XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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MOVIMENTOS DE CORPOS DE ALUNOS(AS) QUE VIBRAM NA CRIAÇÃO
DO CONHECIMENTO COMO O MAIS POTENTE DOS AFETOS
Tania Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
(Universidade de Vila Velha – ES)
Resumo
A pesquisa busca analisar, nos movimentos, nos fluxos, nas intensidades da vida vivida
no cotidiano escolar, as micropolíticas: afetos, afecções, desejos, enfim, as relações, os
encontros, onde os processos e modos de subjetivação se relacionam com o político, o
social, o cultural, nos quais são engendrados os contornos da realidade em um
movimento de criação de vida coletiva, que pulsa nos encontros dos corpos que afetam
e são afetados. Apresenta como campo problemático: o cotidiano escolar como campo
possível para a potência micropolítica, engendrada nos encontros, nos afetos e afecções;
e os movimentos de corpos de alunos e alunas como potência de vida, causando
ressonâncias na invenção de um currículo a partir da relação com o outro e na criação
do conhecimento como o mais potente dos afetos. Utiliza como intercessor teórico,
Spinoza (2008), e adota como aporte metodológico, a cartografia no/do/com o cotidiano
escolar, acompanhando os fluxos, as movimentações, as relações compartilhadas, as
redes de conversações com os sujeitos praticantes de uma escola municipal de Vitória
(ES). Apresenta que os movimentos de alunos e alunas são vibrantes na criação da vida
e estes movimentos são potentes para se pensar a escola tal como ela é - pulsante e
intensa. Alunos e alunas, a todo o momento, estão da sua maneira, criando/produzindo
formas para que a ação educativa seja possível, mesmo que seja invisível a alguns, mas
tão visível para aqueles que, em seus movimentos, em seus corpos vibram, causando
ressonâncias à medida que vão inventando conexões, relações, encontros, existências
singulares, instáveis, mutantes e pulsantes, no qual o conhecimento é o mais potente dos
afetos.
Palavras-chave: Afetos. Afecção. Conhecimento. Cotidiano escolar. Currículo
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Movimentos inicais...
[...] A importância de uma coisa não se mede com
fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.
[...] A importância de uma coisa há que ser medida
pelo encantamento que a coisa produz em nós.
Manoel de Barros
O desejo que impulsiona esta escrita está nos movimentos, nos fluxos, nas
intensidades da vida vivida no cotidiano escolar, enredada nas micropolíticas: nos
afetos, afecções, desejos, enfim, nas relações, nos encontros, onde os processos e modos
de subjetivação se relacionam com o político, o social, o cultural, através dos quais são
engendrados os contornos da realidade em um movimento de criação de vida coletiva,
que pulsa nos encontros dos corpos que afetam e são afetados, entendendo o encontro
como acontecimento, com diferentes intensidades e pulsão de vida, que supõe diferença,
divergência, dissonância: encontro como política, sendo que a potência política está na
invenção de possíveis, de movimentos que possibilitam criar um ethos ético-político, na
criação de outras formas de vida, na criação da vida como uma obra de arte, da vida
na/da escola.
Assim, o objetivo desta escrita é pensar - através dos movimentos, encontros,
afetos, afecções e desejos vividos por alunos e alunas no cotidiano escolar - como o
currículo vai engendrando fluxos, mobilidades, para além do materializado pelas grades,
programas, projetos curriculares. Pensar em um “currículo-relação”, currículo como
fluxos, como movimentos, desejando articular “[...] um conhecimento sobre a vida,
comovente, aquele que move-mente” (GARCIA, 2007, p.104), movimentando,
deslocando conceitos, idéias, conhecimentos fazendo-os “[...] dançar antes do que
marchar axiomas plenos de certeza” (GARCIA, 2007, p.104).
O dispositivo da pesquisa cartográfica possibilitou acompanhar os movimentos
das linhas desejantes de alunos e alunas, de diversas séries do ensino fundamental de
uma escola pública do município de Vitória, Espírito Santo, que ousam expressar uma
paisagem transbordante de intensidades, fluxos, e por que não dizer, de vida?
Movimentos de corpos de alunos e alunas que vibram e causam ressonâncias à medida
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que vão inventando conexões, relações, encontros, existências singulares, instáveis,
mutantes e pulsantes.
