POLÍTICA E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE NICOLAU MAQUIAVEL RUBIM, Sandra Regina Franchi Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Esse texto tem como objetivo analisar algumas formulações de Nicolau Maquiavel sobre a teoria política, a partir de sua obra O Príncipe, resultante de suas reflexões sobre os problemas mais imediatos do seu tempo e ambiência: séculos XV e XVI, na Itália. Sua forma de pensar em termos de política secular, postumamente, revolucionou a história das teorias políticas. O Príncipe, que seguia o gênero literário dos espelhos de príncipes, se constituía como um manual destinado ao governante, o qual expressava a essência do Renascimento, período em que nasceu a teoria do Estado-Nação. Nesse momento a renovação cultural e científica alcançava um ponto culminante e propiciava um novo universo ideológico, centrado no homem e em sua vida secular. Enfim, sua obra refletia o desenvolvimento dos Estados Nacionais, a dessacralização do político, a independência do poder temporal em relação ao poder religioso e a primazia do Estado frente à religião. Nessa obra, Maquiavel, discorreu sobre a arte de conquistar o poder e de conservá-lo. Para tanto, era necessário um governante que não titubeava diante das vicissitudes da nação. Sem ignorar os valores humanos, inclusive os morais e religiosos, o autor fez uma observação aguda de tudo quanto ocorria na sua época, em termos de organização e atuação do Estado. Concluímos, portanto, mediante a significação que a obra de Maquiavel possui em relação à história das idéias, principalmente, no campo da ciência política, que é de suma importância a exploração do cabedal de Maquiavel para a História da Educação, para assim, compreendermos os fundamentos da formação política da sociedade moderna e, por conseguinte, compreendermos a formação do homem político-moderno. Palavras-chave: História da Educação. Governante. Estado Moderno. Introdução É notório nos dias atuais, a permanência da atividade política e o fortalecimento do Estado, tornando premente, analisar a significação da política, sua natureza, seus objetivos, finalidades, suas exigências e limitações. 2174 Acreditamos que analisar as formulações de Nicolau Maquiavel (1469-1527), é de suma importância, pois podemos dizer que, na história da reflexão sobre a política1, sua tese é pertinente. De acordo com Bath (1981), ele foi o primeiro a dedicar sua capacidade intelectiva na prática política do passado e do seu tempo histórico, trazendo à tona e definindo a real atividade política, diferente da discutida, até então, pelos teóricos e utopistas do seu tempo. Seus livros possibilitam uma melhor compreensão das questões políticas de nosso tempo, pois estudar a história de várias gerações é estudar nossas próprias idéias e ver como chegamos a adquiri-las. Ao compreendermos como os grandes filósofos e historiadores trataram os problemas do seu tempo, buscando pelo pensamento a melhor maneira de ordenar as relações humanas, poderemos, assim, pensar com clareza nossa própria sociedade e buscar intervir nela. Hoje, procura-se verificar a contribuição específica que Maquiavel propiciou à história das idéias, especialmente, àquelas concernentes à ciência política. Percebemos que seus intérpretes, condizente com as diferentes épocas e posições ideológicas, fizeram leituras variadas e divergentes de seus escritos e, até anacrônicas. Assim, explorar a obra desse mestre, do realismo político, é para nós um desafio. Podemos assinalar, portanto, que a grande revolução nos estudos políticos deu-se na Itália, no início do século XVI, com Nicolau Maquiavel. Ao defender a unidade italiana, esse intelectual pregou a construção de um Estado laico, independente da Igreja e dirigido, de modo absoluto, por um príncipe dotado de inteligência e de inflexibilidade na direção dos negócios públicos. Pretendemos, assim, analisar o pensamento inovador de Maquiavel, no limiar do Renascimento Italiano que percebe o Estado como um fato social, ou seja, considera a história e a sociedade como fenômenos humanos e naturais, se distanciando de julgamentos e preconceitos doutrinários ou de condenações religiosas e morais. Maquiavel declara que a sabedoria política assenta em um entendimento adequado do passado. Ele recorreu a seus conhecimentos da história antiga para refletir as temáticas centrais de sua tese política. Para ele, o passado nos serve de exemplos, nos possibilitando prever o futuro, fazendo uso das soluções aplicadas na Antiguidade ou, na ausência deles, criar novos, em consonância com a similaridade de circunstâncias entre o passado e o presente. No Capítulo VI assinala ser 1 Dante (1265-1321), Marsílio (1275-1343), Petrarca (1304-1374), Coluccio Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1370-1444), são exemplos de teóricos políticos anteriores à Maquiavel. 