OLIVEIRA VIANNA, ANTILIBERAL? REPENSANDO UMA
INTERPRETAÇÃO DE BRASIL A PARTIR DE ARTIGOS DE JORNAIS
George Freitas Rosa de Araujo1
RESUMO: Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) elaborou sua obra, mormente, entre as
décadas de 10 e 40 do século XX, num momento de forte desenvolvimento de pensamentos e
regimes políticos pretensamente críticos ao liberalismo político e econômico. Vianna apropriou-se,
singularmente, das doutrinas liberal e corporativista, que lhe serviu de sustentação para a sua
interpretação do Brasil bem como para as alternativas propositivas ao que entendia ser um dos
nossos principais dilemas, a invenção e solidificação de um ideário nacional e de constituição de
novos direitos “democráticos” num país “insolidário”. A nossa hipótese central, baseada em
estudos em fontes primárias, especialmente em artigos de jornais, é de que a proposta vianniana
pretende ser uma alternativa sócio-institucional ao liberalismo e igualmente não se confunde,
teoricamente, com um “antiliberalismo” que lhe é frequentemente atribuído.
PALAVRAS-CHAVE: Liberalismo, Corporativismo, Autoritarismo.
INTRODUÇÃO
Sustentamos, por princípio teórico-metodológico, que um autor deve ser compreendido
como produto de uma época determinada, por conseguinte, ao revisitarmos o pensamento do
fluminense de Saquarema Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), é mister
contextualizarmos o cenário político mais amplo em que viveu. Esta estratégia visa e minimizar as
possiblidades de uma análise concêntrica, que se funda em apriorismos de mitificação apologética
ou detratora que obliteram uma visão mais ampla a profunda de uma situação social. Em
consonância com este pressuposto e tendo em vista o espaço deste trabalho, teceremos algumas
breves considerações concernentes à contemporaneidade do autor em questão, com ênfase na
década de 20 por considerarmos central para a compreensão das décadas que lhe foram
próximas.
Como desenvolvimento das angústias acerca das promessas não cumpridas com a
recente República, já presentes na década de 10 do século XX, os anos 20, quando Oliveira
Vianna lança sua primeira publicação em livro, Populações Meridionais do Brasil, vol. I, é um
marco historiográfico do ponto de vista político e cultural, ao instaurar mais fortemente questões
relativas à “gênese do Brasil Moderno, com a introdução de procedimentos, hábitos, ângulos de
visão, diagnósticos que orientaram várias gerações” (LAHUERTA, M., 1997, p. 93).
Os intelectuais desta geração que nasceu com a República sentem, especialmente nos
anos 20, considerável frustração com os rumos republicanos, trazendo à tona de maneira acirrada
(novos) questionamentos acerca da possiblidade de alçarmos os ideais pretendidos pelos arautos
do novo regime. Na esteira destas críticas progressivamente maiores,
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense
(PPGCP-UFF).
1
não apenas as concepções tradicionais são atacadas, mas também as instituições
republicanas – identificadas com uma legalidade que não tem correspondência no
real -, elevando o pathos de ruptura, trazendo à tona novos atores e a
problemática dos direitos e da participação. (LAHUERTA, M., 1997, p. 93)
Oliveira Vianna e seus contemporâneos que retomaram o pensamento de Alberto Torres
possibilitou a formação de consensos intelectuais quer à esquerda quer à direita no que se refere
à imperiosidade da constituição de um país unitário, proposição normativa que traria em seu bojo
a necessidade de um Estado forte que se sobrepusesse ao “particularismo, ao clientelismo e ao
caráter ‘clânico’ da sociedade”, de modo a “realizar a construção da nação e a modernização da
sociedade”. Neste sentido, a considerável aceitação de um corporativismo ao estilo do Estado
Novo por ampla parcela da nossa intelectualidade não ocorreu pelo simplismo do termo
cooptação. (LAHUERTA, M., 1997, p. 100-1)
As relações entre Estado e sociedade mais ampla são progressivamente modificadas no
pós-30, diferindo-se dos mecanismos utilizados na Primeira República. Neste último caso, a
oligarquias conseguiam, competitivamente, efetivo aparelhamento do Estado com fins aos seus
interesses particulares. No primeiro caso, os polos se invertem por meio do desenvolvimento do
centralismo e unificação estatais de modo a engendrar, mormente pós-Estado Novo, um padrão
estrutural de elaboração de políticas, autonomizando-se, em certa medida, com relação aos
interesses originários e primeiros dos setores produtivos. (LAHUERTA, M., 1997, p. 104)
O Brasil da década de 40 passava pela crise final do Estado Novo e posteriormente pela
transição para uma nova ordem governamental conhecida como o período de “redemocratização”,
leia-se, a volta da orientação em princípios da liberal democracia, como eleições periódicas e a
representação partidária. Em 18 de setembro de 1946 foi Promulgada a nossa quarta Carta
Constitucional republicana, que seguia não apenas os fundamentos propriamente liberais, mas
também os de caráter corporativo, como a manutenção da organização sindical (BRESCIANI M.,
2003, p. 18). A questão correlata acerca da especificidade deste liberalismo subsequente a
Segunda Grande Guerra, chamou a atenção de Nunes:
[...] o liberalismo econômico do pós-guerra imediato era de uma extração muito
peculiar, pois não veio acompanhado de valores compatíveis e instituições formais
na esfera política. Nas relações entre governo e movimento sindical, por exemplo,
a estrutura corporativa do período ditatorial permaneceu em vigor, e o sindicalismo
foi fortemente reprimido. (NUNES, E., 1997, p. 96).
No que diz respeito à temática da manutenção de instituições e instrumentos jurídico-legais
desenvolvidos no primeiro grande momento da Era Vargas, após a golpe de 29 de outubro de
1945, assinalou Boris Fausto: “[...] na área da política econômica, assim como na esfera das
instituições políticas, deveria ficar provado ser mais fácil derrubar o ditador do que repudiar o seu
legado” (FAUSTO, B., 2005, p. 71).
2
O historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), então professor de teoria da história
da Universidade de Bielefeld, conceituou a noção de crise, evidenciando que em momentos deste
gênero, a decisão é uma questão em aberto e nos remete ao futuro:
Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não
tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada
permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é
atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o
fim do estado crítico se aproxima. A solução permanece incerta, mas o próprio fim,
a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -,
é certa. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico. (KOSELLECK, 2000, p. 111).
