A MÍDIA E SUA ATUAÇÃO MASSIFICANTE NO CONTO PARA VOCÊS MAIS UM CAPÍTULO DE LUIZ VILELA ALMEIDA, Edson José (P. G. Unioeste) COQUEIRO, Wilma dos Santos (Orientadora) RESUMO: Este trabalho procura discutir as relações existentes entre a mídia – especificamente a telenovela – e o comportamento humano. Não se considera, para isso, a Literatura como um retrato da sociedade, mas sim como um reflexo dela. As atitudes humanas, de uma forma geral, são mais ou menos direcionadas através da programação televisiva e esse processo tende a se repetir e a se perpetuar conforme o grau de imersão do indivíduo nesse programa televisivo de massa. Para Bakhtin (1979) a Literatura não tem autonomia em relação à cultura. Como não podemos deixar de considerar que a cultura popular passa pelo crivo da programação televisiva, especialmente (e cada vez mais) com o surgimento de novas tecnologias, essa relação homem/mídia se torna mais intrínseca de forma diretamente proporcional ao crescimento tecnológico. Dentro dessa linha de pensamento, alavancaremos os conceitos do Pós-modernismo, com Linda Hutcheon (1991), de cultura com Carvalho (2000) de catarse e liberação com Ferrés (1996) e de Literatura com Cândido (1989), entre outros, numa tentativa de entender a postura humana nas suas mais variadas facetas, no caso específico do objeto de estudo, o desgaste das relações humanas, produto inquestionável da alienação ditada, em específico, pela telenovela. PALAVRAS-CHAVE: Pós-modernismo; Literatura; Mídia; Comportamento humano; ABSTRACT: This paper discuss about the relationships between media – specially soupopera – and the human behavior. We don’t consider, for this propose, the Literature as a picture of the society, but as a reflection of it. The human attitudes are, at a general form, more or less indicated through the television program, and this process tend to replay and to perpetuate according to the individual immersion degree in this television program. To Bakhtin (1979) the Literature does not have autonomy in relation to the culture. As we understand that the culture pass to the screen of the television programs, specially (more and more) with the appearing of new technologies, this relationship man/media become more intrinsic on a straight form to the technologic growing. Inside this line of thought, we lever the conception of Post-modernism, with Linda Hutcheon (1991), of culture with Carvalho (2000), of catarses and liberation with Ferrés (1996) and of Literature with Cândido (1989), among others, on attempt to understand the human posture in his more varied facets, in the specific case of studied object, the erosion of human relationships, product unquestionable of the alienation saying, in specific, by soup-opera. KEY-WORDS:Media; Literature; Behavior Human; Post-modernism Para se entender o significado da expressão “novas tecnologias” se faz necessário explicitar alguns conceitos muito comentados, hoje, quando se fala de cultura e de literatura. Entre eles estão os conceitos de modernidade/modernismo e pós-modernidade/pósmodernismo. A modernidade inicia-se no século XVI com as grandes navegações e estende-se até os dias de hoje. O grande momento dessa época foi a Revolução Industrial no século XIX, a qual influenciou decisivamente na formação intelectual do homem. Foi uma época histórica e, por isso mesmo, deve ser tida como base para o alargamento da visão crítica sobre as produções artísticas. O Modernismo, muito mais jovem, é um movimento cultural o qual procurava superar algumas barreiras estéticas, que até então existia, as quais impediam a criação poética dos artistas, por exemplo. Especificamente no Brasil, esse movimento foi liderado pela elite intelectual e financeira do país. Bosi (1994, p. 333) comenta que Nesse clima, só um grupo fixado na ponta de lança da burguesia culta, paulista e carioca, isto é, só um grupo cuja curiosidade intelectual pudesse gozar de condições especiais como viagens à Europa, [...] poderia renovar efetivamente o quadro literário do país. Esse movimento, no entanto, foi de curta duração. Didaticamente ele inicia-se com a Semana de Arte Moderna em 