2175 prudente imitar os grandes homens, que se destacaram por sua excelência. E, assim, àqueles que os imitarem devem [...] agir como os seteiros prudentes, que, para atingir um ponto longínquo, e cientes da capacidade do arco, miram em altura superior à do ponto escolhido. Não fazem isso, obviamente, para ver a flecha alcançar aquela altura; servem-se da mira elevada somente para acertar com segurança o local desejado, muito mais abaixo (MAQUIAVEL, Cap. VI). Maquiavel compartilhava da confiança dos humanistas, em geral, no valor do estudo do passado, enquanto guia para a vida moderna. Quem observar com diligência os fatos do passado poderá adquirir uma percepção daquilo que convém seguir e do que deve ser evitado. Ao conhecer a História aprendemos com o comportamento dos homens, podendo assim, não cometer os mesmos erros, pois na História nada acontece pelo acaso. É necessário olharmos para a História, não como receptor passivo de informações prontas, mas, sim, na posição de participantes do processo de construção do conhecimento histórico, nos conscientizando de nossa própria história e de nosso lugar no mundo. Assim, acreditamos que o passado ensina-nos a sermos homens e sujeitos de nossas ações. Faz-se necessário, portanto, nos apropriarmos das formulações de Maquiavel, que são atemporais, como exemplos, para que no nosso presente nos posicionemos com firmeza, com autonomia intelectual, diante dos problemas cotidianos. Assim, partindo da premissa que o processo educativo ocorre pelas ações sociais, o princípio da História da Educação é construir os fundamentos estruturantes do pensamento educacional, que percorre o caminho da História. Temos que voltar o nosso olhar para o passado, para as autoridades clássicas. Torna-se relevante compreender como, o pensamento dessas autoridades, influenciou a construção da idéia de educação, de conhecimento, de cultura. Em suma, com um olhar para o homem na sua totalidade, esse texto pretende pontuar o papel social de Maquiavel, enquanto sujeito histórico. Analisaremos mediante sua obra O Príncipe (1513), a contribuição do seu posicionamento, no seu momento histórico e ambiente, para o desenvolvimento do ser humano e da sociedade, tanto do seu tempo quanto da contemporaneidade. Tempo histórico e ambiência de Maquiavel 2176 Muitos, ao lerem O Príncipe, provavelmente, não conseguiram escapar à influência de Maquiavel, a não ser que não tenham lido nada sobre ele antes. No entanto, podemos apontar que é do conhecimento geral a opinião de Maquiavel de que, em política, os fins justificam os meios. Nos dicionários encontraremos maquiavélico definido como “astuto”, “velhaco”, “pérfido”, “ardiloso”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira2 define maquiavelismo como “Política desprovida de boa fé; procedimento astucioso; velhacaria”. Uma pessoa maquiavélica é considerada como destituída de moralidade política, alguém que se utiliza mais do expediente do que da justiça? A obra de Maquiavel originou muita controvérsia póstuma. Cada geração tem adaptado O Príncipe de acordo com suas conveniências, com seus conceitos. Queremos, portanto, deixar aqui patentes, dois propósitos: apresentar O Príncipe e o seu escritor no contexto que lhes é próprio e em seguida analisar alguns aspectos dessa obra. Acreditamos que a obra de um escritor do porte de Maquiavel não é um trabalho descolado das questões de sua época. Entendemos que a prática social, na gênese da sociedade moderna, orienta e norteia os estudos do autor. Assim, o estudo deverá ser realizado vinculando a filosofia política do autor com o momento histórico em que ele viveu, dentro do quadro de sua vida pessoal e das condições econômicas, sociais e políticas da Europa dos séculos XV e XVI, em especial, a situação da Itália, pátria de Maquiavel. De