O Nexo Econômico-Legal na Regulação da Tecnologia
Pelaez, V.
♠
Hermida, C.
♣
Pessali, H.
♦
Silva, Letícia da
♥
Resumo
Esta comunicação tem como objetivo propor um referencial de análise voltado à identificação
dos principais mecanismos e elementos que definem o processo decisório voltado à regulação
da tecnologia, no que tange aos impactos ambientais e à saúde humana. A proposta analítica
baseia-se na articulação de três abordagens teóricas: a economia institucionalista que considera
as relações existentes entre os campos econômico, jurídico e político; a ciência política que trata
a regulação da tecnologia como um processo de implementação de políticas públicas a partir da
simplificação da complexidade dos fatores envolvidos na análise e gestão do risco tecnológico; e
os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade ligados particularmente à discussão do papel
dos cientistas no processo decisório de políticas públicas. A regulação da tecnologia é aqui
analisada no contexto de criação de um nexo econômico-legal considerado como um aparato
institucional que compreende um conjunto heterogêneo de elementos interrelacionados (leis,
medidas administrativas, decisões regulatórias, pareceres científicos) no qual a “economização”
do processo decisório tende a simplificar a complexidade inerente às questões ambientais e de
saúde humana.
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Professor Associado do Departamento de Economia da UFPR
Mestranda do Programa em Desenvolvimento Econômico da UFPR
Professor Adjunto do Departamento de Economia da UFPR
Gerente de Normatização e Avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
1. Introdução
Desde os anos 1970, a preocupação das sociedades industriais sobre os impactos ambientais
do progresso técnico tem tido um papel crescente nas agendas políticas em nível nacional e
internacional. Os riscos associados à energia nuclear, resíduos tóxicos, emissões de carbono na
atmosfera e organismos geneticamente modificados têm contribuído à construção de uma visão
crítica da abordagem positivista do progresso técnico. Neste contexto, as sociedades
industrializadas têm criado instâncias regulatórias voltadas à análise, comunicação e gestão do
risco tecnológico. Essas instâncias de decisão baseiam-se na argumentação técnica das
empresas desenvolvedoras de tecnologia, em pareceres de especialistas e na participação,
ainda incipiente, da sociedade organizada. Os debates envolvendo diferentes visões de
especialistas e dos cidadãos indicam que as instituições reguladoras têm-se tornado uma arena
de disputas no qual os atores envolvidos criam espaços estratégicos de ação.
Do ponto de vista das corporações, a regulação da tecnologia pode implicar na internalização de
certos custos, na criação de barreiras à entrada ou na saída forçada de determinados mercados.
Enquanto política pública, a regulação da tecnologia pode representar uma externalidade
negativa a investimentos realizados em mercados sujeitos a um escrutínio público mais rigoroso.
Pode ainda significar um instrumento de incentivo à inovação voltado à redução de impactos
ambientais e à saúde humana. Do ponto de vista dos cidadãos, consumidores das tecnologias, a
regulação pode significar um espaço de ação e de participação no processo de construção de
padrões de consumo mais seguros e menos custosos socialmente.
Na perspectiva da economia institucionalista, pode-se considerar que a regulação da tecnologia
vai muito além de um instrumento administrativo, ao refletir um processo de interação de forças
e representações que ocorrem nos campos político, econômico, e jurídico. Warren Samuels
define essa interação como um nexo econômico-legal por meio do qual política e economia
constituem-se como atividades interdependentes que se (re)formulam continuamente. Mas
quando se trata de regular produtos e processos tecnológicos que geram riscos à saúde e ao
meio ambiente um outro campo de ação participa desse nexo econômico-legal, baseado no
conhecimento científico dos especialistas chamados para legitimar as decisões legais,
econômicas e políticas. Partindo de uma abordagem institucionalista proposta por Samuels, esta
comunicação tem como objetivo propor um referencial de análise voltado à identificação dos
principais mecanismos e elementos que definem o processo decisório voltado à regulação da
tecnologia. É dado particularmente ênfase aos trabalhos de Marc Eisner sobre o processo de
decisório na implementação da legislação, no qual ele destaca o papel dos economistas. Na
perspectiva de Eisner a generalidade das leis envolve a ação de uma burocracia especializada
capaz de simplificar a complexidade dos fatores envolvidos na gestão do risco tecnológico. Da
mesma forma, explora-se as contribuições dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade
2
(STS studies) os quais levam em consideração a dimensão política da ciência como instrumento
de exercício de poder na regulação da tecnologia.