1922 e vai até o fim da Segunda Grande Guerra, em 1945. Logicamente que antes e depois do período em questão observavam-se características desse movimento, especialmente após 1945, quando, para alguns críticos, características do momento precedente ainda são encontradas em algumas das produções artísticas. Cândido (1965, p. 128), comenta que “Para quem lê com mais atenção a poesia brasileira dos últimos anos, impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer. E quando tem, o quanto é devido à sensibilidade e aos temas da geração anterior”. E, a partir daí, inicia-se, então, o pós-modernismo. Esse movimento é muito difícil de ser conceituado, talvez porque nossos críticos estejam ainda envoltos, de uma forma cartesiana, em preceitos antigos que cerceavam movimentos como um Simbolismo ou um Naturalismo, por exemplo, que possuíam uma espécie de código estético a ser seguido por todos os artistas. Como o pós-modernismo despreza certas cristalizações, se torna um tanto quanto complexa sua conceitualização. Antes de qualquer coisa, se faz necessário traçar um breve perfil do que se tem chamado de pósmoderno. Ele nasce junto com a informática, nos anos 50 e toma impulso nas décadas subseqüentes, impelindo o homem a se adaptar às novas regras, caso não queira ser tragado pela ignorância tecnológica, que tantas “vítimas” tem feito no decorrer de todo esse processo evolutivo. Já o pós-modernismo “é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes, e nas sociedades avançadas...” (SANTOS, 1986, p. 7). Apesar de os conceitos se assemelharem, o pós-modernismo tende a ser um movimento artístico/cultural que tem o objetivo de, através da obra de arte, expressar essas mudanças que ocorrem na sociedade pósguerra e que, hoje, se torna ainda mais evidente. O grande embate teórico que se trava em relação à importância ou não desse movimento está diretamente ligada, de certa forma, ao conceito de arte. Limitamos-nos, aqui, a falar de literatura. Antonio Cândido define literatura: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis de produção escrita das grande civilizações. (CÂNDIDO, 1989: 112). Essa definição do professor nos abre caminho para um alargamento da visão sobre as obras ficcionais contemporâneas. Existe ainda certo preconceito, de alguns estudiosos, em relação às obras de fácil acesso intelectual. O Modernismo, que pretendia desmitificar esse preconceito, acabou reproduzindo-o. Para se entender Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, por exemplo, é necessário que se tenha uma certa iniciação intelectual. Como grandes escritores surgiram nessa época por todo o mundo, e a febre das idéias modernistas contagiou toda a elite intelectual, hoje, não se dá muita importância à produção contemporânea por se considerá-la inferior. Jameson, em seu artigo “Pós-modernismo e sociedade de consumo” lista uma série de fatores que depreciam a produção pós-modernista, de um lado, e elogia a produção modernista de outro. Para o escritor, as produções com traços pós-modernos não possuem mais os brilhos que as modernas possuíam. Ao contrário, tudo não passa de uma tentativa de descontrução das idéias e de tudo o que é moderno. “Isso significa que há tantas formas diferentes de pós-modernismo quantos foram os modernismos canônicos estabelecidos, a que as primeiras, ao menos inicialmente, são reações específicas e locais contra esses modelos.” (JAMESON In: KAPLAN, 1993, p. 26) Linda Hutcheon sustenta uma visão distinta sobre o pós-modernismo. Além de pregar uma ruptura entre a cultura erudita e a cultura popular e considerá-la vantajosa, ela discorda de Jameson quanto ao fato do pós-modernismo tentar desconstruir sem objetivo nenhum. Para a escritora, tudo o que o pós-modernismo desconstrói, se resignifica de uma outra forma, pois parodiando, por exemplo, grandes escritores do passado, tem-se a possibilidade de uma reinterpretação, quer seja da história, quer seja da arte. Essa paródia é o que Jameson chama de “pastiche”, atribuindo ao termo um tom pejorativo, ao mesmo tempo em que classifica os escritores da referida época de pouco criativos. Hutcheon, por sua vez, diz: Em certo sentido, a paródia e uma forma pós-moderna perfeita, pois paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade, idéia compatível com outros questionamentos pós-modernos sobre os pressupostos do humanismo liberal. (HUTCHEON, 1991, p. 28) Essa suposta falta de criatividade de que nos fala Jameson está diretamente ligada à paródia de Hutcheon. Se não existem mais talentos como um Eliot ou um Pound, é a partir de suas obras – e, logicamente de outros – que outras obras se resignificam na palavra de outros pensadores. Dessa forma, nos deparamos com uma vasta produção, híbrida, misturada a ela elementos históricos, elementos atuais e moldada segundo a concepção de um homem (o escritor) pós-moderno. Somando todos esses fatores, teríamos mesmo o pastiche de Jameson, no entanto, não vazio, mas repleto de novas significações. A era pós-moderna, e suas numerosas mudanças, trouxe para a literatura sua parcela de contribuição. Os gregos contaram sua história através da epopéia. Nos séculos seguintes foi a poesia que alimentou o espírito humano. Com a chegada do Romantismo no século XIX, aflorou para a arte das letras o romance. A poesia que até então não se apartava dos grandes eventos culturais, perde a força, cedendo lugar à narrativa. Filho do romance, o conto toma fôlego na segunda metade do século XX e nos dias atuais parece encabeçar a lista dos campos mais freqüentados pelos leitores. Para Fábio Lucas (1982, p. 105), “O gênero conto constitui um dos que mais se adequaram às exigências da era moderna. Trata-se da narrativa que acompanhou a evolução da imprensa e das publicações periódicas”. Some-se a isso um leitor tomado pelas suas inúmeras atividades diárias, influenciado e seduzido pelas imagens da televisão, cercado por milhões de informações. Quando a leitura não é preterida a outras seduções do mundo pós-moderno, ela é fragmentada, esporádica. O conto, nesse caso, resolve esse problema, pois sua curta extensão possibilita ao leitor iniciar e conhecer o final do conflito que a obra propunha desenvolver, em um curto espaço de tempo. Para Alfredo Bosi (2001), o conto possui uma extensa variedade e ainda cumpre o papel reservado à novela e ao romance, na medida em que tem a competência de compendiar todos os elementos formadores da narrativa. Bosi nos diz: “Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda do romance, como põe em jogo os princípios de composição que regem a escrita moderna em busca do texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados” (BOSI, 2001, p. 7). Como é variado, toda a temática pode ser abordada, de acordo com a inspiração do escritor. Não existe no conto, especialmente no conto moderno, limites ou regras para abordagem temática, toda ela é válida: A preferência por certos assuntos e o desdém de outros não vigem na ordem da arte: provêm de um embate ideológico mal situado (...) ser a favor ou contra o regional, a favor ou contra o universal, não faz sentido como juízo literário: é, no fundo, projeção indiscreta de ideologias grupais. (Idem, p. 9). Analisando, ainda, o pós-modernismo, como é nosso propósito, devemos atribuir atenção especial à mídia e a sua profunda influência no comportamento humano dos últimos anos. O advento tecnológico acelerou a vida humana; milhares de informações são processadas simultaneamente e a exigência do mundo capitalista se torna cada vez mais férrea no sentido de cobrar do indivíduo moderno atitudes que condigam com a realidade. Se por um lado a mídia – através de mecanismos que estimulam o consumo – instiga o ser humano a se submeter a um ritmo frenético de vida, por outro lado, ela também oferece um espaço de descanso, por intermédio do material ficcional, no caso desse estudo, a telenovela. No conto “Para vocês mais um capítulo”, de Luiz Vilela, essa influência é bem desenvolvida representada pelo comportamento de uma família ainda imersa em resquícios de antigos valores. A mulher se dá ao luxo de – pelas diretrizes que nos traça o enredo – ficar em casa e assistir à televisão, enquanto o marido exerce o papel de provedor, trabalhando para sustentar a família. O conto é quase que totalmente