Aluizio Alves Filho (1997) apresentou uma apropriação inventiva no que respeita a
confluência das ideias de paradigma, de ideologia e de crise. Grosso modo, remete a noção de
“crise” histórica no tempo presente a um momento de incertezas de natureza ideológica que se
configuram por um declínio da aceitação de determinados paradigmas sociais de uma época; em
poucas palavras, num momento de “crise de paradigma ideológico” as certezas de uma dada
ideologia são questionadas à medida que não se mostram mais suficiente para responderem aos
novos imperativos sociais, políticos e econômicos.
Entendemos por “crise” um determinado momento histórico que não representa apenas um
período de incertezas e decisões em aberto, mas igualmente de construção de novas ideias e
arranjos sociais em resposta às novas necessidades de uma época, ensejando, portanto, um
questionamento do presente e uma projeção do futuro.
Oliveira Vianna escreveu sua obra, especialmente, entre as décadas de 10 e 40 do século
passado, num momento de efervescência de pensamentos e regimes políticos pretensamente
críticos ao liberalismo. Neste contexto de crise sócio-institucional internacional podemos identificar
um viés de pensamento polifônico que propunha ser uma alternativa à ordem liberal, o
corporativismo.
No que se refere à doutrina liberal, é necessário apresentarmos algumas notas, em caráter
de síntese, do nosso entendimento conceitual a este respeito.
O liberalismo desenvolve-se num contexto histórico de declínio das monarquias
absolutistas europeias, criticando noções como o poder ilimitado estatal e os seus efeitos tidos
como negativos na sociedade civil. Dentre os autores considerados clássicos da gênese do
pensamento político liberal, podemos elencar o filósofo britânico John Locke (1632-1704) e, num
momento posterior de maior desenvolvimento da doutrina, no século XIX, e.g., John Stuart Mill
(1806-1873).
O liberalismo não constitui uma corrente de pensamento uníssona ao longo da história;
poderíamos falar de diversos liberalismos de acordo com a sua origem nacional e temporal,
respondendo a questões candentes de seu tempo. Contudo, pensamos que algumas ideias
seriam centrais nos pensadores comumente denominados de “liberais”, como a ênfase no direito à
propriedade privada, o consentimento, a livre expressão de opiniões e a limitação do poder estatal
3
em prol do indivíduo, numa palavra, a defesa da liberdade. O conteúdo e a amplitude destes
léxicos são diversos nos intelectuais do liberalismo. Acerca desta questão, Fabiano Santos
sumariou alguns aspectos comuns do liberalismo político e econômico:
Liberalismo é um conceito amplo que faz referência a um corpo doutrinário com
diversas ramificações, dotado, contudo, de um núcleo comum muito bem definido:
a ideia de liberdade individual como fundamento da ordem. O liberalismo
econômico caracteriza argumentos, políticas, ou teorias que defendem o livre
empreendimento, a busca individual pelo bem-estar material como a melhor
maneira de se atingir o desiderato coletivo de desenvolvimento econômico e
ampliação da riqueza agregada. O liberalismo político se apoia nas ideias de livre
expressão de opiniões e de livre organização para a defesa e veiculação de tais
opiniões. (SANTOS, F., 2009, p. 2).
Às características gerais apontadas para caracterizar o liberalismo, apontamos outra que
subjaz as premissas básicas da livre expressão e organização individuais, a tolerância como
recurso basilar do agir social.
No que se refere ao objeto de estudo deste trabalho, analisamos criticamente a
apropriação da doutrina liberal por Oliveira Vianna, reconhecido como “autor fundamental para o
pensamento social brasileiro” (TRINDADE, A, 1998, p. 52), a partir dos seus artigos de jornais
catalogados na Casa de Oliveira Vianna2. Esses textos constituem fontes pouco conhecidas no
campo das ciências sociais. No total, foram analisados 110 artigos que perpassam por variadas
temáticas.
Neste trabalho3, pretendemos ainda correlacionar esses artigos com a bibliografia mais
ampla do autor fluminense4. Devido aos limites do presente estudo, iremos expor analiticamente
algumas críticas a textos específicos que consideramos representativos dos momentos do
pensamento de Oliveira Vianna indicados ao longo da exposição.
A obra do autor que é objeto da nossa análise pode ser compreendida a partir da noção de
campo intelectual de Bourdieu: visando a hegemonia no campo, os partícipes deste espaço
buscam o aumento do capital intelectual e do status da sua posição neste espaço. Nesta
correlação de forças, certas concepções são prestigiadas face à periferização ou ocultamento de
outras.
O conflito num campo - seja científico, intelectual, político etc. -, é caracterizado pela
aspiração ao domínio de certas ideias sobre e em detrimento das demais, emergindo o dissenso.
Entretanto, o reconhecimento dos pares e dos critérios de participação no campo científico são
condições para disputa em seu interior, em outras palavras é preciso reconhecer o consenso, os
2
Museu estadual localizado na Alameda São Boaventura, n. 41, Fonseca, Niterói/Rio de Janeiro. Trata-se
da casa onde o autor residiu a maior parte de sua vida. Para maiores detalhes acerca da vida e obra de
Oliveira Vianna, ver, e.g., ALVES FILHO, Aluizio e ARAUJO, George (2011).
3
Artigo confeccionado a partir dos resultados de pesquisa apresentados em nossa dissertação de
mestrado. Cf. ARAUJO, George, 2012.
4
Oliveira Vianna modificou constantemente o texto de seus livros ao longo das suas edições. Por critério
metodológico, citamos as últimas edições em vida ou post-mortem de modo a fazermos referências ao que
seriam as suas “últimas palavras” publicadas em livros.
4
critérios de participação, ao objetivar fazer parte dele. É o que, aos termos de Bourdieu, constitui o
consenso no dissenso:
No caso do campo de produção ideológica (do qual participam ainda os diferentes
campos de produção dos discursos científicos ou letrados), o fundamento do
consenso no dissenso que define a doxa reside, como veremos, na relação
censurada do campo de produção do poder (quer dizer, na função oculta do
5
campo da luta de classes) (BOURDIEU, P., 1977, p. 100, nota 33) .
Segundo este prisma analítico, a obra de Oliveira Vianna tornou-se um espaço privilegiado
para conflitos ideológicos e de busca por hegemonia de determinadas concepções de mundo em
detrimento de outras.
