidas e agências de auxílio” e desenvolviam trabalho de infra-estrutura tradicionalmente feito pelas organizações de desenvolvimento como parte das suas estratégias contra-insurreccionais de ‘corações e mentes’. Tratava-se, diziam, “de desfazer a distinção civil-militar (...) e tal contribuiu para uma diminuição da independência percebida das ONG, para aumentar os riscos dos trabalhadores voluntários e para reduzir as áreas em que as ONG podem operar com segurança”. Além do óbvio perigo para os trabalhadores do desenvolvimento, esta estratégia está também a minar a autonomia e a credibilidade das agências de desenvolvimento e a eliminar as possibilidades potencialmente progressivas do seu trabalho. O nosso silêncio é cumplicidade. 074-075 educadores da paz 3/16/10 9:24 AM Page 74 educadores pela paz Encontro galego-português em Leiria A construção da Escola Democrática exige, dos vários actores, o exercício de uma cidadania crítica, assente em práticas de liberdade, participação, pluralismo, justiça, responsabilidade e solidariedade. Neste sentido, é imprescindível incrementar – a nível internacional, nacional, regional e local – modelos e processos de formação, educação e cultura que criem alternativas cada vez mais solidárias, com vista à melhoria da humanidade. A responsabilidade pela paz é tarefa de todos. É com estes pressupostos que, de 23 a 25 de Abril, se realiza em Leiria (Escola Superior de Educação e Ciências Sociais) o XXIV Encontro Galego-Português de Educadores pela Paz – não se trata apenas de inventar lugares de profecia e de caridade, mas de arquitectar formas concretas de intervenção que valorizem o paradigma democrático, de matriz cultural, social e local da educação, centrado na transformação e emancipação da pessoa humana. A iniciativa – que conta com o apoio da PÁGINA (entre outros) – é organizada pela Associação Galego-Portuguesa de Educação para a Paz (AGAPPAZ); Educadores Pola Paz/Nova Escola Galega; Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Vigo; ESECS/Leiria e Movimento dos Educadores pela Paz de Portugal (MEP). As inscrições decorrem até 10 de Abril. I 74 75 PRIMAVERA 2010 I N.º188 074-075 educadores da paz 3/16/10 9:24 AM Page 75 23 de Abril 16:00h 18:00h 19:15h 19:30h 22:00h 15:00h Recepção Jogos cooperativos: Cândida Santos e Belén Piñeiro (Agappaz) Abertura e boas-vindas: Helena Proença (presidente da Agappaz/Portugal); Carmen Simón (coordenadora da Agappaz); Luís Barbeiro (director da ESECS/Leiria) Conferência Educação, Justiça e Solidariedade na Construção da Paz: Isabel Baptista (Univ. Católica/Porto); Xosé Manuel Fernández (Univ. Vigo/Ourense). Moderadores: Cathryn Teasley (Univ. Corunha) e Emília Gregório (Junta Directiva da Agappaz) Apresentação das organizações, conferencistas e participantes; actuação do grupo musical Luangraal 24 de Abril 09:30h 10:30h 11:30h 12:00h 13:15h Debate Mediação Sócio-Pedagógica na Escola: Ricardo Vieira (ESECS/Leiria); Pedro Silva (ESECS/Leiria); Rita Gradaille (Univ. Santiago de Compostela); Rosa Marí (Univ. Castilla – La Mancha). Moderadores: Américo Peres (Univ. Trás-os-Montes e Alto Douro e Junta Directiva da Agappaz); Manuel Rábade (Educadores Pola Paz – Nova Escola Galega) Trabalho em grupos Pausa Apresentação/discussão em grande grupo Foto da Paz 18:30h 22:00h Oficinas simultâneas: “Danças do Mundo” (Paulo Ferreira, ESE/Lisboa); “Ferramentas para a Formação de Professores Tutores: a entrevista motivacional e a psicologia positiva” (Ramiro Alvárez, professor, psicólogo e escritor de Lugo); “Teatro para a Paz e Paz pela Expressão Teatral” (Marcelino Sousa Lopes, Univ. Trás-os-Montes e Alto Douro, e Mariana Peres, psicóloga e doutoranda Univ. Santiago de Compostela); “Confecção de Bonecos de Papel” (Bene Tielas, ilustradora, e Bernardo Carpente, Agappaz); “Comunicação Afectiva = Comunicação Efectiva?” (Carmen Marqués, professora de música, Lugo); “Oficina de Fotografia” (Andrei Kowalski e Maria Kowalski, ESECS/Leiria) Visita guiado por Leiria Festa da Paz 25 de Abril 10:00h 11:30h 13:00h 13:15h Apresentação de experiências, comunicações e materiais – coordenação: Alcides Lé e Noa Camaño (Agappaz) Avaliação do Encontro e Assembleia Anual da Agappaz – coordenação: Teresa Ferreira e Marisa Bouzo (Agappaz) Gaitas-de-foles e largada da Pomba da Paz (Castelo de Leiria) Almoço de encerramento Informações/Inscrições: Portugal: EB1 n.º 4 do Barreiro: 212 156 303 (Helena Proença); [email protected] – Galiza: Educadores Pola Paz/Nova Escola Galega: 981 56 25 77; www.nova-escola-galega.org – www.educadorespolapaz.org Feira tem projecto de intervenção precoce no Pré-Escolar O pelouro da educação da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira vai pôr em prática um projecto-piloto com o objectivo de detectar necessidades educativas especiais em crianças até à idade escolar. A medida será para já implementada em três jardins-de-infância do concelho, alargando-se posteriormente aos 86 estabelecimentos da rede pública da autarquia. A iniciativa, intitulada “Sorrisos felizes”, tem como principal missão diminuir o número de alunos que chegam ao 1º Ciclo do Ensino Básico com dificuldades de aprendizagem. A avaliação psicológica, no sentido de intervir o mais precocemente possível e evitar atrasos de desenvolvimento nos mais pequenos, é o primeiro passo para que se possam atingir os três propósitos que orientam o projecto: maximizar o potencial de desenvolvimento de cada criança; proporcionar apoio e assistência à família; rentabilizar os benefícios sociais dos menores e respectivos agregados familiares. Para dar corpo a esta intervenção, a autarquia conta com uma equipa de psicólogos que trabalhará em parceria com os educadores dos jardins-de-infância. O projecto implicará, ao mesmo tempo, a celebração de protocolos de colaboração com diversas entidades, entre as quais se conta um agrupamento de escolas, de forma a maximizar os recursos e assegurar o reencaminhamentos nas valências da terapia da fala, psicologia e terapia ocupacional. Detectados os casos, e em conformidade com cada situação, os técnicos direccionam posteriormente a criança para o acompanhamento mais adequado. 076-077 olhares de fora 3/16/10 9:25 AM Page 76 olhares de fora O humanismo concreto e a “questão do certo” “Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. (...) Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas.” [Vergílio Ferreira, «Aparição»] Ivonaldo Neres Leite Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Brasil) Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto I 76 77 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Por que se deve fazer o que é certo? E, o que é o certo? Ao realçar estas indagações, Kant lançou-se na busca por um fundamento racional para as questões ético-morais. A formulação que ele apresenta como resposta não é nada desprezível: uma regra de conduta moral certa é aquela que, sendo adotada universalmente por todos, torna o mundo mais feliz. Por outro lado, as religiões se encarregaram de criar preceitos morais de tal forma que a pergunta “por que se deve fazer o que é certo?” não precisava de resposta lustrada pela razão. Aliás, nem mesmo haveria sentido em fazê-la. Uma única resposta podia ser dada: para agradar, ou pelo menos não desagradar, os deuses. Afinal, desrespeitar preceitos religiosos significa, conforme essa compreensão, provocar a reacção divina – por via dos mais variados tipos de castigos – e a condenação na suposta vida do pós-morte. Embora não seja de se desconsiderar a formulação kantiana, há que se reter, entretanto, por outra parte, que o ad infinitum da metafísica não permite apreen- 076-077 olhares de fora 3/16/10 9:25 AM Page 77 der que os conceitos variam no tempo e no espaço. Como bem realçou Leôncio Basbaum, a “questão do certo” relaciona-se à temática do humanismo, que deve, no entanto, ser adjetivado como concreto. Isto é, diferente do humanismo transcendente e vulgarmente compassivo, o humanismo concreto concebe o ser humano situado em contextos vivos, em situações concretas, nas quais ele vive, convive e intervém como ente em busca de superação. O humanismo concreto não se caracteriza apenas pelo reconhecimento do ser humano abstrato, genérico, mas é marcado pelo reconhecimento do ser total, dentro de uma determinada situação – historicamente variável – perante a qual ele se deve autonomizar. Se as épocas e as situações são historicamente variáveis, a dimensão éticomoral – como esfera da indagação valorativa e de juízos normativos dessa valoração – deve ser concebida tendo o factor contextual como um dos seus pressupostos de conceptualização. Dentre outros aspectos, a moral configura-se como uma forma de autodefesa das sociedades, em sua luta contra os instintos do ser individual e as ações colectivas de mudança – sociologicamente, poder-se-á dizer, a moral consubstanciase em factos sociais cuja transgressão requer um preço a ser pago. A “questão do certo”, transcendendo o formalismo abstracto da metafísica, só ganha sentido se a sua inteligibilidade estiver conectada à efetivação do humanismo concreto – mesmo que, vá lá, admitamos, o humanismo concreto signifique o delineamento de um imperativo categórico, à maneira kantiana. Mas dois de seus postulados superam o universo da mera abstracção, quais sejam: o redescobrimento e a valorização antecedente do ser humano; e a sua autonomização e totalização. Ou seja, o humanismo concreto assume como condição básica a necessidade de integrar o ser humano na posse de si mesmo e devolver-lhe a capacidade autónoma de escolha. Compreende que o ser humano, como ser social, é antes de tudo um complexo de relacções, que não existe em si e por si, mas é o resultado de um processo histórico onde estão presentes relacções de poder, desigualdades, interesses em jogo, etc. Do ponto de vista analítico, parece, portanto, insuficiente chancelar proclamações a-históricas como norma de con- duta humana, do tipo “amai-vos uns aos outros”. Mais do que isto, importa ter presente imperativos de hominidade, das condições que produzem o ser humano e que o colocam em relacção no contexto em que ele está situado. Os seres humanos não nascem bons nem maus. Esses são conceitos que adquiriram significação no decurso da história e que foram internalizados pela consciência social a partir da vivência das pessoas em seu habitat. As ideias que as pessoas têm de si resultam da sua cultura. Variam de acordo com o patamar civilizacional, aqui e acolá, segundo as especificidades do meio natural e social, bem como de acordo com as convicções correntes nos grupos em que as pessoas estão integradas e conforme as crenças que lhes foram inculcadas espiritualmente. A efetivação do humanismo concreto é um incessante devir. Uma totalização dialética. Algo que não é estranho às afinidades eletivas de Goethe. Incursão moral e psicológica no jogo da atratividade e repulsa. Alegoria química pela qual os elementos se separam para se unirem. Crepúsculo da existência, opções nas fronteiras da ação. Síntese de impossibilidades. A “questão do certo” potencializa-se pela práxis do humanismo concreto. Sem recusar enfrentar a face inusitada da vida e a grande insônia do mundo. 078-079 cultura e pedagogia 3/16/10 9:45 AM Page 78 cultura e pedagogia Crianças não escapam à volúpia do mercado “A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias”. [Zygmunt Bauman] Paula Deporte de Andrade Rede Municipal de Educação de Venâncio Aires, Rio Grande do Sul Marisa Vorraber Costa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Luterana do Brasil Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto I 78 79 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Conforme vamos refletindo e também conhecendo e nos apropriando do pensamento de diversos analistas da contemporaneidade – Bauman, Jameson, Harvey, Bocock, Sennet e muitos outros –, vamos fortalecendo o entendimento de que o consumo se transformou em dominante cultural, em eixo organizador da sociedade. Bauman afirma que na condição pósmoderna, vivemos em uma “sociedade de consumidores”, na qual o consumo se manifesta como ímpeto constante e irrefreável de obter para imediatamente descartar e substituir, num movimento em que a posse está marcada pela efemeridade, pela volatilidade, diferentemente da “sociedade de produtores” em que o valor da posse dos objetos se expressava por sua solidez e durabilidade [Zygmunt Bauman: «Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias», 2008]. Na mesma linha de reflexão, Bocock, ao abordar a diferença entre o consumo no capitalismo moderno e no pós-moderno, salienta que o consumo, no final do século XX, transformou-se em um fenômeno social e cultural deixando de ser unicamente econômico. Ele está relacio- Projeto Criança e Consumo / Instituto Alana (Brasil) 078-079 cultura e pedagogia 3/16/10 9:45 AM Page 79 nado com aquilo que os indivíduos são ou desejariam ser, e também com os processos implicados na identidade [Robert Bocock: «El Consumo», 2003]. Trazemos essas abordagens sobre o consumo de hoje para incitar os leitores e leitoras a pensarem um pouco sobre o enredamento da infância nesta trama. Assim como o consumo é ressignificado a partir da segunda metade do século XX, o mesmo acontece com a infância e as crianças no interior desta nova lógica que configura a “sociedade dos consumidores” de que nos fala Bauman. Nela, “todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação)”. E quando o autor diz “todo mundo”, isso inclui particularmente as crianças, potenciais consumidoras, seja pelos recursos que mobilizam em vista da centralidade que ocupam nas famílias de hoje, pela influência que exercem sobre as escolhas de seus pais, ou porque as crianças consumidoras de hoje são os jovens e adultos consumidores de amanhã. Para que a formação das crianças ocorra em consonância com a cultura do novo capitalismo, onde as fronteiras entre consumo e política se confundem, um conjunto articulado de pedagogias culturais entra em ação. Schor nos diz que a partir da metade do século XX, em especial nas décadas de 80 e 90, emergiu uma nova aliança – a aliança entre crianças e consumo. A produtividade das crianças para o consumo e para o mercado econômico começa a ganhar relevância e espaço por meio das campanhas publicitárias, onde o objetivo central é fazer destas crianças consumidoras [Juliet Schor: «Born to Buy. The commercialized child and the new consumer culture», 2004]. Neste artigo, pretendemos chamar a atenção para a publicidade, a partir de uma pesquisa que investiga peças publicitárias de revistas de grande tiragem, com circulação semanal, e o uso que nelas se faz de imagens de crianças. Constatou-se, em concordância com as análises de Schor, que quando a publicidade aciona crianças para vender determinado produto, vende-se não apenas o produto, mas uma representação de infância útil ao mercado. E vende-se tanto a imagem física, o corpo destas crianças, quanto padrões de beleza e de conduta. Mercantiliza-se e molda-se uma infância própria aos interesses de mercado, tanto como estratégia para vender mercadorias como para vender e consumir as próprias crianças. Meninos e meninas ainda bem pequeninos já sobem nas passarelas da moda e suas fotos inundam campanhas publicitárias que apontam tendências e marcas. Seus corpos infantis são crescentemente erotizados e transformados em mercadorias que vendem e sugerem muito mais do que o desejo de adquirir simples produtos. Pelos estudos que temos realizado, as imagens de crianças que encontramos em peças publicitárias indicam ser este mais um sintoma de uma sociedade que não faz exceções. Sugerem também, sob outro ângulo, que devemos ficar atentos à afirmação de que “o advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um território não mapeado e inexplorado” [Bauman: «Modernidade líquida», 2001]. É assustador pensar que na sociedade de consumidores nem mesmo as crianças pequenas escapam da volúpia do mercado. 080-083 REPÚBLICA DOS LEITORES 3/16/10 9:44 AM Page 80 república dos leitores Justiça global: uma questão política, antes de tudo o mais I 80 81 PRIMAVERA 2010 I N.