Como intercessor teórico que possibilitou a criação de agenciamentos apresento
Spinoza para problematizar o cotidiano escolar como campo possível para a potência
micropolítica, engendrada nos encontros, nas redes de conversações, enfim, nos afetos e
afecções e suas intensidades e possibilidades para a criação de vida que pulsa e que
torna possível pensar na invenção de processos nos quais o conhecimento seja o mais
potente dos afetos.
Apresento, a seguir, alguns movimentos experienciados a partir dos
agenciamentos criados com Spinoza e com a produção de vida de alunos e alunas a
partir de alguns dispositivos criados, por nós, pesquisadores, para estabelecer algum
tipo de relação com os alunos, tais como: filmes, contação de histórias, desenhos,
músicas,
pinturas,
brincadeiras,
jogos.
Nosso
objetivo
consistia
em
possibilitar/incentivar/disparar redes de conversação nas quais pudéssemos produzir
encontros/relações e também entrar nas redes criadas por alunos e alunas para
experimentar a potência dos afetos e afecções vividas no cotidiano escolar.
Movimento Um: O corpo, a potência e os afetos
Às vezes, na aula, a tia fala uma coisa e eu fico
viajando [...] parece que eu tô em outro mundo [...].
É muito legal! (Aluno 3ª série)
Como o cotidiano escolar pode ser problematizado como campo possível para a
potência micropolítica, engendrada nos encontros, nos afetos, afecções? Que
movimentos de corpos de alunos e alunas aumentam a potência de vida, causando
ressonâncias na invenção de um currículo a partir da relação com o outro?
Segundo Spinoza (2008), o que deve ser conhecido pelo homem são os afetos humanos,
e a sua proposição de uma ética do conhecimento implica em conhecer para ser afetado,
e ser afetado para que possamos viver felizes. São os afetos humanos que explicam os
comportamentos, suas tristezas, suas felicidades... Trata-se, aqui, de uma ética que
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implica conhecer/aprender quais são os nossos afetos, como afetamos e como somos
afetados, ou seja, trata-se de conhecer/aprender o que nos constitui, o que nos afeta, o
que aumenta ou diminui a nossa potência.
Spinoza define “afeto”, mostrando que este é indissoluvelmente afecção
corporal: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir
é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas
afecções” (SPINOZA, 2008, p. 163). Desta forma, mesmo uma simples alegria é no
corpo uma afecção que aumenta ou estimula sua potência de agir, e na mente é uma
ideia que aumenta ou estimula sua potência de pensar.
Para Spinoza o corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza
diferente), cada um dos quais é também composto e afetado por outros corpos de várias
maneiras:
“Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequentemente, o
próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas maneiras”
(SPINOZA, 2008, p. 105). Assim, o corpo é concebido como uma pluralidade, através
de uma série de trocas com o ambiente, ou seja, o corpo pulsa a partir de e nos
encontros com outros corpos que afetam e são afetados.
Devido ao fato de vivermos em relação, sendo esta que nos constitui ─ “O
corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais
ele é como que continuamente regenerado” (SPINOZA, 2008, p. 5) ─ , podemos dizer
que um corpo é definido por tudo aquilo que o distingue de outros corpos (movimento e
repouso, velocidade e lentidão) e pelos afetos produzidos por outros corpos, onde a
capacidade de um corpo ser afetado por outro se deve ao grau de complexidade de sua
composição interna.
A fala do aluno colocada como epígrafe neste “Movimento Um” instiga-me a
problematizar o que possibilita alunos e alunas a “viajarem”, a “irem para um outro
mundo”, com deslocamentos, atravessamentos, desterritorializações produzidos pela
vibração, pela relação de corpos que vibram e, nesse movimento, aumentam a potência.
Com pensar a potência dos afetos a partir das relações dos corpos, entendendo as
relações como diferentes linhas que produzem, criam, inventam, intersectam múltiplas
possibilidades engendradas no campo dos possíveis que traçam mapas? Como pensar a
relação que se dá “entre” os corpos vibráteis de alunos e alunas, que não implica em
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algo que está “fora” e “dentro”, mas sim dos acontecimentos e movimentos “entre”
pessoas, objetos, espaços, ideias, valores... O que essa relação com os corpos vibráteis
tem produzido como potência no cotidiano escolar em relação ao currículo? É possível
pensarmos em um “currículo-relação”?