Por que estudarmos Oliveira Vianna num cenário social e político muito diverso do
alvorecer do século passado? O autor fluminense, parte integrante do já clássico quadro
acadêmico concernente ao pensamento social e político brasileiro6, partilhando este espaço com
intelectuais do porte de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda e
Gilberto Freyre, dentre outros, está constantemente presente nas mesas dos principais eventos
promovidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS),
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP),
traz-nos questões relevantes para compreendermos o Brasil do seu e do nosso tempo.
Segundo Alexandro Dantas Trindade, Oliveira Vianna, num cenário intelectual de
preocupação com a nossa organização social e política bem como com a nossa formação
enquanto povo, demonstrou originalidade ao analisar a nossa “realidade” por uma ótica
que transcendera os limites do discurso de seu tempo, predominantemente de
caráter jurídico, debruçando-se antes num amplo leque de disciplinas que iam da
Antropologia à História, da Sociologia ao Direito e à Etnologia. Neste sentido, se
pudéssemos definir a problemática anterior na pergunta: Somos ou não uma
nação? Oliveira Vianna poderia respondê-la em outro patamar, situando a sob
dois registros diferentes: o que constitui uma nação? E concomitantemente a ela,
quais as tarefas necessárias para a sua constituição? De Tal forma que a
originalidade do autor estaria em equacioná-las e elaborar uma visão normativa e
de conjunto do Brasil (TRINDADE, A., 1998, p. 12. Grifos no original)
De acordo com Botelho e Schwarcz, debruçarmo-nos sobre as questões relativas à
interpretação dos “brasis” em nosso pensamento social é estudar não apenas determinados
operadores cognitivos que funcionam reflexivamente - ao mesmo tempo em que são o produto de
uma sociedade, são, igualmente, produtoras desta mesma sociedade -, mas também os “modos
de sentir e pensar o Brasil” vividos no tempo presente:
as diferentes interpretações do Brasil também se tornaram, ao longo do tempo,
como que matrizes de diferentes modos de sentir e pensar o país e de nele atuar.
Justamente porque não operam apenas em termos cognitivos, mas constituem
também forças sociais que direta ou indiretamente contribuem para delimitar
5
Tradução livre do original em francês.
Entendemos por pensamento social e político brasileiro não apenas o formulado intelectualmente nos
livros, mas, e principalmente, como chamou atenção Raymundo Faoro (1987), o pensamento como práxis,
como atividade política “formulável”, mas, não necessariamente “formulada”.
6
5
posições e conferir-lhes inteligibilidade em diferentes disputas de poder travadas
na sociedade, as interpretações do Brasil existem e são relidas no presente. E o
reconhecimento de que essas interpretações, como outras formas de conhecimento social, não são meras descrições externas da sociedade, mas também
operam reflexivamente, desde dentro delas, e tem permitido reverter a imagem,
algo difundida no passado recente, da pesquisa do pensamento social como um
tipo de conhecimento antiquário, sem maior significação para a sociedade e para
as ciências sociais contemporâneas. (BOTELHO, A.; SCHWARCZ, L., 2009, p. 1314)
André Botelho e Milton Lahuerta retomam o conceito de “hermenêutica dupla”, do
sociólogo britânico Anthony Giddens (1938-), para demonstrar como o chamado pensamento
social e político brasileiro, bem como as ciências sociais institucionalizadas, influencia(m) não
apenas as práticas mais amplas da nossa sociedade na contemporaneidade dos intelectuais dele
pertencentes como também influencia(m), com continuidade e descontinuidades, o momento
histórico vivido por nós:
[...] as formas de conhecimento sobre o social têm consequências práticas para a
sociedade, ou ainda, que as práticas são afetadas pelo constante reexame a que
são submetidas a partir das informações produzidas sobre elas. Essa relação,
como observa Giddens (1991), é marcada por uma ‘hermenêutica dupla’, na
medida em que tanto o desenvolvimento da teoria sócia e política é influenciado
pelas noções produzidas pelos agentes sociais quando as ‘[...] noções cunhadas
nas metalinguagens das Ciências Sociais retornam rotineiramente ao universo das
ações onde foram inicialmente formuladas para descrevê-lo ou explica-lo”.
(BOTELHO, A.; LAHUERTA, M., 2005, p. 9).
Pensamos que Oliveira Vianna pode ser entendido como tendo possuído diversas faces ou
dimensões temáticas que se coadunaram nos seus argumentos e proposições normativas.
Questões relativas à democracia, à elite, ao liberalismo e ao corporativismo foram recorrentes nos
seus estudos e se entrelaçam de forma bastante peculiar na constituição de sua visão de mundo.
O LIBERALISMO NO PENSAMENTO DO OLIVEIRA VIANNA ARTICULISTA: CONSTRUINDO
UM BRASIL EM JORNAIS
O liberalismo foi uma temática presente em toda a produção de Oliveira Vianna, a mais
tratada como um todo, não ocupando o mesmo espaço semântico ao longo do tempo: os
primeiros anos dos escritos de jornais do autor fluminense expressam uma afinidade maior à
doutrina liberal; nos escritos posteriores a meados da década de 10 do século XX, principalmente
em contato com a obra de Alberto Torres (1865-1917), o liberalismo, ao menos nas suas
expressões organizacionais e de engenharia constitucional estrangeiras seria rechaçado como
exógeno e inadequado de aplicar-se ao Brasil, ao menos num primeiro momento. Este rechaço
não seria total, pois algumas premissas comumente associadas à doutrina liberal permaneceram
valorizadas pelo Oliveira Vianna articulista. A seguir, exporemos alguns pormenores desta
presença na obra vianniana.
A diversidade temática esteve presente em todo o período da produção jornalística de
Oliveira Vianna. O gráfico 1 nos indica que, desde os seus primeiros escritos, ainda na primeira
6
década do século XX, várias questões relativas à Política Internacional, ao Liberalismo e ao
Corporativismo fizeram-se presentes.
GRÁFICO 1
Temas/Artigos – Década de 10 do
século XX
Identificamos que a maior concentração de artigos que perpassam as temáticas História do
Brasil estão altamente concentrados nos primeiros anos do século passado. Esta frequência,
como vemos no gráfico 2, é entendida como um indício de que desde as suas primeiras maiores
preocupações, Oliveira Vianna centrou atenção especial ao Brasil e, mais especifimente, a
questão nacional e a sua inserção no cenário político internacional. O artigo “A América na
Haya”7, publicado em A Capital no ano de 1909, é representativo desta questão.