arquitetado sob o diálogo entre mulher e esposo. Ela, à hora do jantar, absorta em pensamentos sobre o último capítulo da novela, inicia uma conversa com o esposo sobre o destino de alguns personagens. Ele, preocupado com coisas importantes que tinha para resolver, pouco prestava atenção ao que a mulher dizia e, hora ou outra, opinava sobre um ou outro acontecimento, sempre sobressaindo, na sua fala, a consciência de uma eterna repetição nessa espécie de ficção. Isto posto, alguns fatores se explicitam. A deterioração do diálogo familiar se torna evidente em razão do grande préstimo que tem os programas televisivos nos nossos dias. O jantar, que além de alimentar o corpo, deveria servir para unir a família, resolver problemas, construir ajuda mútua entre as pessoas, acaba por se transformar num momento de discussão – ou no mínimo de comentários – referente aos programas que preenchem o tempo ócio, principalmente das mulheres que ainda não têm profissão. A mídia, de uma forma geral, acaba por hierarquizar os assuntos a serem discutidos no dia seguinte. Essa hierarquização depende do indivíduo envolvido no processo. Se, por exemplo, o interesse de uma pessoa é o esporte, é sobre esporte que ela, prioritariamente irá discutir, após assistir ao programa de sua preferência; se é a política o assunto preferido do indivíduo, é sobre política que ele irá argumentar no dia seguinte. No caso específico do conto em análise, a esposa discute com o marido o último capítulo da novela de sua preferência. Nesse sentido, o professor Clóvis de Barros Filho, em artigo publicado em 1999, discursa sobre a existência do que ele chama de agenda setting, que nada mais é que essa pré-programação construída pela mídia, já mencionada. Para o autor, “O agenda setting é uma das formas possíveis de incidência da mídia sobre o público. É um tipo de efeito social da mídia. É a hipótese segundo a qual a mídia, pela disposição e incidência de suas notícias, vem determinar os temas sobre os quais o público falará e discutirá”. (BARROS FILHO In: BARZOTTO & GHILARDI org., 1999, p. 11) A televisão, ainda, possui o poder de seduzir através das imagens. E essa sedução acaba envolvendo o indivíduo em uma realidade virtual, da qual torna-se difícil o escape, já que as sensações despertadas por tal imersão tem uma espécie de poder de cura. O colorido das imagens bem editadas colabora para prender a atenção do telespectador. A hipervalorização do real acaba sobrepujando os acontecimentos do cotidiano. Jair Ferreira dos Santos nos fala sobre essa hiper-valorização que tanto satisfaz o homem pós-moderno: Simular por imagens como na TV, que dá o mundo acontecendo, significa apagar a diferença entre real e imaginário, ser e aparência. Fica apenas o simulacro passando por real. Mas o simulacro, tal qual a fotografia a cores, embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade. (SANTOS, 1986, p. 12) Essa hiper-valorização da realidade pode ser observada com muita frequência. Belos corpos de modelos sendo exibidos diariamente em propagandas de perfumes, ou de cremes, fazem o indivíduo acreditar, mesmo que inconscientemente, que ele, ao usar tal produto, também poderá ter um corpo como o apresentado na tela. As relações sexuais pela internet estão cada vez mais evidentes, os produtos exibidos em comerciais possuem muito mais brilho que o verdadeiro produto disponível no comércio. Toda essa hiper-valorização trabalha no sentido de atrair o consumidor e fazê-lo acreditar que as imagens substituem a realidade. É a gratificação sensorial. No conto, a esposa se deleita ao contar para o marido como é a casa do Adriano, personagem da novela em discussão: “A casa do Adriano... – a mulher suspirou, olhando para o ar; - precisa ver... é um sonho...” (VILELA In: MARTINS W. org., 2001, p. 212). A televisão, ainda, possui a característica de transportar o indivíduo para o mundo dos sonhos, das fantasias, dos mitos. Para Ferrés (1996, p. 35), “A pessoa precisa dos mitos pra viver como precisa do ar para respirar”. A fantasia seria, então, o alimento da alma. E isso, indubitavelmente, depende da cultura de cada indivíduo. Para