MOVIMENTOS URBANOS E DIREITO A MORADIA: COMENTÁRIOS SOBRE “AS CIDADES REBELDES” DE DAVID HARVEY Irineu Bagnariolli Junior* Resumo Este trabalho tem como objetivo produzir breves reflexões sobre o livro de David Harvey “As cidades Rebeldes”, de 2013, publicado no Brasil em 2014. O livro constitui-se basicamente numa compilação analítica de artigos dotados de encadeamento, sobre as insurreições populares surgidas contemporaneamente nos grandes centros urbanos, e o ideal da cidade inclusiva, suas causas e consequências. Harvey destaca o papel desses movimentos na luta contra o contra hegemônica antiliberal e anticapitalista, e afirma serem estas ações coletivas fundamentais na perspectiva de uma revolução urbana transformadora. A obra abrange temas amplos e dotados de diferentes características. Abordamos quatro aspectos, desenvolvidos por Harvey, que julgamos fundamentais para compreensão de seu pressupostos: a) a importância do autor e seu trabalho, para a compreensão da sociedade contemporânea; b) a concepção de Harvey sobre o direito a cidade, a partir da obra de Lefebvre; c) a crítica a forma como se produzem as cidades, a partir da lógica da acumulação e reprodução do capital e; d) uma visão dos movimentos sociais como instrumentos indispensáveis na luta contra hegemônica antineoliberal. Palavras Chave: Revolução urbana. Movimentos sociais. Direito a moradia. *Sociólogo, Cientista Político, Mestre em Urbanismo pela FAU/USP, doutorando em Planejamento e Gestão do território pela UFABC, Professor de Sociologia Jurídica e Ciência Política da USJT. Abstract This work aims to produce brief reflections on the book by David Harvey “The Rebels cities”, 2013, published in Brazil in 2014. The book is basically an analytical compilation of articles endowed thread on the popular uprisings emerged contemporaneously in large urban centers, and the ideal of inclusive city, its causes and consequences. Harvey emphasizes the role of these movements in the fight against anti-liberal and anti-capitalist hegemonic against, and states that these are fundamental collective action with a view to transforming urban revolution. The work covers broad themes and endowed with different characteristics. We address four aspects, developed by Harvey, which we consider fundamental to understanding your assumptions: a) the importance of the author and his work, to the understanding of contemporary society; b) the design of Harvey on the right to the city, from the work of Lefebvre; c) criticism of how they produce the cities, from the logic of accumulation and reproduction of capital and; d) a vision of social movements as essential tools in the fight against neoliberal hegemony. Keywords: Urban revolution. Social movements. Right to housing. // Revista da Faculdade de Direito // número 3 // primeiro semestre de 2015 74 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior 1. A importância da obra de Harvey para a compreensão da produção do espaço urbano contemporâneo D avid Harvey é um dos mais profícuos pensadores marxistas contemporâneos. A temática abrangente de sua obra inclui questões múltiplas que interessam a todos quantos ainda entendem o marxismo como o método de análise mais preciso e adequado para a compreensão do processo de desenvolvimento capitalista até a atualidade. Desde os “Limites do Capital” (1982), passando pela “A Condição Pós-moderna” (1989), até os escritos mais recentes como, “O Enigma do Capital” e finalmente a obra que é objeto dessa análise, “As Cidades Rebeldes”, de 2013.1, além do campo da geografia econômica, sua área de reflexão por excelência, suas teses tem, além disso, adquirido importância crescente para os urbanistas, uma vez que a temática da relação entre a produção, circulação e reprodução do capital, e a produção do espaço urbano, tem ocupado papel de destaque em seus trabalhos. Uma das características importantes da obra de Harvey é sua insistência em remeter a explicação dos fenômenos contemporâneos, às categorias originais que Marx utiliza para explicar o processo de acumulação em “O Capital”, sem, no entanto, reforçar os equívocos do marxismo ortodoxo, ou seja, rejeita a possibilidade de encapsular a realidade nos pressupostos teóricos originais de Marx, mas considera esses pressupostos a partir de sua evolução histórica como categorias que possibilitam dar sentido e continuidade ao processo de evolução do capitalismo. Em outras palavras, deixa claro que a lógica do processo desvendado por Marx não terminou, e nem se transformou em algo ontologicamente diverso, mas ao contrário, continua evoluindo e se adaptando, muitas vezes, como afirma o próprio Harvey2, iludindo o observador incauto, sem, no entanto, perder as características que determinam sua essência. Nesse sentido, para Claval: A ideia mais constante na Geografia de David Harvey situa-se no papel central que atribui à teoria: não existem resultados científicos sem uma base teórica. A evidência empírica nunca é suficiente para convencê-lo do valor de um resultado, que precisa de uma explicação racional — o que significa que os processos envolvidos no fenômeno têm de estar analisados. Para David Harvey, depois de 1970, essa teoria tornou-se a marxista.