A segunda seção deste trabalho sintetiza a crítica institucionalista de Samuels com respeito ao
nexo econômico-legal ao mesmo tempo em que se identifica os limites da sua proposta. A
terceira seção resgata os principais elementos que compõem o nexo econômico-legal, a partir
das contribuições da ciência política e do papel dos especialistas no processo de decisão das
agências reguladoras, particularmente no que tange aos impactos ambientais. E a quarta seção
tece as considerações finais.
2. O nexo econômico-legal
Samuels (1989) inicia seu artigo “The legal-economic nexus” chamando a atenção para a
abordagem dicotômica (política e economia; público e privado) herdada do pensamento liberal.
Uma dicotomia que caracteriza a economia como a esfera da produção, das trocas, da
distribuição e do consumo, e a política como a esfera das eleições, dos partidos e das decisões
públicas. A esfera econômica privilegiaria a cooperação e a oportunidade, enquanto a esfera
política a autoridade e a regulação.
Para Samuels essa dicotomia não faz sentido na medida em que as esferas econômica e política
constituem-se em um continuum no qual os interesses públicos e privados confundem-se,
notadamente em função da capacidade de convencimento daqueles que exercem o poder
econômico e político.
“The legal-economic nexus is the social location wherein, on the basis of ideology or material
interest, private individuals and businesses attempt to influence the social agenda, and politicians
and courts, through the exercise of government choice, translate pressures and influences into
government policy and thereby determine the scope and performance of the market.”(Samuels,
1989: 1566)
Nesse contexto, interesse público e privado se interpenetram por meio de um processo
simultâneo de socialização e individuação no qual as crenças ou ideologias são continuamente
construídas. O exercício do poder passa a ser uma questão central no sentido de se estabelecer
quais são os interesses que contam nas estratégias de convencimento e nas decisões tomadas
em ambas as esferas de poder. Samuels considera assim a governança como o elemento
central do processo decisório de tomada de decisão.
The central element of this legal-economic nexus is governance, in the sense of a process in
which important decisions are made, whether by legislatures, courts, or administrative agencies;
by giant manufacturing corporations, cartels, trade associations, pension funds, major Banks, and
so on; or by alliances of governmental institutions and private organizations. (Samuels, 1989:
1577)
3
Ao chamar a atenção para essa importante dinâmica institucional de exercício do poder,
Samuels não desenvolve no entanto a sua análise no sentido de identificar e discutir como o
poder é exercido, por meio do nexo econômico-legal. Dito de outra forma, resta saber quais são
os mecanismos e instrumentos de exercício do poder econômico-político? Como interagem?
Quais as estratégias e espaços de ação nas esferas pública e privada? Como os instrumentos
legais se transformam em instrumentos econômicos de exercício do poder e vice-versa?
Essas questões serão aqui abordadas sob a restrição do objeto deste artigo voltado à
regulação da tecnologia.
3. O aparato econômico-legal
William Dugger (1988) analisa o poder hegemônico das grandes corporações a partir da
identificação de quatro mecanismos de controle social, os quais formam uma superestrutura de
exercício do poder: a subordinação; a contaminação; a emulação e a mistificação. A
subordinação está relacionada ao processo pelo qual os objetivos de outras organizações
constituem-se nos meios das grandes corporações. A contaminação implica na difusão das
motivações das corporações sobre as demais organizações. A emulação corresponde à
aceitação social ou prestígio que as corporações gozam junto às demais organizações. E a
mistificação promove a construção ou distorção dos símbolos da sociedade como forma de
legitimar as organizações dominantes. O poder das grandes corporações não é portanto
exercido por meio de conspirações mas pela combinação desses quatro mecanismos de
controle social. A estrutura de poder está neste caso fundamentada nas possibilidades de
(re)construção das instituições sociais que estabelecem as regras e os hábitos de pensamento.