7
Este artigo trata da reivindicação dos americanos à paridade nas relações com o Velho Mundo. Faz
referência ao III Congresso Pan-Americano realizado no Rio de Janeiro em 1906 e a II Conferência na Haia.
A América atingiu um nível de civilidade tal que nos possibilitaria reivindicar a soberania internacional. Para
Oliveira Vianna, devido às nossas peculiaridades socioculturais, geográficas e étnicas, não deveríamos
reivindicar igualdade política entre os dois continentes, mas sim uma paridade nestas relações
intercontinentais e nacionais, no âmbito do direito internacional. Mais especificamente, deveríamos obter a
igualdade de direito no Tribunal Permanente de Arbitragem. Questão de a América não ser belicosa, em
7
GRÁFICO 2
O agravamento das tensões sócio-econômicas da nossa então recente República dita
liberal manifestou-se em Oliveira Vianna na sua crítica a vários postulados desta doutrina no que
respeita à sua aplicabilidade ao Brasil. Isto pode ser notado no gráfico 3: mais de 30% dos artigos
da década de 20 do século passado perpassaram pela temática Liberalismo e, em torno de 18%
estavam associados à teoria das elites.
GRÁFICO 3
oposição ao “homem do ocidente”, típico europeu, constitui discussão do Capítulo I - “Kidd e o homem do
ocidente” - de Problemas de Organização e Problemas de Direção, 2ª ed.
8
Na década de 30, num momento de efervescência de novas doutrinas e experiências
históricas que se propunham contrárias ao liberalismo, especialmente ao postulado da livre
iniciativa como reguladora mercadológica com a contraproposta do aumento intervencionista do
Estado na economia, o autor fluminense concentrou maiores esforços na defesa do
corporativismo como via de acesso à modernidade político-econômica brasileira. Conforme o
gráfico 4, mais de 37% dos artigos da década em questão perpassaram pela temática corporativa
e um quarto pelo elitismo. Elite e corporação se coadunaram na sua proposta de modernização
nacional. A crítica ao liberalismo é manifesta nos mais de 50% dos seus artigos publicados nos
jornais do período, maior concentração de uma temática específica por década em toda nossa
análise.
Outro fator explicativo desta maior concentração do corporativismo na década de 30 foi a
participação do autor fluminense no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) no
período de 1932 a 1940 do Governo Vargas. Oliveira Vianna foi um dos principais articuladores e
intelectuais do corporativismo no Brasil, participando, ativamente, no processo da sua
implementação.
GRÁFICO 4
9
A década de 40 do século XX trouxe à tona, mais fortemente, questões relativas ao
Fascismo e a crítica ao liberalismo, com o aprofundamento da II Guerra Mundial e do conflito
ideológico entre os propaladores desta última doutrina e os do corporativismo. Se, num primeiro
momento, o autor fluminense demonstrou maior entusiasmo com as experiências fascistas, com o
desenvolvimento desta Guerra e das atrocidades nazi-facistas, cada vez mais e mais divulgadas
na medida em que declinava a sua posição bélico-econômica, Oliveira Vianna fazia questão de
demarcar as diferenças entre o corporativismo brasileiro e o alemão e italiano, além de explicitar
recorrentemente sua crítica negativa às experiências bélicas fascistas.
Por posição teórico-política, explicitada desde o Golpe de 1930, e por crença religiosa, o
autor fluminense não demonstrou afinidade com qualquer tipo de atrocidade militarista e totalitária,
ressaltando os seus efeitos perversos para a vida humana.
Com o decorrer dos primeiros anos desta década de 40, Oliveira Vianna alertava para os
perigos da vitória Alemã na II Guerra Mundial, enfatizando não apenas questões relativa à perda
de soberania dos “não-arianos”, independente de terem sido, ou não, aliados dos alemãs nos
confrontos – mais de 40% dos artigos foram permeados pela temática “Política Internacional” -,
mas também os perigos do uso político da categoria “raça” como legitimadora de ações que iriam
de encontro ao ideal de valorização da vida humana propalado pela Igreja Católica.
Se, num primeiro momento, Oliveira Vianna debatia acerca da “raça” com intelectuais que
lhe foram contemporâneos, num segundo momento, quando o autor fluminense viu abalada não
apenas a sua crença no valor positivo das teorias lapougeanas e lombroseanas que exaltara no
início do século, mas igualmente se viu confrontado com a sua convicção de religioso que
positivava a vida humana. Neste conflito, também de caráter psicológico, o autor escolheu a
10
apropriação da via católica e aumentou as críticas ao totalitarismo fascista, lançando mão de uma
argumentação permeada de liberalismos, tal como podemos notar no gráfico 5 pelo alto
percentual de artigos, por volta de 50% associados a esta doutrina e outros 50% ao fascismo. Em
torno de 38% dos artigos da década de 40 perpassaram pelo tema “raça” e, especialmente, à
relativização do seu uso.
GRÁFICO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os comentários críticos a respeito do conteúdo dos artigos e dos livros de Oliveira Vianna
precisam ser precedidos de uma ressalva de caráter teórico-metodológica: uma “obra” não deve
ser entendida como uma unidade à priori, um bloco uníssono de pensamentos de um autor
determinado. Por conseguinte, enfatizamos os contrastes constitutivos, as semelhanças e
dessemelhanças, dos seus escritos ao longo do tempo e das contingências históricas. Ao estudar
a “obra” do Saquaremense em questão, Luiz de Castro Faria afirmou:
Identificá-la com a relação de “obras do autor”, que geralmente figuram nas
contracapas dos livros, ou com as bibliografias que acompanham os trabalhos de
crítica, é permanecer submisso ao senso comum. A obra não é um simples rol de
títulos de publicações, mesmo porque são bem evidentes as discrepâncias entre
esses róis. [...] (FARIA, L., 2002, p. 24).
Os artigos de jornais de autoria de Oliveira Vianna contribuíram para a sua construção
como intelectual, por exemplo, ao pretender demonstrar que estava atualizado teórico e
bibliograficamente além de expor o seu pensamento em análises críticas ao social. O
11
reconhecimento dos seus estudos sobre o Brasil lhe possibilitou participar de cargos técnicos no
Estado brasileiro, especialmente a partir de 1930 com Getúlio Vargas.