(Claval, 2013, 73) Continuando, Claval (2013), em sua análise sobre as características da análise marxista na obra de Harvey, deixa claro, que Harvey utiliza os pressupostos marxistas para aclarar, a relação entre a reprodução do capital e a produção do espaço socialmente construído: “O método de Marx, que consiste em descer da aparência superficial dos eventos particulares em direção às abstrações reinantes sobre a superfície […], implica considerar // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 75 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior cada grupo de eventos particulares como internalização de forças subjacentes fundamentais que os guiam. O alvo do trabalho de pesquisa é identificar tais forças através da análise crítica e da inspeção detalhada de cada exemplo individual” (Harvey, 2010b, p. 209-210). O meio de eliminar o espaço? A análise do processo da exploração do trabalho pelo capital. A diferença entre o que o trabalhador recebe e o que ele produz enquanto mercadoria, a mais-valia, gera o lucro. Este mecanismo não é ciente para a ampliação e desenvolvimento do processo de acumulação. Assim as necessidades de ampliação da geração de lucros, através da reaplicação necessitam novas formas de investimento. Harvey determina que a criação de novos espaços urbanos, se caracterizada pela produção de infraestruturas que favorecem a maximização do excedente, ou seja, segue a lógica da acumulação original. A produção da cidade, para Harvey, é portanto função da reprodução do capital. consciente: a economia clássica ignorou-o porque ela só tratava das realidades empíricas. Ela não tinha a capacida- “O capitalismo, fundamenta-se como nos diz Marx, na de analisar os mecanismos implícitos. eterna busca de mais valia (lucro). Contudo, para produzir mais valia, os capitalistas tem de produzir excedentes de O teórico marxista tem uma posição diferente. Ele tem a produção. Isso significa que o capitalismo está eternamen- capacidade de entender os processos sociais no momento te produzindo os excedentes de produção exigidos pela em que a evolução econômica faz com que eles surjam; em urbanização. A relação inversa também se aplica . O capi- consequência, ele pode ver o que, para outros, permanece talismo precisa da urbanização para absorver o excedente oculto. É graças ao fato de que a consciência (concreto de produção que nunca deixa de produzir. dessa maneira do pensamento) das novas formas do real (concreto real) surge uma ligação íntima entre o desenvolvimento do capi- se desenvolve muito cedo na mente do bom teórico que talismo e a urbanização.” (Harvey,2014,p.30) ele pode entender as forças que transformam o mundo. Na medida em que a exploração dos trabalhadores resulta da compra de seu trabalho, é fácil eliminá-la por intermédio da supressão das relações capitalistas. Basta uma ação revolucionária.” (Claval, 2013, pp. 41-45) Tanto quanto é reincidente entre os teóricos marxistas o debate em torno das novas formas de conflito características do espaço urbano, Harvey propõe sua releitura a partir das necessidades da reprodução do capital, cujo excedente, produto da mais valia auferida através da produção industrial quando reinvestido no mesmo setor, mostra-se insufi- Em Harvey, essa articulação entre a produção do espaço urbano e o desenvolvimento capitalista, é uma das formas materiais mais importantes no processo de acumulação. Quando ocorrem as crises de superacumulação, e/ou superprodução industrial, que são por sua natureza cíclicas, os capitalista investem o excedente, não mais nos setores produtivos tradicionais, mas na produção de infraestruturas e equipamentos no espaço urbano, que permitam novas formas de apropriação para além da mais valia tradicionalmente obtida através da produção industrial. Essa prática não se resumo somente a especulação imobiliária, // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 76 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior e da supervalorização das características monopolísticas de espaços exclusivos produzidos para uso da elite urbana (Harvey,2014, cap. 4), como a criação de condomínios fechados, por exemplo. O investimento é concentrado na produção de espaços urbanos que futuramente permitam a geração de novos excedentes, seja através da valorização do solo, na especulação imobiliária “pura”, ou na diversificação das formas de seu uso e ocupação, criando novas categorias de serviços e necessidades, que irão gerar excedentes através da exploração da espoliação de setores trabalhistas não organizados, e sem tradição reivindicatória, como no caso dos Shopping Centers. “Afirmo aqui - diz Harvey, que a urbanização desempenha um papel particularmente ativo...ao absorver as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir em busca da mais-valia”. (Harvey, 2014, 33) Na medida em que os investimentos valorizam o espaço, no entanto, cria-se uma limitação - a valorização do espaço - para a continuidade dessa forma de apropriação. Os capitalistas então procuram novos espaços não valorizados, que possam aportar os excedentes gerados anteriormente. O solo urbano torna-se simultaneamente, objeto e realizador do excedente e obstáculo a sua obtenção, na medida em que a elevação dos preço, tanto do solo, como dos imóveis, inibe a continuidade do processo, nos níveis em que vinha se desenvolvendo. Procura então, novas oportunidades, em especial nas periferias e regiões suburbanas, onde a valorização ainda não ocorreu: “O capitalismo conduz à criação de equipamentos em certas áreas. Como resultado, o espaço torna-se mais rígido. Os preços da terra tornam-se mais altos...Para os capitalistas, essa evolução significa salários mais altos, lutas sociais mais frequentes com os sindicatos. Os custos da terra evoluem de acordo com o nível geral de vida. Para manter os seus lucros, os capitalistas só têm uma solução: investir em outros lugares onde o preço do solo é mais baixo, os operários permanecem sem organização sindical e a proteção social é menos forte. Daí a tendência de migração das zonas industriais: as regiões atraentes para o capital num certo momento tornam-se zonas repulsivas uma geração ou duas mais tarde.” (Claval, 2013, pp.45-46) Daí resultam os processos expulsórios que transferem grandes contingentes populacionais das antigas periferias, então valorizadas pelos investimentos privados e públicos, para locais cada vez mais distantes, e menos estruturados, longe do trabalho e dos centros de serviço. Esta expulsão se dá tanto a partir da oferta de valores tentadores para famílias carentes, como pelo o aumento dos custos indiretos como impostos, aluguéis, transporte, etc. É o que ocorre atualmente na Zona Leste da Capital paulista, em especial o bairro de Itaquera, tradicional bairro periférico da cidade, com características típicas das regiões dormitório. Uma sequência de investimentos públicos e privados, liderados