º188 É, hoje, comum ouvirmos falar de cidadania global, dando a entender que todos somos cidadãos do mundo e que esta questão ultrapassa, há muito, o estatuto legal da pertença a um Estado, com o consequente conjunto de direitos e deveres de cidadania. Se a última afirmação é verdadeira, a primeira está longe de o ser. Há muita gente sem qualquer poder de participação, mesmo a nível local – desde logo, todos os que vivem abaixo de um determinado nível de bem-estar, quer vivam em países subdesenvolvidos quer vivam nas margens do mundo rico, onde o crescente aumento do desemprego veio pôr a nu fragilidades e situações de exclusão antes insuspeitadas. Deveríamos, por isso, falar, em primeiro lugar, de justiça global. Difícil? Obviamente, porque os desafios a que nos enfrentamos estão para lá da retórica e da proclamação de princípios e de boas intenções. São desafios de ordem prática, exigem vontade, pragmatismo e acção concertadas, só possíveis se levarmos a sério a interdependência e a solidariedade, entre todas as pessoas e todos os povos, vivam na nossa rua ou num qualquer lugar do mundo. Isto implica que a política leve a sério o princípio da igualdade de oportunidades, pilar fundamental da equidade social, e sem o qual não poderemos falar de verdadeira democracia, de respeito pelos direitos humanos, de cidadania ou de desenvolvimento. As maiores dificuldades à justiça são o confronto de interesses, onde sempre ganha o mais forte, e o modo ultrajante como se divide a riqueza produzida – para uns poucos, tudo e cada vez mais, e, para a maioria, um lugar nas margens, no limite da sobrevivência. Não será possível um compromisso universal sobre a Justiça que crie as possibilidades efectivas para o desenvolvimento, tendo em conta os valores da pessoa e da comunidade, incorporando o melhor das tradições liberal e comunitarista e, também, reconhecendo que os povos têm em si mesmos a capacidade de tomar nas mãos o próprio destino? Tem de ser possível. Pois, não parece difícil, apesar de podermos ter diferentes perspectivas sobre a vida e o modo como desejamos e queremos vivê-la, que todos nos reconheçamos, reciprocamente, como seres humanos, como pessoas “livres e iguais, em dignidade e direitos” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 1º); e, igualmente, que todos nos reconheçamos como seres situados, num contexto e numa história, com diferentes valores culturais, sociais, religiosos, etc. Este reconhecimento permitiria que todos se pudessem olhar nos olhos, sem laivos de sobranceria, estabelecendo relações simétricas e dando sentido e conteúdo às palavras justiça e desenvolvimento. Só no dia em que passarmos a ver no outro (indivíduo ou país) um igual, isto passará a ser possível. A nível individual, a questão é ética, cada um escolhe como quer e pode agir; mas ao nível dos países, a questão é política, é quem governa nas mais diferentes esferas do poder que escolhe como quer olhar para o mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento. Maria Rosa Afonso Professora 080-083 REPÚBLICA DOS LEITORES 3/16/10 9:44 AM Page 81 O ensino público deve ser o eixo vertebrador do sistema educativo Inegável que se torna hoje a estreita ligação entre os processos educacionais e os processos sociais de reprodução mais abrangentes, isto é, reconhecida a condição de concorrência e simultânea complementaridade do campo escolar e do campo económico “comprometidos ambos com circuitos de trocas cada vez mais eficazes simbolicamente” (Bourdieu), a reestruturação capitalista, imposta a ferro e fogo nalguns países e a golpes de mercado noutros, vem produzindo um modelo de acumulação que já não precisa de massas trabalhadoras qualificadas, mas de uma pequena elite de especialistas e de uma massa de trabalhadores flexíveis, descartáveis e intercambiáveis com o espectro do desemprego como espada de Dâmocles. A escola inclusiva deixa, então, de ser funcional para o actual modelo económico. Como consequência desta disfuncionalidade, sobreveio uma crise de sentido que atravessa todo o dispositivo escolar (Maldonado). As políticas de descentralização e de desconcentração, retirando progressivamente a tutela do Estado, vão no sentido de um reescalonamento que dilui as formas de desinvestimento na Educação, com tal eficácia que nem damos pela influência da Organização Mundial do Comércio na sua reconfiguração. Sobretudo a partir de 1994, evidencia-se um fortíssimo movimento consertado de mercantilização da Educação. É assim que ela está a ser reconfigurada, mas nós continuamos a olhar para ela só através do centro que era o Estado-Nação. De mansinho, a lógica de uma “exclusão disciplinada” vem, vigorosamente, impondo-se. Reconvertido o discurso à escala deste centro, a linguagem eufemística é a cortina de nevoeiro em que se dilui a realidade violenta, como a fome que se está sub-repticiamente instalando, afectando já não só os visivelmente excluídos, começa a sentar-se nas cadeiras das nossas salas de aula, onde a indisposição de alguns alunos, sem eufemismos, quer dizer fome. O retorno da fome ao Portugal Europeu do Tratado de Lisboa, onde não se fala de pormenores sem importância, como o da exploração de mão-de-obra infantil em zonas industriais, em que, no recato da habitação, se cosem sapatos, pagos a 5 cêntimos a gáspea. Mobilizado o alento roubado ao tempo de brincar ou de fazer os deveres encomendados a todos, no alheamento de alguns (que fazer?), ao fim de coser 10 sapatos... Apesar da crise de sentido que a atravessa, não se lhe reconhecendo alternativa, a Educação escolar é entendida como um direito universal e um bem público, instituída em ferramenta imprescindível na formação emancipatória e na potenciação de convivência cidadã. E é, por isso, uma responsabilidade colectiva que a Administração tem o dever de garantir em condições de qualidade e de igualdade. Daí ser imprescindível que o ensino público seja o eixo vertebrador de todo o sistema educativo e que conte com o necessário prestígio social para se converter na concepção maioritária, capaz de afrontar estratégias privatizadoras e de inculcação de lógicas de mercadorização que se processam no seu próprio interior, desencadeando, no seu seio, mecanismos eficazes de fragmentação social. Afinal, o que define o carácter público de uma instituição é a sua subtracção às leis da oferta e da procura. Se vivemos no país da Europa onde as desigualdades sociais têm maior expressão e a pobreza atinge os níveis que são conhecidos, algo diferente do que fazemos deverá ser feito – e a Universidade, e a investigação e formação que dentro dela se fazem, não pode a isto ficar imune – para que as escolas públicas, sobretudo ao nível da Educação Básica, não sejam recipientes onde se guarda o descartável, o excedente, mas construtoras de sujeitos que, tomando a palavra, nela se revejam na luta por um outro tempo, que este é de muito sofrimento. Interrogando os próprios movimentos anti-sistémicos, Wallerstein alerta para que, enquanto eles permanecerem na ambivalência sobre a orientação ideológica do sistema mundial, enquanto estiverem inseguros quanto à forma de responder ao sonho liberal, podemos dizer que não estão em posição de travar uma guerra contra as forças que defendem a desigualdade no mundo. Rosa Soares Nunes Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto 080-083 REPÚBLICA DOS LEITORES 3/16/10 9:44 AM Page 82 A Afinal, final, Roma ffoi oi cconstruída on num só dia. na nova nova SMART SMART Q Quando uando o oss aalunos lunos ccolaboram olaboram na TTable, able, acontecem acontecem coisas coisas fantásticas! fantásticas! Debate. Resolução de problemas. Cooperação. A SMART Table ajuda os alunos mais novos a trabalhar em conjunto, e de tantas formas - e é divertido! Os professores também adoram a mesa, pois é fácil de personalizar as actividades de ensino e alterá-las à medida que os alunos vão aprendendo. A mesa também funciona com o quadro interactivo SMART Board™ e com outros produtos SMART. Descubra mais acerca da primeira mesa interactiva multi-toque e multi-utilizador para os alunos mais novos. Nós iremos mostrar-lhe como poderão acontecer coisas fantásticas na sua sala de aula - visite smarttech.com/table smar ttech.com / table. 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Mas sempre supôs uma problemática da linguagem e do social, uma responsabilidade motivada, sobretudo, pela ordem do pensamento e não tanto por convenções de cunho literário, de que a metáfora é um entre outros exemplos. Quando durante os anos sessenta do passado século se fez mais um anúncio apocalíptico da literatura, esgotada, aparentemente, nas suas convenções artísticas e dominada pela ideia da morte do autor, apelava-se, porém, à necessidade de pensar o literário, e em particular o romance, acima da discussão entre realismo e irrealismo, conteúdo e ficção, génese e forma. Numa palavra, acima de qualquer dicotomia. Ainda assim, tratava-se de uma problemática da linguagem, de revitalizar o literário. Experimentar escritas, mesmo quando parecem surgir de uma árvore sem história, implica um grau neutro de relação com a linguagem, o que é diferente de dizer que essa relação simplesmente não existe. Muito pelo contrário, a obra literária que é uma obra de arte verbal, como diria Todorov, constrói-se na mediação entre os patrimónios linguístico e semiótico de uma cultura, e através dela subvertem-se convenções e instauram-se novas propriedades discursivas relativamente à linguagem. Zero é, portanto, diferente de cru, porque o primeiro indica a negação das convenções (e por isso, ele é a antecipação de coisas novas e vivas), enquanto o segundo, prisioneiro da sua norma, vive impassível numa impessoalidade só. Foi por isso que, há dias, numa sessão pública onde se discutia o papel da metáfora na compreensão do texto literário, tive pena ao ouvir que “na escola há literatura a mais”. A aspereza com que nos fomos habituando a interpretar o que ouvimos, levou-me a recear o que na altura senti. Defender a ideia de que “na escola há literatura a mais” surge, contudo, num contexto de investigação onde a descrição formal dos elementos linguísticos é, para os alunos, mais importante do que o sentido que eles têm num texto de natureza literária. E, todavia, naquele ou noutro contexto, certamente ninguém duvida de que ensinar literatura na escola é importante. A diferença de posições deve-se antes à ideia de literatura e à sua realidade enquanto recurso educativo. Tive pena ainda de não ter ouvido as palavras de Proust, hoje tantas vezes citado, para quem a metáfora, vista como uma “metamorfose das coisas representadas”, corresponde a uma noção que vai além do nome que se dá às coisas; é em si uma inteligência que se deixa atingir por outros sistemas de signos. Como forma de pensamento e inteligência, a literatura não está a mais na escola, mas isto não significa que os alunos, globalmente, não saibam ler e usar a linguagem em termos conceptuais e criativos, e em especial a metáfora na compreensão de um texto literário. Saber usar a linguagem, expressão de cujo sentido tanto nos chegam as crenças na literacia como a desconfiança relativamente ao seu domínio, exige saber usar o pensamento, algo que, segundo aquela afirmação, há a mais na escola. É difícil que algum dia a literatura na escola venha a ter um consenso. O valor de um texto não pode ser medido, apenas, pelo trabalho que custou a ser escrito. Lê-lo, muito menos. Paulo Nogueira Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Alunos e professores colaboram na edição de livro Conceber um livro do princípio até ao final. Foi este o projecto a que se propuseram os alunos do 12º ano de Humanidades da Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa. A ideia tinha nascido no ano lectivo anterior, mas a sua concretização só agora chegou a bom porto. Os alunos de Português ficaram encarregues dos textos, as ilustrações a cargo dos alunos de Artes Visuais. Intitulado «A Linha do Pensamento, a Cor da Emoção», o livro recentemente apresentado tem 220 pági- nas e contou com a participação de 150 autores A responsável pelo projecto, Conceição Ramos, professora de Ar tes Visuais naquela escola, afirma que o tema O Eu e o Mundo funcionou como ponto de partida do qual “os alunos escreveram textos reflexivos sobre a sua relação com o mundo”. A ela juntaram-se quatro professores de Português e dois de Artes, que aplicaram a ideia nas aulas. A partir deste tema aglutinador, outros assuntos foram surgindo em paralelo: o amor, a violência, a crítica social, a alegria, a tristeza, tanto em poema como em prosa. Prisioneiros da indiferença, Bizarros Minutos, Caro, Quem Somos?, são alguns dos títulos escolhidos pelos alunos. Este é um exemplo de projecto inovador, transversal e inclusivo – a concepção do livro contou com a participação de alunos invisuais –, servindo para comprovar que os saberes não são estanques e que o conhecimento pode ser multidisciplinar. 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:25 AM Page 84 Bibliotecas escolares: uma realidade em mudança Desde este ano lectivo, a organização e gestão das bibliotecas escolares estão a cargo de professores bibliotecários “a tempo inteiro”, aos quais compete desenvolver estratégias que garantam a sua rentabilização ao serviço das escolas, dos processos formativos e das aprendizagens dos alunos. A propósito desta “nova” funcionalidade docente, a PÁGINA foi ao encontro do professor Pedro Moura, que trabalha em duas bibliotecas no concelho de Mafra, e cruzou-se com um poeta que vive intensamente os desafios da promoção da leitura e do livro junto de crianças e jovens. José Paulo Oliveira Jornalista I 84 85 PRIMAVERA 2010 I N.º188 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:25 AM Page 85 José Fanha: Queridas bibliotecas! Falar de bibliotecas escolares implica falar dos desafios da leitura e do amor pelos livros, duas presenças essenciais no dia-a-dia de José Fanha, arquitecto “não praticante” nascido em 1951, professor, poeta e divulgador de poesia de enorme talento, comunicador por excelência, autor de letras para canções, de histórias para crianças e de textos para televisão, rádio e teatro. Patrono de várias bibliotecas escolares, pintor nas horas vagas e cidadão a tempo inteiro, Fanha alimenta com carinho o blogue queridasbibliotecas e considera que “as bibliotecas escolares estão a polarizar uma nova forma de trabalhar a leitura nas escolas”, constituindo a RBE “um dos instrumentos fundamentais em que pode assentar o desenvolvimento da literacia e da leitura em Portugal”. Que balanço faz do queridasbibliotecas? As “queridasbibliotecas” foram uma brincadeira no seu início, uma experiência, uma tentativa de entender como é que se trabalhava um blogue e que impacto tinha. Rapidamente apercebi-me que tinha atraído uma quantidade significativa de pessoas e, de repente, dei comigo a sentir-me responsável por con- tinuar a “alimentar” essas pessoas, muitas vezes sem rosto. O blogue tem várias facetas… Em primeiro lugar, trata-se do diário de um cidadão, de um escritor, de um homem que sente necessidade de partilhar reflexões e paixões com os outros. Depois, trata-se de um lugar onde vou guardar/buscar recordações de momen- tos especiais e de amigos que tenho vindo a cruzar numa vida que tem passado pela canção, pela rádio, pelo teatro, pelo cinema, pela televisão, pelo ensino e pela promoção do livro e da leitura. Finalmente, é onde vou deixando registo da minha passagem por escolas e bibliotecas, constituindo assim uma espécie de diálogo prolongado com os professores e os meninos com que me vou cruzando ao longo do país. Ser patrono de várias bibliotecas/centros de recursos escolares deve ser um motivo especial de contentamento... É uma imensa alegria. A minha infância teve lugar na casa da minha avó, cheia de livros e histórias. Para mim, entrar numa biblioteca é regressar à minha casa de pequenino – uma casa calorosa, feita de viagens sem fim, maravilhas, mistérios, grandes amigos saídos de dentro das páginas de cada livro. Ler é indispensável à minha vida, ao meu equilíbrio, à minha relação comigo próprio e com o mundo. Por isso, é fácil perceber a alegria e emoção que tenho por ir acumulando bibliotecas escolares a que tiveram a gentileza de dar o meu nome [EB2,3 da 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:25 AM Page 86 bibliotecas Venda do Pinheiro, EB1 nº 3 do Cacém, EB1 do Olival Basto, EB2,3 de Pombais, EB2,3 Mestre Domingos Saraiva]. De alguma forma, tratar-se-á de um reconhecimento pela minha obra na área infantojuvenil e pela atitude que tenho procurado manter de cidadão solidário e empenhado na promoção do livro e da leitura. As bibliotecas escolares portuguesas estão diferentes. Quer comentar? Muito melhores. Estão a polarizar uma nova forma de trabalhar a leitura nas escolas. Neste momento, a Rede de Bibliotecas Escolares, em conjunto com a Rede de Leitura Pública e o Plano Nacional de Leitura – com todas as críticas que se possam fazer –, constitui um dos instrumentos fundamentais em que I 86 87 PRIMAVERA 2010 I N.