Carvalho (2000, p. 96), cultura é “um sistema de agir e interagir, um sistema de crenças, valores de organização artística, científica e educacional, social e política, bem como de atividades econômicas”. Como podemos perceber, tal conceito é bastante abrangente. O que nos interessa no momento é detectar como tal conceito está relacionado com as atividades das personagens no conto. O marido, ainda imerso em resquícios de uma sociedade já ultrapassada, como já foi dito, é o provedor da família (relação da cultura com as atividades econômicas). Logo, suas preocupações vão além de estabelecer conexões entre esta ou aquela personagem de uma determinada telenovela. Por outro lado, percebemos o desgaste da relação homem/mulher na narrativa em questão. A falta de diálogo entre o casal é interrompida pela mulher que, na ausência de outro assunto importante, resolve quebrar o silêncio e comentar sobre a novela. Aqui se percebe uma diferença crucial entre o homem provedor do lar e a mulher, esposa, mãe, que ocupa seu tempo vago com programas televisivos. O marido, porque acha inútil interrompê-la, ou porque não a considera apta a discutir seus reais problemas, opta por ouvi-la e, vez ou outra, profere alguma opinião sobre o assunto abordado pela esposa. Para nos situarmos melhor entre a teoria e a produção ficcional em análise, cumprenos salientar que no já referido jantar, o único assunto ao qual a mulher se reporta é sobre o último capítulo da novela; já o marido traça seus comentários de uma forma irônica sobre as atitudes impostas às personagens. Sua fala é no sentido de ironizar a falta de criatividade dos autores desse tipo de programa, enquanto a mulher mostra-se deslumbrada com os acontecimentos envolvendo as principais personagens. Douglas Kellner (2001) discute sobre as relações entre a mídia e seu público e isto permite-nos traçar uma aferição de valores entre indivíduos que não se atêm à produção midiática de forma geral e àqueles que se preocupam em acompanhar imensuravelmente tais produções. Para Kellner, As novas tecnologias da mídia também propiciam poderosas formas de controle social por meio de técnicas de doutrinação e manipulação mais eficientes, sutis e ocultas. Na verdade, sua simples existência já cria a possibilidade de minar as energias políticas e de manter as pessoas bem guardadas dentro dos confins de seus centros de entretenimento doméstico, distantes do tumulto das multidões e dos locais de ação política de massa. (KELLNER, 2001, p. 26) A mulher parece estar totalmente manipulada pela programação televisiva, enquanto o homem, preocupado com uma “série de coisas importante que tinha que resolver naquela noite” não compactua da mesma sensação de prazer com a mulher. Ao contrário, ele parece esboçar uma revolta velada sobre a discussão: “quê que há, nem todo mundo é telespectador, ainda existem algumas pessoas inteligentes”, argumenta ele, após sua esposa classificá-lo como “gênio”, já que não assistia à novela e mesmo assim sabia como as personagens e o enredo se movimentavam. A mensagem que se observa aqui fica bem clara: o telespectador de telenovelas não é suficientemente inteligente. Conforme vai decorrendo a “discussão” sobre a novela, o marido parece indignar-se com os comentários da mulher e, a certa altura, tem uma espécie de acesso de fúria e descarrega, verbalmente, toda sua indignação em relação à mesmice das quais são compostos tais programas: Sabe o que que eu acho? Eu acho que a FernandA vai morrer de câncer; câncer, entende? Câncer no ânus, com dores horríveis. O Marcelo? Coitado, esse vai morrer de lepra; caindo aos pedaços; pedacinho por pedacinho. (...) Quanto aos outros, vou dizer também o que vai acontecer com eles: vou pegar uma metralhadora, entende: vou pegar uma metralhadora, atravessar o vídeo e tá-tátá-tá-tá; todo mundo. Depois vou para o estúdio e ta-tá-tá-tá-tá: os atores, as atrizes, o produtor; cem tiros no produtor, duzentos no diretor, trezentos no autor da novela. Depois os telespectadores: vou de casa em casa e ta-tá-tá-tá-tá; não descansarei enquanto não liquidar todos. Depois os aparelhos de televisão: uma dinamite