“Currículo-relação” que significa as diferentes redes tecidas a partir de
diferentes linguagens, saberes, fazeres e poderes, enfim, a partir de diferentes
expressões em um espaço de atravessamento corpóreo, pois um corpo atravessa
conceitos, invade-os, transgride-os, significa-os, usa-os, recria-os, inventa-os.
Um “currículo-relação” que se escreve na medida em que vivemos os espaços
criados pela escola. “Currículo-relação” que é engendrado a partir do aumento da
potência do afetar e ser afetado, que implica na coexistência de outros corpos vibráteis,
compondo outros corpos que nos afetam, nos mobilizam, nos tiram do lugar, nos
inquietam, nos fazem criar! Um “currículo-relação” que é atravessamento,
deslocamento, agenciamento...
Movimento Dois: Conhecimento e afetividade
Para Spinoza, não há separação entre conhecimento e afetividade. Há, sim,
diferentes tipos de conhecimento que correspondem a diferentes (regimes) afetivos.
Saber e afeto, juntos, implicam em uma forma de vida.
Merçon (2009, p. 28) aborda o devir da ética relacionando-o ao conceito de
“aprendizagem afetiva”, indicando que o aprendizado é, essencialmente, afetivo: tratase de “um aprender que é entendimento e intensificação de nossa potência de afetar e
ser afetada”. Desta forma, a noção de afeto remete à noção de encontro, sendo o
aprendizado afetivo uma arte do encontro: “um aprender sobre o que diminui nossas
forças ou nos potencializa”.
Assim, que encontros têm sido engendrados no cotidiano escolar que
potencializam o conhecimento? Como possibilitar/intensificar um aprendizado afetivo a
partir da arte do encontro de alunos e alunas no cotidiano escolar? Que conhecimento
tem potencializado a vida de alunos e alunas?
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Alguns movimentos de alunos e alunas foram escolhidos na tentativa de capturar
a vibração existente no que os afeta em relação ao gostar da escola:
Eu gosto da escola porque eu tenho muitas amigas; porque eu aprendo cada dia
mais; porque nós aprendemos aqui dentro; porque ela é legal; porque eu aprendo
mais; porque é uma maneira de se dar bem na vida; porque eu gosto muito de estudar,
eu gosto de aprender, para ser alguém na vida e também porque a gente tem as
amizades aqui; porque aqui eu aprendo as coisas, aprendo coisas legais; porque é
muito legal e tudo vai ser importante para o meu futuro; porque alguns professores são
bons; por que oferece estudos de graça, sem pagar nada, professores, etc; porque aqui
tudo é limpo, a merenda é de boa qualidade e os professores são ótimos; porque ela me
ajuda a se comportar melhor do que nunca; porque ela é muito importante para as
pessoas que estudam e ela nos dá muito futuro; porque é um lugar que a gente aprende
muita coisa. A escola é boa demais e se a gente não estuda a gente não chega a lugar
nenhum.
Percebemos, nas falas de alunos e alunas, que a escola produz um aumento de
potência ao significar uma possibilidade de aprendizado, no qual a escolarização é
apontada como possibilidade de ser alguém na vida. Há uma importância muito grande
dada à escola em relação ao aprender e ensinar. Outro movimento que se apresenta diz
respeito à relação entre si e o outro: as amigas, os professores; a merenda, a limpeza.
Assim, poderíamos questionar: o aumento de potência a partir dos afetos produzidos na
relação entre diferentes corpos implica na possibilidade de pensarmos o conhecimento
como o mais potente dos afetos?
Movimento Três: O conhecimento como o mais potente dos afetos
O conhecimento age produzindo afetos, ou os afetos produzem conhecimento?
Se conhecer é afetar e ser afetado, qual a relação entre conhecimento e afeto? Quais as
intensidades e possibilidades para a criação de vida que pulsa e que torna possível a
invenção de processos nos quais o conhecimento seja o mais potente dos afetos?
Spinoza apresenta que o modo como nós pensamos, como nós conhecemos
implica o modo como vivemos, isto é, para Spinoza qualquer que seja a forma de
conhecimento, esta reflete uma maneira de viver. O caminho ético apresentado por
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Spinoza nos leva a pensar na dignidade de vivermos o que somos, assumindo nossos
problemas, anseios, desejos o que nos levaria a criar um estilo de vida próprio. As
soluções, as saídas para os problemas encontrados no percurso da vida implica sempre
em uma invenção.