acordo com Masters (1999), foi em meio à invasão da Itália, que Maquiavel desempenhou, durante 14 anos, a função de Segundo Secretário da Chanceleria de Florença (1498-1512), eleito pelo Conselho dos Oitenta, órgão maior da estrutura de governo da cidade. Tornou-se um funcionário poderoso em um momento de efervescência política e econômica. Esses cargos propiciaram a Maquiavel um extenso conhecimento da política, conscientizando-o da complexidade dos acontecimentos correntes e das deficiências do governo florentino. Suas viagens permitiram-lhe, sem dúvida, ver a Itália de fora. Teve oportunidades de observar ações de papas e reis, aprendendo, assim, a respeito da sutileza política e do uso da força. Podemos afirmar que o envolvimento de Maquiavel em assuntos políticos, diplomáticos e militares como secretário, foi decisivo para a formação de seu pensamento político. Como secretário, Maquiavel, gozava de grande confiança do chefe da 2 FERREIRA, A. B. de H. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6ª Ed. rev. atualiz. Curitiba: Positivo, 2004. 2177 república, Piero Soderini (1498-1512); este reconhecia suas habilidades como negociador e o seu bom senso político. No entanto, em 1512, quando exércitos espanhóis derrotaram a república, Soderini é expulso e os Medici retornam ao poder em setembro. Diante deste novo quadro Maquiavel é destituído de suas funções, em novembro. Estava não só sem o cargo, mas também, impedido de se envolver em ações políticas. No início, acalentava esperanças de ser útil ao novo governo, pois fora um funcionário fiel e competente. Todavia em 19 de fevereiro de 1513, seu sonho evanesce, sendo aprisionado e torturado como um conspirador contra os Medici3. Perante esse infortúnio, refugia-se em sua propriedade de Saint` Andrea, valendo-se de sua formação como poeta e literato. Nesse período foi concebida as suas obras mais importantes: O Príncipe (1513); os Comentários (1515-17); A Arte da Guerra (1519-20) e A História de Florença (1520/25). Maquiavel morreu em 1527, ano em que Roma foi saqueada pelas forças do imperador Carlos V (1500-1558), do Sacro Império Germânico (BIGNOTTO, 2007). Enfim, nesse contexto de crise, todos os florentinos, entre eles Maquiavel, se encontravam unidos em uma preocupação comum: o receio de perderem sua tão estimada independência. A perda de Pisa, em 1494, local de suma importância para a atividade comercial de Florença, foi um grande golpe para o orgulho dos florentinos, levando-os a não mais recobrarem sua autoconfiança. Nesse momento, ameaçados por guerras e outros perigos, abandonaram a defesa de suas prerrogativas e da sua independência, em favor de um governo personificado em uma única família e depois em um só homem: o príncipe. Assim, podemos dizer que de forma geral O Príncipe constitui uma tentativa de restituir aos florentinos e ao seu governo o sentimento de autodeterminação. O Príncipe: a nova ciência política A combinação da arte de escrever cartas com a arte de fazer discursos, a partir do século XIII, teve resultados práticos. Capacitou os dictatores (instrutores da Ars Dictaminis4) a contribuir de forma sistemática, ao debate da maior parte das questões relevantes do seu tempo, levando-os a assumir um caráter ainda mais público e político, se preocupando com as 3 Segundo Masters (1999), em 11 de março de 1513, com a morte do papa Júlio II (1445-1513), o cardeal Giovanni de Medici, filho de Florença, torna-se o novo pontífice, assim, em meio ao regozijo dos florentinos, os prisioneiros são anistiados, ficando, então, livre Maquiavel. 4 Arte do ensino à retórica. O objetivo do estudo da retórica nas Universidades italianas, a partir do século XII consistia oferecer uma capacitação muito valorizada no mercado: escrever cartas oficiais e outros documentos semelhantes, com clareza e poder de persuasão. 