NATUREZA, CULTURA, OBJETO, ARTE: O AMBIENTE EM SITUAÇÃO DE FRONTEIRAS José A. V. Flores Bacharel em Artes Plásticas, Mestre em Educação Ambiental, Doutorando do Program de Pós-Graduação em Engenharia de Produção, membro do Grupo de Pesquisa Desenho Urbano e Paisagem (CNPq) – InfoArq, Universidade Federal de Santa Catarina, Prof. Assistente do Departamento de Letras e Artes, Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil; e-mail: [email protected] RESUMO: O presente artigo, apresentado na forma de relato ilustrado por uma série de imagens no Fórum de Ecologia 2003, organizado pela Direção Assistente de Pesquisa e Extensão, Centro de Ciências da Educação e Curso de Pedagogia da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil, é um resumo das circunstâncias desencadeadoras e dos blocos conceituais desenvolvidos na dissertação de mestrado intitulada “Natureza, Cultura, Objeto, Arte: o ambiente em situação de fronteiras”1. O objetivo principal da produção textual, cujas origens encontram-se numa pesquisa em arte, foi evidenciar pontos de discussão a respeito da dissolução e transformação que ora caracterizam cada um dos quatro temas básicos que compõem seu título, algumas repercussões incidentes no próprio conceito de ambiente, e, a partir daí, indicar elementos propiciadores de uma mudança paradigmática, numa perspectiva ética e estética. Os três blocos que compõem o resumo são uma aproximação metafórica das etapas de amadurecimento das idéias e da construção do texto final. 1. Pretérito imperfeito Ao longo de um período compreendido entre 1986 e 1989, uma quantidade expressiva de fragmentos de origem natural e cultural foi recolhida ao longo de uma faixa do litoral sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, numa extensão de aproximadamente 40 quilômetros, a partir do molhe oeste da Barra do Rio Grande, na desembocadura da Lagoa dos Patos, praia do Cassino, incluindo a zona urbana do balneário, município do Rio Grande, RS, além de uma pequena área nas adjacências do molhe leste, no município de São José do Norte. Longas caminhadas e sentidos atentos eram os elementos metodológicos básicos, numa empreitada movida puramente pelo prazer do deslocamento e a abertura para possíveis encontros. O interesse despertado por um daqueles fragmentos – atendendo ao fluxo livre da intuição e a um certo prazer estético plenamente integrado à relação imediata com o próprio ambiente – determina o seu recolhimento e desencadeia algumas reflexões preliminares acerca de sua trajetória, suas qualidades formais e possíveis desdobramentos estético/simbólicos. A seqüência dos inúmeros encontros, dos deslocamentos e observações que os conectam sugerem elos de progressivo amadurecimento no rumo da reflexão aqui apresentada. 1 O trabalho de pesquisa, desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação Ambiental da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG-Rio Grande, RS, Brasil), contou com a orientação do Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza, atualmente membro do corpo docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS-Porto Alegre, RS, Brasil); foi defendido em 25 de maio de 2000, diante da banca formada, além do próprio orientador, pelos professores Dr. Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) e Dr. Jayme Paviani (PUCRS). O texto completo, atualmente em fase de produção gráfica e a ser publicado pela Editora da FURG, pode ser obtido enviando-se mensagem para [email protected] e seu conteúdo livremente utilizado para fins de pesquisa, desde que citada a fonte. Assim, um primeiro aspecto, paradoxal e contraditório, que mais tarde se constituirá numa parte importante do próprio espírito de uma posterior investigação em arte, identificava-se ali: ao mesmo tempo em que um determinado fragmento era visto como peça única, dotada de absoluta individualidade, ele também se constituía no elemento (aquele mais um) de uma coleção que, por sua própria natureza, estava fadada ao não-fechamento, por ser simplesmente indeterminável aquele elemento que a fecharia. Deste modo, a própria idéia de coleção (enquanto conjunto fechado) mostrava sua insuficiência de sentido naquele contexto e pedia outros rumos na reflexão que acompanhava a atividade, o que seria sugerido pela observação do produto de um processo de intersecção natureza/cultura, conforme será relatado mais adiante. Os fragmentos naturais recolhidos tinham como origem a fauna local: conchas e ossos de uma grande variedade de espécies de moluscos, peixes, aves, tartarugas marinhas, mamíferos marinhos e terrestres. Quanto aos fragmentos culturais coletados, eram todos aqueles que, de uma forma ou de outra, atestavam o último estágio do trajeto percorrido desde a transformação de um ou mais elementos do meio natural em produto a ser consumido, tendo cumprido o ciclo de produção industrial, comercialização, consumo e descarte, e que apresentavam perspectivas de uma certa durabilidade. Abstraindo-se suas inumeráveis formas e funções, constituíam várias categorias de materiais derivados do petróleo, além de metais, vidros e madeira. Deste modo, as coleções efetivaram-se como fontes fornecedoras de elementos constitutivos de novas configurações (inaugurando o ciclo de elaboração e construção dos objetos artísticos propriamente ditos), ao serem encontradas algumas reuniões de fragmentos, por assim dizer, inteligentemente arranjadas pelos agentes naturais. 