em cada um: bum! Depois as fábricas: pôr fogo em todas. E por que não aproveitar... É, por que não aproveitar e pôr fogo no planeta inteiro? (VILELA In: MARTINS W. org., p. 213) Depois disso, o marido volta ao seu jantar, tranqüilamente, como se nada houvesse acontecido e retoma o mesmo assunto com a mulher. Isso demonstra que, apesar da consciência que às vezes se tem sobre certos programas improdutivos da televisão, não se pode fugir deles. O conto inicia e termina com o diálogo sobre a telenovela, construindo assim um movimento cíclico. Somente a passagem descrita acima indica uma consciência da fragilidade intelectual que acompanha essas produções em específico, mas não passa de um breve momento, um momento epifânico. Os nomes das personagens são mais ou menos padronizados, existe uma espécie de roteiro pré-organizado, no sentido de conciliar as aspirações humanas com a produção ficcional midiática. No conto em específico, discute-se com quem Fernanda vai ficar: se com Marcelo, o rapaz pobre, ou se com Adriano, o rapaz rico. Normalmente, nessas produções, o amor vence qualquer barreira, não importando a distância abissal que separa as pessoas, como é o caso das diferenças entre classes sociais. Em todo caso, a telenovela é considerada uma produção cultural de massa e, como tal, é regida e totalmente submetida às leis do capital. Sempre com o intuito de satisfazer às aspirações humanas, que na vida real muitas vezes não são saciadas, essas produções abarcam os sonhos mais íntimos e os desejos mais profundos de cada indivíduo, de modo que ao acompanhar a movimentação de certas personagens, o telespectador ingênuo sente-se gratificado no triunfo destas. O sofrimento e a alegria, o riso e o choro são, de certa forma, compartilhados com o espectador que sempre está a postos para intervir e até dialogar virtualmente com as cenas estampadas na tela da tv. Essas atitudes, segundo Joan Ferrés, são denominadas Sistemas de Transferência, o qual é composto pela Identificação e pela Projeção. Para o autor, A identificação produz-se quando o espectador assume emotivamente o ponto de vista de um personagem, ao considerá-lo um reflexo da sua própria situação de vida ou de seus sonhos e ideais. A projeção, no entanto, produz-se quando o espectador coloca uma série de sentimentos próprios (amor, ódio, compaixão, desejo sexual, etc.) sobre alguns personagens da fantasia (FERRÉS, 1996, p. 36). No conto de Vilela, podemos imaginar todo um contexto esculpido pela cultura. Ainda nos valendo do conceito de cultura ditado por Carvalho expresso anteriormente, e sem querer sermos repetitivos, percebemos a estrutura da família representada na referida obra. O marido ainda é o principal – e talvez o único – provedor da família, logo, não dispõe de tempo para ser telespectador. Seu trabalho é sua principal preocupação. A mulher, ainda presa a modelos sociais antigos, cuida do lar – e isso fica nítido na cena em que ela serve o marido com mais um pedaço de lombo – e com isso possui tempo para ser telespectadora. Se por um lado percebemos uma crítica do autor às telenovelas em geral, também podemos notar uma considerável deterioração do diálogo familiar (e aqui fica a pergunta: isso seria influência da telenovela ou fruto da pós-modernidade?). As preocupações do esposo não são divididas com a mulher e essa, ou por temer não ser correspondida, ou simplesmente por não se interessar pela vida do marido – que dessa forma se tornaria alheia –, esforça-se para explicitar suas preocupações em relação à vida das personagens de sua novela preferida. E é nesse ponto que percebemos os mecanismos de transferência de que nos fala Ferrés. As produções da cultura de massa, de uma certa forma, obedecem às regras do modo de produção capitalista, ou seja, visam o lucro. Com isso, a qualidade estética fica prejudicada. Pierre Schaeffer nos alerta que A cultura, de serviço que era, de relação individualizada ou de grupo a grupo, torna-se um bem de consumo e, conseqüentemente, uma mercadoria submetida às leis do mercado, à regra do lucro, à concentração das atividades e a uma estandardização em dois níveis, o da produção