pela construção de um grande estádio de futebol para a copa do mundo, tem atingido os antigos moradores de Itaquera, que não só não tem se apropriado dessa valorização, como tem sido expulsos para regiões muito mais distantes e desvalorizadas como Guaianazes, Cidade Tiradentes, Poá, ou Ferraz de Vasconcelos. Por outro lado, os trabalhadores que tentam apropriar-se desse pseudo desenvolvimento, empregam-se junto ao co- // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 77 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior mércio ou setores de serviço locais, recebendo salários significativamente inferiores aos dos centros tradicionais, mesmo que o preço final dos produtos e mercadorias oferecidos, sejam equivalentes ou em alguns casos, superiores aos dos grandes centros, ampliando a captação da mais valia. Chamamos atenção, no entanto, para o fato de que, ainda que em “Cidades Rebeldes” Harvey apenas tangencie o problema, não é desprezível a participação do Estado na exacerbação desse processo. Frequentemente a ação do poder público, longe de desenvolver políticas sociais para mitigar os danos causados pela produção expropriadora dos espaços, corrobora com essa prática. Concepções de planejamento urbano orientadas para o desenvolvimentismo imediatista, comuns em cidades grandes e médias, principalmente nos países em desenvolvimento, transportam fórmulas aplicadas em situações diversas daquelas em que foram pensadas, sem que se proceda a crítica de sua intervenção em realidades tão díspares. Os investimentos públicos, nesses casos, privilegiam a questão estética, e o desenvolvimento formal, contribuindo para a reprodução da lógica perversa do capitalismo monopolista ou seja, a “cor local” produzida pela construção da vida comunitária em situações adversas, ganha uma “maquiagem digerível”, transformando-se em símbolos de exclusividade. Porém os agentes que criaram esse caldo de cultura não mais são bem vindos, nessa paisagem reconfigurada. política excludente que rejeita boa parte do que é a globalização”, diz Harvey (Harvey, 2013,200). Referindo-se ao monopólio, isto é ao princípio marxista, de que o capitalismo é essencialmente monopolista, ou seja, define a “exclusividade” como principal forma de valorizar a mercadoria, a cor local deve, no entanto associar-se às características mais globais que a tornam identificáveis, como “objeto do desejo”, da classe dominante. Na concepção desenvolvimentista acrítica, a cidade deve construir seu desenvolvimento a partir da criação de uma “marca”, que traga a valorização necessária. “O sucesso na criação da ‘marca’ de uma cidade, - afirma Harvey , no entanto - pode requerer a expulsão ou erradicação de todas as pessoas ou coisas que não sejam adequadas a marca”. (Harvey, 2013, p.200) Mesmo quando o desenvolvimento urbano é pensado através de projetos urbanísticos, supostamente inclusivos, mas que não destroem a lógica do que Harvey chama de “desapropriação”, o “tiro” pode acabar saindo pela culatra, a fixação da população em seu local de moradia, através da aplicação rigorosa da garantia de direitos normativa, não estanca o processo de transferência: “E o mesmo acontece com a proposta aparentemente progressista de conceder direitos de propriedade privada aos ocupantes, oferecendo-lhes os bens necessários para sair da pobreza. Esse é o tipo de proposta atualmente debatida para as favelas do Rio de Janeiro, mas o problema é que “Se esses projetos mais restritos de estética e práticas discursivas excludentes se tornam dominantes, seria difícil comercializar livremente o capital coletivo simbólico, criado, pois suas qualidades muito especiais o situariam, em grande medida, fora da globalização e dentro de uma cultura os pobres , atormentados pela escassez de seus rendimentos e pelas consequentes dificuldades financeiras, são facilmente convencidos esses bens a preços relativamente baixos...Aposto que se as tendências atuais prevalecerem, em quinze anos todos aqueles morros ocupados por fa- // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 78 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior velas estarão repletos de condomínios arranha-céus com vistas deslumbrantes para a Baía de Guanabara, enquanto os antigos favelados estarão morando em alguma periferia distante” (Harvey, 2014,p.56) Em núcleos habitacionais que passa por processos de urbanização, para o morador, até então, a moradia se constituía em exclusivo valor de uso, uma vez que os barracos erguidos em situação precária, e mantidos em áreas deterioradas, na em sua maior parte não eram mercadorias comercializáveis. Quando o núcleo recebe investimentos públicos que agregam valor ao todo e a unidade, convertem-se imediatamente em mercadorias com valor de troca, ou seja inserem-se no mercado. Mesmo que esse valor, para as classes de maior renda, sejam irrisórios, para os proprietários originais, a venda do barraco, proporciona um “fôlego” no atendimento emergencial de suas outras necessidade, como alimentação, vestuário, educação, mobilidade, etc. Em síntese, na urbanização das favelas os investimentos públicos, via de regra, melhoram a condição de vida estrutural das pessoas (mais saúde, e mais dignidade, inclusive), mas não resolvem a lógica perversa, de serem cotidianamente espoliados, em outras áreas, pelo processo de acumulação. Para Harvey, são, entre outros, justamente os desapropriados pelo urbanismo desenvolvimentistas, que moverão no ostracismo da exclusão, as engrenagens da revolução urbana. A cidade é arena onde as forças anticapitalistas e neoliberalistas, se confrontarão ainda por muito tempo. 