RECOMENDAÇÃO MPF/ES/Gab-APF nº 32/2009 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República que esta subscreve, no exercício das atribuições previstas no art. 129, II da Constituição Federal, e art. 5º, III, “e” e 6º, XX, da Lei Complementar 75/93, vem expor e ao final recomendar o que segue: É atribuição do Ministério Público Federal expedir recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito dos interesses, direitos e bens, cuja defesa lhe caiba promover, conforme o disposto no art. 6°, XX, da Lei Complementar n.° 75/93, bem como garantir que os direitos do cidadão sejam respeitados pelos Poderes Públicos e pelos prestadores de serviço de relevância pública, conforme art. 11, Lei Complementar 75/93. Dentre os direitos cuja defesa cabe expressamente ao Ministério Público, temos os direitos das pessoas com deficiência (art. 3º da Lei 7.853/89). Clara e indiscutível a legitimidade deste Ministério Público Federal para o tratamento dessa matéria (direitos de pessoas com deficiência), vamos aos fundamentos fáticos e jurídicos da presente recomendação. Tramita nesta Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão inquérito civil público que tem por finalidade apurar eventuais dificuldades que cegos e portadores de deficiência visual teriam para manusear cédulas e moedas de real e a virtual necessidade de se alterar o modelo monetário nacional para inserir nas cédulas e moedas dispositivos que possibilitem aos deficientes visuais a certeza quanto ao valor do dinheiro. Foram colhidas diversas manifestações de pessoas e entidades que apontaram para a necessidade da melhoria do modelo monetário nacional, para garantir aos cegos e pessoas com deficiência visual a possibilidade de manejo autônomo e seguro do dinheiro. Neste sentido a manifestação da Associação dos Deficientes Visuais Evangélicos do Brasil (fl. 71), que confirma as dificuldades de distinção das notas de papel moeda; o depoimento do Sr. Everaldo Cabral Ferraz (fl. 77), em que afirma que “não consegue distinguir as diferentes notas de real”; bem como a manifestação das pessoas ouvidas na diligência realizada no Instituto Braille (fls. 148/150) que foram unânimes em afirmar que não conseguem identificar os valores nas notas de real. Inclusive foram narradas situações absolutamente constrangedoras ocorridas em virtude da impossibilidade de lerem o valor das notas. Também foram colhidas sugestões sobre os mecanismos que seriam mais eficazes para melhorar o reconhecimento das notas. As pessoas e entidades ouvidas nos indicaram que a melhor forma para tornar a cédula compreensível para pessoas com deficiência visual seria a adoção de modelos com tamanhos diferenciados. Nesse sentido a manifestação da Associação dos Deficientes Visuais Evangélicos do Brasil (fl. 71), Instituto Benjamin Constant (fl. 124), da Fundação Dorina Dowill (fl. 130) e da Organização Nacional dos Cegos do Brasil (fl. 140). Além dessas entidades da sociedade, recentemente a OAB nacional, como relevante entidade da sociedade civil organizada, manifestou sua preocupação com a questão1. Diante desse quadro fático-probatório, foram enviados os ofícios de fls. 09, 16, 95, 135 para o Banco Central do Brasil e/ou Casa da Moeda questionando o quê vem sendo feito no sentido de adaptar o monetário nacional para permitir a leitura das cédulas. 1 Notícia divulgada em www.jusbrasil.com.br/.../oab-quer-que-casa-da-moeda-estude-viabilidade-de-leituraem-braille-no-real. Basicamente se informou que o Banco Central do Brasil juntamente com a Casa da Moeda vem desenvolvendo tentativas de adaptação das cédulas desde 2002, com a consulta às entidades de defesa das pessoas com deficiência visual, e que o Real já conta com alguns mecanismos de percepção táctil. Pois bem. A posição estatal tem sido, basicamente e já há algum tempo, de ouvir as entidades representativas das pessoas com deficiência visual, sem no entanto adotar modificação eficaz para modelo monetário que contemple a acessibilidade da moeda nacional em prol dessas pessoas. Tanto é assim que já se registra provocação ao Poder Público solicitando providências desde 2002, e ainda assim os entes governamentais responsáveis não produziram mudança capaz de solucionar o problema e atender a contento a justa demanda das associações representantes e das pessoas com deficiência visual. Dada a postura do Estado (Banco Central, seus órgãos, e Casa da Moeda) sobre o tema, vamos ao que entendemos ser a ação estatal que seria adequada e jurídica diante da situação fática que temos. O Ministério Público Federal tem a convicção que diante do legítimo anseio das pessoas com deficiência visual, especialmente os cegos, pela melhora do modelo monetário nacional, com a adoção de mecanismo eficaz para a rápida e adequada percepção do valor das notas, não há outra postura estatal possível que não a mudança dos modelos das cédulas de Real. Explicamos o que, juridicamente, fundamenta