2178 histórias de suas cidades. Assim, ao incluir assuntos cívicos nos modelos de cartas e de discursos, resultou-se um gênero importante de escrita política: livros de conselho dirigidos a podestà5 e a outros magistrados urbanos. Essa abordagem foi largamente imitada, contribuindo, mais tarde, para o desenvolvimento do pensamento político renascentista. Os primeiros livros de conselhos contribuíram para fixar um padrão para a literatura posterior dos espelhos dos príncipes. Estes davam ênfase na questão de quais virtudes deveria possuir um bom governante e indicava que todas suas ações deveriam estar em conformidade com as quatro virtudes cardeais, a prudência, a magnimidade, a temperança e a justiça. Estas virtudes tornaram-se característica principal dos moralistas renascentistas (SKINNER, 1996). Maquiavel, pois, procurou conceber sua obra servindo-se desse segundo gênero literário, espelhos dos príncipes, o qual continuava a ser usado no início do século XVI. Em sua carta a Lourenço, filho de Piero de Medici, Maquiavel declara que está escrevendo um manual de conselhos para os príncipes, em especial, para o novo príncipe de Florença, da família Medici, com o intuito de auxiliá-lo a manter o poder e o controle no seu Estado. Afirma que baseou a sua própria apreciação da estratégia e da tática neste campo, no estudo meticuloso e no registro preciso, tanto da ação política do passado como da contemporânea. Maquiavel abordando a política de forma realista e confrontando a experiência que tinha dela com o testemunho da história, estava dando origem a regras de conduta política num mundo real. A verdade da política deve ser aprendida pelo estudo das várias formas existentes, resultantes da história real dos homens. Esse saber pode ser adquirido por todos que examinem atentamente o funcionamento dos diversos regimes existentes. O cerne de seu interesse não é estudar o tipo ideal de Estado, mas sim, o fenômeno do poder, formalizado na instituição do Estado, buscando compreender como as organizações políticas se fundam, se desenvolvem, perseveram e decaem. Em O Príncipe dá a entender que sua preferência pessoal é a liberdade política, por conseguinte, para a forma republicana de governo (MARTINS, 1998). O florentino, além de fornecer a dádiva da sua experiência política, destaca que ao seguir seus preceitos preconizados, o novo príncipe teria a possibilidade de consolidar o seu poder e, também, os Medici poderiam granjear a posição de líderes da própria Itália. Consideremos suas palavras em O Príncipe: 5 Funcionário assalariado. Era assim chamado porque era investido de poder supremo sobre a cidade, o qual era eleito pelo voto popular. 2179 [...] far-se-ia necessário que a Itália chegasse aonde se acha neste momento. Que se visse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e que houvesse, por fim, suportado toda sorte de calamidades. [...] Verifica-se que roga ela a Deus o envio de alguém para redimi-la das crueldades e insolências dos estrangeiros. Nota-se, igualmente, que está pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a levante. [...] Caso vossa ilustre casa deseje seguir o exemplo daqueles grandes homens redimir suas províncias, mister se faz, por primeiro, como verdadeiro alicerce de qualquer empresa, prover-se de tropas próprias, uma vez que não há outras mais leais nem melhores.e, não obstante cada soldado possa ser bom, todos reunidos serão ainda melhores quando forem comandados pelo seu príncipe, e por ele honrados e bem tratados. [...] Tome, portanto, a vossa ilustre casa tal tarefa, com aquele ânimo e com aquela fé com que se esposam as boas causas, afim de que, sob o seu brasão, seja essa pátria enobrecida [...] (MAQUIAVEL, Cap. XXVI). Segundo Masters (1999), o apoio que Maquiavel forneceu aos Medici era devido a sua crença de que o desejo de glória dessa família poderia gerar um líder para unir a Itália. Era seu desejo que a unificação da Itália se tornasse viável, levada a cabo por um líder enérgico, capaz de promover a estabilidade política e vencer seus conquistadores. Assim, em sua obra preocupa-se com os problemas que o novo príncipe deve enfrentar para conservar seu poder sobre o território recém-adquirido. Esse príncipe terá que manter a submissão daqueles que colaboraram para a sua ascensão e, ao mesmo tempo, diminuir o seu apetite de poder pessoal. Deverá acabar com a oposição, submeter os conquistados a sua autoridade, defender o seu território de ataques estrangeiros e outros mais. Para tanto, Maquiavel pretende que todos os príncipes tenham como modelo algum personagem histórico que fora alvo de glória e honra. Nesse sentido diz o florentino: Caminham os homens, em geral, por estradas já trilhadas. Aquele que é prudente, desse modo, deve escolher os caminhos já percorridos pelos grandes homens, e copiá-los; sempre