2. A cidade e as lutas sociais Harvey, neste e em trabalhos anteriores, critica a rigidez com que o pensamento marxista tradicional trata a questão da luta de classes, e dos conflitos dela decorrentes. O trabalho industrial, graças a elevação da produtividade, do desenvolvimento tecnológico e da especialização, vem ocupando, em termos quantitativos, um espaço cada vez mais reduzido no universo da mão de obra urbana. Novas formas de trabalho tem surgido e se desenvolvido, de maneira mais rápida e efetiva, do que o trabalho industrial. A economia urbana tem mostrado que o crescimento, por exemplo, do setor de serviços, é mais expressivo, não só na criação de postos de trabalho, mas na rápida inclusão da mão de obra não especializada no universo da população economicamente ativa. Tornou-se também significativamente mais lucrativa, na medida que a desorganização desses trabalhadores, e seu elevado nível de desinformação, impedem ações reivindicatórias e lutas sindicais tornando-os presa fácil da espoliação e da superexploração. Basta observar o que se passa entre os trabalhadores das famigeradas empresas de “telemarketing”, em tudo similares as formas arcaicas de trabalho do início da revolução industrial. A tradicional configuração, “burgueses x proletários”, no qual os operários desempenham o papel de vanguarda no combate a exploração capitalista e ao processo de individualização da sociedade, já não se constitui na referência lógica da luta de classes. A proximidade dos operários com o processo de espoliação de seus salários, quando, libertos do fetiche da mercadoria, e do processo de alienação, que compara o valor final daquilo que produz, e o quanto é apropriado por si mesmo, desenvolve a aguda consciência de sua exploração. Esse processo foi diluído, de um lado pela evolução salarial produto da organização sindical, e // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 79 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior de outro pela crescente hegemonia do pensamento liberal, que define como “justo”, que quem detém os meios de produção, possa apropriar-se daquilo que foi gerado por sua propriedade. o subproletariado das favelas para sobreviver à crise. Uma nova forma de capitalismo se desenvolve: o capitalismo por espoliação. Tal interpretação é muito diferente da oferecida pelo O Capital. A exploração cessa de aparecer como resultado de Do espaço urbano, criado a partir da lógica da reprodução do capital, emergem novas formas de espoliação. A cidade contemporânea, tendo em vista a diversidade de funções das quais se apropriou, desorganiza as relações de produção, no que se refere a organização dos trabalhadores. As novas formas de “ganhar a vida”, assumem tamanha diversidade, que torna-se extremamente difícil organizar esses trabalhadores em torno de causas coletivas, ainda que os interesses sejam comuns. Por isso, os capitalistas, encontram na produção do espaço urbano, o meio ideal, para gerar novos excedentes, a partir tanto do afastamento dos trabalhadores dos centros de decisão, como das novas formas de exploração criadas a partir da reorganização do espaço: “David Harvey deve a Hannah Arendt a seguinte leitura: “[Arendt] deu-se conta pela primeira vez que o pecado original da pilhagem pura e simples que, séculos antes, tinha permitido ‘a acumulação original do capital’ (Marx) e preparado a acumulação futura, teve finalmente que se repetir processos puramente econômicos. Ela tem uma dimensão política fundamental: é graças ao fato de que os capitalistas têm um poder de dominação sobre as mulheres, os marginais do mundo industrializado ou sobre as classes pobres do terceiro mundo, que eles mantêm a possibilidade de obter lucros.” (Claval, 2013,pp. 74-75) Harvey, no entanto, defende em “Cidades Rebeldes”, que essa mesma configuração, que facilita ao domínio global do capital expandir suas formas de apropriação e espoliação, que desorganiza e desideologiza os assalariados, pode converter-se no caldo de cultura necessário, ao desencadeamento de mobilizações urbanas de caráter revolucionário, tal como ocorreu na “Comuna de Paris”, exemplo sempre presente em sua obra e na de Lefebvre. Os movimentos sociais, que despontam nas grandes metrópoles mundiais, são segundo ele o embrião de um processo irreversível, que se oporá, as formas mais arcaicas e particularmente selvagens de expropriação dos mais pobres: se não quisesse ver morrer subitamente o motor da acumulação... “A luta anticapitalista no sentido marxista formal, é funda- O que Arendt ensina a David Harvey é que “No capitalismo, mental e apropriadamente interpretada como sendo em existe uma contradição central entre lógicas territoriais e relação da abolição da relação de classe entre capital e lógicas capitalistas do poder” (Harvey, 2010b, p. 229). No trabalho na produção que permite a produção e a apro- mundo atual, o capitalismo não tem mais a possibilidade de priação da mais valia pelo capital. O objeto último da luta criar lucros somente a partir da produção industrial, como anticapitalista é a abolição dessa relação de classe e de no tempo do fordismo. Ele tem de explorar as diferenças: tudo que acompanha , pouco importando onde ocorra. por isso ele envolve mulheres, imigrantes marginalizados e Na superfície, esse objetivo revolucionário parece não ter // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 80 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior nada a ver com a urbanização em si. Mesmo quando essa luta deva ser vista, como invariavelmente deve, através das perspectivas de raça, etnia, sexualidade e gênero, e mes- indivíduo na sociedade a partir de suas conquistas individuais, e não da posição estratégica que ocupa na produção bem estar coletivo. Afirma Bourdie: mo quando ela se desenrola mediante conflitos urbanos interétnicos, raciais ou de gênero nos espaços vitais da ci- “ La teoria de las clases debe, pues, superear la oposicíon dade, a concepção fundamental é que a luta anticapitalista entre las teorias objetivistas que identifican ls clases (si- deve em última análise, chegar as entranhas do sistema quiera para demosntrar por absurdum su inexistência) con capitalista e extirpar o tumor canceroso das relações de grupos discretos, meras poblaciones enumerables y sepa- classe na produção.” (Harvey, 2014, p.218) rables por fronteras objetivamente inscritas en la realidad, y las teorias subjetivists (o, si, prefuere, marginalistas) que re- A própria existência de classes sociais e em