À medida que o autor fluminense conseguiu obter reconhecimento da legitimidade da sua
fala e posicionar-se na hierarquia social como especialista, a inserção social das suas ideias
ocorreram de forma semelhante ao que Marilena Chauí denominou de “discurso competente”:
O que é o discurso competente enquanto discurso do conhecimento? Sabemos
que é o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia
organizacional. Sabemos também que haverá tantos discursos competentes
quantos lugares hierárquicos autorizados a falar e a transmitir ordens aos degraus
inferiores e aos demais pontos da hierarquia que lhes forem paritários. [...] Enfim,
também sabemos que se trata de um discurso instituído ou da ciência
institucionalizada e não de um saber instituinte e inaugural e que, com
conhecimento instituído, tem o papel de dissimular sob a capa da cientificidade a
existência real da dominação. (CHAUÍ, M., 1982, p. 11).
Neste sentido, concordamos com Venâncio (2003, 2007) no tocante a importância dos
artigos de Oliveira Vianna, inclusive dos seus prefácios, para a (auto)construção da sua
representação como intelectual e a consequente possibilidade de acesso às instâncias técnicas
estatais.
Considerando o alto grau de relação positiva entre os livros do autor fluminense e os seus
artigos, como procuramos demonstrar ao longo da nossa análise, entendemos que os seus
escritos poderiam ser, grosso modo, pensados em dois momentos:
I - O primeiro quando o autor não tinha contato mais desenvolvido com a obra de Alberto
Torres - pré-1913/14 -, como chamou a atenção em recente dissertação de mestrado, Antonio da
Silveira Brasil Jr. (2007), defendendo o liberalismo e a sua adoção entre nós;
II - Num segundo momento, no qual passou a criticar a referida doutrina e a ampliar a
problematização acerca da sua adoção em terras brasileiras.
Apesar desta periodização da obra do autor fluminense, pensamos que mesmo após as
suas mais severas críticas ao liberalismo no Brasil, alguns componentes desta doutrina
continuaram a ser valorizados, inclusive defendidos, até o fim da sua vida, como as liberdades
civis e o direito praticamente incondicional à propriedade privada. Outro componente doutrinário
liberal, a noção de vontade/iniciativa individual como propulsora da sociedade esteve presente,
muito fortemente, nos seus primeiros artigos, datados da década de 10 do século XX. Esta
importância atribuída à vontade foi sendo dispersa, ao longo do tempo, na obra de Oliveira
Vianna.
A inclusão de uma nova variável analítica para entender o povo brasileiro, a vontade,
inclusive por sua dimensão caracteristicamente irracionalista, complexifica o pensamento de
Oliveira Vianna, pois não se adequa às atribuições generalizantes que lhe fazem no que respeita
à organização social, caracterizando-o como, simplesmente, um autor que propunha impor à
sociedade mais ampla os seus ideais políticos via Estado, numa ação meramente “pelo alto” e
12
compreendendo o nosso povo, por conseguinte, como “ausente” e “amorfo”. Ainda que nos textos
posteriores a meados da década de 10 do século XX o autor em questão concedeu maior
importância ao Estado como organizador privilegiado da sociedade mais ampla, não nos permite
compreendê-lo pela simples noção de imposição de ações “pelo alto”.
Outro ponto importante que corrobora a nossa tese é a questão da participação altamente
ativa, via livros8 e artigos jornalísticos9, no processo de construção do mito bandeirante10: a
invenção de um pretérito de São Paulo, como de qualquer outro, teve objetivos políticos, ao
legitimar a representação do “típico” paulista e seu passado “aventureiro” e “desbravador”, na
linha de Alfredo Ellis Jr. (1896-1974), concedia ao povo brasileiro, ainda que não como um todo,
não apenas a possibilidade, mas a experiência societal movida pela “iniciativa” e pela “vontade” 11.
O livro Populações Meridionais Brasil (PMB) volume I constitui uma manifestação deste
cenário, além dos artigos que trataram especialmente da questão dos “paulistas antigos”
12
.
Ambas são publicações escritas, em especial, a partir de meados das décadas de 10 e 20 do
século passado, amalgamando conclusões autoritárias com certa valorização de componentes
liberais que caracterizariam o nosso o povo pelo prisma da positivação da iniciativa privada.
8
Oliveira Vianna, ao longo da sua obra publicada em livro, principalmente no primeiro volume de
Populações meridionais do Brasil, enveredou pelo caminho da exaltação do passado bandeirante como
“aventureiro” e outras qualificações, contudo, a sua conclusão não se filiou ao republicanismo-liberal
paulista, sustentando, contrariamente, que a nossa tradição seria fundada no insolidarismo e no “espírito de
clã”, que seriam conceitos reveladores do seu descontentamento com a nossa recente República,
principalmente quando consideramos que este artigo data de meados da década de 20, inserindo-se num
momento de acirramento das desilusões com os rumos do país.
9
O artigo intitulado “A Ethnologia em Xiririca”, publicado no Correio da Manhã em 4 de dezembro de 1925,
é muito elucidativo para compreendermos o processo de construção do mito bandeirante e a participação de
Oliveira Vianna neste processo histórico: grosso modo e bastante sinteticamente, entendemos que o
arquétipo do bandeirante tal como construída no início do século XX constituiu-se em mais um recurso de
valorização de São Paulo, à época habitat das principais oligarquias cafeeiras do país, num processo de
(re)construção do seu passado com o referendo científico via, mormente, historiografia. A invenção deste
pretérito, como de qualquer outro, teve objetivos políticos: ao legitimar a representação do “típico” paulista e
seu passado “aventureiro” e “desbravador”, além de propiciar a construção de uma identidade paulista,
referendavam-se as investidas republicanas liberais de São Paulo – por ex., Ellis Jr. fora relevante membro
do Partido Republicano Paulista – i.e. ao engendrar a ideia do paulista como construtor privilegiado de uma
nação fundada em princípios liberais.
10
O texto “Partida da monção: modos de (re) ler o mito bandeirante”, de Emerson Dionisio, é um artigo
interessante sobre a construção do mito bandeirante através de uma crítica às leituras do Museu Paulista
acerca da tela “Partida da Monção”, de Almeida Júnior.