muito é aproveitado, ainda que não se possa seguir fielmente esse caminho, nem alcançar inteiramente, pela imitação (MAQUIAVEL, Cap. VI). Assim, de acordo com Skinner (1996), Maquiavel, buscando inspiração nas ações e valores definidos pelos humanistas do alvorecer do século XV, discorre como um príncipe deve agir para conquistar a honra. O seu herói ainda é o vir virtutis, ou seja, o homem verdadeiramente viril, sendo este capaz de alcançar o mais alto nível de excelência, por meio de uma educação adequada, que Maquiavel dá a entender que a melhor educação para um príncipe seria seguir à risca os preceitos por ele elaborados em O Príncipe. 2180 Para ele, segundo Bignotto (2007), assim como para os teóricos dos espelhos dos príncipes anteriores, a ação política é um confronto entre a virtú e a fortuna. A deusa romana Fortuna, seria responsável pela ruína dos mais bem elaborados de nossos planos, porém, ressalta que é possível cotejá-la e o homem de legítima virtus pode até subjugá-la, atraindo dela favores. Ele admite que a fortuna pode levar o homem a adquirir um estado, assim como pela prática da virtú: “Os principados ou são hereditários, e têm como um senhor um príncipe pelo sangue, por longa data, ou são novos. [...] domínios assim [...] adquiridos com tropas alheias ou próprias, pela fortuna ou pelo mérito” (MAQUIAVEL, Cap. I). No seu Capítulo VII cita o exemplo de César Borgia6 (1475-1507) que conquistou o poder devido à influência do pai, o papa Alexandre VI, perdendo-o quando este lhe faltou, embora tivesse sido prudente e capaz. Maquiavel o apresenta como modelo a ser imitado por todos os que chegaram ao poder pela sorte ou pelas armas. Todavia, segundo Moreira (1981), é importante salientar que para Maquiavel, embora a fortuna, o acaso, proporcione chaves para o sucesso da ação política e constitui a metade da vida que não pode ser guiada pelo indivíduo, ele não compactua com a atitude passiva de fatalismo, mas sim, enaltece a posição ativa. Ele propõe uma vida ativa em detrimento de uma vida contemplativa e do ócio. Em outros termos, o homem de virtú é aquele que está atento aos sinais da fortuna, percebendo o momento certo para agir sábia e prudentemente, colhendo dela êxito. Para ser eficaz, a ação política deve-se atentar em investigar as peculiaridades das circunstâncias sobre a qual se pretende agir. Assim, adverte Maquiavel: [...] quando um príncipe se apóia apenas na fortuna, arruína-se de acordo com as variações daquela. Julgo feliz, também, o que harmoniza sua maneira de agir com as características de cada época, e infeliz aquele cujo modo de proceder discorda dos tempos [...] mudando-se a sorte, e conservando os homens, obstinadamente, o seu modo de proceder, são felizes enquanto esse modo de proceder e as características da época estiverem de acordo. [...] é melhor ser impetuoso do que prudente, [...] a fortuna como mulher, é sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com maior audácia a dominam (MAQUIAVEL, Cap. XXV). Complementando o pensamento acima, Maquiavel argumenta sobre a importância de buscar na história uma situação semelhante e exemplar, na qual poderia obter conhecimento dos meios para a ação eficaz. A História nos mostra como a virtú de alguns personagens foi 6 Maquiavel, em 1502-3, acompanhou César Bórgia em uma missão diplomática. 2181 capaz de retirar dos momentos propícios, dados pela fortuna, uma direção para tomarem atitudes prudentes, alcançando, assim, êxito. Assim, Maquiavel diante de uma Itália desestabilizada politicamente, insegura, insultada e decadente, indica que o governante se paute na virtú dos antepassados e, também, nos modelos do presente, para assim, adquirir forças, entusiasmo, determinação, essenciais para grandes mudanças. Nesse sentido propõe que: Agora, no que diz respeito ao exercício do pensamento, deve o príncipe ler histórias de países e avaliar as ações dos grandes homens, verificar como se conduziram nas guerras, analisar os porquês de suas vitórias e derrotas [...] Um príncipe sábio deve prestar atenção a essas coisas e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz; ao contrário, deve, com astúcia, ir juntando cabedal de que se possa servir nas adversidades, para sempre estar pronto a opor-lhes resistência (MAQUIAVEL, Cap. XIV). A interação entre virtú e fortuna tudo