2. Pretérito perfeito Na região, descrita como o palco das primeiras experiências, ocorre, em quantidade significativa, uma liga resultante da mistura espontânea de materiais orgânicos, areia e pó de conchas que se encarrega de unir e cimentar fragmentos de todas as categorias citadas, no próprio ambiente litorâneo. Esta liga, após o endurecimento que sucede ao processo de secagem da parte orgânica, recebe isoladamente o nome de beachrock2. Seu grau de dureza e resistência é notável, podendo unir com extrema eficiência fragmentos metálicos, vidro, conchas e pedras. O interesse pelo encontro destas reuniões espontâneas (intersecções natureza/cultura) tornouse crescente à medida que algumas delas apresentavam composições esteticamente surpreendentes, contendo não somente aqueles materiais mais rígidos, como também fios, ossos, madeiras, tecidos, plásticos e vidros. Além disso, como resultado de sua função de substrato para o desenvolvimento de microrganismos, apresentavam texturas delicadíssimas e, em alguns casos, manchas resultantes dos processos de oxidação de certos metais presentes naqueles conjuntos. Para além do fenômeno, de seus acontecimentos e cores, subjaziam indicativos de fina ironia e ácida poesia. Era como se um conjunto de fenômenos naturais interrompesse o fluxo do tempo, compactando-o num objeto capaz de fazer a crítica da sociedade humana. 2 Informações detalhadas sobre este fenômeno podem ser obtidas em ampla bibliografia especializada. Nossa referência: Komar, 1976, p. 389. 2 As configurações espontâneas indicavam claramente o inter-relacionamento cultura/natureza, abriam uma instigante possibilidade de serem vistas não mais apenas como coisas ou fragmentos isoladamente, e sim como objetos, e estes, desde que observados a partir de um ponto de vista estético, desencadear reflexões relacionadas a processos de construção de uma categoria em especial: o objeto artístico. Temos aqui, portanto, o registro mais antigo ao longo desta experiência que mais tarde conduziria ao jogo dos conceitos desenvolvido neste trabalho: natureza, cultura, objeto, arte. A partir deste exato ponto, portanto, é tomado um rumo que inicia o período de pesquisa e produção em arte propriamente dito e sua reflexão interna. Deste modo, o processo que antes poderia estar se delineando como acumulação, ou coleção, passa a ser considerado o recurso a um manancial fornecedor de elementos de uma linguagem plástica tridimensional. 3. Pretérito mais-que-perfeito A partir deste ponto, como caminho apontado pelos próprios processos naturais, o fragmento vai ser buscado, para além de sua autonomia, sob um novo enfoque: como parte de um futuro todo, este habitado por novas significações e cujo destino é, novamente, circular pelo mundo. Este futuro todo, a ser elaborado a partir de fragmentos de diversas origens, será um objeto, um novo objeto, na medida em que é um a mais no universo dos objetos que compõem a realidade. Também poderá ser referido como um objeto novo, na medida em que oferecerá novas significações, a partir do jogo resultante do confronto das possíveis significações trazidas pelos fragmentos que o constituirão. Devido às circunstâncias originais da pesquisa3, ao modo como surgiu a idéia e ao modo básico de construção dos objetos, aproximando categorias díspares, será evidenciada a presença de fundo do tema fronteiras, com várias de suas ressonâncias contemporâneas sendo sugeridas a cada passo do trabalho, sobretudo nas relações com o conceito de ambiente. Assim, os mesmos objetos que passam a ser organizados a partir de uma proposta estética, articulando-se e estabelecendo reflexões nos territórios da diferença, da alteridade absoluta da arte, negam o purismo de uma neutralidade insuportável às suas próprias origens e impulsionam o questionamento de um conjunto de temas e conceitos (natureza, cultura, objeto, arte) que, desde o primeiro avistamento do que viria a constituir-se numa parte sua, fizeram-se presentes como invólucros invisíveis ou mesmo como inquietas presenças a habitálos. Entenda-se por “conjunto de temas e conceitos” somente um modo talvez insuficiente de delimitar com palavras o que, na verdade, abrange praticamente toda a atividade humana. A análise dos temas – Parte I – começa por natureza, enquanto conceito meticulosamente delineado – objectualizado – ao longo de séculos, com vistas a justificar uma improvável inesgotabilidade, aqui buscada como alteridade radical, a exigir reconhecimento e cuidados com sua riqueza intrínseca – esta em pleno processo de resistência – como única forma de, no que lhe concerne, se considerar a possibilidade de reversão paradigmática ora vivida. 3 Durante o período compreendido entre 1989 e 1994, o “Projeto Temperança” participou do “Projeto Utopias Concretizáveis Interculturais”, dentro de um convênio de mútua cooperação firmado entre a Fundação Universidade Federal do Rio Grande e o Institut für die Pädagogik Naturwissenschaften da Universidade de Kiel, Alemanha. Com objetos e/ou instalações, integrou quatro exposições coletivas do “Utopias” (duas na Fundação Universidade Federal do Rio Grande e duas na Universidade Federal de Santa Maria), além de terem sido seus objetos mostrados na Kunstverein Kaponier, em Vechta, Alemanha, no ano de 1994. 