Seguindo essa lógica, o mercado não é reconhecido como uma fonte de poder, mas
como um reflexo de regras estabelecidas ex-ante, por meio de instrumentos legais como a
legislação e a adjudicação. Por isso Dugger (1988, p.984) refere-se à economia moderna, não
como uma economia de mercado, mas como uma economia industrial ou corporativa, na qual os
agentes são capazes de interferir nas regras que se estabelecem, como nos regimes de
propriedade e nos padrões de concorrência. Contudo, essas regras não são apenas
estabelecidas ex-ante, mas também durante o processo de disputa entre capitais, e/ou grupos
de interesse, e de implementação das políticas públicas adotadas. Como será discutido adiante,
a implementação de políticas – no que tange à construção dos marcos regulatórios – também
envolve um processo de disputa de poder, capaz de consolidar ou invalidar as diretrizes gerais
determinadas ao nível do legislativo.
Nesses termos, a governança, como instrumento administrativo de representação de interesses
diversos, significa uma tentativa de síntese de representação democrática e práticas gerenciais,
visando a eficiência administrativa, dentro de uma perspectiva neoliberal de governo. Os marcos
4
regulatórios de tecnologias e mercados correspondem assim a um esforço ou reforço político de
organização das incertezas imanentes à economia e aos sistemas técnicos que a sustentam.
Risco e regulação tornam-se as faces de uma moeda política que simboliza a viabilidade de
convivência, não mais com incertezas mas com riscos gerenciáveis, sob uma ótica de eficiência
administrativa e transparência democrática. O sentido negativo do risco é reincorporado ao
sistema político, econômico e social como uma oportunidade a ser constantemente explorada e
valorizada pelo capitalismo (POWER, 2008).
Para as grandes corporações que devem lidar rotineiramente com incertezas de toda ordem – do
mercado financeiro global aos impactos ambientais e sociais – a possibilidade de transformá-las
em riscos pretensamente gerenciáveis contribui para a construção de expectativas favoráveis
aos acionistas e aos agentes públicos envolvidos na regulação das atividades econômicas.
Como observa Power (2008, p.6):
When objects of concern are described in terms of risk, they are placed in a web of expectations about
management and actor responsibility. The apparent risk-based description of organizational life
corresponds to widespread expectation that organizations must be seen as if the management of risk is
possible. (...) These visions of ‘risk’ manageability also constitute a new space of responsibility and
actionability (...) the organization of uncertainty in the form of risk management designs and standards is
related to expectations of governance and demands for defendable, auditable process.
Para Power (2008) a transformação de incertezas em riscos vai além de uma abordagem
knightiana de conhecimento probabilístico. O que está em jogo é a construção de instituições,
em termos de sistemas de representação ou interpretação, que estruturam uma linguagem
genérica e abstrata do risco e de sua gestão. É assim que o autor ressalta a rápida
transformação do discurso de gestão do risco, nas duas últimas décadas, de uma lógica de
cálculo para outra de organização e prestação de contas.
Essa mesma lógica, baseada na eficiência e transparência decisória, é proposta nos regimes
democráticos capitalistas como modelo de governança capaz de garantir legitimidade às
políticas públicas de regulação da tecnologia. Enquanto ao governo caberia a criação de leis
com um conteúdo genérico, resultante de um amplo processo de negociação e/ou imposição de
interesses, a implementação das leis estaria mais ligada às práticas de governança capazes de
definir ações específicas que dão consistência à atividade legislativa. Para Eisner (2000), a
legislação é intrinsecamente imprecisa, na medida em que falta aos legisladores competência e
recursos necessários à análise de problemas complexos que envolvem uma gama ou um
aprofundamento considerável de conhecimentos. Daí a necessidade da delegação de poderes a
instâncias administrativas capazes de tomar decisões que viabilizem a implementação da
legislação.
Diferente das leis, que são muitas vezes uma proclamação genérica de objetivos, a sua
implementação (policy) deve ter um propósito definido, estabelecendo o que Eisner (2000: xv)
chama de um padrão de ação. E a identificação desse padrão envolve fundamentalmente a
5
análise das capacidades administrativas utilizadas para executar as decisões legais. Eisner
propõe três fatores de análise: a expertise burocrática; a integração de interesses no processo
de implementação; e a autonomia da agência vis-à-vis as demais instituições governamentais.
O tipo de qualificação da burocracia responsável pelas agências reguladoras tem um papel
preponderante nas ações de administração, planejamento, implementação, avaliação e controle
das atividades. A existência de um grupo profissional predominante tende a construir um ethos
disciplinar por meio do qual a complexidade dos problemas são tratados de acordo com
instrumentos teóricos específicos capazes de definir e simplificar as regras de tomada de
decisão. Da mesma forma, a experiência acumulada dos administradores facilita a busca de
soluções para os problemas complexos de implementação das políticas públicas.