decide. Sendo a primeira a energia, o empenho, a vontade dirigida para um objetivo e a segunda o acaso, a oportunidade, juntas vão tecer a rede em que se desenvolve o desejo do Estado e do indivíduo para a realização e para a conquista. Enfatizamos até então, o papel da fortuna e a importância do conhecimento da história, agora, de acordo com O Príncipe, pontuaremos como deve ser o comportamento dos príncipes diante das adversidades, para manter o poder e o controle no seu Estado. De acordo com Skinner (1996), por várias vezes Maquiavel sustentou que o principal dever do príncipe era proteger sua própria segurança e força, para tanto, a virtú do governante é a chave para que ele mantenha seu estado. No entanto, aos seus súditos deve garantir a estabilidade, a segurança e a liberdade, criando ordenações e leis que contemplem tanto o poder do príncipe quanto a segurança de todos, pois o “[...] povo não quer ser governado nem oprimido pelos poderosos, [...] (MAQUIAVEL, Cap. IX). Para desviar o desprezo e o ódio e conservar o vulgo satisfeito é necessário: [...] não ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos. [...] Desprezível torna-se o príncipe considerado volúvel, leviano, efeminado, covarde, indeciso.[...] Deve ele fazer com que de seus súditos se reconheça a grandeza, a coragem, a gravidade e a fortaleza; [...] deve tornar irrevogável a sua sentença, comportando-se de maneira a que ninguém cogite enganá-lo ou fazer com que mude de idéia (MAQUIAVEL, Cap. XIX). Conclui-se, então, que um príncipe prudente deve pensar nos modos de ser necessário aos súditos, sempre, e de estes necessitarem do estado; depois, ser-lhe-ão sempre leais (MAQUIAVEL, Cap. IX). 2182 Pode-se afirmar, portanto, que para Maquiavel a conservação mais segura do Estado advém do príncipe não ser alvo do ódio do povo. Nos Discursos, Maquiavel aborda que “[...] os povos, como diz Túlio, mesmo sendo ignorantes, são capazes de entender a verdade e facilmente cedem, quando a verdade lhes é dita por homem digno de fé” (MAQUIAVEL, Liv. I, Cap. IV). A crise que se abate sobre sua pátria exige clareza, objetividade, sabedoria, tanto da parte dos governantes quanto dos súditos. Todos devem ter comprometimento com a esfera pública; ter consciência dos problemas. Quanto maior for a ação política dos indivíduos, mais forte será o Estado (MOREIRA, 1981). Em continuidade ao pensamento de como deve ser as ações do príncipe, segundo os conselhos de Maquiavel, adentramos em um ponto muito polêmico de sua teoria política: a ética. Indo na contramão de seus predecessores, Maquiavel sustenta que nem sempre podemos agir como gostaríamos no campo da política. A política real se ordena de maneira peculiar. Segundo Moraes (1981), Maquiavel declara que todos os atos ou procedimentos necessários a defesa do Estado ou ao bem da Pátria, úteis a comunidade ou ao príncipe que a encarna, serão morais. Ao contrário, os atos que objetivam a satisfação de interesses próprios e egoísticos, são imorais. Assim, esse pensador argumenta que em certas circunstâncias são necessárias atitudes contrárias às virtudes cristãs (a Fé, a Caridade e a Esperança) e morais (a Prudência, a Temperança, a Fortaleza e a Justiça) recomendadas na literatura dos espelhos, a um governante que pretenda manter seu estado e alcançar os alvos da honra, glória e fama. Paradoxalmente, esse filósofo, indica seguidas vezes, que é louvável o príncipe praticar as virtudes, no entanto, se ele não puder, de fato, ser virtuoso, já que lida com homens perversos, deverá manter as aparências, para com prudência escapar da má reputação. Assim, atribui uma acentuada relevância ao talento da dissimulação: No entanto, não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades mencionadas; basta que aparente possuí-las. [...] um príncipe, em especial quando novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens tidos como bons, pois é muitas vezes forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião. [...] Deve o príncipe, contudo, cuidar para não deixar escapar dos lábios expressões que não revelem as cinco qualidades [...] devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. [...] Procure, pois, um príncipe vencer e preservar o Estado. Os meios empregados sempre serão considerados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo se deixa conduzir por aparências e por aquilo que resulta dos fatos consumados (MAQUIAVEL, Cap. XVIII). 