conflito no espaço urbano é questionada por parte dos planejadores vinculados ao pensamento conservador. Alegam que as diferenças econômicas entre as diversas categorias de assalariados, empreendedores de porte reduzido, são hoje estatisticamente indefinidas, e que não seria o caso de hodiernamente proclamarmos a luta de classes como motor econômico da sociedade, uma vez que os antagonismos, entre trabalhadores assalariados e proprietários dos meios de produção, pela variedade de segmentos envolvidos, se dissolveu numa miríade de questões econômicas, políticas, culturais e sociais subjetivas, que não podem ser quantificadas a partir de pesquisas objetivas. Portanto, se não podem ser claramente definidas pela lógica científica, não existem, na forma tradicional proposta pelo marxismo. Bourdie, oportunamente ironiza este ponto de vista, citando Pareto, “Daria igual señalar, prosigue Pareto, que no existem viejos porque no se sabe a qué edad, en qué momento de vida, comienza la vejez.” (Bourdie, 2013, p.202). Transformar os conflitos de classe, na sociedade capitalista em mera questão estatística, é capitular claramente com a concepção neoliberal, que define a situação econômica do ducen el “orden social” a una suerte de clasificacíon coletiva obtenisa de la sumatoria de clasificaciones individuales, enclasadas y enclasantes, merced a las cuales los agentes se clasifican y clasifican a los demás.” (Bourdie,2013,p.201) Harvey afirma, portanto, que a luta de classes não foi abolida pela evolução do capitalismo, como declara a ideologia neoliberal. No que se refere as distintas formas que os conflitos assumem na construção de nosso cotidiano contemporâneo, ela disseminou-se e permeou, outras formas de dominação, que tem como origem o capital. Agrupamentos sociais diversos, reunidos sob as distintas formas de combate a exploração, surgem nas grandes cidades corriqueiramente, e muitas vezes desaparecem com a mesma efemeridade, tendo em vista que as condições concretas que lhes deram causa, também foram efêmeras. Outros porém, ligados a extensão da lógica reprodutiva, e as estratégias históricas de dominação de classe (como o antipatrimonialismo, ou a luta feminista, por exemplo), permanecem enquanto essas estruturas não forem superadas. As lutas sociais que transbordam o universo da relação capital/trabalho, tendem a mascarar a primazia do conflito econômico que está sob sua superfície, mas não iludem o observador atento: // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 81 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior “Uma palabra final acerca del modo en que encaramos las tareas más urgentes de la izquierda. Várias vozes se an oído recientemente proclamando:”Volvamos a la lucha de clases!” Elas sostienen que la izquierda se ha identificado demasiado estrechamente con cuestiones “culturales” y que ha abandonadola lucha contra las desigualdades eocnómicas...Es verdad que la evolucion de los partidos de izquierda ha sido de un caráter tal que su principal preocupacion ha passado a ser las classes médias, en dtrimento dos trabajadores.Pero isso non sse debe a ninguna unilaterlizacíon de los problemas de “identidad”, sino su incapacidad de concebir una alternativa ao neoliberlismo y su aceptacíon acrítica de los imperativos de “flexibilidad”. La solucion no es abandonar la lucha “cultural” para volver a la política real. Una de las tesis de Hegemonia e Stratégia Spocialista es la necesidad de crear una cadena de equivalências entre las varias luchas democráticas y en contra de las diferentes formas de subordinacíon. “ (Laclau e Mouffe, 2011, 19) Em nenhum momento, devemos nos afastar do pressuposto de Marx de que é a partir das relações econômicas que se desenvolvem as demais relações de produção, ou como propõe Marx, “os modos de produção, determinam a um conjunto de relações que independente de sua vontade correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais”. São essas relações de produção, originárias da “produção da vida material, que condicionam o processo da vida social política e espiritual em geral”. Assim quando essas relações de produção, atingem um estágio em que “tornam-se um obstáculo”, ao desenvolvimento da vida material, o capitalismo encontra uma forma de superá-las (Marx, 1977, p.301). Portanto, quando as relações de produção, que determinam as relações sociais em nossa vida cotidiana, tornam-se empecilho a geração de excedentes pelo processo de acumulação, os capitalistas encontram formas de superá-la, e segundo Harvey, é através da produção do espaço urbano lucrativo, que esse excedente é expandido e reaproveitado. Mas em que medida essa questão se relaciona com os movimentos sociais? As agruras urbanas (ambientais, entre outras),nessa linha de raciocínio, são então metamorfoses da exploração originária promovida pelo processo acumulativo. As exploração do trabalhador assalariado como vimos, através da apropriação da riqueza que produz, se estende a todas as formas da vida urbana. As classes mais pobres são (segundo Harvey) “desapropriadas” de seu patrimônio natural, que é transferido para o processo de acumulação através da valorização do espaço de convívio e moradia, e da elitização dos espaço construído. Portanto, os movimentos sociais de base urbanística (moradia, participação, mobilidade, etc.), respondem a mesma lógica das lutas contra a apropriação indevida da riqueza produzida coletivamente e apropriada por poucos, como no caso dos trabalhadores assalariados. Para Harvey, a mudança da configuração dos conflitos de classe, bem como o local onde eles se desenvolvem no capitalismo do Século XXI, é o dará fôlego, a luta contra hegemônica pela justiça social, deslocando o eixo das mobilizações classistas industriais, para o proscênio urbano: “O que importa para o conjunto da classe capitalista se o valor é extraído dos circuitos comercial e monetário, e não diretamente do circuito produtivo? A lacuna entre o lugar onde se produz a mais-valia e aquele onde ela se realiza é // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 