essa nossa posição. A Constituição da República de 1988 traz inúmeros dispositivos que, se não servem de regra diretamente regente do caso em questão, são importantes normas-diretrizes das soluções que serão dadas pelo ordenamento. Já no art. 1º, inciso III, a Carta Magna registra como um dos seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana” 2 3, e no art. 3º, inciso I, dispõe que está entre os objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e no inciso IV “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Também o art. 5º, caput, tem incidência no caso, ao determinar que todos são iguais perante a lei4. Nosso sistema constitucional é infenso aos tratamentos discriminatórios injustificados. Mais recentemente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, introduzida em nosso ordenamento por meio do Decreto 186/2008, com status constitucional, nos termos do art. 5º, § 3º, da CF/88 (EC 45/2004), que tem por propósito promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade (art. 1º da Convenção), reafirma a universalidade, a indivisibilidade, a 2 O valor da “dignidade da pessoa humana” pode ser sentido no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidades em 1948: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)” 3 “Cuidando-se de dignidade – e aqui tomamos emprestadas as expressivas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha – do que se poderia chamar de 'coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana', é imprescindível que se outorgue ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade possível” (in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet, pág. 148, sexta edição, ed. Livraria do Advogado. 4 É voz corrente na doutrina que nosso regime constitucional não se contentou com igualdade formal (perante a lei), mas que o princípio da igualdade exige a busca por igualização de oportunidades (equality of opportunity), que se aproxima da idéia de busca da igualdade material. Robert Alexy assevera que “se houver uma razão suficiente para o dever de um tratamento desigual, então o tratamento desigual é obrigatório”(Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução: Virgílio Afonso da Silva, pág. 410, ed. Malheiros) interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais com o fim de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação5. Reconhece-se expressamente a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas6, e da acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais7. A Convenção tem por princípios fundamentais o respeito pela dignidade inerente a todos, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; a não-discriminação; a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; a igualdade de oportunidades e a acessibilidade8. A legislação infraconstitucional também determina que serão considerados, em relação às pessoas com deficiência, os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito (art. 1º, § 1º, da Lei 7.853/89); bem como que essa lei objetiva garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade (art. 1º, § 2º); cabendo ao Poder Público e seus órgãos assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao 5 6 7 8 Preâmbulo, alínea “c”. Preâmbulo, alínea “n”. Preâmbulo, alínea “v” Art. 3º. amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico (art. 2º). Quando aplicamos as referidas normas ao tema em comento, diante do suporte fático anteriormente mencionado (a demonstrada dificuldade que cegos e deficientes visuais têm para usar as cédulas do Real), fica claro que a postura do Poder Público na produção das notas do dinheiro nacional não atende às exigências normativas de não-discriminação, autonomia e acessibilidade . Em outras palavras, o atual desenho das cédulas de real discrimina9 os cegos e pessoas com baixa visão, causando-lhes situações de lamentável embaraço, como as narradas na diligência no Instituto Braille. A equivocada postura omissiva da União, através dos seus entes responsáveis, fica ainda mais evidente se cotejarmos nossa realidade com a experiência de outros países. A União Européia, em 2002, adotou no Euro cédulas com diferentes tamanhos e cores justamente a pedido da União Européia de Cegos. A Inglaterra também adota cédulas de tamanhos diferenciados. O Canadá, desde 1995, tem mecanismo eficiente para permitir que os cegos leiam as cédulas. Índia e Japão também têm cédulas acessíveis aos cegos10. 