As agências relacionadas à análise e controle do risco tecnológico, implementadas nos anos
1970 nos EUA, trouxeram à tona aspectos bem mais complexos do que o controle de mercados
e da concorrência. Nesses casos, a ciência econômica apresentava-se como uma ferramenta
eficiente na implementação de regras de tomada de decisão. Já os riscos ambientais e à saúde
humana envolviam aspectos regulatórios inusitados até então: os riscos a serem controlados são
invisíveis e se manifestam muitas vezes no longo prazo; as decisões administrativas dependem
de uma forte interação com um conhecimento científico diverso; e os custos de avaliação e
controle desses riscos são em geral elevados (IDEM, p.134-135).
Nesse contexto, Eisner (2000) destaca a retomada do papel predominante dos economistas nas
agências reguladoras dos EUA1, baseado na importância atribuída aos custos excessivos
impostos às empresas reguladas. Isto passou a ser interpretado como uma ameaça à
competitividade das empresas, em nível internacional, e à própria eficiência da economia norteamericana. A análise custo-benefício passou a ser um instrumento de justificativa e controle
prévio das ações propostas pelas agências. A institucionalização da análise custo-benefício foi
uma alternativa política encontrada pelos governos para lidar com as pressões das corporações
às exigências impostas pelas agências reguladoras como a Environmental Protection Agency
(EPA) e o Occupational Safety and Health Administration (OSHA) nos anos 1970. Mais do que
isso, os critérios do que é imputado como “custo”, “benefício” e os “riscos” associados à adoção
de uma nova tecnologia, envolvem um elevado grau de discricionariedade a cargo da expertise
burocrática das agências. As agências responsáveis pela proteção à saúde pública e ambiental
devem assim basear suas decisões, de análise, gestão e comunicação do risco, em um padrão
ambíguo que leve também em consideração o desempenho econômico do sistema produtivo2.
Um exemplo característico dessa discricionariedade revela-se em um estudo publicado pelo
National Research Council relativo a uma avaliação da base científica dos procedimentos de
1
Os economistas tornaram-se um grupo profissional predominante nas primeiras instituições e agências reguladoras criadas, a partir
do final do século XIX, com o Sherman Act e mais tarde com a Federal Trade Commission (EISNER, 1991).
John Wargo (1998) descreve esse duplo critério estabelecido no Federal Food, Drug and Cosmetic Act (FFDCA) e o Federal
Insecticide, Rodenticide and Fungicide Act (FIFRA).
2
6
análise do risco de plantas geneticamente modificadas, realizado pelo Animal and Plant
Inspection Service (APHIS) do United States Department of Agriculture (USDA). Entre as
observações aportadas pelo comitê de especialistas da National Academy of Sciences constava
que o APHIS não deveria utilizar o termo “no evidence” em suas avaliações ambientais, uma vez
que este órgão não dispunha de um monitoramento sistemático de possíveis impactos
ambientais. E o comitê concluía que “The term “no evidence” can mean either that no one has
looked for evidence or that the examination provides contrary evidence. Lack of evidence is not
typically useful in making regulatory decisions about risk.” (NRS, 2002, p.10). Neste caso, obter
evidências de risco, ou de sua ausência, requer um volume considerável de recursos financeiros
e de tempo, uma vez que os resultados podem levar anos ou décadas, e ainda serem
inconclusivos.
A discricionariedade e a ambigüidade dos critérios de tomada de decisão abrem espaço a
controvérsias, cujo questionamento na adoção ou proibição de novas tecnologias, dependerá em
última instância da capacidade de mobilização e de pressão política dos grupos de interesse em
jogo. E a demanda por evidências científicas mais consistentes que corroborem decisões de
curto prazo, de adoção ou proibição de novas tecnologias, tende a postergar o processo
decisório. Michaels e Monforton (2005) revelam um padrão estratégico adotado pelas empresas
submetidas à regulação de saúde pública nos EUA, centrado no argumento da inconclusividade
das evidências e da qualidade dos dados obtidos. Essa polêmica tende a ser alimentada por
estudos que apresentam resultados contrários ou diversos àqueles utilizados pelas agências
reguladoras, ou ainda por uma revisão bibliográfica com interpretações que levam a conclusões
distintas das obtidas pelas agências. Esse tipo de estratégia, utilizada inicialmente como um
instrumento de relações públicas, passou também a ser utilizada nas disputas judiciais e
regulatórias, levando a um processo de institucionalização da incerteza.