3 A crise da cultura é observada – tanto quanto nos é possível aqui abordar – em seus aspectos negativos, por um lado, diante de uma forte presença hegemônica regida pelos acordes de um capitalismo concentrador, presença esta que parece tender à auto-anulação; por outro lado, a forte emergência e a mútua recepção das expressões representativas de setores neutralizados ao longo de um tempo quase imemorial é saudada como a sonoridade multicultural do Outro, portadora de energias e esperanças, afirmação da riqueza que se opõe à homogeneização totalizante. O objeto é visto como o próprio signo definidor da cultura, do momento de sua concepção, antecedendo a materialização subseqüente, os universos que descortina, proporcionando profundas transformações históricas. O momento vivido: acumulação, proliferação, sedução e ameaça. Uma categoria de objetos é visitada de modo privilegiado – a obra de arte – especialmente em alguns momentos rupturantes de sua trajetória ao longo do século que se encerra, buscando relações de aproximação com a pesquisa precedente ao texto. A arte é abordada enquanto campo específico da cultura onde se articula a máxima estranheza, o enigma de uma alteridade que deve resistir e negar toda e qualquer tentativa totalizante de cooptação. Neste sentido, ela aproxima e articula as idéias de alteridade e negatividade, desenvolvidas ao longo do bloco específico, como estrutura de uma indispensável densidade crítica, corrosiva, poética e profundamente transformadora, capaz de continuar alimentando o espírito humano. As transformações, intrínsecas a cada um dos quatro temas citados e analisados, bem como os resultados das interações entre os mesmos, é tema contemplado no final da Parte I, propondose uma espécie de diagrama para pensá-los enquanto elementos constituintes da própria concepção de ambiente e das mudanças na compreensão deste conceito decorrentes do múltiplo jogo entre natureza, cultura, objeto e arte. Iniciamos a Parte II com uma breve apreciação acerca do tema interdisciplinaridade, por entendermos que o mesmo, diante da própria complexidade em torno das noções sobre ambiente, deve ser considerado, não numa perspectiva que o privilegie enquanto via única de abordagem de uma tal complexidade, mas como instância importante para a construção de específicas etapas do conhecimento. Em seguida, a situação de fronteiras pretende esboçar as linhas gerais do que parece ser o cenário onde se desenrola o drama de uma transformação radical iminente. As idéias que, ligadas aos centros do poder hegemônico, mostram-se incapazes de ocultar que é chegado o limite extremo de funcionalidade do sistema, sofrem o ataque de uma visão diferenciada de mundo, uma visão que privilegia o que está para se afirmar energicamente, não na concretização de uma nova e centralizadora totalidade, mas sim na diversificação das vozes que, cada vez mais intensamente, vêm provando o peso de suas importâncias no rumo da construção de uma nova ordem. 4. Futuro do pretérito Nos blocos finais da Parte II, e tendo em vista uma necessária reconstrução do conceito de “ambiente”, buscamos alguns elementos que pudessem explicar ou informar sobre a flutuação das noções de “realidade” no mundo contemporâneo, reconsiderando-a a partir de algumas idéias clássicas, e em confronto com as peculiaridades do tempo presente. Deparamo-nos com o peso que significa, neste sentido, a progressiva massificação da tecnologia propiciadora do mundo virtual, e a conseqüente e forte influência sobre o mundo real, imediato. O tema fronteiras volta como chave para a compreensão do panorama atual (o “entre-mundos”, 4 virtual/real) e encaminha as idéias conclusivas que podem vir a sustentar a desejada reconstrução do conceito de ambiente. Ao longo desta construção textual deparamo-nos com um enorme leque de possibilidades no sentido de mapear a questão que entendemos como essencial: pensar o conceito de “ambiente” numa perspectiva que, partindo de alguns elementos isolados como temas e de seus entrecruzamentos no panorama da contemporaneidade, possa incorporar a inadiável emergência da diversidade cultural e a mobilização pela manutenção da biodiversidade, numa situação, sob vários aspectos, de “fronteira”. Justamente este termo, em sua dimensão “dialética” de separar/diluir, oferece possibilidades múltiplas de investigação, propiciando leituras extremamente ricas da realidade. Temas como falência de antigos e emergência de novos paradigmas, re-conhecimento do outro e da natureza como alteridades absolutas, são recorrentes ao longo do texto e extremamente relevantes no âmago da questão ambiental, assinalando fortemente a situação de inadiável e necessária transfiguração pela qual estamos passando. Principais fontes bibliográficas ADES, Dawn. O Dada e o Surrealismo. Barcelona : Labor, 1976. ADORNO, Theodor Wiesengrund. Teoria estética. São Paulo : Martins Fontes, 1970. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 1992. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. São Paulo : Pioneira, 1989. ______. Intuição e intelecto na arte. São Paulo : Martins Fontes, 1989. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo : Martins Fontes, 1988. BACON, Francis. 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