9 A Convenção, em seu art. 2º, define como “discriminação por motivo de deficiência” exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável 10 Esses países mencionados são apenas exemplos. Até mesmo os Estados Unidos da América, cujo dólar em um só formato e de cor predominantemente verde é tradicional e símbolo americano em todo o mundo, teve que render-se à exigência de acessibilidade, por força de decisão da Corte Federal de Columbia, em 20 de maio de 2008, que decorreu de demanda do Conselho Americano dos Cegos, diante da constatação de que a maioria das pessoas com deficiência visual almeja maior independência no manuseio do dólar, já que, por dependerem de outras pessoas para distinguir as cédulas e as moedas, os cegos e ambíopes são passíveis de enganos e brincadeiras, em função da ausência de um um projeto gráfico efetivamente distintivo das cédulas e moedas do dólar (cópia da decisão em anexo). Não se desconhece que as cédulas de Real têm elementos voltados para a identificação táctil e visual. Todavia, segundo demonstram os elementos que constam do procedimento, tais mecanismos não estão sendo eficazes no sentido de garantir que cegos e portadores de grave deficiência visual tenham ciência dos valores das notas. Os elementos em alto relevo são, segundo relatos, facilmente deterioráveis com o uso das notas, ou seja, desgastam-se rapidamente. Além disso alega-se que exige-se muita sensibilidade táctil para o reconhecimento. Nem se diga que a implementação de mudanças que tornem o Real acessível aos cegos e pessoas de baixa visão é inexigível em razão do custo que acarretaria aos cofres públicos. A realização de direitos fundamentais, máxime quando têm expressa e concreta previsão normativa, não deve se sujeitar, em princípio, a condicionamentos orçamentários. Somente se aceita objeção de ordem orçamentária quando se restar absolutamente demonstrada inarredável impossibilidade financeira11, sendo totalmente impossível tal 11 “Não são poucos (...) os que se insurgem contra a entronização da reserva do possível como limite fático à concretização dos direitos sociais”(Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva e IDP, 2ª edição, pág. 711). Ainda há a questão da demonstração da impossibilidade: “A prova de que não tem recursos para universalizar a medida requerida é da Administração Pública”(Cláudio Pereira de Souza Neto, in Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento [organizadores], ed. Lumen Iuris, pág. 545). demonstração no caso concreto, eis que pelas características da atividade estatal desejada os custos podem ser diluídos no tempo, com a implementação gradual e progressiva das mudanças, além de ser normal a modificação e renovação das moedas e cédulas de tempos em tempos12. A mudança do modelo do Real para modelo acessível às pessoas com deficiência visual trará ainda como benefícios secundários positivos a melhoria da autoestima das pessoas com deficiência, com a percepção de empoderamento para fazer respeitar seus direitos frente ao Estado e aos particulares, a noção de que os direitos à não discriminação têm eficácia ampliada e diferenciada e o fortalecimento da cultura de direitos humanos13. E a implementação da mudança é medida juridicamente simples. Não depende de lei em sentido formal, mas tão somente de manifestação de órgãos colegiados do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetário Nacional14. Em conclusão, tendo a instrução do presente procedimento demonstrado cabalmente que a União, por seus órgãos e entes descentralizados, vem se omitindo no desenvolvimento célere, tempestivo e adequado de ação estatal que torne o Real, moeda nacional, acessível às pessoas com deficiência visual, resolve o Ministério Público Federal, pelo Procurador da República signatário: (i) RECOMENDAR ao Banco Central do Brasil e à Casa da Moeda do Brasil que adotem, em prazo razoável, as providências cabíveis dentro de suas esferas de competência, no sentido de tornar acessível as cédulas e moedas do Real às pessoas com deficiência visual, implementado mecanismos realmente eficazes e 12 Tanto o custo não é barreira intransponível que vários países já implementaram mudanças para tornar as moedas e cédulas acessíveis. O positivo impacto social da medida compensa e muito os ônus financeiros. 13 Ora, se o Estado é obrigado a mudar sua moeda para atender às pessoas com determinada deficiência, é sinal claro de que esses direitos de igualdade positiva, para usar a conhecida expressão de Dworking, são levados a sério. 14 Lei 4.595/64, arts. 4º e 10, e Regimento Interno do BC, arts. 11, 12 e 56. duradouros15 que tornem possível percepção fácil e imediata dos valores, preferencialmente a adoção simultânea de tamanhos e cores diferentes, como ocorre com sucesso em inúmeros países, inclusive nos países integrantes da União Européia, tudo com a participação efetiva de entidades representantes de pessoas com deficiência visual; (ii) SOLICITAR, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento da presente recomendação, informações sobre as providências adotadas. Vitória/ES, 29 de outubro de 2009. ANDRÉ PIMENTEL FILHO Procurador da República Procurador Regional dos Direitos do Cidadão 15 Entidades e pessoas com deficiência visual alegam que somente elementos em relevo não seriam eficazes em razão do rápido desgaste que ocorre com o constante e continuado manuseio das notas.