O segundo fator de análise das capacidades administrativas diz respeito à participação dos
grupos de interesse nas decisões das agências. A constituição de princípios da administração
pública, como o da transparência e da publicidade, associados à prática de consultas públicas,
permite a possibilidade de uma participação mais direta dos agentes interessados no processo
decisório. Isto dependerá fundamentalmente da capacidade de mobilização dos agentes, dos
recursos financeiros e humanos, em termos de conhecimento técnico-científico necessário para
interagir com os profissionais das agências. Contudo, deve-se considerar que a capacidade de
representação das corporações vis-à-vis a sociedade organizada é significativamente maior.
De acordo com Salisbury (1984) as associações de empresas e corporações, correspondiam a
71% dos grupos de interesse com representação em Washington, no início dos anos 1980. Já os
trabalhadores não-agrícolas eram representados por 4% dos grupos de interesse, apesar de
corresponderem a 41% da população. Braithwaite e Drahos (2001), ao estudarem a história da
globalização da regulação em treze ramos de atividade, destacaram a importância do lobby
7
exercido pelas empresas multinacionais no Codex Alimentarius – o Comitê assessor da FAO e
da OMS na definição de padrões de qualidade e de análise de risco dos alimentos – cujo
principal agente financiador, quando da sua criação, foi a indústria de alimentos dos EUA. Por
exemplo, nas 140 comissões de trabalho do Codex participavam, no início dos anos 1990, 445
representantes das indústrias de alimentos contra 8 representantes de grupos de interesse
público. A Nestlé era a companhia com maior número de representantes, seguida pela CocaCola, Unilever e Monsanto. Ainda,,para dar legitimidade aos argumentos dessas empresas no
processo decisório do Codex, foi criado o International Life Sciences Institute (ILSI). O ILSI é um
centro de pesquisa, financiado pelas grandes empresas de alimentos e de insumos químicos e
biológicos, destinado a produzir resultados científicos que corroborem seus interesses nas
discussões do Codex e junto às agências reguladoras.
Para ilustrar o funcionamento de todo esse aparato, pode-se resgatar uma recente reunião do
Comitê de Rotulagem de Alimentos do Codex, em maio de 2010, na qual estavam presentes
representantes de 50 países. Na reunião, os EUA, juntamente com México, Costa Rica e
Argentina, opuseram-se à adoção de qualquer diretriz que levasse à possibilidade de rotulagem
de alimentos geneticamente modificados. Também foram contrários à possibilidade de o Codex
reconhecer a liberdade de cada país em adotar regras de rotulagem com respeito a esse tipo de
alimento (CONSUMERS UNION, 2010). O que está em jogo nessa discussão é, por um lado, o
direito dos consumidores de saber a origem dos seus alimentos e, de outro, a preocupação das
empresas de alimentos geneticamente modificados de terem seus produtos estigmatizados por
uma rotulagem que consideram negativa. Neste caso, o governo dos EUA representa os
interesses de pelo menos três das maiores empresas produtoras de sementes geneticamente
modificadas, sediadas nesse país (Monsanto e Dupont e DOW)3
Uma alternativa política de gestão dos conflitos de interesses é a criação de comitês consultores
ad hoc, formado por especialistas, podendo ainda contar com a participação minoritária de
representantes da sociedade. Ao serem formados predominantemente por especialistas,
reconhecidos por seu notório saber, preservam a aparência de autoridade e legitimidade do
poder decisório face à incerteza e ao conflito político. Além disso, os membros desses grupos, e
aqueles que os nomeiam, utilizam-se de uma série de estratégias para definir os critérios de
inclusão e exclusão dos seus interlocutores e sucessores (JASANOFF, 1990: 14; PELAEZ &
SILVA, 2009). Tais comitês podem contar ainda com a participação minoritária de
representantes da sociedade. Devido à escassez de recursos humanos e financeiros inerente a
esse tipo de representação, e por estar em minoria, a sua presença tende a legitimar um
processo decisório previamente definido. Nelkin e Pollak (1979)4 apud Cozzens e Woodhouse
3
Segundo o ETC Group (2009) Monsanto e Dupont estavam, em 2007, no primeiro e segundo lugar do ranking mundial de empresas
de sementes, com uma participação nas vendas de 23% e 15%, respectivamente.