11
Num contexto histórico marcado pelo desenvolvimento dos descontentamentos com a República,
principalmente com a proximidade de grandes greves e as respectivas manchetes nos jornais da época, o
articulista fluminense colocou a seguinte questão no artigo “O problema das elites – V”, Correio da Manhã,
27/dez./1925: “[...] as nossas classes operárias (urbanas), apesar de pobres e incultas, tem relativamente,
como tais, muito maior importância política. Por quê?” A resposta fora breve e assertiva: “Pela sua
,
combatividade e porque são mais organizadas” ressaltando o “espírito associativo” e a possível clareza dos
seus próprios interesses. Esta organização mais desenvolvida e a sua capacidade articulação nas
federações seriam dois fatores que atrairiam componentes das elites de outras classes, sejam elas políticas
e/ou da “cultura”.
12
E.g., “Origens dos paulistas antigos”, Correio da Manhã, 19 de outubro de 1925, “A Ethnologia em
Xiririca”, Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 4/dez./1925, “O eugenismo paulista”, Correio Paulistano, São
Paulo, 15/fev./1927, 05/mar./1927, 25/mar./1927, 06/maio/1927 e “O historiador do bandeirismo”, s.d..
13
“Amorfismo” e “iniciativa privada” são ideias completamente díspares do ponto de vista prático e
teórico.
Mesmo nos momento de maior ênfase na ação estatal e quando afirmou, explicitamente,
que o povo aqui seria ausente, não nos indica que fossem afirmações categóricas e
monoliticamente representativas do seu pensamento; seriam muito mais assertivas retóricas de
um inconformado com os rumos da República do que propriamente expressões fidedignas das
nuances da sua obra.
A conciliação de componentes liberais no autoritarismo de Oliveira Vianna e a sua relação
com o Brasil do “dever ser”, coloca-nos outra questão: quais seriam os limites das duas
interpretações mais recorrentes acerca deste autor, quais sejam, as que o caracterizam como
partícipe do “autoritarismo instrumental” e, de outro, as que sustentam o seu “antiliberalismo”?
A noção de “autoritarismo instrumental” originou-se na análise de Wanderley Guilherme
dos Santos (1978) ao tratar de uma corrente do pensamento brasileiro, do qual faria parte Oliveira
Vianna, que defenderia a adoção de meios autoritários para alcançar fins liberais.
Geralmente, os que se posicionam criticamente acerca da ideia de autoritarismo
instrumental para pensar o Oliveira Vianna, asseveram que este seria um antiliberal questionando
a viabilidade de alcançar fins liberais por vias autoritárias. Críticos desta perspectiva analítica ou
não, inúmeros estudos caracterizam Oliveira Vianna e a sua obra como antiliberais. Não tratamos
de citar a maioria destes estudos, mas podemos fazer referência a alguns dos relativamente mais
recentes na literatura nacional e estrangeira, como Rogério Dultra dos Santos (2010) no artigo
“Oliveira Vianna e a origem corporativa do estado novo: Estado antiliberal, direitos sociais e
representação política”, Juarez Guimarães (2001), em “A trajetória intelectual de Celso Furtado”,
Hélio Mário de Arruda e Carlos Vinicius Costa de Mendonça (2006), em “Oliveira Vianna: Ideologia
social autoritária”, Joan L. Bak (1983), em “Cartels, Cooperatives, and Corporatism: Getúlio
Vargas in Rio Grande do Sul on the Eve of Brazil's 1930 Revolution”, e o artigo "Autoritarismo
instrumental ou estatismo autoritário? (considerações sobre o pensamento político de Oliveira
Vianna)", de Ricardo Silva, apresentado III Encontro da ABCP, realizado em Niterói, na
Universidade Federal Fluminense, em julho de 2002.
Quanto aos textos publicados no fim do século passado e que entendem Oliveira Vianna
pelo prima do antiliberalismo citamos algumas referências: “A força e a fraqueza do argumento
antiliberal democrata: A crítica à Primeira República em Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de
Holanda e Vitor Nunes Leal”, de Fernando Luiz Abrucio (1992), “A ideologia da modernização em
Gilberto Freyre e Oliveira Vianna”, de Carlos Henrique Davidoff (1982), o livro Ideologia autoritária
no Brasil 1930/1945, de Jarbas Medeiros (1978) e “The Historiography of Brazil, 1889-1964: Part
I”, de Thomas E. Skidmore (1975).
14
Se os textos de Oliveira Vianna possibilitam a interpretação do autoritarismo instrumental 13
pela tensão entre os componentes liberais e autoritários numa conformação voltada para a
construção de uma democracia brasileira, tal como expressa, por exemplo, em Direito do trabalho
e democracia social (1951), o mesmo não ocorre com as afirmações acerca de um Oliveira Vianna
antiliberal, pois, a sua obra como um todo e, mais especificamente os seus artigos de jornais, é
muito mais complexa no que respeita à sua posição concernente ao liberalismo. Em linhas gerais,
Oliveira Vianna oscilou da maior adesão ao liberalismo entre nós para uma crítica a sua
adequação irrestrita ao Brasil; a questão do autor era a relação desta doutrina ao povo brasileiro e
não julgá-la ou avaliá-la per si.
Oliveira Vianna não foi um antiliberal, mas, contrariamente, aceitou, em intensidades
distintas, vários dos postulados do liberalismo14 em diversos momentos da sua obra, por exemplo,
ao valorizar: (i) a capacidade de (auto)organização social, mormente da Inglaterra15, entendia pelo
autor como uma das melhores expressões sócio-institucionais liberais; (ii) a “tolerância” entre os
indivíduos no sentido mais amplo do termo16; (iii) a proteção contra a coação e a
representatividade social discrepante de determinados grupos sociais, mormente os “clãs”, com
relação à sociedade mais ampla e, consequentemente, aos indivíduos que a compõe; (iv) a
limitação dos ação do Estado – e.g. contra ações orientadas pelo aparelhamento clânico -, em
relação à sociedade global e consequentemente a discricionariedade dos poderes executivos e
legislativos por dispositivos legais, mormente via um judiciário eficiente que equilibraria, inclusive,
13
Não tratamos de fechar a questão sobre a possibilidade de Oliveira Vianna ter pretendido alcançar fins
liberais por meios autoritários porque a sua obra é repleta de tensões e conciliações que, em dados
momentos pendem para o “autoritarismo instrumental” e outros não. Nossa questão é problematizar as
interpretações sobre Oliveira Vianna no que se refere à conciliação, ou não, de componentes liberais em
seus argumentos.