º188 pode assentar o desenvolvimento da literacia e da leitura em Portugal e o esforço para ultrapassar as nossas profundas carências neste campo. Há que assinalar, no entanto, a necessidade de envolver as famílias neste processo, e esse é um passo difícil e moroso. Temos, também, de inscrever a leitura nos temas mediáticos e torná-la uma moda. Acima de tudo, é fundamental conseguir que as nossas classes política e empresarial, tão alheias à cultura e a tudo o que diga respeito ao livro e ao pensamento, tornem a leitura um desígnio nacional indispensável ao desenvolvimento social e económico. Afinal, os jovens e as crianças gostam de poesia? Fale-nos da sua experiência nesta matéria… Claro que os jovens gostam de poesia! A poesia é a grande forma que os portugueses tiveram de expressar as suas alegrias e tristezas, toda a sua identidade. Creio que o gosto dos jovens pela poesia passa, em grande parte, pela oralidade e pelo desfrute da musicalidade da língua e não pela análise e interpretação dos textos. Quem gosta do que lê, interpreta necessariamente. Quem só interpreta, em muitos casos, não aprende a gostar. Já agora, uma palavra sobre projectos. O que é que está a preparar neste momento? Vão sair dois livros, muito brevemente: um de histórias, intitulado «Histórias Para Contar Em Noites De Luar», e outro de História e de histórias, que se chama «Era Uma Vez A República». 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:26 AM Page 87 Pedro Moura: Ainda há muito a fazer, mas estamos no bom caminho Pedro Moura é professor-bibliotecário em serviço no Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro, no concelho de Mafra. Divide o seu tempo por dois estabelecimentos: Póvoa da Galega e Santo Estêvão das Galés, ambas escolas do 1º Ciclo com jardins-de-infância. Foi à procura de formação e hoje está a fazer um mestrado em regime póslaboral, exactamente com a temática das bibliotecas escolares. Na sua opinião, o enquadramento legal é “um grande e importante passo para todos. Por um lado, legitima a posição dos professores bibliotecários perante toda a comunidade educativa, por outro, dá-nos mais responsabilidade”. No âmbito das escolas a que estás associado, que balanço fazes da tua actividade como professor-bibliotecário? O balanço parece-me muito positivo, apesar de ser uma tarefa nova para mim. O facto de conhecer o agrupamento dos dois anos lectivos transactos é um elemento facilitador para a articulação que é necessária entre os professores das turmas de 1º ciclo ou do jardim-de-infância e o professor bibliotecário. Ainda há muito a fazer neste campo, mas, garantidamente, estamos no bom caminho. Os professores-bibliotecários têm um enquadramento legal. Sinteticamente, o que é que essa legislação trouxe de novo? Foi um grande e importante passo para todos. Por um lado, legitima a posição dos professores bibliotecários perante toda a comunidade educativa, por outro, dá-nos mais responsabilidade. Desde logo, a afectação de vários professores bibliotecários a um agrupamento (consoante o número de alunos) com horário completo, faz com que muitas BECRE [bibliotecas escolares/centros de recursos educativos] sejam, hoje em dia, mais valorizadas, dinamizadas de forma mais permanente e constante. Mas no fundo, mais importante que tudo, é que os seus recursos sejam realmente rentabilizados em prol dos alunos. Trabalhar em bibliotecas escolares dáte, certamente, uma alegria especial… Queres partilhar connosco essa sensação? É uma sensação muito boa partilhar com os professores das turmas a formação de todos os alunos e ter a minha quotaparte no seu crescimento como indivíduos conscientes do seu lugar na escola e na sua comunidade. Como é que os professores em geral encaram o papel das bibliotecas escolares? Aproveitam todas as potencialidades desse espaço? Mentiria se dissesse que todos os colegas percebem o papel das BECRE na totali- dade. Os imensos papéis que são pedidos aos professores, de um modo geral, dificultam a planificação das actividades e a articulação entre os docentes, o que faz com que nem todas as potencialidades das bibliotecas sejam rentabilizadas na íntegra. Uma articulação mais eficiente é, sem dúvida, o desafio maior que os professores enfrentam hoje na relação com a BECRE. E os encarregados de educação? O ritmo quotidiano deixa pouco tempo para as famílias acompanharem os educandos como gostariam, e isso também se reflecte na relação com a BECRE. No entanto, sempre que são convidados a participar em actividades lançadas pelas bibliotecas, por norma, aceitam o desafio: em feiras dos livros organizadas pelas escolas, em visitas para relatarem experiências de vida ou dinamizarem contos de histórias, etc. A requisição domiciliária para os meninos de jardim-de-infância reflecte esse envolvimento, pois implica a leitura por 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:26 AM Page 88 bibliotecas parte da família e, ainda por cima, o preenchimento de uma ficha de leitura, o que consome alguns minutos. Os blogues das bibliotecas são elementos divulgadores das acções das BECRE e alguns comentários que são deixados por lá, ou o conhecimento dessas acções pelo que nos apercebemos em conversas informais, são sinais que há muitos pais que estão atentos ao que se passa nas escolas e próximos do que interessa aos alunos. mas de saúde. Hoje em dia, essa situação já não se coloca, uma vez que as bibliotecas têm a orientação da Rede das Bibliotecas Escolares e estão a cargo de professores motivados para esta função, que vão tendo pelo menos formação contínua, para que compreendam o que deles se espera, para além do apoio essencial que é dado pelas bibliotecas municipais. Já fizemos esta pergunta ao Zé Fanha: as bibliotecas escolares portuguesas estão diferentes, para melhor. Estás de acordo? Queres comentar? É uma grande alegria trabalhar com todas as crianças das escolas, e não só com os meus alunos, e como a quase totalidade das tarefas que lhes são solicitadas são de carácter lúdico – ou de carácter pedagógico, mas com uma envolvência especial, num espaço diferente da sala de aula –, a esmagadora maioria dos alunos adora vir à BECRE. É muito agradável saber que eles estão Penso que sim. Antigamente, as bibliotecas eram espaços exíguos e fechados, com livros velhos, pouco atraentes para as crianças e sem computadores. Muitas pessoas que tinham a seu cargo as bibliotecas eram escolhidas porque tinham proble- I 88 89 PRIMAVERA 2010 I N.º188 As crianças gostam das bibliotecas? Fala-nos da tua experiência… sempre ansiosos e ávidos da hora semanal em que vêm à biblioteca. O número de requisições domiciliárias prova que os meninos que não têm acesso a livros em suas casas e nas suas famílias estão cada vez mas motivados para a leitura Já agora, uma palavra sobre projectos. O que é que estás a preparar neste momento? Ou que projectos queres realçar? Penso continuar a dinamizar a participação das minhas escolas em projectos Etwinning, que são altamente motivantes para os alunos, e tentar aumentar as percentagens de alunos que sabem pesquisar sobre determinado tema e reconhecem e seleccionam a informação relevante. Se conseguir ainda aumentar, ou contribuir para o aumento das leituras e sua compreensão por parte dos alunos, melhor ainda… 084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:26 AM Page 89 Valorizar a biblioteca no desenvolvimento da aprendizagem Com o intuito de proporcionar melhores condições para o bom desenvolvimento das actividades das bibliotecas escolares e de institucionalizar o papel do professor bibliotecário, a Portaria n.º 756/2009, de 14 de Julho, veio permitir dotar as escolas de recursos humanos com qualificação adequada e em número suficiente para desenvolver os projectos – com carácter cada vez mais pedagógico – que se exigem às “novas” bibliotecas escolares, valorizando-as como estrutura axial no desenvolvimento das aprendizagens. Para além das competências técnicas de gestão de recursos físicos e humanos e de informação, a portaria enuncia um alargado conjunto de competências pedagógicas do professor bibliotecário, para as quais é exigido que trabalhe com todas as estruturas do agrupamento/escola, através da participação nos conselhos pedagógicos, de departamento e de docentes, em reuniões informais e também com as famílias e toda a comunidade escolar alargada. Para coadjuvar os professores bibliotecários, é aconselhada a constituição de equipas, também previstas na portaria, por forma a conseguir um grupo de trabalho multidisciplinar, com valências necessárias para responder às diferentes necessidades relacionadas com as literacias actuais. Destas equipas devem fazer parte auxiliares da acção educativa, sendo recomendável – sobretudo nas escolas com 2.º e 3.º ciclos e/ou Ensino Secundário – que exista, no mínimo, um auxiliar a tempo inteiro, permitindo manter a biblioteca em funcionamento durante todo o período de actividade da escola, no horário mais alargado possível e abrangendo os vários públicos: alunos regulares e alunos dos cursos CEF e EFA, entre outros. As atribuições dos professores bibliotecários (e equipas) adaptam-se de acordo com diversos factores: tratar-se ou não de um agrupamento, dimensão e dispersão do agrupamento e existência ou não de outros professores bibliotecários na equipa, destacando-se a conveniência de estas questões serem consideradas no regulamento interno ou no regimento. Os professores bibliotecários devem cumprir 35h semanais (horário a estipular pelo director), distribuídas pelas actividades inerentes às funções de coordenador de biblioteca e prevendo tempos para preparação de actividades e participação em reuniões de vária ordem, internas e externas. Adaptado de nota informativa enviada aos directores de escola/agrupamento pela coordenadora do programa Rede de Bibliotecas Escolares, Maria Teresa Calçada. 090-091 saúde escolar 3/16/10 9:22 AM Page 90 saúde escolar Da literacia em saúde locais pela aplicação do vasto Programa Nacional de Saúde Escolar – a trabalhar todas estas dimensões nos futuros adultos? Centremo-nos apenas nos conhecimentos em saúde e nas competências para ter atitudes e comportamentos salutogénicos. Uma das estratégias fundamentais de empowerment para aumentar o controlo da população sobre a sua saúde, a sua aptidão para procurar informação e a sua competência para assumir essa responsabilidade, é a promoção da literacia em saúde. Como literacia em saúde referimo-nos à competência para tomar decisões relacionadas com a saúde nos mais diferentes contextos do quotidiano, seja em casa, no local de trabalho, na comunidade, no sistema de saúde, no comércio ou na esfera política. Considera-se frequentemente que a literacia em saúde engloba quatro dimensões: 1. conhecimento básico em saúde, conhecimento e aplicação de comportamentos de promoção de saúde, protecção da saúde e prevenção da doença, primeiros socorros e cuidados ao próprio e à família; 2. competências para utilização dos sistemas de saúde e actuação adequada como parceiro dos profissionais; 3. competências de consumidor para tomar decisões na selecção e utilização de bens e serviços de saúde e acção de acordo com os direitos de consumidor, se necessário; 4. comportamento de decisão informada na esfera política, conhecimento dos direitos de saúde, participação activa na defesa de questões de saúde e filiação em organizações de saúde e de doentes. Estarão as escolas, a nível curricular, e as equipas de saúde escolar – responsáveis I 90 91 PRIMAVERA 2010 I N.º188 No que diz respeito à educação para a saúde, o currículo escolar e a informação passada pelos profissionais de saúde concorrem em grande desvantagem com outras duas fontes. Por um lado, os anunciantes têm como alvo frequente as crianças e, ainda mais agressivamente, os jovens, havendo inclusivamente alguns esforços nacionais e internacionais para se limitar este tipo de publicidade. Num estudo norteamericano, por exemplo, estimou-se em mais de 20 mil milhões de euros por ano o dinheiro despendido tendo como alvo os adolescentes na televisão, revistas e internet, entre outros meios. Ou não fosse de 5 horas o tempo médio diário de exposição dos adolescentes aos media. Por outro lado, é frequente encontrar erros graves quando é realizada a educação para a saúde pelos media, inclusivamente quando o propósito é apenas o de esclarecer os seus clientes. Este facto origina um novo tipo de crenças na comunidade, baseadas nos meios de comunicação, os quais curiosamente transmitem credibilidade aos conceitos transmitidos, apesar das frequentes contradições entre os agentes de informação ou do mesmo agente relativamente ao tempo em que a transmissão é realizada. Daí a importância de, nos programas de promoção de saúde, se proporcionar tempo aos alunos para analisarem como se constrói a publicidade e a desinformação, de modo a dar-lhes competência para a desconstruir e acrescentar ou contrapor aquilo que não é dito. Há mais de 50 anos que as estratégias de marketing têm vindo a ser desenvolvidas e introduzidas na vida económica dos países industrializados para venda de produtos, criando desejos e necessidades no consumidor, de modo a controlarem a dinâmica do mercado. E alguns destes produtos afectam directamente a saúde. Actualmente, não existem anúncios televisivos ao tabaco e a bebidas alcoólicas – estas últimas, continuam, porém, a ser frequentemente patrocinadoras de festivais de Verão –, mas, apenas para citar alguns exemplos, todos os dias somos bombardeados com publicidade a alimentos e a medicamentos de venda livre. De qualquer modo, há formas de contornar a legislação, como o product placement, isto é, a colocação de produtos em filmes, séries e telenovelas, filmados em segundo plano. Se a simples transmissão de informação não se traduz na mudança de atitudes e comportamentos, o marketing tem esse objectivo. É importante, portanto, considerar esta ferramenta quando se tem como finalidade a promoção da saúde, especialmente se a aliarmos a um programa estruturado. O marketing social pode ser definido como a utilização de princípios e técnicas para a promoção de uma causa, ideia ou comportamento social. O marketing social em saúde tem vindo a ser utilizado, mas não com o investimento desejado e frequentemente sem um fio condutor. É fundamental que seja apelativo para o público-alvo, que tenha objectivos perfeitamente definidos e que equacione o que pode influenciar os comportamentos, de modo a poder-se responder a duas questões com perfeita clareza: o que se vai fazer e como? Poderão os alunos ser um elemento-chave na concepção do marketing social em saúde que lhes é destinado? Na próxima revista, analisaremos como. Nuno Pereira de Sousa Médico de Saúde Pública 090-091 saúde escolar 3/16/10 9:22 AM Page 91 A construção de um “eu” virtual em idade escolar Usando uma plataforma comunicacional, uma adolescente conhece um rapaz de quem se agrada. Pouco importa o contexto internauta em que tal sucedeu, como o Messenger, uma sala de chat, o HI5, o Second Life, o Twitter ou uma outra rede social. Sabemos bem que as fronteiras são fluidas e que um contacto num qualquer dos suportes referidos pode ser desenvolvido num outro. Por exemplo, um avatar do Second Life tem a sua própria página, enquanto personagem fictícia, no Facebook… A nossa adolescente é uma internauta experimentada. As muitas horas passadas em vários suportes explicam o sentimento de mestria e de segurança que sente. Queremos dizer: ela acha que consegue seleccionar pessoas interessantes pelo seu estilo de teclar ou pelas escolhas que fazem no virtual. De qualquer modo, interessa-se pelo rapaz e os contactos intensificam-se… A dada altura enche-se de coragem: marca um encontro no real. Escolhe um local seguro ou então leva uma ou duas amigas como forma de protecção. E não nos alarmemos, a pessoa que comparece ao encontro é, de facto, um rapaz, da mesma idade que a nossa personagem. Não é de estranhar, pois já tinham falado via webcam e trocado fotografias. Esta intimidade tinha minimizado qualquer tipo de surpresa (pelo menos aparentemente). Quando o encontro terminou, a decepção era uma nota dominante. E porquê? O rapaz era extremamente tímido, muito nervoso, não conseguia manter uma conversa até ao fim. Tratava-se do com- pleto oposto à maneira de ser da internauta com quem interagia. É que o avatar aparentava ser extremamente seguro e autoritário. Exalava um desprendimento atractivo. A adolescente estava desconcertada. Sentia uma paixão incipiente que foi totalmente defraudada. Quando chegou ao quarto, ligou o computador. Tratava-se de um gesto maquinal: dentro em pouco estava novamente a teclar com o amigo… E a atracção reacendeu-se… Eram lançadas as bases para um relacionamento afectivo problemático e confuso, em que os planos de realidade se cruzavam, criando amplas margens de ambiguidade. Não pretendemos exercer aqui uma acção moralizante ou alarmista. Existem casos de comunidades