2183 Maquiavel, completando o conselho acima afirma que ao príncipe não convém desviar-se do que é bom, se assim for possível. Todavia, quando for necessário, deve praticar o mal com sabedoria. Muitas vezes o agir franco e varonil, como um legítimo vir virtutis, se revela inadequado, por isso, na prática, em seu Cap. XVIII no O Príncipe, o secretário florentino indica que o príncipe deva agir como “meio animal e meio homem”, para assim poder sobreviver, em meio à corrupção. A convicção de que em política os fins justificam os meios, fez com que ele fosse considerado infame, perverso. Ele via a humanidade em uma perspectiva muito pessimista: o homem para ele era depravado, ingrato, egoísta. Nesse sentido nos Discursos professa que “os homens nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade” (MAQUIAVEL, Liv. 1, Cap. III). Assim, ele previne o príncipe de estar preparado para agir contra as convenções da fé, caso almeje manter-se seguro (SKINNER, 1996). Enfim, um governante deve desenvolver sua arte de mediar. É necessário ter habilidades na condução de suas ações; deve ser capaz de modificar sua conduta do bem ao mal, do mal ao bem, pois o homem de virtú é o inventor do possível em uma dada circunstância concreta, é aquele que sabe tirar proveito de uma situação propiciada pela fortuna. Para concluir nossa análise da obra do diplomata florentino, discutiremos sobre quais seriam os fundamentos do governo independentemente do tipo de Estado. Para Maquiavel os alicerces do governo seriam boas leis e boas armas. Possuir um exército próprio seria de suma importância para a segurança de um Estado, por isso, o príncipe deveria dominar a arte da guerra, possuir destreza, pois havendo boas armas, consequentemente haverá boas leis. Como era de sua opinião que a corrupção se alastrava pela Península Itálica, era de vital importância que o príncipe se mantivesse firmemente no poder, custe o que custasse. Assim, sendo este um propósito legítimo, justificava toda a espécie de meios. Essa situação corrompida e humilhante da Itália exigia instrumentos radicais para curá-la. A insegurança política da Itália justificava a sua obstinação pela estabilidade política, a qual deveria ser conquistada pela astúcia e pela força. Por isso, no Cap. VI em O Príncipe enaltece a ação dos “profetas armados”, sendo os maiores “Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu”, fundadores de reinos dignos de admiração. Assim, Maquiavel concede acentuada relevância ao “fim” que a força bruta cumpre na vida política. 2184 E os principais fundamentos dos Estados, sejam eles novos, velhos ou mistos, são boas leis e boas armas.[...] As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas. Se alguém mantiver seu Estado apoiado nessa classe de forças, nunca haverá de estar seguro; [...] O Estado é espoliado por elas na paz; na guerra, pelos inimigos [...] Em suma, nas tropas mercenárias é perigoso a covardia; nas auxiliares, o mérito. [...] Carlos VII, pai do rei Luís XI, que com sua boa fortuna e mérito libertou a França do jugo inglês, apercebeu-se da necessidade de se armar com tropas próprias e assim tornou obrigatório, no reino, o serviço militar. [...] Um príncipe não deve ter outro objetivo ou pensamento, ou manter qualquer outra coisa como prática, a não ser a guerra, seu regulamento e sua disciplina, pois essa é a única arte que se espera de quem comanda. [...] A causa que te levará a perder o domínio, em primeiro, é descuidar dessa arte, e só o poderás conquistá-lo ao professá-la. [...] deve se preocupar sempre com a arte de guerra, e praticá-la na paz mais ainda do que na guerra, [...] (MAQUIAVEL, Caps. XII, XIII e XIV). Percebemos, portanto, que para Maquiavel o amor à pátria, o uso da violência pela sua causa, constituía-se como elementos necessários à virtús do legítimo cidadão. Esse estadista conclui, declarando sobre a importância de um príncipe ter uma milícia constituída por cidadãos, pois caso contrário, estará à mercê da fortuna, em momentos difíceis não haverá virtú que mantenha o Estado seguro. Maquiavel começou sua carreira numa posição de poder e prestígio e morreu pobre e em desgraça. Todavia, mediante uma combinação de gênio e talento como escritor, essa derrota tornou-se