e o da distribuição (SHAEFFER, In: MORRIN E. at alii, 1972, p. 8) A constante repetição de temas e de enredos tão ironizados pelo marido, no conto de Vilela, é uma ótima representante da citação acima. O artista, quando pressionado pela indústria do lucro, não consegue desenvolver sua criatividade de forma satisfatória a serviço da arte. Esse seria mais um dos sintomas do pós-modernismo. Shaeffer continua sua fala agora no sentido de situar a posição do produtor da obra no contexto em que esta se situa: Esse produtor, mais ou menos discreto, mais ou menos dirigista, engendra de qualquer modo uma produção em massa conforme as normas políticas da zona de poder, ao mesmo tempo em que admite freqüentemente, ou algumas vezes, uma atividade marginal relativamente subversiva, indo dos matizes da arte e do ensaio à clandestinidade (Idem, p. 9) A função catártica da telenovela é sem dúvida a realização mais importante dessa produção cultural de massa. Nos mesmos moldes da tragédia grega, segundo Ferrés, o espetáculo televisivo possui a capacidade de liberação das energias negativas do indivíduo. Através do mecanismo de identificação e de projeção, instaura-se no telespectador a tensão, que será rompida justamente no desenlace da trama, ocorrendo assim a catarse. Na trama da novela representada no conto, é a questão do casamento que está em jogo, não um simples casamento, mas a dúvida que se instaura é justamente com quem Fernanda vai ficar, se com o rapaz rico ou se com o rapaz pobre. Pois bem, por mais que tal situação esteja demasiado rota em razão da repetição, mesmo assim é criada a espectativa em quem acompanha a trama. Durante o desenrolar dos fatos, ocorre a mimeses e junto com ela vem a identificação do espectador, por intermédio da paixão ou éleos e, logo em seguida, com o desenlace da trama, vem a catarse, a purificação das emoções. O conto tem assumido diversas funções na sociedade contemporânea. Uma delas é a de desempenhar o papel de crítica social. A telenovela, por sua vez, produzida segundo os ditames da sociedade de consumo, pouco tem a oferecer em relação à qualidade estética. A estrutura profunda dessas obras televisivas geralmente não mudam. O que muda é a estrutura superficial. Dessa forma sempre haverá um rapaz rico e um pobre, a problemática do amor mal-resolvido, os desencontros e reencontros familiares, quase nunca se observa uma discussão mais apurada das grandes dúvidas humanas, como o destino, a morte, o sentido da vida, por exemplo. E, quando elas existem, são superficiais. Nesse sentido, o conto em questão delineia essa falta de criatividade da telenovela, enfocando, principalmente, essa pobreza temática que a compõe. Muito se tem a discutir ainda sobre a narrativa pós-moderna, em específico, o conto e suas inúmeras variedades temáticas. O que se percebe de uma forma geral é sua relação intrínseca com o comportamento social. A relação escritor-leitor-obra, está cada vez mais estreita, justamente porque com o advento do pós-modernismo rompe-se as barreiras entre a cultura popular e a cultura de elite. Cada vez mais se torna difícil identificar essas divisões. Como conceitualizar o pós-modernismo não é uma tarefa fácil, resta ainda à produção artística contemporânea definir uma linha de pensamento para expressar-se, ou então, continuar sua jornada nessa múltipla criação, ratificando o que já se sabe sobre essa tão comentada pósmodernindade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: 4 ed. Martins Fontes, 2003. BARROS FILHO, Clóvis de. “Mundos possíveis e mundos agendados: um estudo do uso da mídia na sala de aula” In: BARZOTTO V. H.; GHILARDI M. I. Mídia, Educação e Leitura. São Paulo: Anhembi Morumbi: Associação de Leitura do Brasil, 1999. BOSI, Alfredo “Situações e formas do conto brasileiro contemporâneo” In: BOSI, Alfredo (org). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2001. __________, História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: 38 ed. Cultrix, 2001 CÂNDIDO, Antonio. “Direitos Humanos e Literatura”. IN: FESTER, A. C. Ribeiro (org). Direitos humanos e paz. 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