virtuais plenamente estimulantes e ricas em termos de troca de ideias e de relações humanas. De resto, será praticamente impossível “desinventar” estas possibilidades. Tratase, também, de reflectir sobre as modificações que estas novas socializações poderão provocar. Pensamos em famílias com dificuldades em impor regras e limites, ou em famílias com regras muito rígidas, em que os maus-tratos possam surgir. Nestes casos, e em muitos outros, a internet abre um espaço ao lado da realidade, que poderá fornecer respostas mágicas a muitos impasses biográficos que as crianças e adolescentes possam estar a viver. Trata-se de uma problemática que adquire uma certa representatividade em termos de pedidos de consulta de psicologia. Surgem crianças que passam noites em claro a conversar com pessoas que não conhecem, que se aproximam de ideologias subculturais, que desenvolvem relações ambíguas ou que são enganadas por pessoas mais velhas... Para além de aceitar o desafio da internet e de promover os computadores Magalhães, precisamos de nos prevenir para o reverso da medalha. As disfuncionalidades familiares serão igualmente replicadas nestes suportes. Resta saber que rostos adquirirão. Em todo o caso, seria necessário apostar com tanto ou mais vigor em programas de educação parental que possam dotar certas famílias de instrumentos e competências. Elas terão de lidar com os novos desafios, positivos e negativos, que o mundo virtual consigo acarreta. Rui Tinoco Psicólogo clínico Departamento de Saúde Pública do Norte, Agrupamentos de Centros de Saúde Porto Ocidental 092-093 internet+ fora da escola 3/16/10 9:26 AM Page 92 quotidianos Internet II Um dia, tendo terminado uma palestra no Instituto da Defesa Nacional, saía eu da sala com um enorme livro referente a estratégia. Um general interpelou-me comentando: “Isso é uma arma de arremesso!” Aquilo era um livro, mas também podia (com restrições) ser uma arma! Dependia da idade da pessoa que eu atingisse com o livro. A internet é, também, como sempre sucedeu ao longo da História, algo que tem múltiplas aplicações. Para o bem e para o mal. Como nota Philippe Breton, apenas uma arma nuclear não tem utilidade, pois o melhor é não a usar! Mas a arma nuclear pode ter sido positiva (se bem que isso pareça incrível). Se os soberanos europeus do Império Austro-Húngaro, o Kaiser alemão ou o czar da Rússia tivessem visto o (seu) próprio futuro, depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), provavelmente não teria havido guerra! Ora, este efeito de bola de cristal apareceu com nitidez a Truman e a todos os líderes políticos que viram os efeitos de Hiroshima e Nagasaki. Essa estranha clarividência foi a chave do fim das grandes guerras, abrindo o caminho às inúmeras pequenas(?) guerras do século XX, guerras por procuração, entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética. A internet tem a ver com isto? Tem. Ela é fundamental para a prossecução da louca política de deslocalização de unidades produtivas para a China. O e-mail, praticamente sem custos, permite a comunicação em tempo real de ordens e imagens, gerando encomendas que os escravos chineses produzem. Sem esta rapidez, aliada a um incremento nunca visto antes dos transportes marítimos ou aéreos de mercadorias, esta globalização seria impossível. Carlos Mota Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Vem isto a propósito do seguinte: alguém ainda duvida do porquê da existência de uma enorme internet paralela? Há inúmeros sites de partilha de ficheiros onde se encontra de tudo. Desde filmes a música e software de todos os tipos. Tais sites remetem para satélites que disponibilizam o material aos que sabem usar essa internet paralela. Os donos dos direitos de autor não gostam disto. É natural. Mas também não entendo – melhor, não acredito – que as discográficas paguem o que deviam pagar aos herdeiros de cantores já falecidos, por exemplo. Também não se entende como se prejudica Bill Gates, se ele é o homem mais rico do mundo (ou se este ano está em segundo lugar). Pelos vistos, a internet paralela não causou a pobreza nem de Hollywood, nem dos seus ricos actores, nem a ruína dos produtores de software. Quando nos dizem que devemos pagar por tudo, devemos perguntar se não estarão a exagerar. Os governos dos EUA, da União Europeia, o russo, o japonês e o chinês, todos sabem muito bem do que estou a falar. Existem satélites militares que facilmente inutilizariam os satélites que alojam software dito ilegal (o nome em Inglês é warez). Não o fazem porque convém. É crua esta frase? E o que dizem os referidos governos dos clones de hardware (por exemplo de telemóveis, relógios ou computadores), feitos na Rússia, Japão ou China? O que dizem e fazem quando mandam os trabalhadores de todo o Ocidente para o desemprego, fechando os olhos ao trabalho escravo ou semi-escravo da Ásia, ao trabalho infantil, ao tráfico de crianças, à venda de órgãos, ao “turismo de saúde”? – quer um rim novo, vá à Índia: é barato e garantido! Quem nos fala com despudor dos direitos de autor finge esquecer que o Brasil deu um exemplo quando começou, em larga escala, a produção de medicamentos genéricos. Alguma grande indústria farmacêutica faliu? A internet não é um meio de comunicação social. Ela engloba os próprios meios de comunicação social. Pode ser usada por criminosos (e por certo é). Mas é também, na partilha, um enorme espaço de troca de informações e liberdade. Leia a Wikipedia, escreva, partilhe! Eu faço isso no meu site. No número de Inverno, a PÁGINA publicou o primeiro artigo do autor dedicado à internet, “vista como ferramenta utilizável pelos habitantes do planeta”. I 92 93 PRIMAVERA 2010 I N.º188 092-093 internet+ fora da escola 3/16/10 9:26 AM Page 93 fora da escola também se aprende Descobertas e invenções em narrativas imagéticas “Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. (...) É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo.” [Manoel de Barros, «Memórias inventadas: a segunda infância», 2006] As pesquisas que venho fazendo com imagens de escola vêm assumindo importância crescente pelo que despertam de interrogações e ideias, diálogos e narrativas possíveis sobre os cotidianos expressos nas imagens de escolas com as quais entro em contato. Elas mobilizam as minhas possibilidades de compreensão/invenção de objetos que deem conta das tantas formas possíveis de dialogar com aquilo que se vê/lê. Percebo, no material observado, inúmeras pistas a respeito dos cotidianos escolares vividos, questionados ou obedecidos, transformados por tantos e tantas alunos(as), professores(as), autoridades, inspetores, tecendo compreensões possíveis daquilo que as narrativas imagéticas me dizem. Mas é sempre descoberta/invenção a posteriori. Nunca sei bem o que posso encontrar, nem mesmo tenho um objetivo na busca de demonstrar o que quer que seja a priori. O prazer e a aprendizagem a que essas pesquisas me levam estão nas descobertas e invenções possibilitadas por elas, pelo que permitem me aproximar das redes que se põem em movimento nos muitos cotidianos escolares. Einstein afirmava que “nem tudo o que pode ser contado conta, e nem tudo o que conta pode ser contado”, questionando a importância que nos acostumamos a conceder à quantificação. Aderindo a essa máxima, entendo que captar e perceber as qualidades e especificidades “que contam” não é tarefa fácil. Encontrar nas narrativas imagéticas indícios da realidade que, supostamente, elas expõem, requer certa abertura para o inesperado. A imprevisibilidade do que se pode encontrar é, de algum modo, expressão da própria imprevisibilidade da vida cotidiana, que, ao contrário das crenças difundidas pela e na modernidade, é espaço de permanente negociação de sentidos, de criação e reinvenção permanente de saberes/fazeres/valores e emoções. Ou seja, para além da repetição dos esquemas hegemônicos da organização formal da Escola, há no seu cotidiano outros saberes/fazeres/valores e emoções que se insinuam também nas imagens. No material recentemente pesquisado (Museu Nacional da Educação – Rouen, França), chama a atenção a função atribuída aos cartazes usados até os anos 1960, que servem de suporte a atividades de redação, ditado, gramática, vocabulário e fixação de conteúdos de diferentes disciplinas. Em comum, as imagens observadas têm muito: expressam um modelo, uma defesa de um modo de vida mais do que apenas de escolarização. O modelo de Escola que neles se evidencia é aquele que ensina expositivamente, busca a fixação, educa para a formação do bom cidadão/cidadã, pessoa respeitadora e defensora dos bons costumes e dos valores da sociedade democrática. Sem dúvida, estamos perante a chamada “Escola Tradicional”, ainda hoje modelo predominante. Mas não nos enganemos, essa escola está em movimento. Cartazes produzidos entre 1850-1940 mostram coisas diferentes e por meio de outra estética. Tudo parece mais fixo e menos dinâmico. Sem avançar em possíveis interpretações arriscadas, penso ser importante destacar essa mobilidade, pois é ela que permite questionar a suposta permanência do modelo, a suposta imobilidade da Escola, tida como instituição inadaptada às mudanças do mundo. É ela que permite afirmar que, para além das permanências, há movimento, e se não o podemos captar nas imagens em si, podemos captá-lo no que elas não expressam, a sua própria mobilidade e a daquilo que expressam/escondem. Inês Barbosa de Oliveira Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Brasil), Faculdade de Educação, Laboratório de Educação e Imagem Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita a grafia original do texto 094-095 visionarium +PROFEDIÇÔES 3/16/10 9:30 AM Page 94 visionarium Mosca do vinagre é modelo biológico Visionarium Departamento de Conteúdos Científicos I 94 95 PRIMAVERA 2010 I N.º188 A Drosophila melanogaster, ou mosca do vinagre, é um insecto com aproximadamente 3 milímetros de comprimento, pode ser visto próximo de fruta em fermentação – o que faz com que também seja conhecido como mosca da fruta – e é usado como modelo biológico, para pesquisa, há quase um século. No laboratório de Thomas Hunt Morgan, pouco depois da notoriedade dos trabalhos de Gregor Mendel, este organismo foi considerado ideal para realizar estudos genéticos. Morgan recorreu à Drosophila melanogaster para demonstrar o mecanismo da herança mendeliana. Os geneticistas consideram a Drosophila melanogaster um organismo bastante útil para o estudo da morfologia dos cromossomas e cariótipo. À medida que a genética passa de ciência descritiva a ciência bioquímica e molecular, a Drosophila melanogaster tem-se revelado útil para todo o tipo de análises. Continua a ser, desde os trabalhos de T. H. Morgan, na primeira metade do século XX, o animal por excelência para estudo de mutações e toxicologia genética. Foi um dos primeiros eucariotas em que se realizou engenharia genética e se puderam estudar as bases moleculares do seu desenvolvimento, bem como as suas consequências. Entre 1910-1940, Morgan e os seus colegas desenvolveram uma série de trabalhos experimentais, utilizando como material biológico a Drosophila melanogaster. Casualmente, um dos seus alunos detectou, entre os numerosos exemplares em cultura, um macho que, em vez de olhos vermelhos, apresentava olhos brancos (mutante white). Na sequência do aparecimento desta variação hereditária em relação à cor dos olhos, Morgan efectuou o primeiro cruzamento entre machos de olhos brancos e fêmeas de olhos vermelhos, e um cruzamento recíproco (entre fêmeas de olhos brancos e machos de olhos vermelhos). Quando Morgan cruzou um macho de olhos brancos com uma fêmea de olhos vermelhos, obteve uma descendência (F1) totalmente constituída por indivíduos de olhos vermelhos, estando os resultados de acordo com a genética mendeliana. Os resultados da F2 (¾ da população com fenótipo dominante e ¼ da população com fenótipo recessivo) continuavam a estar de acordo com os princípios de Mendel, mas Morgan ficou surpreso ao verificar que todas as moscas de olhos brancos eram machos. O investigador admitiu a hipótese de os alelos condicionantes da cor dos olhos se localizarem no cromossoma X e de no cromossoma Y não existirem alelos para essa característica. A interpretação dos resultados obtidos no cruzamento recíproco confirmou a hipótese de que a transmissão do carácter “cor dos olhos” estava associada ao sexo (cromossoma X), pois, ao contrário do que seria previsível, a geração F1 não foi homogénea em relação a esse carácter. A interpretação dos resultados obtidos neste cruzamento vem confirmar a existência de caracteres cuja transmissão se encontra ligada ao sexo dos progenitores, pois os genes que determinam esses caracteres estão localizados nos cromossomas sexuais. Apesar de já ser usada há muitos anos como modelo biológico, a Drosophila melanogaster continua a ser, ainda hoje, um dos organismos mais utilizados em investigação, quer em genética, quer noutras áreas das ciências biológicas, estando associada a muitos dos avanços ao nível do conhecimento da genética, do desenvolvimento e das ciências biomédicas. 094-095 visionarium +PROFEDIÇÔES 3/16/10 4:01 PM Page 95 livros vimentistas surgiu, então, uma elite de vanguarda, os tecnocatólicos, que olhou a realidade social portuguesa com os olhos da técnica, da economia, da sociologia, enunciando um novo discurso de denúncia do atávico atraso do país: analfabeto, impreparado, rural, sem direitos, fechado no côncavo do regime e a necessitar, com urgência, de outro respirar. Albérico Afonso Costa Alho [€15.00; €13.50 c/ desconto] Trajectórias Quebradas. A Vivência do Desemprego de Longa Duração. Ser desempregado não é simplesmente estar desocupado ou privado de emprego. É também ser reconhecido como tal e vivenciar a experiência subjectiva do desemprego. Recentes investigações sociológicas realçam a desestruturação da vida pessoal, familiar e social daqueles que estão privados de emprego por um longo período. Aqui pretende-se reflectir sobre as consequências (in)visíveis de desemprego, reequacionando-se quer o papel da família, quer o papel do Estado-providência na manutenção da coesão social e a sustentabilidade de políticas públicas na sociedade contemporânea. De forma complementar, é feita uma abordagem simultaneamente estrutural e biográfica, perspectivando-se o desemprego enquanto experiência social que pode assumir vivências subjectivas complexas, resultado não apenas da privação de um salário, como também das fragilidades de sociabilidade que se observam a vários níveis. Para as pessoas que vivem o desemprego, as suas causas podem alicerçarse sobretudo na percepção de um fracasso pessoal, de uma degradação da qualidade de vida, de uma quebra das relações de amizade e de companheirismo. Ana Paula Marques [€14.00; €12.60 c/ desconto] FPA. A Fábrica Leccionada. Aventuras dos Tecnocatólicos no Ministério das Corporações. Este livro tem como objectivo o estudo da Formação Profissional Acelerada (FPA) que teve como contexto o Portugal dos anos 60. Esses anos em que a sombra da tarde caía já sobre o regime, assistiram a um processo de industrialização que necessitava de uma mãode-obra com destreza e formação suficientes para responder ao desafio da nova tecnologia, afinada e fordista, propulsora de outra produtividade. A FPA surgiu como resposta a essa industrialização, que se, por um lado, era vista como necessária e desejável pelos sectores desenvolvimentistas, por outro, era temida e rejeitada por todos os que integravam as hostes mais conservadoras e reaccionárias do regime. Dos sectores desenvol- Património e Identidade. Os museus de sítio, locais, regionais, bem como os monumentos que se inscrevem na história de uma nação ou de uma região (religiosos, civis e outros), os objectos produzidos pelo artesanato (cerâmica, vidro, têxteis, vime e outros), pela indústria, pela agricultura, pelas artes, etc., constituem-se como meios privilegiados através dos quais se faz a identificação de um povo a um espaço e a um tempo e, portanto, se fabrica a identidade. Da mesma forma, o património imaterial, sejam as canções, as danças, os provérbios, os mitos, as romarias ou as feiras, é um símbolo aglutinador de uma comunidade, na medida em que as pessoas o usam como reforço e coesão do “nós” social. Assim se constrói a memória de um povo, de uma aldeia, de uma freguesia, de um concelho, de um distrito, de uma região, de um país. São as imagens do passado, a ritualização da memória e a vivência do presente, ainda que sujeitas sempre a (re)invenção da tradição, que reforçam a ordem social. Ricardo Vieira e Fernando Magalhães, org. [€14.00; €12.60 c/ desconto] Matéria Brevíssima, de Maria Albertina Mitelo, encerra um ciclo de três trabalhos em poesia. Na sequência de O Corpo das Aves (2004) e Uma Leve Matéria (2007), também Matéria Brevíssima se assume marcadamente voltado ao transcendente. E também aqui, as aves e os pássaros – aliás, omnipresentes em toda a obra poética da autora – se constituem como metáforas do ser humano em busca de superação da sua própria finitude. 