14
A importância da iniciativa privada em Oliveira Vianna teria diminuído a partir do fim da década de 20 e ao
longo da década de 30 do século XX, passando a conceder cada vez maior importância ao Estado como
ensejador da ação coletiva sem, contudo, absorver estatalmente o indivíduo, ao propor uma saída
pedagógica e de longo prazo.
15
E.g., no artigo “O ‘povo’ aqui e na Inglaterra”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13/fev./1927, Oliveira
Vianna, como de costume em sua obra, caracteriza a Inglaterra como o lugar onde o liberalismo teria tido
uma das suas mais típicas expressões e as contrapõem aos fenômenos político-sociais brasileiros, numa
relação de dessemelhança, muitas vezes negativa do lado brasileiro.
16
A este respeito, citamos, por exemplo, o artigo “A lucta política no Estado do Rio”, publicado no Correio
Paulistano em 5 de fevereiro de 1927,em torno de 7 anos após a publicação de PMB, vol. I. O mote deste
foi à crise política no Rio de Janeiro relativa às eleições que se avizinhavam frente às lembranças dos
impasses para efetivação do poder do macaense Feliciano Pires de Abreu Sodré como presidente do
Estado fluminense. Para o articulista, o então presidente do Rio, se tivesse um posicionamento mais
partidarista-exclusivista poderia ter realizado uma forte e violenta oposição aos seus adversários políticos,
inclusive contando com o então estado de sítio, que proporcionaria poderes praticamente arbitrários ao
representante do povo fluminense. Contudo, o articulista mostrou-se surpreso pela atitude do macaense ao
exercer o poder fluminense, não tendo, em sua ótica, utilizado a força estatal contra seus opositores, mas,
teria demonstrado “tolerância” e respeito à “liberdade civil”, protegendo, por conseguinte, especialmente as
classes desprivilegiadas economicamente. Para melhor situar o leitor: Feliciano Sodré foi prefeito de Niterói
(1910-1914) e duas vezes candidato à presidência do Rio de Janeiro. Nas eleições de 1922, Raul
Fernandes e Feliciano Sodré consideram-se eleitos, gerando um conflito que atingiu a presidência da
República: Artur Bernardes anulou os resultados do sufrágio pela intervenção federal e convocou outro
processo eleitoral, no qual foi eleito o ex-prefeito niteroiense, passando a exercer o cargo de 1923 a 1927.
15
grupos econômicos autoritários. Estes se constituiriam em alguns aspectos fundamentais para a
construção e manutenção das liberdades civis.
Pensar Oliveira Vianna pela noção de possibilidades em tensão parece mais adequado
que a “oposição e/ou contradição” que geralmente se lhe atribui, seja de um liberalismo no “jovem
Oliveira Vianna” seja de um completo autoritarismo, per si contrário ao liberalismo, como se esta
última doutrina não permitisse um plasma, em casos particulares, de alguns dos seus
componentes ao autoritarismo e vice versa. Ambas as noções podem ser amparadas no conceito
de “autoritarismo instrumental”. Ao caracterizar o autor fluminense como “antiliberal”, o prefixo
“anti” anula, completamente, a possibilidade de amálgamas e conciliações entre as ideias
gestadas no âmago de doutrinas, no todo, dessemelhantes.
Propomos, portanto, uma terceira perspectiva de análise que possibilite observar mais
profundamente o potencial teórico do nosso objeto de pesquisa. Esta proposta baseia-se na
seguinte premissa: o unitarismo das críticas que associam o autor de PMB a um “antiliberalismo” e
mesmo ao “antidemocratismo”
17
e, de outro, os que sustentam um “autoritarismo instrumental”
como chave analítica, imputam ao autor fluminense uma coerência em toda a sua obra que, como
notamos, precisa ser historicizada e analisada em sua complexidade constitutiva.
Pensamos que Oliveira Vianna mantém a ideia de valorização de alguns postulados
básicos do liberalismo sem, contudo, atribuir a certeza de um fim completo ou majoritariamente
liberal para o Brasil, como apontam os defensores do “autoritarismo instrumental”. Não
observamos esta certeza constante ao longo de sua obra em livros e jornais; o máximo que o
autor se aproximou de uma proposta sócio-política e institucional mais elaborada foi através da
democracia autoritária e corporativa, não acreditando necessariamente que esta instituição
certamente seria um meio para alcançarmos uma democracia de corte liberal. Nossa perspectiva
não anula esta última possibilidade, mas a trata com maior contemporização. Aproximamo-nos,
com relativizações18, do que Ricardo Luiz de Souza, no artigo “Oliveira Viana, democrata?”,
pretendeu ao chamar a atenção para a não “rotulação” do intelectual em questão, especialmente
por meio pelas ideias de “antiliberal” e “antidemocrata”, enfatizando, ainda, o caráter histórico do
seu escrito:
[...] o caráter antiliberal e antidemocrático de sua [Oliveira Vianna] obra é mais
complexo: apesar de propor, a partir dos anos 30, a substituição da democracia
representativa pelo corporativismo, fica claro, em toda sua obra, um tom de
lamento quanto à inexistência das características políticas e sociais que tornariam
17
No que respeita a concepção de democracia no autor fluminense, ver, por exemplo, ARAUJO, 2011.
Neste artigo, Souza perpassou por vários pontos da obra de Oliveira Vianna e que não pretendemos
tratá-la neste momento. Ao que nos interessa aqui, distanciamo-nos do primeiro articulista em sua
afirmação concernente à inviabilidade da democracia liberal no Brasil da ótica vianniana e à restrição da
valorização de componentes da dogmática liberal à simples “nostalgia”. Contrariamente, pensamos que
Oliveira Vianna não apenas valorizou, mas também entendia como princípio basilar das suas propostas
políticas, alguns componentes liberais, como através da adoção, por exemplo, das noções de “tolerância” e
“anti-totalitarismo”, além da preocupação com a limitação dos poderes, e.g., por um judiciário proeminente e
“independente”, ainda que possibilitando maior discricionarismo ao executivo.