Se a existência do corpo humano, em Spinoza, é definida por uma proporção
entre as características de movimento e repouso, e por sua constante relação com outros
corpos, podemos dizer que a potência de um corpo define-se por sua aptidão de afetar e
ser afetado. Nessa concepção de potência não há somente o princípio de ação (afetar),
mas também de afecção (ser afetado). Quanto maior a aptidão afetiva, mais potentes e
complexos serão os corpos. Assim, um corpo ativo é um corpo cuja sensibilidade
afetiva é forte e, ser afetado não significa padecer, mas, ao contrário, “quanto mais a
aptidão do corpo a ser afetado é reduzida, mais o corpo vive num meio restrito,
insensível a um grande número de coisas [...]” (SÉVÉRAC, 2009, p. 24). O tornar-se
ativo equivale a uma abertura às sensibilidades humana, a um aumento de sua aptidão a
ser afetado e afetar. Possuímos o conhecimento racional, segundo Spinoza, partilhandoo e, para assim o fazê-lo, precisamos aumentá-lo. A finalidade ética é compreendida
pelo desejo ativo de conhecimento. Quanto maior a aptidão afetiva, maior é a
capacidade da mente em pensar várias coisas simultaneamente, e, assim, compreender
as relações de conveniência, diferença e oposição.
Que movimentos, encontros, afetos, afecções e desejos têm sido vividos por
alunos e alunas possibilitando a invenção de um “currículo-relação”? Como podemos
pensar em um “currículo-relação” a partir dos fluxos, conexões, relações, encontros, das
existências singulares? O que alunos e alunas expressam a partir das conversações, dos
corpos, dos movimentos? Como podemos pensar em um conhecimento a partir das
experiências, daquilo que aumenta a potência de agir, que potencializa os fluxos
curriculares?
Ao serem questionados se o que viviam fora da escola tinham relação com o
conhecimento que a escola ensina, alunos e alunas apontaram para o que é estudado nas
diferentes áreas do conhecimento e sua relação com a vida cotidiana:
A escola ensina várias coisas que estão em nosso dia-a-dia; que tem que usar
camisinha para não pegar aids; aprendemos a ler, escrever, respeitar...; aqui na escola
a gente aprende que a educação é mais importante...; disciplina, comportamento;
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aprendemos sobre o meio-ambiente; aprendemos tudo... Não aprendemos a xingar..; a
ler; a respeitar os pais; os pontos cardeais, que ensina a gente a se localizar; em
Ciências aprendemos sobre sexo, sobre como evitar doenças; ensina principalmente a
matemática e português que eu utilizo para tudo; a matemática, por exemplo, me ajuda
a diferenciar os preços, o português no modo de falar e de me expressar e o inglês a
aprender vários tipos de coisas em inglês; no supermercado, por exemplo, eu vou lá e
está escrito que custa 10,00 e você passa e dá 100,00 reais e recebe de troco 78,00.
Você pega o troco errado e não percebe;
Podemos analisar, a partir das falas de alunos e alunas, que há um currículo que
tem como centro de ação a fala e a escrita e uma lógica matemática pautada nas noções
de número e resolução de problemas, além de ciências com as interfaces de um mundo
natural, de um mundo físico no qual o ser humano se coloca em relação com o outro.
Entretanto, em outras falas serão apresentados alguns movimentos inter-relacionados
com a vida vivida, com a experiência praticada na e para além da escola.
Movimento Quatro: A intensidade dos fluxos, afetos, afecções...
Como o cotidiano escolar pode ser problematizado como campo possível para a
potência micropolítica, engendrada nos encontros, nos afetos, afecções? Quais as
intensidades e possibilidades para a criação de vida que pulsa e que torna possível a
invenção de processos nos quais o conhecimento seja o mais potente dos afetos?