82 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior crucial tanto teoricamente quanto na prática. O valor criado na produção pode ser recuperado dos trabalhadores em benefício da classe capitalista por aluguéis altos cobrados pelos proprietários... Em segundo lugar a própria urbanização , é produzida. Milhares de trabalhadores, participam de sua produção, e seu trabalho gera valor e mais valia. Por que então não concentrar na cidade em vez de na fábrica, como lugar de excelência da produção da mais-valia?...Nesse momento da história nas partes do mundo caracterizadas como capitalismo avançado, o proletariado fabril convencional foi radicalmente diminuído. Então agora temos de fazer uma escolha: lamentar a perda da possibilidade de uma revolução porque aquele proletariado desapareceu, ou mudar nossa concepção de proletariado para incluir as hordas não organizadas de produtores da utilização (do tipo que se mobilizava nas marchas pelos direitos dos imigrantes) e explorar suas capacidades e forças revolucionárias específicas” (Harvey,2014,pp.232-233). 3. O caráter anti hegemônico dos movimentos sociais urbanos Os ideais socialistas perderam considerável força hegemônica, junto as populações, diante das investidas globais da doutrina neoliberal. As formulas heterodoxas dessa corrente tem, até o momento, demonstrado uma capacidade frequentemente inabalável de recuperar momentaneamente o capitalismo de suas crises, cada vez mais frequentes. A ideologia neoliberal propõe uma visão de sociedade onde os indivíduos são vistos como sujeito particular, não coletivo. O ser humano é proposto como individualidade, e sua identidade pessoal, como um universo próprio e complexo, apartado do conjunto dos demais indivíduos. Essa compreensão estrutura todo o pensamento burguês dos Século XVIII e XIX, calcado na luta contra o absolutismo monárquico, e propõe a liberdade, como elemento essencial do progresso humano. Um dos aspectos formais dessa liberdade é o reconhecimento de que o homem possui direitos pessoais inalienáveis, que devem ser garantidos pelo direito positivado (Código de Napoleão de 1804, por exemplo), e inatingíveis pelo Estado. A isonomia legal, apregoada pela burguesia como a universalização dos direitos, vem para substituir ilusoriamente, as demandas igualitaristas das classes mais pobres. O perspicaz escritor frances do Século XIX, Anatole France, ironiza essa pretensa igualdade normativa: “A lei em sua majestática igualdade, proíbe ao pobre como ao rico dormir sob as pontes, mendigar nas ruas e roubar pão”3. Outro característica importante do ideário liberal burguês, é a liberdade econômica, ou seja, a autonomia dos agentes sociais em administrarem sua vida econômica sem a intervenção do Estados, e limitados tão somente pelas leis naturais do mercado, definidas por Smith e Ricardo.Sem dúvida esse é o pilar estrutural do liberalismo, e ainda hoje seu principal preceito. É também produto da luta da burguesia contra o controle da atividades econômica, e a imposição de limitações competitivas ao comércio e a industria, determinadas pelo absolutismo. O capitalismo, no período em clara consolidação, necessita da competição e da liberdade de iniciativa para progredir. O liberalismo transforma a sociedade numa paradoxal composição de “individualidades coletivas”. A visão liberal burguesa, que tem em Locke, seu brilhante representante no período, atribui sempre ao esforço indivi- // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 83 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior dual, o sucesso ou fracasso, do progresso humano. Nesse sentido a sociedade, em termos econômicos, não é mais do que um corpo de agentes particulares, que ao desenvolverem um esforço pessoal em busca de sua própria felicidade, estão produzindo de maneira natural, a felicidade coletiva, como no prega o pensamento utilitarista de Jeremy Bentham (1738-1832), e Stuart Mill ( 1806-1873). Mas a concepção liberal que vinha a passos largos, dominando os países na Europa e em algumas outras regiões, fracassou em apresentar alternativas viáveis as crises capitalistas da primeira metade do Século XX, e as investidas do modelo socialista que no início do Século XX, também apresentava-se como alternativa ao capitalismo, e suas mazelas. A partir daí, surgem novas formulações para “salvar” o capitalismo como o Keynesianismo, o Estado do Bem Estar Social, etc. Por outro lado, como um “camaleão”, o neoliberalismo muda constantemente de feições. Não se constitui num arcabouço teórico definido, com pressupostos e objetivos claros, mas num conjunto de medidas que se adaptam as necessidades do capital. Seus detratores e adversários, em especial no campo progressista, tem dificuldade em combatê-lo, pois com exceção de algumas poucas “recomendações” bastante conhecidas, e exaustivamente repetidas (o “decálogo do consenso de Washington, por exemplo), seus demais caminhos são obscuros e erráticos. Daí a dificuldade de criar mecanismos e ferramentas para combatê-lo. Em entrevista recente, ao Boletim Campineiro de Geografia, o geógrafo Jamie Peck, de postura antineoliberal, afirma: “Temos que entender que o neoliberalismo é o que eu chamaria de uma teoria da crise — ele explora situações de crise, se prolifera na crise e, durante esse tempo em que tantos estavam dizendo que seria sua morte, meu medo No pós guerra entretanto, com o acirramento da disputa entre capitalistas e socialistas, e as sucessivas arremetidas dos capitalistas contra um Estado regulador, além da necessidade da retomada das atividades produtivas, fez ressurgir com “força total”, a ideia da sociedade como um cenário onde os homens concorrem entre si, e somente através da criatividade e dos talentos individuais, podem obter seu progresso, independentemente da ação coletiva. Ressurge o liberalismo, que, com novas estruturas, agora chamado de neoliberalismo, restaura as propostas burguesas originais de que as leis de mercado acabam por resolver autonomamente os problemas gerados pela crises sistêmicas. A força do