4
Public participation in technological decisions: reality or grand illusion? Technology Review, 81/8 (August/September): 55-64.
8
(1995: 545) “point out that much of what passes for “participation”in current governance can Just
as well be understood as attempts by the powerful to co-opt the public.
A dinâmica do processo decisório na qual o parecer dos especialistas torna-se a principal
referência, corresponde a um modelo tecnocrático de decisão que exclui a participação dos
consumidores enquanto público leigo. Para Michel Callon (2003) o modelo tecnocrático é uma
instituição da democracia representativa, que emerge e se consolida após a Segunda Guerra
Mundial, a partir de uma polarização dos agentes:
A neat division of roles between experts (or specialists) and political authorities, with the former producing
reliable and ‘consensible’ knowledge (what is possible) on which the latter base their decisions (what is
desirable); and the constitution of an ignorant public, incapable of entering into the abstract formalism of
scientific knowledge (…) and whose support for science and technology requires constant education.
(CALLON, 2003, p.30)
Tal polarização corresponde a uma dupla delegação de poder na qual os cidadãos delegam as
decisões aos seus representantes eleitos e estes, por sua vez, as delegam aos especialistas.
Esse modelo, excludente do público leigo do processo decisório de análise e gestão do risco
tecnológico, tende a perder legitimidade na medida em que a sociedade organizada passa a
questionar a suposta neutralidade dos especialistas. Ao crescerem as incertezas relativas aos
efeitos adversos da tecnologia, aumentam os conflitos entre produtores e consumidores bem
como a divergência entre os próprios especialistas.
Esses conflitos tendem a revelar os mecanismos de subordinação aos interesses privados das
agências reguladoras. Da mesma forma, a difusão das motivações das corporações junto às
demais instituições (contaminação), a sua aceitação social (emulação) e os seus valores
(mistificação) tornam-se mais visíveis, revelando o nexo econômico-legal estabelecido no
modelo tecnocrático de governança (PELAEZ, 2006, p.257). Emerge daí um novo modelo de
tomada de decisão, mais pluralista e democrático, no qual o público leigo é incorporado na
perspectiva de exercício da cidadania e não mais como um consumidor submetido às
contingências da oferta. Nesse novo contexto institucional, a prática do confronto e da gestão de
conflitos tende a gerar um processo de aprendizagem mais interativo. A partir da constituição de
fóruns híbridos de discussão, entre especialistas e público leigo, a dicotomia leigo-especialista
começa a ser superada em um processo de construção de uma democracia participativa.
Segundo Callon (2003, p.61) as possibilidades de democratização do modelo tecnocrático de
decisão envolve importantes inovações institucionais:
(a) explicit recognition of the existence of constantly emerging concerned groups; (b) the existence of
procedures intended to facilitate the expression, discussion and collective negotiation of these groups’
identities; (c) the establishment of incentives and structures aimed at encouraging, developing and funding
collaborative research in all its forms; and (d) the construction of public spaces in which identities and
research are discussed simultaneously.
9
A autonomia das agências, como terceiro elemento de análise das capacidades administrativas,
implica nas possibilidades de independência dos demais órgãos de governo no processo
decisório. Como observa Eisner (2000, p.18) “Once Congress delegates authority, it can be
impossible to assure that policy as implemented will reflect the goals expressed in the legislative
debates”. Além disso, os administradores das agências não estão, como os legisladores,
submetidos ao escrutínio dos eleitores no que tange aos impactos sócio-econômicos de suas
ações. O hiato entre o poder executivo e o legislativo, no que tange ao processo decisório, pode
ocorrer de forma mais ou menos intensa, levando à adoção de mecanismos políticos e
financeiros de controle das agências. Legisladores podem atuar na redefinição das jurisdições,
no controle orçamentário, ou na nomeação de diretores mais afinados com determinados grupos
de interesse. Isto relativiza o caráter autônomo atribuído às agências, bem como seu papel de
simplificador do processo decisório de problemas complexos. Na realidade, longe de ser uma
atribuição exclusivamente executiva, as agências estão constantemente submetidas ao
escrutínio do poder legislativo e das ações específicas de políticos mais atuantes na
representação de grupos de interesse diretamente afetados pela regulação em vigor.