Alunos e alunas tem mostrado através dos movimentos de seus corpos que há
uma outra possibilidade de vida possível a ser produzida no cotidiano escolar,
estabelecendo experiências de existência singulares através daquilo que os afetam,
daquilo que os potencializam. Ao serem questionados sobre o porquê a escola ensina
determinados conteúdos e sobre o quê eles gostariam de aprender na escola, há uma
crença de que aquilo que é ensinado pela escola é algo importante:
[...] porque a escola quer que nós sejamos alguém na vida; a
escola ensina muita coisa; porque a escola está ensinando muito
mais para mim; me ensina a escrever e ler; a ser inteligente, ser
educado; porque a gente vai poder saber o que fazer no mundo;
para aprender a ler a escrever e a não pegar coisas do meu
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colega; eu acho que a escola está ensinando para a gente ir para
um curso melhor; a escola está me ensinando a ser educado; é
para sermos inteligente, educado se ser alguém na vida; eu
gostaria de aprender a ler mais rápido; pra gente arrumar um bom
emprego e aprender mais. Mas o que eu queria era jogar futebol;
para a gente arrumar um bom emprego no futuro, mas eu queria
aprender artesanato; Para eu ser alguém na vida [...].
Entretanto, há sempre um “mas...”. E este “mas” surge daquilo que os afeta, dos
movimentos singulares produzidos através da vontade, do interesse, do desejo, que
inscreve algumas marcas em seus corpos e onde está a potência para a criação do
conhecimento como o mais potente dos afetos:
Eu queria que tivesse mais brincadeira; eu queria aprender tocar guitarra, bateria
e música; eu queria aprender vôlei e basquete, porque gosto muito destes esportes; eu
queria aprender natação; eu quero aprender basquete porque eu sou muito grande e
gosto deste esporte; futebol, vôlei, futebol, basquete e queimada; aprender a tocar
instrumentos; eu queria aprender mais coisas como futebol e futsal; eu queria aprender
futsal, teatro e produzir vídeo; eu queria aprender espanhol e vôlei; eu queria aprender
chinês, espanhol, italiano e inglês; fazer esportes e artes; natação; sim, muitas coisas
como natação; eu gosto de artes [...].
É interessante notar que alunos e alunas, nas redes de conversações, apresentam
os afetos que aumentam ou diminuem a potência de vida na escola, sem desqualificar os
saberes inseridos nas diversas áreas do conhecimento. Entretanto, há um desejo em criar
movimentos, em dinamizar os saberes, em libertar a vida pulsante que existe e vibra em
seus corpos. E, muitas vezes, este desejo significa em expandir a vida pulsante para
além das salas de aula, praticando outros espaços-tempos da escola: as quadras da
escola, a horta, a biblioteca, a sala de vídeo. Mesmo estando nas salas de aula, há
também a necessidade (impelida pelos alunos) em criarmos outras formas de
organização (ou será desorganização?), nos quais alunos e alunas inventam diferentes
modos
de
agrupar-se,
coletivizar-se,
estabelecendo
relações,
deslocamentos,
experimentando afetos e afecções.
O conhecimento, desta forma, gesta-se o tempo todo através da experiência
vivida, sentida, cuja imanência está nos movimentos, na relação, na invenção. O
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aprender, para alunos e alunas não é apenas representar uma dada realidade, mas
implica no co-engendramento da vida vivida, experenciada, sentida, criada.
Muitos movimentos de alunos e alunas em sala de aula, de tão intensos,
produzem algum tipo de deslocamento em nós, professoras/pesquisadoras. Em um dos
dias de pesquisa, entrei em sala após a aula de Ciências, cujo conteúdo trabalhado tinha
sido “Reprodução”. Conversas, risadas, movimentos, alunos sentados, em pé, andando,
enfim, algo havia disparado interesse, desejo, questionamentos, dúvidas... Fui chegando
sem entender aquela movimentação, aquela “organização”, que, para nós muitas vezes
significa bagunça, barulho, confusão. Eis que um aluno me questiona: “Professora, sexo
selvagem engravida?”. Silêncio... E logo veio uma fala de uma aluna: “Professora, eu
sei que meu pai não usa camisinha. Tem algum problema?”. E mais: “Professora, qual é
o nome daquela balinha redondinha que a mulher toma para não engravidar?”. Eu só
ouvia “professora, professora, professora”... Os questionamentos, dúvidas, interesses,
curiosidades afetaram-me de tal forma que me deslocou, causando-me estranheza e
desestabilizando-me na minha função professora e pesquisadora que tinha planejado
trabalhar com uma música (“Ensino errado”, de Gabriel, o Pensador) como disparador
de redes de conversações. Diante de um turbilhão de movimentos de corpos de alunos e
alunas que ansiavam por respostas, ou somente por atenção e possibilidade de conversar
abertamente, tentei traçar algumas linhas possíveis para a conversa.