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 2:15 PM Page 96 entrevista LAURO MOREIRA Por uma comunidade de cidadãos lusófonos Diplomata de carreira, Lauro Barbosa da Silva Moreira nasceu em 1940, em Anápolis (Goiás, Brasil), em 1940. Licenciado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ingressou na carreira diplomática em 1965, ano em que integrou o COLESTE (Grupo de Coordenação com os Países Socialistas da Europa de Leste). Depois, serviu em postos diplomáticos como Buenos Aires, Genebra, Washington, Barcelona e Rabat – ainda no quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, chefiou a Divisão de Difusão Cultural e o Departamento Cultural do Itamarati. Em 1997, foi nomeado presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil e da Comissão Executiva Bilateral Brasil/Portugal para as Comemorações do Descobrimento do Brasil. Em 2003 foi director da Agência Brasileira de Cooperação. Para além das suas actividades profissionais, Lauro Moreira é um militante activo de causas culturais e artísticas, dedicando-se, nomeadamente, às artes cénicas (actor, director e autor), ao cinema (documentarista) e à fotografia. Esta “inquietação cultural” ficou patente em todos os postos diplomáticos onde exerceu, realizando diversas acções de promoção da cultura brasileira, sobretudo artes, música e poesia. Criou o grupo Solo Brasil, com o qual apresenta o que há de mais representativo na música brasileira do século XX. Lançou «Mãos Dadas», um CD duplo onde interpreta poetas de todos os países de língua portuguesa, «Manuel Bandeira: o poeta em Botafogo», de quem é afilhado de casamento. Em 2001, o então presidente Jorge Sampaio agraciou-o com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Desde 2006 até ao início deste ano, foi o representante permanente do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Personalidade de sólida cultura humana e lusófona e de verbo fácil, a PÁGINA foi tomar café com Lauro Moreira num fim de tarde alfacinha. I 96 97 PRIMAVERA 2010 I N.º188 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 97 Ele tem um sonho 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 98 entrevista Alguns dias após receber a PÁGINA numa sala da Missão do Brasil, num 10.º andar da Avenida da Liberdade, e nas vésperas de deixar Portugal, Lauro Moreira foi homenageado na Academia das Ciências de Lisboa, tendo-lhe sido entregue por Adriano Moreira o prémio Personalidade Lusófona 2009, com que foi distinguido pelo Movimento Internacional Lusófono (MIL). profunda miscigenação, e Portugal foi quem promoveu essa mistura. Não nos esqueçamos que Portugal era um país extremamente misturado – Lisboa era uma esquina, um carrefour de raças e etnias, de religiões, de tudo. O Norte de África tinha uma presença muito forte e, a partir de um certo momento, com os contactos todos com o Oriente, isto aqui era uma... A lusofonia é um tema sobre o qual tenho me debruçado já há longo tempo e tenho formulado para mim mesmo algumas concepções a respeito. É claro que para um leigo, lusofonia é muito fácil de definir – seria simplesmente o universo habitado por cidadãos que falam Português. Mas a lusofonia é muito mais, porque ela não se circunscreve ao espaço e ao universo dos falantes de Português. A lusofonia, muito mais do que um espaço, é um espírito que emerge de 500 anos de um convívio cuja matriz é Portugal, um convívio que acabou formando um património linguístico, cultural, histórico, e que teve um dia para começar, mas não tem para acabar. A lusofonia, portanto, é algo em construção, um fenómeno in fieri, algo que está ocorrendo. Isto é um tesouro que não se esgota de uma hora prà outra e tão pouco se pode formar de um dia pró outro. É fruto de um contacto e de um diálogo intercultural. Não é uma imposição de um lado sobre o outro; não é, sequer, diálogo multicultural, em que se respeitam as culturas autóctones. Não, é realmente intercultural! Houve uma troca, a partir justamente do primeiro dialogante, daquele que propõe o diálogo, que foi Portugal, a partir do momento em que inicia as colonizações. Então, por exemplo, o Brasil foi português durante 322 anos (1500 a 1822). A partir daí, é um caso muito especial: Brasil se torna independente, mas uma independência feita por um príncipe português herdeiro da coroa de Portugal, o que é uma coisa sui generis... Uma plataforma cosmopolita... Extraordinariamente cosmopolita, nesse sentido. E quando os portugueses vão para o Brasil, eles levam um pouco esse espírito de abertura. Mas então, como havia pouca gente para colonizar aquele país, porque a quantidade de terras descobertas por Portugal era tão grande que não tinha como colonizar tudo ao mesmo tempo, o Brasil ficou abandonado durante um certo momento, até 1530, por aí, quando se cria a capitania hereditária, quando Martim Afonso de Sousa chega para colonizar... Porque havia uma cobiça já muito grande por parte de outras potências. Com isso, então, o Brasil passa a ser colonizado de maneira mais sistemática. E aí, como não havia mulheres na colonização, porque não havia mulheres no reino, para levar, os homens que iam para essa aventura, eles se misturavam com as índias, inicialmente, e depois com as africanas que foram chegando no terrível tráfego negreiro que vai até ao século 19. Essa mistura inicial vai dar origem à base do povo brasileiro, que depois foi sendo enriquecida com outras etnias que foram surgindo. E hoje, claro, o Brasil é um país profundamente misturado, que não suporta a intolerância, no qual a abertura para o outro é total; ou seja, ao invés de rechaçar o diferente, ele o incorpora. E essa tem sido sempre a atitude do Brasil, esta voracidade com que devora o outro, o diferente... Não há estrangeiro que passe impunemente pelo Brasil. No sentido de que será sempre marcado e, se não tomar cuidado, é absorvido. Ora, isto é o traço distintivo, identitário, mais forte do Brasil. E um traço identitário... A sensação clara que tenho é de que estamos falando de algo que não é superficial, que não ocupa um lugar no tempo, lá atrás, mas que permanece e continua. Com momentos de mais aproximação e de maior afastamento, com altos e baixos, com momentos mais felizes e bastante infelizes, com virtudes muito grandes e com defeitos sérios, mas característicos da época – Portugal manteve o Brasil um pouco na idade das trevas durante muito tempo, porque era uma maneira de se assegurar melhor daqueles territórios e segurar melhor aquele território, claro. As comunicações entre as capitanias, eram proibidas – cada donatário só podia ter contacto com a coroa, em Lisboa; a primeira universidade da América Latina, se não me engano, é a de Lima, no Peru (1526) – a primeira do Brasil é de 1922; não se promovia o ensino absolutamente público – quem se encarregava da educação eram os jesuítas; e a partir do momento em que Pombal os expulsa, o Brasil passa a ser um território sem acesso a qualquer tipo de conhecimento – as pessoas que queriam continuar os seus estudos só podiam vir para Coimbra... Estou apontando aspectos menos positivos, mas existe um que é de tal modo positivo que eu não trocaria por nada, que é justamente o maior tesouro que nós temos hoje, a meu ver o nosso grande capital – é que o Brasil foi feito através de uma I 98 99 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Trata-se, portanto, de um processo de assimilação... Totalmente! Não é de cooptação, como acontece noutros países, é de assimilação completa. Estamos falando de uma antropofagia cultural, da mesma maneira que os primeiros índios eram antropófagos e comiam lá o bispo Sardinha, que naufragou nas costas do Nordeste... (risos). Nós sabemos que a antropofagia era um ritual: o selvagem, ele não comia o outro porque estivesse com fome ou para fazer mal; ele comia simplesmente porque queria adquirir as qualidades do outro – um covarde jamais seria aceite, o que mostra o significado da antropofagia. Aliás, em 1922, quando se procura uma arte mais independente, mais voltada para dentro, um dos movimentos mais importantes dentro do Modernismo brasileiro chama-se Movimento Antropofágico, do Oswald de Andrade e do Mário de Andrade. A ideia era justamente absorver, assimilar e transformar – assimilar, não apenas engolir. E com isto você acaba transformando toda essa coisa que absorve numa outra coisa chamada Brasil. Essa, a meu ver, é uma ideia fundadora do Brasil, uma ideia seminal... Que mais nós estávamos falando? 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 99 Estávamos na questão da lusofonia... A lusofonia, no caso do Brasil, leva em consideração tudo isto. Mas aconteceu também com os africanos. O facto de Moçambique ter 43 línguas e de em Timor-Leste apenas oito por cento falarem Português não tem importância, porque no fundo nós estamos falando de lusofonia, que não se confunde apenas com o número de pessoas que falam Português... Tem um sentido mais lato, uma dimensão cultural... Muito mais... Mesmo aqueles que não falam português, eles estão dentro dessa coisa. Então, eu acredito que a lusofonia seja algo muito claramente identificável, muito rico e que está em permanente evolução. O que vem dar sustentação à CPLP – na verdade, e não estou sendo original, a CPLP será uma espécie de moldura jurídico-legal para uma realidade pré-existente. Pré-existente e abrangente. É também cultura, política, comércio...? Economia, comércio, cultura. O carácter, o temperamento destes países. Tudo! Ou seja, não faz sentido pensar num “projecto” de lusofonia. Ela existe, é uma realidade. E temos como cimento uma coisa chamada língua portuguesa, que é a terceira mais falada no mundo ocidental, que é uma língua de cultura, que é uma língua extremamente rica. Vou tentar uma provocaçãozinha: a CPLP não surgiu, também, para enquadrar politicamente o acordo ortográfico, para o validar? Isso seria empobrecer de mais a CPLP. Ela é um organismo com todas as regras internacionais. E um organismo internacional não nasce para simplesmente acompanhar um acordo ortográfico, de menor importância neste caso. Não. O acordo ortográfico foi assinado em 1990, e a CPLP sai em 96, só. Detalhe: um ano antes, em 89, o presidente Sarney convida os presidentes e os chefes de governo de todos os países de língua portuguesa para uma reunião, e nessa reunião criou-se aquilo que viria a ser, de certo modo, o embrião da CPLP – o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, o famoso IILP, que nunca funcionou, que eu saiba. Mas a ideia de uma comunidade da lusofonia já vinha de há muito tempo. No começo do século 20, existia já uma ideia de se fazer uma comunidade – luso-brasileira, porque eram os únicos países independentes que tinha naquele tempo. Foi necessário esperar a independência de todas as colónias para que voltássemos a ter uma comunidade. Não mais com Portugal funcionando como cabeça, mas com igualdade de condições. Apesar da grande assimetria que existe; apesar de termos o mais antigo Estado-Nação da Europa e o mais novo país da comunidade internacional; apesar de termos um país de 150 mil habitantes e outro de praticamente 200 milhões... E como é que oito países de quatro continentes, sem contiguidade... Não têm fronteira nenhuma uns com os outros, e isso é que é interessante. ... como é que surgem unidos? Tinha de haver um qualquer cimento, como referiu há pouco... Exactamente. Então, essa questão da lusofonia é muito forte e nos une a todos. É uma realidade que não fomos nós que escolhemos – ela aconteceu, acontece todos os dias. A CPLP, sim, é escolha nossa. Foi uma decisão dos países darem um formato jurídico a 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 100 entrevista esse convívio, a esse espaço, a esse universo. Cria-se então a CPLP, para tratar basicamente de três áreas. A primeira é a concertação político-diplomática. Se a gente for espiar o que aconteceu nesses 13 anos, vamos chegar à conclusão de que a CPLP tem sido extremamente benéfica para os países lusófonos como um todo. Porque tem sabido ser o elemento conciliador, mediador de crises político-institucionais em países de maior fragilidade política. Isso não aparece no jornal, normalmente, porque não é para aparecer; não tem sentido, é um lado mais diplomático... A diplomacia também é segredo... Exactamente. ... E o segredo é a alma do negócio... É uma coisa mais subterrânea... Mas funciona? Há redes efectivas de diálogo? Às vezes dá ideia que a CPLP é pouco visível... Funciona... A CPLP é uma entidade metida com a mão na massa o tempo todo. Pouco visível, no sentido de que uma crise política nesses países, se fosse ao Conselho de Segurança, iam mandar um finlandês para tratar... Aqui não, é tudo entre nós; aqui há um jogo em que se percebe uma irmandade, uma solidariedade... E sente-se, de facto, a importância da língua, da lusofonia, desse espírito? Evidente. Deixa fazer um parêntese, e isto não é retórica: qualquer brasileiro que vá a Angola, a Moçambique... ele vai se sentir muitíssimo mais à vontade (e não é só pela língua) do que se estivesse em qualquer país vizinho na América Latina. Angola, por exemplo, teve contacto mais estreito como Brasil do que o contacto que havia entre Portugal e Brasil ou Portugal e Angola. Não esquecer que dos 5 milhões de escravos que foram para o Brasil, grande parte eram dessa região. Então, nós somos muito marcados por essa circunstância, somos muito africanos! Passando a outra área da CPLP... Aí temos uma área que está se desenvolvendo muito – a da cooperação, e não apenas técnica. Nós temos hoje uma infinidade de reuniões sectoriais, mas um dos problemas é justamente a falta de visibilidade. Acontecem muito mais coisas do que as pessoas imaginam, infinitamente mais.... Invisibilidade promovida, deliberada, estratégica? Na verdade, a grande mídia dos nossos países não se debruçou ainda sobre isto. É um pouco falha nossa, também, essa coisa de não divulgar mais. A quantidade de reuniões na área da justiça, da defesa, do trabalho, meio ambiente, cultura, agricultura... Isso do ponto de vista oficial. Agora há o outro lado, que eu acho mais importante ainda, e que é a sociedade civil a se mobilizar cada vez mais. E aí, de repente você fica sabendo que tem um pessoal que resolveu fazer um festival de teatro da lusofonia; de repente, o Brasil tem o 3º festival de cinema dos países de língua portuguesa... Por aí, as coisas estão acontecendo. Interessante, muitas vezes, que isto é actuação não da CPLP, mas da lusofonia. O que eu estou achando muito bonito em tudo isso é que não tenha sido a CPLP a provocar ou a organizar. E essas organizações trabalham directamente com a CPLP? Não necessariamente. Algumas fazem parte de uma coisa nova na CPLP, que são os Observadores Consultivos. Há pouco tempo, no Brasil, havia uma só entidade que fazia parte desse quadro; aqui havia umas três ou quatro e África não tinha nenhuma. Há um tempo, eu acompanhei o secretário executivo numa viagem oficial ao Brasil, onde fizemos mais de 30 reuniões. Saiu muita coisa importante daquela visita, e uma delas foi a questão dos observadores – fomos explicar o que é, fomos conversar com as diversas universidades... E hoje, 30/40 já fazem parte. Só um parêntese: uma das coisas que saiu dessa viagem foi a ressurreição do acordo ortográfico... Estava mortinho, ninguém falava nele. Em Março de 2007, quando fomos visitar a Academia Brasileira de Letras, conversámos, entre outros assuntos, sobre o acordo ortográfico. E à saída, quando os jornalistas nos perguntaram o que tínhamos conversado, mencionámos o acordo ortográfico – também, né? Aí, os jornalistas começaram a perguntar, e a própria Agência Lusa fez uma entrevista connosco, lá. Claro que repercutiu aqui em Portugal, mas pouco, inicialmente. Aí, o «Jornal de Letras» fez uma matéria grande sobre o assunto e pediu a nove pessoas, oito portugueses e eu, para escreverem um artigo sobre o acordo. Fizemos e foi por aí que a coisa começou... E hoje temos um problema “ortográfico”... Não é mais problema. Hoje, já é solução, já é facto consumado. Apesar de todo o mundo ter o jus esperneandi, a verdade é que quem não estiver satisfeito com este acordo, têm que pensar em outro, porque este já vai estar em vigor. I 100 101 PRIMAVERA 2010 I N.