As agências podem ainda ser afetadas por mudanças estruturais mais significativas nas políticas
de governo, como a implantação de modelos neoliberais de administração pública, quando
profundas reformas regulatórias tornaram-se sinônimo de desregulação, em nome de uma
eficiência maior dos sistemas de governo. No caso dos EUA, Eisner (2000) observa que os
governos de Nixon, Ford, Carter e Reagan eram politicamente sensíveis às preocupações das
corporações com os custos associados aos aspectos regulatórios, ao interpretarem esses custos
como uma das principais fontes do mau desempenho macroeconômico5. Nesse contexto, os
custos de curto prazo imputados à indústria pela regulação da tecnologia, acabam tendo um
impacto político mais eficaz do que os riscos hipotéticos de longo prazo ao ambiente e à saúde
humana (WARGO, 1989). E é nesse contexto histórico que os mecanismos de subordinação,
contaminação, mistificação e emulação ficam mais evidentes, na medida em que a eficiência
corporativa torna-se uma referência para aproximar a função de governo à lógica de
funcionamento de uma corporação. Identifica-se aqui um processo de translação, no sentido
proposto por Latour (1998), no qual os problemas associados à regulação da tecnologia são
reformulados de acordo com as variáveis que melhor representam as prioridades ou os
interesses dominantes. Isto quer dizer que a simplificação da complexidade dos problemas
relativos aos impactos ambientais e à saúde humana tendem a ser interpretados por meio de
uma economização do processo decisório6, no qual as variáveis econômicas prevalecem. Tal
predominância configura um padrão de ação que legitima a implementação das leis sob uma
perspectiva aparente de racionalidade e imparcialidade de decisões eminentemente políticas.
5
Wargo (1989: 123) menciona estimativas de custos superiores a US$ 100 bilhões anuais imputados ao setor privado para se
adequar à regulação da Environmental Protection Agency (EPA) nos anos 1980. Tais estimativas têm grande utilidade na
reconstrução de uma agenda política voltada à desregulamentação da economia.
6
Sobre a discussão da economização do comportamento dos agentes ver Muniesa, Millo e Callon (2007).
10
4. Considerações finais
O nexo econômico-legal é aqui analisado como um insight teórico-metodológico a ser
desenvolvido e explorado na perspectiva de contribuir à análise do processo decisório das
agências reguladoras. A complementação proposta pela abordagem da ciência política e dos
estudos de CTS contribuem a um melhor entendimento do mecanismos institucionais que
definem a dinâmica do nexo econômico-legal. Esse nexo é interpretado como um aparato
institucional que compreende um conjunto heterogêneo de elementos interrelacionados (leis,
medidas administrativas, decisões regulatórias, pareceres científicos) no qual a economização
do processo decisório interpreta e simplifica a complexidade inerente às questões ambientais e
de saúde humana.
O mais explícito desses elementos é a legislação que se manifesta de forma geral e imprecisa. A
sua implementação depende da combinação de dois vetores. Por um lado, políticas públicas
específicas determinam padrões de ação a serem seguidos pelas agências reguladoras. Os
padrões de ação dependem, por sua vez, do conhecimento disponível e demandado pelas
autoridades governamentais que definirão os procedimentos de análise e gestão do risco, a
seleção e o treinamento dos especialistas, bem como o conteúdo da informação a ser divulgada.
Por outro lado, a implementação da legislação depende do nível democrático das instituições, o
qual define os espaços de ação dos agentes públicos e privados, o poder de decisão atribuído
aos especialistas e o grau de transparência e discricionariedade das decisões tomadas. A
identificação e caracterização de como esses elementos se articulam permite um melhor
entendimento da capacidade dos atores de bloquear, utilizar, estabilizar ou desenvolver
conhecimento necessário à criação de determinadas trajetórias tecnológicas, estruturas de
mercado e padrões de consumo nas sociedades industriais.
Todos esses elementos constituem uma rede de conexões na qual o poder é exercido, por meio
de mecanismos de controle, de publicização e/ou de omissão de determinados saberes. A forma
como o saber técnico-científico é utilizado, expressa-se no ethos do conhecimento construído no
interior das agências e particularmente na forma como os problemas complexos, inerentes à
análise e gestão do risco, são formulados, solucionados e comunicados à sociedade. E a
construção dessas competências reflete, por sua vez, relações de força, práticas e estratégias
políticas que emergem do próprio aparato institucional. Tais estratégias não são definidas ex
ante mas durante o processo de interação social dos agentes.
11
Referências
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