─ “O que você está chamando de sexo selvagem?” – perguntei.
─ “É aquele em que o homem coloca a mulher de quatro, e vai
fazendo ‘vuco-vuco’ por trás” – disse o aluno fazendo o
movimento com o próprio corpo para frente e para trás, simulando
uma relação sexual.
─ “É igual cachorrinho, professora!” – gritou um aluno do fundo
da sala.
E os fios foram sendo puxados pelos alunos e por mim também, traçando um
emaranhado, uma tessitura a partir de diferentes movimentos:
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─ “Como você sabe que o seu pai não usa camisinha?” –
questionei a aluna que tinha afirmado com tanta certeza que o pai
não usava.
─ “Professora, eu moro em uma casa que só tem um quarto e eu
durmo no sofá da sala. Entre a sala e o quarto não tem porta,
então, à noite eu finjo que eu estou dormindo e vejo o meu pai e a
minha mãe transando”.
A minha intenção de fazer um recorte desse acontecimento em sala de aula,
muito mais do que mostrar como eu me saí diante dos questionamentos, é dar
visibilidade à vida que pulsa nos corpos de alunos e alunas que não estão presentes nos
livros didáticos, nos programas de ensino, nos conteúdos programáticos das diversas
disciplinas, mas que são pulsantes, vibrantes e intensos. A potência dos movimentos de
alunos e alunas está na invenção de possibilidades de se pensar/criar/produzir o
conhecimento a partir daquilo que os afeta, e que torna possível se pensar a escola de
uma outra forma que faça sentido e que tenha relação com a vida. Diante desse
emaranhado tecido um questionamento emerge: A escola fala de coisas que fazem
sentido para alunos e alunas? Como alunos e alunas constroem o conhecimento? Qual a
relação entre conhecimento e afeto? Entre conhecimento e vida? Tais questionamentos
tornam-se necessários para que possamos pensar em um ensinar e um aprender
construídos de forma ética, associando-se a expressões que se movimentam a partir de
nosso entendimento e desejo, e a potência está na provisoriedade e singularidade do
desejo de cada um.
Enfim, em movimentos sem fim...
A tentativa aqui, neste artigo, foi transformar afetos em escrita, a partir de inúmeros
atravessamentos do plano de imanência com alunos e alunas. Estes, a todo momento,
tem demonstrado de forma singular, que os encontros são possíveis no cotidiano escolar
e que produzir bons encontros é uma questão ético-política daqueles que fazem a escola
no seu dia-a-dia.
Alunos e alunas, a partir do desejo, têm demonstrado caminhos possíveis na criação de
um devir ético, que torna potente o cotidiano escolar. “É no desejar ativo, consonante a
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um pensar potente, que se afirma o devir da ética - um devir que, por ser impulsionado
por nosso desejo, constrói-se como caminho irrepetível, intransferível, singular”
(MERÇON, 2009, p. 20).
Os movimentos de alunos e alunas são vibrantes na criação da vida e estes movimentos
é que são potentes para se pensar a escola tal como ela é - pulsante e intensa. Alunos e
alunas, a todo o momento, estão da sua maneira, criando/produzindo formas para que a
ação educativa seja possível, mesmo que, seja invisível a alguns, mas tão visível para
aqueles que, em seus movimentos, em seus corpos há vibração causando ressonâncias à
medida que vão inventando conexões, relações, encontros, existências singulares,
instáveis, mutantes e pulsantes, no qual o conhecimento é o mais potente dos afetos.
Referências:
GARCIA, W. A. C. Entre paisagens. In: Dossiê: Em multiplicidades, nomeia-se
currículo. Pro-Posições, vol. 18, n. 2 (53), 103-114, maio/ago. 2007.
MERÇON, J. Aprendizagem ético-afetivo: uma leitura spinozana da educação.
Campinas, SP: Editora Alínea, 2009.
SÉVÉRAC, P. Conhecimento e afetividade em Spinoza. In: MARTINS, A. (Org.). O
mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009. p. 17-58.
SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
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