º188 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 101 OK. Retomando as áreas da CPLP... A terceira é justamente aquela fundamental, que dá base às outras, é a promoção e defesa da língua portuguesa, ou seja, a área cultural. E essa é que não tem funcionado, ou tem funcionado mal, de uma maneira muito tímida... Porquê? Porque se atribuiu ao IILP a tarefa de levar isto adiante, mas nunca se lhe deu os meios necessários. Eu estou dizendo isso há muito tempo, mas hoje na CPLP todo mundo reconhece que o IILP é um fracasso – só que eles demoraram mais a aceitar o que eu estou dizendo: o IILP é um fracasso porque nós fizemos dele um fracasso; porque nunca lhe demos os meios necessários, nem materiais, nem humanos, nem financeiros... Nem sequer uma estratégia de actuação. Mas é um instituto com muito peso? Deveria ter, mas não tem nenhum. Uma organismo do tipo Instituto Camões? De jeito nenhum. É outra filosofia. Deveria ser um centro de reflexão sobre a língua portuguesa, de irradiação das ideias ali gestadas. Por exemplo, no caso do acordo ortográfico, o que é que o IILP fez? Nada. O que é que o IILP fez até agora sobre o vocabulário ortográfico da língua portuguesa? Zero. E ele é justamente o Instituto Internacional da Língua Portuguesa... Mas agora, com a presidência portuguesa da CPLP, as coisas estão mudando. De tal maneira que – também essa foi uma batalha nossa – a própria escolha do director, do quadro técnico do IILP, não pode mais ser feita por indicação dos países, politicamente e em bases rotativas, como tem sido feito até hoje. De acordo com o que vai ser, a escolha do director-geral e do corpo técnico se fará por concurso público internacional – exactamente como a escolha do director-geral e dos directores de cada uma das áreas. Já agora, em termos culturais, como estão as relações entre Portugal e o Brasil? Em tempos falava-se de défice português na balança de trocas musicais, por exemplo, ou televisivas... Se de um lado, a cultura pode ser vista como um produto, uma mercadoria, por outro lado, a meu ver, é uma mercadoria muito especial, muto peculiar. Se, por exemplo, um país consome muito mais a música de outro país, é porque acha aquela música melhor – e a música brasileira é cantada no mundo inteiro, tem uma presença muito forte. Aqui, é natural que seja mais forte ainda, por causa da língua e das afinidades todas. Por outro lado, a música brasileira é muito diversificada, tem ritmos diferentes, enquanto a música portuguesa é um pouco mais restrita, pelo menos o fado. Ora, o fado não é muito o género de música do brasileiro – eu gosto, mas o povão todo gostar é mais difícil, sobretudo se não se faz um movimento maior. E quem faz esses movimentos são os empresários, as televisões. É a sociedade civil. Se eles perceberem que há um tipo de música que pode agradar no Brasil, a minha ideia é que as televisões vão tratar de propagandear e abrir caminho. Mas a eventual dificuldade de penetração dos produtos, a falta de incentivos para a constituição e circulação de embaixadas culturais, não são também responsáveis? Sim, sim... E a meu ver, o incentivo deve ser dado sempre. Se eu faço uma programação cultural para o ano inteiro, os custos serão cobertos por verbas oficiais, do departamento cultural do Ministério dos Negócios Estrangeiros – portanto, é uma coisa subsidiada, é um incentivo. Agora, evidentemente, eu jamais vou colocar no meu programa um show do Chico Buarque ou da Ivete Sangalo. A minha verba é deste tamanhinho e eles não precisam, já estão dentro dos grandes canais de comercialização. Os incentivos oficiais foram feitos justamente para aqueles que têm muito talento, mas não têm tanta visibilidade. Então eu trago aqui, por exemplo, Roberto Corrêa, um instrumentista extraordinário, unanimemente considerado o mais importante cultor da viola caipira (antiga viola portuguesa) no Brasil e que deixou todo o mundo extasiado. Coisa maravilhosa, poder dar a conhecer um sujeito que tem esse nível e que, se não fosse assim, não estaria circulando. E assim eu tenho feito a vida inteira. É assim, também, com o seu projecto Solo Brasil? Solo Brasil já esteve em 20 países, Portugal inclusive, e onde vai é uma coisa absolutamente louca. Obviamente, se tivesse um cantor pop star, custaria cinquenta vezes mais. Mas Solo Brasil é o oposto do estrelismo, porque a grande estrela do projecto se chama música brasileira, e você tem ali uma plêiade de músicos de primeiríssima ordem a serviço da música brasileira – não ao serviço de seu repertório, do seu disco, das suas preferências... Solo Brasil exige uma humildade muito grande por parte desses caras todos que participam, que são figuras fantásticas, que têm carreiras próprias. Solo Brasil é uma espécie de selecção que, num momento determinado, é convocada para apresentar Uma Viagem Através da Música do Brasil; é a história da música brasileira, mostrada, interpretada, cantada, explicada, vista. E isto merece ser patrocinado, promovido, incentivado. Voltando ao acordo, que entrou em vigor em Janeiro... Gostaria de dizer só duas coisas, porque desde que cheguei aqui eu falo sobre essa questão. Primeiro, estamos diante de um facto consumado: Portugal já adoptou, e em seis anos tem que estar tudo pronto; o Brasil já adoptou, e em 2011 estará tudo pronto; dos restantes países, apenas Angola e Moçambique não o fizeram, mas não vão demorar muito, evidentemente; quando não, ficam muito isolados nessa história. Depois, eu já me recuso a discutir os acertos e os equívocos do acordo ortográfico em termos técnicos, porque acho que é uma coisa também in fieri – futuramente, você pega uma regra e muda, se todos estiverem de acordo. Não tem problema nenhum. A tendência é, portanto, simplificar... Claro! A língua é um animal vivo, ela evolui e, por isso, se nós tomarmos as modificações que se observam na língua portuguesa a partir da ortografia, em quatro séculos, são muitas. Mas nada disso vai matar a língua, né? Na verdade, há muito mais diferenças fonéticas entre os nossos países do que ortográficas. O brasileiro, ele tem uma fonética absolutamente aberta, pronuncia as palavras de uma maneira 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 102 entrevista aberta. Isto tem uma explicação: quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, encontraram milhões de pessoas morando lá, eram os índios. A tribo que habitava as costas do Brasil eram os tupis, e a língua tupi é uma língua absolutamente aberta, vocálica. E quando os portugueses chegaram, os nomes, ou melhor, a toponímia estava feita: aquela lagoa tinha um nome, aquela montanha tinha um nome, tudo tinha um nome – nomes tupis. Então, a pronúncia nossa é muito mais aberta. Ainda o acordo: a polémica não terá a ver, também, com o facto de os linguistas se sentir, de certa forma, posta à margem? Vou lhe contar um caso. Desde 1911, foram feitos todos os esforços para corrigir uma anomalia: haver dois países só de língua portuguesa. Portugal fez uma bela reforma, profunda, mas tem um problema: não consultou o Brasil, e o Brasil não participou. O Brasil começou então fazer uma série de pequenas reformas internas para ir tentando acompanhar, porque Portugal estava com uma língua, com uma ortografia moderníssima. Assim começou a fazer um esforço, também unilateral, interno, para poder se adaptar à nova situação. E também houve várias tentativas para se reunificar aquilo que foi unido no passado. A mais importante foi a de 194345. Depois, o Brasil fez outras reformas internas, nos anos 70. Até que, em 1986, os filólogos, gramáticos, escritores, as academias dos nossos países, se juntaram em Lisboa para negociar um acordo. Nesse tempo, o António Houaiss apresentou um projecto considerado pelos portugueses como demasiado avançado. E então esse acordo foi fulminado. Depois, os portugueses apresentaram uma contraproposta, um anteprojecto novo – novo, a partir do texto do Houaiss – que foi discutido e aprovado em 1990. Ou seja, o texto do acordo ortográfico é português, e é bom que os portugueses saibam disto. Fica o recado... Então, quando o senhor Vasco Graça Moura tem a coragem de chegar na Assembleia da República e dizer que isso é invenção de brasileiro para “passar a perna” na língua portuguesa e nos portugueses e se apropriar da língua, isso é de um grotesco, de um ridículo, que não tem tamanho! O Brasil nem tinha que se preocupar, porque, afinal, com o tempo, seria a ortografia em uso lá que iria prevalecer no resto do mundo – o universo de lusófonos é de 240 milhões de pessoas, só que a gente esquece que de cada cinco pessoas que falam Português, quatro são brasileiras! No exacto momento em que a cassete fazia inversão de marcha no interior do velhinho gravador, o embaixador dava conta dos seus interesses pessoais. A par da experiência nas áreas da Economia, Gestão, Consultoria e, obviamente, das Relações Internacionais, Lauro Moreira, como já se percebeu, professa a lusofonia (he has a dream: a Casa da Lusofonia) e tem como hobby a cultura: teatro, cinema, fotografia, divulgação literária... Eu sempre me envolvi muito na área económica, mas nunca deixei de estar visceralmente ligado à área cultural. Convivi com grandes personalidades da cultura brasileira. Muito jovem, fui amigo de I 102 103 PRIMAVERA 2010 I N.º188 figuras queridas, como Manuel Bandeira, que foi meu padrinho de casamento, e Clarice Lispector a madrinha. Fui casado durante 17 anos com uma das grandes figuras da poesia brasileira, que é Marly de Oliveira, falecida já... Drummond, Houaiss, Aurélio Buarque de Holanda, Cecília Meireles – eu conheci tudo, fui um privilegiado nesse aspecto. Então, a cultura para mim... Aconteceu-lhe em termos profissionais? Em termos profissionais, apenas conheci o João Cabral de Melo Neto, que era diplomata como também o Guimarães Rosa, mas esse eu o conheci antes de entrar para o ministério, porque eu fazia teatro e montei uma peça que era a dramatização de um conto dele. Desse ponto de vista, repito, eu fui um privilegiado, porque no Rio de Janeiro tive contacto com essa gente toda. Agora, a partir do momento em que eu entro para o ministério, vou fazer aquele caminho que pode ser tanto da área política, da económica como da cultural. Eu fiz as três, claro, mas os meus primeiros anos foram na área económica, inclusive em Genebra. Trabalhei muito tempo com o GATT [General Agreement on Tariffs and Trade – Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio]. Mas a verdade é que a questão cultural sempre esteve dentro de mim: quando saía, ia tratar de fazer uma filmagem qualquer, escrevia, passava noites inteiras montando os meus filmes... Nunca me afastei um minuto sequer dessa área, e a partir de um certo momento, resolvi juntar as coisas e comecei então a trabalhar na área cultural. Eu acredito nisto, acredito muitíssimo na cultura como um instrumento-chave, decisivo também para a diplomacia. Acredito na cultura como elemento fundamental para todo o tipo de relacionamento entre países – porque não existe relacionamento entre países, em abstracto; existe entre pessoas de países diferentes. Como disse há pouco, não estará a fazer falta tornar estes organismos uma coisa mais dos cidadãos? Mas isso é o grande desafio. A meu ver, a CPLP se realizará um dia em que tivermos menos uma comunidade de países membros e mais uma comunidade de cidadãos lusófonos. Lógico que os Estados têm sempre os aspectos políticos, mas o que interessa é o relacionamento entre os membros da sociedade, entre os cidadãos. Curiosamente não falamos sobre isso, mas veja que entre as três áreas da CPLP eu não citei a económica E reparei que também não citou a educação... Não, mas ela está na terceira área, ou até na segunda. A economia eu não citei porque não está entre as áreas da CPLP. Porque ela não é um organismo económico, nem de comércio internacional, não é um organismo que vá discutir tarifa... A CPLP não é nada disto! Mas na área da educação, há projectos previstos ou em curso? Vou lhe dar um exemplo. O presidente Lula decidiu, há um ano e meio, criar a Universidade Luso-Afro-Brasileira. Essa universidade vai entrar em funcionamento em 2010, ainda. É uma universidade criada para África, fundamentalmente, e para a 096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 103 lusofonia; uma universidade que terá 50% das vagas reservadas para os países africanos e 50% para o Brasil, porque o que interessa é a integração. O corpo docente será todo ele dos nossos países, Portugal inclusive. Vai funcionar na cidade Redenção, no Nordeste – uma escolha com sentido simbólico, porque foi a primeira cidade brasileira a libertar os escravos. Esse projecto está sendo levado adiante por uma pessoa escolhida a dedo pelo presidente, que é o Paulo Speller, antigo reitor da Universidade de Mato Grosso e que trabalhou muitos anos em Moçambique. As disciplinas são todas voltadas para os interesses da África, e há a ideia de os alunos completarem o último ano no país de origem, num campus avançado, para evitar essa de terminar o curso e ficar. E não tem currículos clássicos, tipo engenharia, medicina, direito? Tem sobretudo a ver com agricultura, zootecnia, construção civil; deve ter informática... Mas não tem direito; medicina, muito provavelmente, não terá no primeiro momento, mas vai ter enfermagem, seguramente. Portanto, na sua opinião, a CPLP está a mexer? Eu sou optimista com relação à CPLP. Não é um optimismo descabido e sem base, não. Eu conheço os obstáculos todos, eu sei das dificuldades todas, eu sei que há uma tendência para, por exemplo, se privilegiar o bilateral em detrimento do multilateral. Portugal gosta muito mais de fazer coisas directamente com cada um dos países do que fazer com a CPLP – e o Brasil também. É mais fácil, muito mais directo. Mas tem uma coisa, só aquele país se beneficia daquele projecto. A diplomacia é arte de consenso ou de convencimento? Não se consegue o consenso sem convencimento... Eu acho que é do convencimento, sim. Do convencimento no sentido de procurar colocar uma questão que leve a outra parte a acreditar que você está certo, que o seu caminho é o adequado. Mas o consenso só pode ser obtido a partir do momento em que haja um certo nível de abdicação por parte de cada um. Se eu só tento convencer e ponto final, então não vou ter nenhum consenso. Já agora, aproveito para falar sobre uma das coisas bonitas da CPLP, e que ao mesmo tempo é uma das que mais dificulta o nosso dia-a-dia. Tudo na CPLP se decide por consenso. Portanto, todos nós somos responsáveis por qualquer decisão que se tome. Mas a decisão é uma coisa – na sua implementação, evidentemente, cada um tem um ritmo diferente. E então nós temos que nos adequar a cada situação. E há dificuldades específicas... Há projectos que se arrastam há anos. Portugal e Brasil contribuem muitíssimo. Quer dizer, somos todos iguais em termos de direitos e deveres, mas na questão da contribuição, claro, contribui-se na medida das possibilidades dos países. Há uma média ponderada e, grosso modo, podemos dizer que Brasil e Portugal aguentam com praticamente 70%. Angola, que é um país rico, continua se comportando, de certo modo, como um primo pobre, quando já podia estar assumindo muito mais responsabilidades. Outros, como S. Tomé e Príncipe, só podem contribuir com uma coisa muito modesta. É um país que vive muito em função da cooperação, que tem dificuldades financeiras muito grandes. Por exemplo, não dá para mandarem uma pessoa a uma reunião a Lisboa ou no Rio de Janeiro. Então, nós é que asseguramos: Portugal paga parte das passagens de cada vez que eles vêm aqui, e o Brasil paga quando eles vão lá... Como agora. De 25 a 31 de Março, vai haver uma grande conferência internacional sobre os destinos da língua portuguesa no mundo. O Brasil está convidando e pagando tudo para uma quantidade muito grande de autoridades, professores, etc. Essa reunião cabe no âmbito do Plano Estratégico de Gestão da Língua? Não, isso deve ser o plano do IILP. De qualquer maneira, nós vamos discutir o ensino da língua no mundo, o acordo ortográfico, a inserção do Português como língua de trabalho nos organismos internacionais. Tudo isto vai ser discutido, e de uma maneira muito pragmática – a ideia é fazer documentos dizendo já o que tem de ser feito, concretamente. Por isso, acredito que a coisa vai funcionar. Pena que eu estou indo embora agora, mas acho que contribuí modestamente para isto... ANTÓNIO B ALDAIA JPO / fotos 104-105 cinema 3/16/10 9:17 AM Page 104 cinema Alain Resnais o cineasta da memória Paulo Teixeira de Sousa Conservatório de Música do Porto I 104 105 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Alain Resnais, nascido na Bretanha em 1922, foi sempre apaixonado pela animação e pela BD, tanto que vários dos seus filmes têm influência notória destas artes. Estudou arte dramática durante dois anos, mas