neoliberalismo vem justamente de sua capacidade de criar novos e repetidos mecanismos, ainda que efêmeros, para o enfrentamento dessas crises. era de que isso seria outro renascimento, e diria que foi exatamente isso que aconteceu. O neoliberalismo tem sete vidas, pois não é um projeto fixo, ele constantemente se autorreproduz através da crise, então esses são momentos posteriores à mutação do projeto, não o seu colapso. Isso nos força a considerar algumas questões difíceis sobre as bases nas quais o neoliberalismo pode ser definitivamente contestado ou transformado. “ (Peck, 2012,p.367) Essa tese é reforçada, com uma crítica do geógrafo à forma como alguns pensadores de esquerda, pensam a superação do neoliberalismo a partir dos mesmos pressupostos de sua concepção, com ideias “quase keynesianas”, como Paul Krugman e Joseph Stiglitz (Peck, 2012,p.368). Para Peck não se constituem realmente em alternativas trans- // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 84 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior formadoras e universais para o neoliberalismo a serem elaboradas pelo pensamento de esquerda, como a redistribuição de social e espacial, de movimentos em direção a propriedade coletiva, e um controle democrático da economia (Peck, 2012,p.367). Ainda segundo Peck, enquanto não houver uma elaboração coletiva e instrumental de alternativas práticas e teóricas que sirvam objetivamente ao combate contra-hegemônico, o neoliberalismo manterá sua hegemonia, e sua capacidade de ressurgimento, bem como terá, como ideologia dominante, prisioneiros os corações e mentes dos espoliados urbanos e de qualquer espécie: “Essa é uma das razões para que, após a crise financeira, eu tenha dito que o neoliberalismo pode estar entrando em uma fase “zumbi”, na qual voltaria dos mortos. Agora estamos sendo avisados de que temos que usar o remédio do neoliberalismo porque é o único remédio disponível, é mais um “nós temos que fazer”, “sabemos que isso vai nos machucar”. É isso que estão dizendo às pessoas na Grécia e na Espanha: que não temos alternativa além de fazer isso. Ninguém mais diz “isso será ótimo para você”, “você que precisamos privatizar, que precisamos desregular, que precisamos de mais espaço para as forças de mercado e que a longo prazo isso seria melhor. E nós sabemos, através de uma amarga experiência, que não é assim. “ (Peck, 2012, p.373) A hegemonia neoliberal, no entanto, vem se mantendo viva e conquistando regularmente a ampliação de seu espaços, entre todas as classes sociais. Para combatê-la, é necessário, como apontamos a clara compreensão de seus mecanismos e suas formas de penetração. Para Peck, se a esquerda tem encontrado algumas soluções locais eficientes para combater as propostas neoliberais, tem falhado em traduzir essas alternativas locais em formulações globais, que possam ser traduzidas universalmente de forma a estimular a mobilização social. O mesmo pensa Boaventura de Souza Santos, que em seu recente trabalho, “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos”, onde aborda a problemática, de como o pensamento progressista pode contrapor-se, criar ações contra hegemônicas, em um cenário de dominação conservadora: irá gostar”, “será bom para todos nós”. Dizem que “temos de fazer isso para colocar as finanças públicas em ordem”. “Considero ser hegemônica, no nosso tempo, uma rede Estamos em um momento no qual o neoliberalismo está multifacetada de relações econômica, sociais, políticas, sendo vendido negativamente, não porque esse é o modo culturais e epistemológicas desiguais baseadas nas inte- ótimo de organizar as coisas, mas porque é a única solução rações entre três estruturas principais de dominação - ca- prática para os problemas que estamos enfrentando atual- pitalismo, colonialismo e patriarcado - que definem sua mente... Os zumbis buscam corpos de sangue quente, e os legitimidade(ou dissimulam sua ilegitimidade) em termos zumbis neoliberais continuarão a procurar por esses cor- do entendimento liberal do primado do direito, democracia pos, continuarão a atacar os mesmos lados. Continuarão e direitos humanos, visto como a personificação dos ideais a marcha contra o mundo social e farão as mesmas coisas de uma boa sociedade. Paralelamente, considero ser con- de novo e de novo, como zumbis. Nos dirão novamente tra hegemônica, a mobilização social e política que se traduz em lutas movimentos ou iniciativas , tendo por objetivo // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 85 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior eliminar ou reduzir relações desiguais de poder e transfor- partidos começando a emergir – o Syriza na Grécia, por má-las em relações de autoridade partilhada,recorrendo, exemplo. O que me preocupa é o que comento no livro para isso a discursos e práticas que são inteligíveis trans- como um estado de alienação em massa, que está sen- nacionalmente mediante a tradução intercultural e articula- do capitalizado amplamente pela direita. Há sim, portanto, ção de ações coletivas.” (Santos, 2014, p.34) alguma urgência em tratar da questão de como nós nos institucionalizaremos como força política, para resistir con- Segundo Harvey, atualmente se apresenta como tarefa urgente das forças anticapitalistas, a transformação do conjunto de manifestações e insurreições populares que despontam na grandes cidades do mundo, e que tem tido uma caráter efêmero e pouco organizativo, em fóruns influentes de debate, que possam viabilizar novas perspectivas de transformação, e participação nos processos decisórios, com vistas a transformar o espaço urbano de mero instrumento da reprodução do capital e na geração da mais valia, em um espaço pluralista e inclusivo. Em entrevista recente, concedida ao Boletim Eletrônico “Outras Palavras”, sobre seu mais novo livro, “Seven Contradictions and the End of Capitalism”, Harvey afirma, recuperando aquilo que já havia determinado em “Cidades rebeldes”, que o apartamento dos trabalhadores da política institucional, a partir dos mais diferentes processos alienantes, como