o fundamento para obras de sucesso duradouro. A desgraça, que o afastou de sua posição de alto funcionário do Estado, levou-o a dedicar tempo e esforço para escrever suas principais obras, resultante de uma profunda reflexão sobre a atividade política. Foi, portanto, a desgraça que possibilitou sua grandeza. Considerações finais Observamos que a obra desse florentino exprimiu, pela primeira vez, a noção de Estado como forma de organização da sociedade da maneira como a conhecemos hoje. É notável constatar que as análises de Maquiavel referentes à política de seu tempo continuam apresentar uma surpreendente atualidade. Percebe-se hoje, nas relações entre os estados e na própria sociedade, a competição, o jogo de interesses particulares. Nota-se, a falta do engajamento das pessoas em projetos coletivos e causas mais amplas, pelas quais a existência individual adquire novos sentidos. Ao lermos os clássicos percebemos o quanto eles são importantes para a contemporaneidade. Eles permanecem porque tratam questões humanas para além do tempo vivido por eles. Estes tiveram consciência das questões de sua época, se posicionaram e 2185 fizeram diferença. Maquiavel se envolveu com os problemas do seu tempo e, com determinação, buscou meio de resolvê-los. Pôs suas próprias prioridades em jogo para se lançar em questões da esfera pública. Infelizmente, percebemos que no atual momento, os indivíduos não buscam desenvolver uma consciência crítica do seu contexto social. Assim, sua obra nos serve como modelo para termos uma vida ativa, nos colocando como agentes partícipes dos problemas de nossa época, buscando soluções, para que os homens e a sociedade se desenvolvam, possibilitando o bem viver. Maquiavel tinha como norte a liberdade e o bem comum, por isso, procura nos mostrar que não há escolha automática do caminho a ser seguido, pois cada escolha, mediante ao nosso livre arbítrio, corresponde um risco, várias possibilidades e responsabilidades. O objetivo de fazer prevalecer o bem comum da sociedade, supõe renúncias da parte dos indivíduos e do Estado em favor da coletividade; corresponde precisamente em superar “o estado de natureza”, na concepção de Thomas Hobbes (1588-1679), no qual o “homem é o lobo do homem”. A experiência histórica deixou provado que a harmonização dos interesses individuais ou nacionais é resultante de uma conquista da vontade ética, que interfere na sociedade para criar um equilíbrio entre as forças que agem nela. É certo que cada um de nós almeje viver em paz e usufruir as vantagens de um mundo sem conflitos, todavia, a simples vontade de extirpar os conflitos não será suficiente, é necessário, pois por meio da ação, construir instituições que acolham e transformem os desejos diversos dos homens legados pela natureza. Reconhecer as atuais circunstâncias históricas, mediante uma análise acurada e realista do mundo dos homens, não deve nos entregar a impotência, a inércia e a passividade, mas sim, deve nos levar a desejá-lo melhor e, acima de tudo agir, pois é por meio da ação que os homens realizam suas obras em comum. Esse é o legado de Maquiavel. O seu projeto social era, juntamente com outros do seu tempo, o de reencontrar o vigor perene que acreditava ter havido nos primeiros tempos da República e restituir à Florença e a sua Itália o esplendor de um regime que agonizava. Concluímos, portanto, a obra de Maquiavel é de suma importância para a História da Educação, pois nos permite compreender os fundamentos da formação política da sociedade moderna e, por conseguinte, compreender a formação do homem político-moderno. REFERÊNCIAS 2186 BATH, Sérgio. Traduzindo Maquiavel. In: MAQUIAVEL: um seminário na Universidade de Brasília. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. BIGNOTTO, Newton. Nicolau Maquiavel (1469-1527) e a nova reflexão política. In: MAINKA, Peter Johann. (org.) A caminho do mundo moderno: concepções clássicas da Filosofia Política no século XVI e o seu contexto histórico. Maringá: EDUEM, 2007. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6ª ed. rev. atualiz. Curitiba: Positivo, 2004. NICOLAU MAQUIAVEL. O Príncipe - Escritos Políticos. In: Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1998. NICOLAU MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. 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