a chegada da II Guerra Mundial interrompeu-lhe os estudos. Só no final do conflito passou a dedicar-se ao cinema, começando com curtas-metragens dedicadas às artes plásticas. A sua primeira foi Van Gogh (1948), seguindo-se Gaugin e Guernica (1950). Fez ainda Les Statues Meurent Aussi (1953), sobre a arte africana e a sua apropriação pelo colonialismo – proibido em França durante vários anos –, e Toute la 104-105 cinema 3/16/10 9:17 AM Page 105 Mémoire du Monde, um percurso poético pelo labirinto da Biblioteca Nacional de França. Apesar de ser muitas vezes identificado com o nascimento da Nouvelle Vague, Resnais tinha muito pouco contacto com o grupo dos «Cahiers du Cinema». Muito influenciado por Vertigo (1958), de Hitchcock, a sua sensibilidade estética está mais próxima de realizadores como Chris Marker e Agnès Varda, pelo seu amor pelo documentário, do filme como documento literário. Desde La Nuit et le Broulliard (1958) até Providence (1977), usou como argumentistas grandes figuras do meio literário, como Jean Cayrol, Marguerite Duras, Alain Robbe Guillet e David Mercer, na procura de histórias originais que passavam para além do puro naturalismo, entrando directamente no mistério e na poesia. No número de Novembro de 2009, os Cahiers publicaram uma entrevista com Resnais a propósito da estreia do seu último filme – Les Herbes Folles, estreia em Portugal a 25 de Março – que gostaria de partilhar aqui. “O nível do cinema de hoje, tenho a impressão, é melhor do que o de antiga- mente. Há uma tal abundância: 583 filmes saem em Paris por ano. Como escolher? Vou ser mais preciso: não vejo um filme desde 15 de Julho, já não vejo três filmes por semana. E o cinema, para mim, não é forçosamente o de 2009, mas o de 1920. Divirto-me a passear… (…) Os filmes que vou ver automaticamente são todos os Rohmer, os Rivette, os Varda, os Marker. Gosto também de todos os filmes de Arnaud Desplechin. No cinema asiático, gosto muito de Zhang Yimou. Onde não se pode acusá-lo de ser formalista… Gosto tanto de Viver! como de O Segredo dos Punhais Voadores. (…) Vejo todos os David Lynch, e às vezes duas vezes. Vi três vezes Mulholland Drive. Fascina-me, mas não poderia darvos qualquer razão para tal. É uma questão que se põe: porquê, se as personagens e a intriga não interessam, de repente vamos ter um prazer enorme? O interessante é quando as coisas encantam no sentido mais forte do termo. Como esses momentos de bruma de calor do Verão nas estradas onde há um tremer do asfalto que não tem nada a ver com a paisagem. Quando se produz num filme qualquer coisa que não se pode analisar e que comove, é isso que faz valer a pena filmar um argumento. Há filmes de Frank Borzage ou de Leo McCarey que me podem comover sem eu saber porquê. Por vezes penso que o único género interessante no cinema é a comédia musical. Quando vemos aqueles filmes, temos a certeza que vão passar em três meses. Quem poderia imaginar que os filmes de Fred Astaire ainda hoje seriam vistos? O que se passa lá dentro? Não podemos dizer que é o enredo, as personagens, ou os diálogos. Mas têm um charme... (…) Continuo a ver as séries; são a concretização do sonho de Erich von Stroheim ou de Abel Gance de fazer filmes muito longos. Acho que Os Sopranos são um único filme. Conheço seis ou sete séries. Gosto muito de Millenium, The Shield e 24 Hours, mas esta só a segui até à sexta temporada. Diverti-me muito com Alias de J.J. Abrams. Por que magia o criador consegue manter uma tal unidade com tantos realizadores diferentes? (…) Não quero falar do meu próximo filme. Gostava de começar a rodar rapidamente, antes do Verão. Mas, bom, graças ao Santo Oliveira, estamos protegidos.” 106-107 textos bissextos 3/16/10 9:16 AM Page 106 textos bissextos Emerenciano o poeta e o pintor Pintor de méritos consolidados e reconhecidos, Emerenciano é também cultor da palavra escrita. Em poesia, dá expressão àquela parte do seu mundo emocional, partilhada pela pintura, de que esta todavia não se reclama em níveis de mobilização excessivos. Mesmo existindo um compromisso entre palavra e cor, verso e traço, semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista reserva à poesia o canteiro do espírito onde ajardina a matéria sensível excedentária do rasgo pictórico. Matéria depois ordenada e encaminhada para as páginas dos livros através dos quais vai acumulando reputação de escritor. Júlio Conrado Escritor I 106 107 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Estamos em presença, provavelmente, de um homem dividido, de subjectividade fendida pelo raio fulminante de duas paixões – a escrita poética e a pintura –, que para elas procura estabelecer pontes de modo a criar fios harmónicos capazes de o salvarem dos desalinhos desse duplo preito. Por salvação entenda-se o desaparecimento da angústia vital que se diria submergi-lo enquanto poeta e da qual se resgata pela alegria da pintura. E se falo de “alegria”, isso não significa que o pintor possa estar inundado de contentamento enquanto trabalha. Quero dizer que a alegria emana do traço pictórico como resultado de uma atitude positiva ante as dificuldades do processo criativo, desde o seu início até ao fim. Contudo, unir as margens do grande rio que corre entre as duas vocações é, certamente, utópico projecto. E nem se afigura ser qualquer espécie de dialéctica a solução para o caso, visto não existir oposição rígida de contrários, mas antes pragmática boa vizinhança entre linguagens estéticas distintas. Por outro lado, dir-se-ia haver no artista uma mal cicatrizada ferida narcísica, potenciadora da dispersão de nexos, que torna o poeta refém do pintor, em termos formais. Se se considerar que a pintura de Emerenciano é, na sua inspiradora sintaxe e no seu efeito de esplendor, poética, isto é, que se pode dar ao luxo de prescindir da palavra para ser também poesia, talvez seja possível encontrar no peso que o texto escrito tem na obra do pintor o 106-107 textos bissextos 3/16/10 9:16 AM Page 107 aceno magnânimo deste último ao vate em ascensão, como que delegando nele fatia considerável do seu prestígio. Julgo não escandalizar ao defender que a poesia de Emerenciano beneficiaria com a maturidade (leia-se ênfase criadora) que a sua pintura exibe. Sobram, com certeza, ao poeta as qualidades que, bem traduzidas em palavras, levarão à superação esperada, mormente no registo tão português da amargura (veja-se o «Só», etc.): a vida interior sofrida; a morte omnipresente; o verso sibilino que dá resposta ao hipotético ou real cerco social hostil; o paralelismo com “o homem revoltado” em assumida afinidade camusiana; esse desgosto tão próximo do desassossego de Bernardo Soares que inquieta mais do que insubordina; o pendor para a censura austera aos que gravitam em torno da grande arte sem jamais cederem à tentação de a saborear. A poesia de Emerenciano enjeita a referencialidade estrita, subtraindo-a à acomodação fácil à lógica das coisas. Se não tem na mira, que se vislumbrem, horizontes astrais, também não se fica pela superfície rasa. Tudo aponta para que o seu alvo se situe numa zona do ser – o chão secreto do “meu secreto ser” – governada por sombras, silêncios, às vezes raiva, outras vezes revolta, e ainda um fundo persistente de tristeza, talvez mais consequência de litígio com o social envolvente, alheio (ainda? talvez?) à especificidade da sua arte, do que resultado de improvável aliança da palavra escrita com as vibrações da coreografia estelar ou qualquer outra mediação de transcendência. Da presunção de alguém que quer abarcar o mundo que o não abarca, emergem sintomas de crise existencial. O monólogo do sujeito briga com as realidades em trânsito nas cercanias. Ao mesmo tempo, os desesperos nem sempre contidos, soam, amiúde, indóceis. Apesar de subterrânea, e das tentativas de voo para as alturas serem no geral equívocas, por nelas estar previamente declarado o “regresso” à normalidade “decepcionante”, na querela psicológica de um desajuste social se vai mapeando a memória autobiográfica do artista. Da lírica de Emerenciano brota um exasperado mal-estar ôntico materializado no verso curto, certeiro, pronto para o exercício do direito à indignação, e deste, sem dúvida, braço armado. É uma poesia protegida por um grande rigor na preparação da estrofe, a que se agrega a escolha de um vocabulário enxuto, veículo da clareza clássica, e cujo desafio principal é, talvez, encontrar para essas bem identificadas coordenadas estruturais mensagem capaz de pôr em causa a tirania da palavra e do seu reportório, jamais exaurido, de significados e representações. Mas a palavra não deixa ao artista a liberdade de que ele desfruta na pintura, em que um discreto signo pode dar azo a múltiplas interpretações, associações, especulações, etc. A palavra escrita retém, exige, coage. No verso dilacerado entrevêem-se sinais da intranquilidade do poeta, ao validar a provocação deste a todo um historial do “contínuo”, do “antecedente” e do “consequente”, da “lógica diacrónica”, etc., que constitui também repto à poesia formalmente bem comportada, racionalizada no sentido da “compreensão” – do seu “triunfo prático”, para usar a oportuna definição de Eduardo Lourenço. Neste último caso, o aparecimento espontâneo de conteúdos sem relação aparente entre si dinamita o local de encontro com o leitor. São contribuições para que uma certa incomodidade no acto da leitura vá juntar-se à depressiva alteridade do Mesmo e do Outro, lá onde se recupera como eco persistente a intromissão do verbo crispado, remetendo para um sarcasmo fruto da sua própria circunstância. Em alguma da poesia ainda inédita do autor, a que tive acesso, assiste-se uma vez mais ao jogo das perplexidades do homem que cumpre novo segmento da viagem ao fim da (sua) noite, deixando vislumbrar desejos só parcialmente realizados ou quiméricos anseios por alcançar. De uma maneira ou de outra, o sentimento trágico da existência manifestado através de persistente interrogação sobre o que falha na procura “da similitude”, e acerca dos “tus da conveniên- cia” que esmagam os “tus da procura essencial”, ou a busca na pureza da infância do alento “para sustentar a criança que me habita”, ou ainda a premonição da herança possível na morte “quando já sepultado / começa a descarnação / para deixar a única / fortuna indesmentível / do meu corpo / ossos”, projectam no leitor a imagem de um ser amargurado, entregue à interpelação que isole e esclareça as causas da sua solidão. Correlacionando a poesia de Emerenciano com a sua pintura, coloco-me, quanto a esta – com toda a humildade – na posição do receptor atingido pelo prazer da descoberta de algo que simultaneamente arrebata e apazigua. Sim, a pintura de Emerenciano apela para sensações festivas e para a reflexão sobre as intertextualidades tonificantes que nesta matéria são legíveis. A fruição estética aliada à gratidão que, pela sua finura e requinte, ela suscita, é a quota mínima do que é lícito manifestar em sinal de apreço e congratulação. Por este flanco irrompe a contradição maior – e fascinante – de um discurso poético pesaroso, alternando com uma pintura de delicado traço que é celebração perfeita do júbilo: cores tépidas e confortáveis, visualidade exuberante, subtis aberturas, no quadro, à palavra escrita, fixando na tela, como confissão feliz, a lealdade do autor às formas de arte predilectas, aqui em interlúdio cordial de comunicação, numa entreajuda empenhada na exaltação da beleza que põe à mostra o lado solar de um “outro” Emerenciano. O que acrescentará a poesia de Emeren ciano à pintura de Emerenciano enquanto disciplinas intrínsecas ao carácter do artista, é enigma ainda por resolver. Para já, fica a pairar a ideia de que a pintura emerenciana se instalou num patamar de excelência, apreensível, por exemplo, nas emoções e sensações que provoca. E que a poesia emerenciana ainda não fechou o capítulo do seu crescimento; quando atingir o zénite, então se verá até que ponto e para que paragens evoluiu esta impressionante alteridade. 108-109 segredo + madeira 3/16/10 2:20 PM Page 108 perspectivas Luís Vendeirinho Escritor (na comemoração do Dia de S. Valentim de 2010) I 108 109 PRIMAVERA 2010 I N.º188 É um instante, um assomo de urgente vontade, uma comoção doce fora de qualquer realidade, misteriosa, breve, num relance em que dissolve o espanto e a ansiedade derramada pela vida sempre que nos perguntamos a lógica de renunciar, quando se pressente ser possível essa inatingível felicidade, e no momento desiludido de um amor impossível, perdido na vertigem e na loucura de uma falsa liberdade, sentimos no peito, surpresos e sem jeito, que houve um tempo em que podendo-nos enamorar não houve senão um vento que em sonhos nos deu uma ilusão de amar. Em segredo, sempre em segredo, que à face deste mundo, e do desatino de um amargo destino, se escondem os beijos, as carícias, as confissões e as promessas, os delírios em que o prazer se agarra, como se o degredo da alegria e da mais verdadeira fantasia seja maior que o nosso próprio desejo, quando de súbito se incendeia, para morrer sem razão antes mesmo que possamos ateá-lo no olhar esquivo e suplicante de uma alma gémea. Haverá um outro dia, uma outra vida, livres desta sina em que sem a glória de um imenso e pedido abraço, o amor se adia, haverá toda a nossa memória a lembrar cada gesto de súplica banido desta vida, deste magoado dia, e o tempo desatará da mordaça o laço, para nos fazermos amar tendo como nosso leito todo o universo. Haverá, e até lá a sombra luminosa que o teu olhar encosta no meu sonho, noite fora, vai despertando em mim o fulgor incontrolado das paixões, e eu, perdido nesta fúria das perdidas multidões, demando esse morno abrigo, a ternura que perdure sobre o desencontro das nossas desilusões. Por cada beijo teu, por cada beijo meu, por cada olhar em que nada mais do que o olhar aconteceu, se agita o nosso mar de espuma a tocar o céu. 108-109 segredo + madeira 3/16/10 2:20 PM Page 109 Pedagogia da catástrofe ração manifestadas pelo primeiro-ministro aos madeirenses, através de actos e no imediato – “não é momento para haver recriminações nem disputas”, declarou. Esperemos que o poder pedagógico da catástrofe na Madeira conduza à correc- Celso F. Sousa Na formação dos cidadãos, a Escola cultiva os valores da solidariedade e da cooperação, cristalizados em expressões populares como há sempre lugar para mais um ou a união faz a força. Não obstante, a vida prática, como a tragédia que se abateu sobre a ilha da Madeira no dia 20 de Fevereiro, tem um poder pedagógico tremendo, no sentido em que as circunstâncias de emergência impelem, até instintivamente, para a prática da solidariedade e da cooperação. Paradoxalmente, a mesma condição humana que permite actos excepcionais em momentos de tragédia, não permite ao ser humano respostas excepcionais nos outros dias “normais”. Quando estamos absorvidos pelas tarefas de sobrevivência na vida quotidiana, tratando do nosso canto, prevalece mais o individualismo e a competição. Quando está em causa a vida, a sobrevivência e a dignidade humanas, as pessoas unem-se, convergem e, com naturalidade, alargam o conceito de parentesco de sangue. Falam os valores morais e civilizacionais mais nobres. Afinal, estamos juntos no mesmo barco, atingidos todos pela mesma condição de fragilidade. A onda de solidariedade nacional relativamente aos habitantes da Madeira tem sido notável. Veja-se o que aconteceu ao nível dos governos. Num ápice, o presidente do Governo Regional e o primeiro-ministro relativizaram e ultrapassaram os diferendos políticos que os têm oposto. Há males que vêm por bem. Por um lado, deve tirar-se o chapéu ao líder madeirense por sanar diferendos e mudar de direcção, tendo em vista o essencial, o interesse dos seus concidadãos: “este país pode enterrar uma série de machados que não têm importância nenhuma e em que andamos a gastar uma série de energias”, afirmou. Por outro lado, é de salientar o elevado sentido de Estado, a solidariedade e coope- ção de alguma gestão do território, de forma a minimizar, no futuro, os danos humanos e materiais provocados por condições climatéricas extraordinárias. Nélio de Sousa Escola Básica/Secundária da Calheta 110-111 dizeres 3/16/10 9:14 AM Page 110 dizeres Quando eu era pequena, nunca ouvia falar de infância. Se um mistério havia, era o daqueles meninos que passavam às vezes por nós e que pareciam ter sempre de comer, usavam sapatos e roupas que os cobriam todos e não apareciam cá fora. a não ser quando já nós andávamos, há muitas horas, na lide no campo. Havia coisas de que não se falava. Elas falavam por nós. Biografia Angelina Carvalho Colaboradora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP) I 110 