a segregação espacial, pode ser revertido se houver um esforço coletivo das forças progressistas, e um encaminhamento eficiente das manifestações espontâneas: “Uma das coisas que temos de aceitar é que está emergindo um novo modo de fazer política. No presente, ainda é muito espontaneísta, efêmero, voluntarista, com alguma relutância a deixar-se institucionalizar. Como poderá ser institucionalizado é, creio eu, questão aberta. E não tenho resposta para isso. Mas é claro que, de algum modo, terá de institucionalizar-se ou ser institucionalizado. Há novos tra um retrocesso de direita e atrair parte significativa do descontentamento que está nas ruas e empurrá-lo numa direção progressista, não em direção neofascista... A alienação brota, entendo eu, de um sentimento de que temos capacidade e poder para ser alguém muito diferente do que é definido por nossas possibilidades. Daí surge a questão de até que ponto o poder político é sensível à criação de outras possibilidades? As pessoas olham os partidos políticos e dizem “Aqui, não há nada que preste.” Há, pois, a alienação que empurra para longe do processo político, que se manifesta em comparecimento declinante nas eleições; há a alienação para longe da cultura da mercadoria, também, que cria uma carência e o correspondente desejo por um outro tipo de liberdade. As irrupções periódicas que foram vistas pelo mundo – parque Gezi em Istanbul, manifestações no Brasil, quebra-quebra em Londres em 2011 – obrigam a perguntar se a alienação pode vir a ser uma força política positiva. E a resposta é sim, pode, mas não se vê nada parecido nos partidos ou movimentos políticos.” (Entrevista com Harvey, em “Outras Palavras”, 2014). Conclusão Olhando para o atual cenário de nossas cidades a resposta parece mais do que óbvia do que nunca. Como vimos, a cidades são o cenário-espelho da desigualdade e da injus- // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 86 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior tiça social. O próprio Piketty, ao apresentar sua exaustiva pesquisas para compreender a desigualdade contemporânea, afiança que: “A apropriação do capital parece se tornar cada vez mais concentrada neste início do Século XXI, isso dentro do contesto de tendência de alta da relação capital/ renda e de baixo crescimento”.(Piketty,2014,p.328) oportunidades únicas no sentido de que sejam criadas as condições políticas, para as transformações: “Los periódicos estallidos de protesta contra la expúlsion de los sujetos del âmbito de la toma de decisiones políticas y la produccíon compulsiva de espectadores (uno podría sospechar, el verdadero detonador de los happe- Porém, acredita Harvey, da mesma maneira com que a desigualdade assola a vida urbana, é possível, como afirma o autor, corromper esse sistema espoliativo em seu próprio interior (o que Harvey chama da “teoria do cupim”), ou seja a semente de uma nova relação social nas cidades se dará a partir do momento em que a hegemonia do pensamento neoliberal for rompida, e a população urbana, tomar consciência de que suas mazelas são produto de um sistema que visa unicamente a geração de mais valia e a reaplicação dos excedentes, e não o bem estar da população. nings “antiglobalizacíon” de estilo guerrillero) parecen ser la única alternativa , terriblemente inadecuada, a la passiva aceptacíon del estado de cosas imperante. Atraen la atención, llaman a reflexionar sobre los riesgos que estan acechando; as veces logran torcer el brazo de los poderosos en algumas questiones en discusión. A fin de contas , sin embargo, con toda su vehemencia, su incidencia, en la balanza de poderes es mínima, por más valerosos que sean sus actores. Por otra parte, un compromiso firme a largo plazo, para la accíon colectiva, que pretenda atacar las mismas raízes de la miséria humana, nacido en el seno Os pressupostos para que a revolução urbana possa acontecer, segundo Harvey, são a possibilidade de tornar as manifestações populares, que traduzem a insatisfação generalizada da população com a forma como a vida urbana vem sendo conduzida (não apenas pelo estado, mas pela apropriação privada do território), e são em sua maioria efêmeras e politicamente eficazes num meio eficiente com vistas a arregimentar as massas populacionais não organizadas, em torno de objetivos comuns, e do combate a ideologia do lucro e da competição individualista como forma exclusiva de organizar a vida social. de este nuevo vacío ético global, tiene una apariencia nebulosa. Es la misma nebulosa que envuelve a los anuncios del tipo “fin de la historia” de Fukuyamaen la bruma de la credibilidad. Pero sólo un compromiso como ése, un compromiso firme a largo plazo merece ser llamado “la oportunidad política por exelencia”, como propone Luc Boltanski, “un ato que transforme al espectador en actor”. Ningún otro compromiso bastaria.” (Bauman, 2013, p.266) Referências Bibliográficas A guisa de conclusão, fazemos nossas as palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que corroborando com a proposta central de Harvey, vê os movimento sociais, como BAUMAN, Zigmunt. “La Sociedad Sitiada”, Fondo de Cultura Economica de Argentina, Buenos Aires, 2007 // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 87 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Movimentos urbanos e direito a moradia: comentários sobre “as cidades rebeldes” de david harvey // Irineu Bagnariolli Junior BENEVOLO, Leonardo.“História da Cidade”, São Paulo, Editora Perspectiva, , 1997 BOURDIE, Pierre.“Las Estratégias de la Reproducíon Social”, Grupo Editorial Siglo Vinteuno, Buenos Aires, 2013 CLAVAL, Paul. “Marxismo e geografia econômica na obra de David Harvey”, Espaço e Economia, Revista Brasileira de Geografia Econômica, Ano II, Número 3, Março de 2013, disponível em: http://espacoeconomia.revues.org/570. 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Citado em “Titãs do Humorismo”, Coleção Titãs, Livraria “El Ateneo” do Brasil, Rio de Janeiro, 1961, p.251. 89 // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015