18
16
possível a adoção de um regime liberal no Brasil. Essa constatação levou-o, é
claro, ao autoritarismo, mas tornou-o, também, um nostálgico de um liberalismo
que, por inviável, segundo ele, nunca chegou a prevalecer no país. E quanto a seu
aspecto antidemocrático, não vejo por que suspeitarmos de Viana quando ele se
afirma um democrata: essa crença é sincera; apenas a democracia corporativa por
ele defendida é hoje englobada – acertadamente – em uma concepção de
autoritarismo. Mas as concepções, como os tempos, mudaram. (SOUZA, R. L.,
2001, p. 124).
A temática corporativa em Oliveira Vianna foi tratada centralmente no livro Autoritarismo e
corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & companhia, de Evaldo Vieira. Neste o autor perpassa
por algumas das principais influências estrangeiras no autor fluminense, especialmente a de
Mihail Manoilesco (1891-1950). Em nossa análise, podemos identificar dois momentos do
corporativismo em Oliveira Vianna, indo de encontro ao que geralmente lhe é atribuído, um único
momento pós-1930:
I - Por estar engajado fortemente à doutrina liberal na primeira década do século XX, o
articulista em questão concebia a adoção, entre nós, de um corporativismo, nos termos de
Philippe Schmitter (1974) mais próximo ao societal, valorizando a iniciativa privada como meio
privilegiado da ação coletiva, secundarizando a ação estatal, na construção de representações de
classe. Trata-se de um corporativismo com caracteres menos contrastantes ao liberalismo.
II - Após o contato com a obra de Alberto Torres, o liberalismo brasileiro em prática na
época foi progressivamente sendo mais criticado pelo articulista, que direcionou maior atenção à
ação estatal como veículo ensejador da ação coletiva, secundarizando, sem desconsiderar, a
ação da iniciativa privada, aproximando-se, portanto, do corporativismo estatal, mais aderente à
crítica negativa ao liberalismo. Este momento pode ser fortemente demarcado nos artigos
posteriores, especialmente, aos anos de 1920. Esta segunda temporalidade constitui, geralmente,
um denominador comum para tratar do “Oliveira Vianna” como todo. Em exemplo desta
generalização está presente na ideia de “semeador” utilizada por Luiz Guilherme Piva (2000, p.
68), na qual o autor fluminense prognostica um estado forte contra os “determinismos negativos”
do nosso povo, principalmente a insolidariedade.
Neste segundo momento do corporativismo em Oliveira Vianna que, aos termos de
Schmitter (1974) denominamos de estatal, especialmente no decorrer e fim da II Guerra Mundial,
o autor objetivou distanciar esta doutrina enquanto teoria e as suas experiências particulares19,
mormente a alemã e italiana num período de aumento das críticas às ações estatais destes
países.
No que se refere à institucionalização de novos mecanismos na relação entre o Estado e a
sociedade mais ampla no Brasil, Milton Lahuerta aponta para o que denomina de “corporativismo
bifronte” desenvolvido no Estado Novo, afirmando ser “parte estatista – ao trazer para o interior do
Estado os conflitos próprios da sociedade civil -, em parte privatista – ao tornar determinados
19
O livro Lições sobre o Fascismo, o historiador Palmiro Togliatti (1978), é uma referência básica acerca da
relação entre fascismo e corporativismo, contextualizada historicamente.
17
espaços de decisão do Estado objeto de acirrada disputa dos interesses privados.” (LAHUERTA,
M., 1997, p. 105). Pensamos que a ambivalência do nosso corporativismo institucionalizado está
imbricada, ainda que parcialmente, às próprias tensões e conciliações entre liberalismo e
corporativismo constitutivas do pensamento de Oliveira Vianna, um dos seus principais ideólogos.
O corporativismo é, ainda hoje, reatualizado em nosso país, mesmo que, discursivamente,
não empreguemos esta nomenclatura para definir as nossas experiências corporativas. Podemos
citar, além do arranjo sindical, a representação de classe no interior do nosso Parlamento,
formando “bancadas” específicas para atender a interesses determinados pela sua base de apoio
social, constitui mais uma manifestação da relevância deste tipo de organização na vida brasileira.
Todas as temáticas, ou a maior parte delas, estudadas por Oliveira Vianna e apresentadas
na forma de artigos de jornais e, posteriormente em livros, estavam ligadas a sua preocupação em
construir um Estado-nação brasileiro. Tal como argumentou Benedict Anderson (2008, p. 71-83),
entendemos que os jornais tiveram e tem importância na construção e manutenção do mito
nacional, por exemplo, ao conferir uma identidade aos “anônimos” consumidores desta
mercadoria e a propalar, nacionalmente, um mesmo conjunto de notícias dispostas
interessadamente, servindo como uma “janela de observação” para os demais países. Neste
sentido, o autor fluminense, ao criticar e propor uma forma específica de Nação em nossos diários
do século passado contribuiu, ao seu modo, para a consecução do Estado-nação como mito
vivido e não mais, apenas, nas mentes de alguns intelectuais.
O liberalismo enquanto doutrina fora criticado e conciliado por Oliveira Vianna a doutrinas
diversas como o corporativismo, contribuindo para engendrar um corpus institucional, ensejador
de ações coletivas, vigente, mesmo que parcialmente, no Brasil hodierno. Para entendermos mais
profundamente como tratamos muitas das nossas tensões e conflitos sociais é necessário analisar
os teóricos que informaram os experimentalismos institucionais de outrora.
De maneira mais ampla, para criticarmos o Brasil de hoje de modo a produzirmos os
fundamentos de uma (nova) agenda programática visando à ampliação de direitos e de
aperfeiçoamento da governança nos moldes democráticos, é imprescindível um estudo do
caldeamento
doutrinário
(re)construído
cotidianamente
pela
sociedade
civil
e,
mais
extensivamente, da sua cultura política, da qual pensamentos como os de Oliveira Vianna fazem
parte reflexivamente:
Trata-se de colocar em pauta a reflexão acerca da qualidade da democracia, o
que exige, por sua vez, ir além do minimalismo schumpeteriano – que a pensa
essencialmente como um método de seleção das elites e restringe sua
compreensão ao funcionamento das instituições e aos procedimentos –,
colocando em foco os fundamentos e os mecanismos de reprodução da cultura
política que vigora no país. (LAHUERTA, M., 2010, p. 1-2)
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oliveira vianna, antiliberal? repensando uma interpretação de brasil