111 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Eu não sei se era educação sexual ou não, mas aprendíamos como uma mulher se sujava de sangue todos os meses. Não sei como nos ensinavam, mas sabíamos como, à noite, atrás do cretone que nos separava da cama dos nossos pais, a minha mãe gemia e o meu pai arfava, entre o chorar dos irmãos pequenos; via o catre que abanava e, debaixo dos cobertores esfarrapados que mal cobriam o vento que entrava pelas frestas, sabia que alguma coisa importante estava a acontecer. Também soube cedo como nasciam os meninos: eu tinha que estar lá, quando já tinha sete anos, para levar água quente e toalhas à tia Josefa, que empurrava a barriga da minha mãe para ajudar a nascer mais um irmão. Desgraçado, dizia a minha mãe enquanto o punha no peito, mais uma boca para passar fome e para tirar o sustento aos outros. De política eu não ouvia falar, excepto uma vez, quando, muito em segredo, contaram do que aconteceu ao Alfredo da tia Zulmira, que trabalhava na Marinha Grande. Um dia foram buscá-lo e desapareceu. De pedofilia nunca ouvi falar. Ninguém falava. Nem a minha irmã Zilda, de 13 anos, quando chegou a casa, ao entarde- cer, com o rosto vermelho, os cabelos desgrenhados e o vestido sujo, ainda mais sujo de terra, e se foi enrolar num canto atrás da cama, a chorar, e me falou entre soluços do que o feitor a obrigara a fazer. Nem eu ouvi falar, nem falei nunca, mesmo no dia em que fui à casa grande levar uns mimos do pomar, que mandava o meu pai, e o Senhor Engenheiro me encostou à parede atrás da porta e me quis apalpar e me agarrou e magoou até que pude fugir. Vivíamos num país mágico, onde, apesar da fome e do frio, da terra gelada que nos cortava os pés descalços, do peso dos canecos de água que acartávamos da fonte à cabeça; apesar das doenças sem medicamentos, dos invernos longos e escuros, com o vento chiando entre os buracos da parede; apesar dos irmãos pequenos, que ajudávamos a nossa mãe a amortalhar; apesar das frieiras que nos cortavam os dedos em gretas purulentas; apesar da escola longe, onde íamos, às vezes, um ano só, enquanto se era demasiado franzina para ir para o campo; apesar de tudo isto, acreditávamos neste mundo mágico, onde este sofrimento era por vontade de Deus, como dizia o Senhor Padre; acreditávamos neste mundo mágico, em que alguns meninos, bem vestidos, agasalhados e sem fome, não precisavam de sofrer para serem bons – magicamente, nasciam assim, bons e puros, sem dores nem mágoas. Não comíamos à mesa com os adultos, mas à volta da lareira ou da braseira acesa com os restos de vides queimadas da padaria. Das conversas deles eu não entendia, mas sentia o medo e a dor nas suas palavras, quando falavam do que a colheita não dera e de como tinham recebido ainda menos. Corríamos, às vezes, aos regatos, para tentar arranjar alguns agriões para o jantar, ou algumas azedas que, junto com as batatas, sempre aumentavam mais o que ia no prato. Nesse tempo não fechavam escolas, porque quase não havia escolas abertas. Os que lá andavam mais tempo, como os 110-111 dizeres 3/16/10 9:14 AM Page 111 idade a que se chama adolescência. Na altura sabia que tinha crescido e que a senhora da casa se aborrecia porque a farda já estava a ficar curta, que as minhas formas estavam a ficar maiores e que o filho mais velho, a estudar em Coimbra, me perseguia com os olhos e com as mãos, quando ia a casa, aos finsde-semana. Aos 17 anos, mandaram-me embora. E fui trabalhar para a fábrica de lanifícios, nos teares. Aos 19 casei-me. O Manel era operário lá na fábrica. No início foi melhor. Fiquei a morar perto da vila, num cortelho pequeno que o Manel, que era jeitoso de mãos, preparou. O telhado é que era pior, pois deixava cair um pedaço de água durante as chuvas. Depois começaram a nascer os filhos. O primeiro vingou e ao fim de três dias fui trabalhar. O segundo morreu pequenino. Depois vieram mais três e depois dois que também morreram. Eram magrinhos e definhados, sobretudo os últimos. Tinham mais fome do que os primeiros e eu menos força e menos leite para lhes dar, até que o leite secou. O Manel ficou mais velho e doente, já não fazia horas extraordinárias e cada vez tínhamos menos dinheiro. A fome estava muitas vezes em nossa casa. Tive que deixar a fábrica e lavava roupa para as senhoras da vila. No Inverno era difícil. Muitas vezes parti o gelo do tanque do lavadouro para poder lavar. Os ossos doíam-me cada vez mais e custava-me a levantar o peso da roupa. filhos da professora, do Afonso regedor, do Marcelino da venda, do guarda Almerindo, do feitor ou da D. Gervásia, mulher do caseiro da casa grande, deviam aprender muitas coisas de que nunca tínhamos ouvido falar antes e nunca ouviríamos falar depois. Depois havia a infância para perceber como o trabalho era cada vez mais e cada vez se tinha menos tempo para se perder entre os campos e os animais, entre algumas corridas e saltos de macaca desenhada na terra. Não aprendi a ler, nem fazia versos. Aos seis anos, ensinaram-me a cuidar dos meus irmãos, a acender a lareira e pôr o caldo ao lume, a acartar os canecos da água, a apanhar as batatas. Aos nove, ensinaram-me a ceifar a erva, a abrir os regadios, a espetar os rebentos de couve, a acartar os molhos de lenha, a sachar. Aos 13, fui servir, interna, para casa de uns familiares do Senhor Engenheiro, na vila. Ali vi muitas coisas que nem imaginava que existiam. Hoje sei que era a Os filhos cresceram. Dois rapazes foram para a guerra. Um morreu lá. O outro veio “esquisito”, dizem que foi do que lá viu. O mais novo estava na construção civil, mas caiu do telhado e ficou inválido. O seguro não pagou, disseram que não estava legal. Outro foi para a Venezuela. As raparigas foram para França e outra para Lisboa. O Manel morreu já há muito tempo. Fiquei muitos anos sozinha. Às vezes passava muito mal e quem me valia era uma vizinha. Morri a 2 de Fevereiro de 2010, com 77 anos. 112 pagina 3/16/10 9:14 AM Page 112 colaboradores rubricas Adalberto Dias de Carvalho – Universidade do Porto, Faculdade de Letras Adelina Silva – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Almerindo Janela Afonso – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Américo Nunes Peres – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia Ana Efe – Artista plástica André Escórcio – Escola Básica/Secundária Gonçalves Zarco (Madeira) Angelina Carvalho – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Centro de Investigação e Intervenção Educativa António Magalhães – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação António Mendes Lopes – Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação António Teodoro – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Instituto de Ciências da Educação Ariana Cosme – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Arsélio de Almeida Martins – Escola Secundária de José Estêvão (Aveiro) Betina Astride – Escola Básica 1 de Ciborro Carlos Cardoso – Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Educação Carlos Mota – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia Casimiro Pinto – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual David Rodrigues – Universidade Técnica de Lisboa, Fórum de Estudos de Educação Inclusiva Débora Cláudio – Nutricionista, Administração Regional de Saúde/Norte (Porto) Domingos Fernandes – Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Fátima Antunes – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional Felisbela Lopes – Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação Fernanda Rodrigues – Universidade Católica Portuguesa Fernando Faria Paulino – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Fernando Santos – Escola Secundária de Valongo Filipe Reis – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Departamento de Antropologia Francisco Marano – Universidade Aberta, Laboratório de Antropologia Visual Francisco Silva – Engenheiro Gustavo E. Fischman – Arizona State University, Mary Lou Fulton College of Education (EUA) Gustavo Pires – Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana Henrique Vaz – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Isabel Baptista – Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia Isabel Menezes – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Ivonaldo Leite – Universidade Federal de Pernambuco (Brasil) Jaime Carvalho da Silva – Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências João Barroso – Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação João Paraskeva – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento de Currículo e Tecnologia Educativa João Teixeira Lopes – Universidade do Porto, Faculdade de Letras 112 PRIMAVERA 2010 I N.º188 Joaquim Marques – Instituto das Comunidades Educativas Jorge Humberto – Mestre em Educação Especial José António Caride Gómez – Universidade de Santiago de Compostela, Faculdade de Ciências da Educação José Catarino – Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação José Maria dos Santos Trindade – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação José María Hernández Díaz – Universidade de Salamanca, Faculdade de Educação José Miguel Lopes – Universidade Estadual de Minas Gerais (Brasil) José Pacheco – Professor José Rafael Tormenta – Escola Secundária de Oliveira do Douro (V.N. Gaia) José Silva Ribeiro – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Júlio Conrado – Escritor Júlio Roldão – Jornalista Jurjo Torres Santomé – Universidade da Corunha, Depar tamento de Pedagogia e Didáctica Leonel Cosme – Escritor, investigador Licínio Lima – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Luís Souta – Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação Manuel António Ferreira da Silva – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e Administração Educacional Manuel Matos – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Manuel Pinto – Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação Manuel Sérgio – Professor jubilado, Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana Margarida Gama Carvalho – Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina, Instituto de Medicina Molecular Maria Antónia Lopes – Universidade Mondlane (Moçambique) Maria Fátima Nunes – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Maria Gabriel Cruz – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia Maria João Couto – Universidade do Porto, Faculdade de Letras Maria Paula Justiça – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Mario Novelli – Universidade de Amesterdão (Holanda) Marisa Vorraber Costa – Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil Miguel Ángel Santos Guerra – Universidade de Málaga, Departamento de Didáctica e Organização Escolar Nilda Alves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Laboratório de Educação e Imagem Nuno Pereira de Sousa – Médico de Saúde Pública, Administração Regional de Saúde/Norte, Agrupamento de Centros de Saúde de Guimarães Otília Monteiro Fernandes – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia Paula Cristina Pereira – Universidade do Porto, Faculdade de Letras Pascal Paulus – Escola Básica Amélia Vieira Luís (Outurela) Paulo Raposo – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Departamento de Antropologia Paulo Sgarbi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) Paulo Teixeira de Sousa – Conservatório de Música do Porto Pedro Silva – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Universidade de São Carlos (Brasil) Raúl Iturra – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa Raquel Goulart Barreto – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) Regina Leite Garcia – Universidade Federal Fluminense, Grupo de Investigação em Alfabetização das Classes Populares Ricardo Campos – Universidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de Antropologia Visual Ricardo Vieira – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação Roberto da Silva – Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação (Brasil) Roger Dale – Universidade de Bristol, Grã-Bretanha Rui Namorado Rosa – Universidade de Évora, Departamento de Física Rui Pedro Silva – Universidade do Minho, Centro de Investigação em Ciências Sociais Rui Tinoco – Psicólogo clínico, Administração Regional de Saúde/Norte, Agrupamento de Centros de Saúde do Porto Rui Trindade – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Sara Pereira – Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade Sérgio Bairon – Universidade Aberta, Laboratório de Antropologia Visual Susan Robertson – Universidade de Bristol, Grã-Bretanha Susana Faria – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Educação Virgínio Sá – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional Visionarium – Centro de Ciência do Europarque (Santa Maria da Feira) Xavier Bonal – Universidade Autónoma de Barcelona (Espanha) Xavier Úcar – Universidade Autónoma de Barcelona, Depar tamento de Pedagogia Sistemática e Social (Espanha) escritas soltas Agostinho Santos Silva – Engenheiro Ana Benavente – Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais António Branco – Universidade do Algarve António Brotas – Professor jubilado, Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior Técnico Cristina Mesquita Pires – Instituto Politécnico de Bragança, Escola Superior de Educação Jacinto Rodrigues – Universidade do Porto, Faculdade de Arquitectura João Pedro da Ponte – Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Departamento de Educação José Alberto Correia – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação José Guimarães – Universidade Aberta Luís Vendeirinho – Escritor Luísa Mesquita – Professora Manuel Pereira dos Santos – Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia Manuel Reis – Professor, investigador Manuel Sarmento – Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança Maria de Lurdes Dionísio – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Maria Emília Vilarinho – Universidade do Minho Rui Canário – Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Rui Santiago – Universidade de Aveiro Rui Vieira de Castro – Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia Serafim Ferreira – Escritor, crítico literário Sofia Marques da Silva – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Telmo Caria – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Victor Oliveira Jorge – Universidade do Porto, Faculdade de Letras a á ina da educação f ro edições a sua outra editora PROMOÇÃO de LANÇAMENTO válida em 2010 Assinar a página da educação é cómodo, económico e seguro Ao assinar a página da educação, em vez dos 4 euros, pague apenas por número 2,50 euros na assinatura por DOIS anos 3,00 euros na assinatura por UM ano Esta é uma forma cómoda, económica e segura de receber em casa a sua e de fazer parte do colectivo de Assinatura Números por assinatura 1 Ano 3,00 euros 4 números 2 Anos 2,50 euros 8 números Contactos para assinaturas: Telefone: 226 002 790 Correio electrónico: [email protected] CAPA_A.indd 2 Preço por número Valor a pagar por assinatura 12 euros Recebe 4 paga 3 20 euros Recebe 8 paga 5 assinar pensar o ensino e a educação reinventar o sistema educativo O futuro é a ora! Site: www.profedicoes.pt | Mail: [email protected] Telf.: +351 226 002 790 | Fax: +351 226 070 531 Rua D. Manuel II, 51 C, 2.º andar, Sala 25 | 4050-345 PORTO (Portugal) 3/15/10 3:44 PM Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente. Onde às vezes param e são morosas por dentro. Há cidades absolutas trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres. (...) entrevista com Helena Araújo a página da educação - PRIMAVERA 2010 Há mulheres que colocam cidades doces e formidáveis no espaço, dentro de ténues pérolas. Que racham a luz de alto a baixo e criam uma insondável ilusão. (...) A I República e a retórica ambígua sobre a emancipação da mulher portuguesa A última entrevista de Rogério Fernandes “Ainda não se dá o espaço suficiente para que os professores recuperem a sua vocação de construir uma escola nova pelas suas próprias mãos e com os seus alunos.” centenário do Dia Internacional da Mulher Semana de Acção Global pela Educação Herberto Hélder Lugar IV, fragmento Série II | nº 188 | PRIMAVERA 2010 | www.apagina.pt | 4€ objectivo: educação para todos DEVESAS Série II | nº 188 DE00472010GSCP/SNC CAPA_A.indd 1 Ousar ousar! Pragmatismo, educação e democracia: o legado universal de Jane Addams É indispensável que as universidades sejam credíveis e ofereçam formação de boa qualidade (Alberto Amaral) | O texto do acordo ortográfico é português, e é bom que os portugueses saibam disto (Lauro Moreira) | Precisamos de um ensino missionário? (Leonel Cosme) 3/15/10 3:43 PM