NA VIDA E NA MORTE, LIÇÃO E LUTO NA LUTA: SENTIDOS E RESULTADOS
DO PLANFOR/ QUALIFICAR NA CIDADE DE PELOTAS
Simone Valdete dos Santos
Faculdade de Educação / UFRGS
Resumo: O Plano Nacional de Formação Profissional (PLANFOR) foi concebido
como política pública estatal no contexto de desordem do desemprego, sendo
executado pelos Estados a partir de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador
(FAT). No Rio Grande do Sul, no período pesquisado, o programa foi denominado
“Qualificar”. Os pressupostos do programa reconheciam a baixa escolaridade dos
trabalhadores brasileiros, a necessidade de Educação Profissional para o
enfrentamento de um contexto político, social e econômico adverso. As elaborações
de Georges Balandier contribuíram para o entendimento do desemprego atual em
um quadro de desordem, sendo o trabalhador adulto desempregado – figura de
desordem, que desorganiza, desarticula o status quo do emprego até então
preconizado pela Modernidade. A conformação de um estudo de caso com egressos
adultos dos cursos do PLANFOR/ Qualificar na cidade de Pelotas, privilegiando uma
amostra etnográfica, na convivência com os desempregados nas suas casas, locais
de reunião do Movimento dos Trabalhadores Desempregados e do Conselho de
Desenvolvimento do Bairro Dunas, considerou o luto do trabalho assalariado como
um impedimento à compreensão dos desempregados, figuras de desordem, a outras
alternativas de trabalho sem patrão, sem a carteira de trabalho assinada. Dormir, ser
voluntário no Programa Amigos da Escola, criar animais para alimentação, ter um
bar em casa se colocam como formas de resistência às situações de morte do
desemprego. O ser desempregado – figura de desordem - como constituinte e
constituidor de estar desempregado e suas conseqüências. Os resultados da
pesquisa sugerem que, o curso de qualificação profissional para os sujeitos adultos,
sempre se coloca na tentativa do aproveitamento das oportunidades, na procura da
vida, na fuga da morte, ainda mais diante das exigências atuais do mundo do
trabalho.
Palavras-chaves: Educação Profissional – Adultos - Desemprego
O Plano Nacional de Formação Profissional (PLANFOR) foi concebido como
política pública estatal no quadro de desordem do desemprego, no reconhecimento
da baixa escolaridade dos trabalhadores brasileiros, da necessidade de Educação
Profissional para o enfrentamento de um contexto político, social e econômico tão
adverso.
Financiado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), os
quais advêm da arrecadação do PIS / PASEP; da remuneração dos empréstimos a
bancos; da remuneração de depósitos especiais; da remuneração e saldos
remanescentes do pagamento de Seguro - Desemprego e Abono salarial; e da
parcela de 20% do Imposto Sindical.
A presente pesquisa envolveu egressos dos cursos do PLANFOR, com sua
conformação gaúcha – o Qualificar/RS, mais precisamente egressos do Integrar do
Sindicato da Alimentação filiado à CUT e do Programa Coletivos de Trabalho,
conformando um estudo de caso na cidade de Pelotas, cujo financiamento da
pesquisa empírica ocorreu com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio
Grande do Sul (FAPERGS). A aplicação dos questionários, para estudo exploratório
na organização das questões de pesquisa para a tese, nos seminários regionais
nos cursos durante o ano de 2001, reforçaram a necessidade de um estudo de caso,
da escolha de um município para compreensão da materialidade, da ocorrência
dessa política pública estatal, o envolvimento dos gestores que planejam e
executam as políticas de Educação Profissional e os efeitos dessas na vida dos
desempregados, alunos dos cursos. A pesquisa privilegiou, para a amostra
etnográfica, sujeitos adultos, que já tiveram alguma forma de envolvimento com
trabalho de carteira assinada.
A gestão estadual, desse momento da pesquisa, estava com governador
Olívio Dutra (1999-2002), cuja filiação partidária correspondia à mesma do prefeito
de Pelotas. Tal consenso partidário foi indicativo para a escolha da cidade, a fim de
resguardar os resultados da pesquisa de possíveis constrangimentos decorrentes da
interdição das políticas do Qualificar em função de disputas partidárias locais,
prescindindo dos benefícios das ações para a população desempregada.
Pelotas é uma cidade de porte médio, de fundamental importância na
História do Rio Grande do Sul, sendo a urbanização um constructo moderno,
associada ao assalariamento e à fábrica.
A modernidade preconizava uma idéia de vida, a redenção, a satisfação dos
desejos pelo consumo, a máquina como racionalizadora de força de trabalho. No
entanto, o que assistimos no momento atual é o fim dessa promessa redentora, os
desempregados como conseqüência direta do fenômeno do desemprego estrutural
que, como a maioria das análises indica, veio para ficar, constituem-se como a
própria desordem e o caos do inacabado projeto da modernidade, localizados na
fronteira da exclusão.
Boaventura de Souza Santos (1995) diferencia a desigualdade da exclusão,
considerando-a como forma de pertença hierarquizada dos indivíduos na sociedade.
Balandier (1997), nesse sentido, refere-se à condição banal das figuras de
desordem dentro da sociedade, não de uma pertença hierarquizada, mas como
produtoras e produtos da desordem, do movimento - considerando o autor como
figuras de desordem o estrangeiro, o filho mais novo, a mulher.
Para Santos (1995), a desigualdade está no campo da luta de classes, do
emprego formal, da integração dos sujeitos nos meios produtivos, da promoção de
pleno emprego pelo Estado, sobretudo pelo Estado social democrata, do direito de
os sujeitos serem “explorados”, em linguagem marxista: vender a sua força de
trabalho e reproduzir mais-valia.
transformação atual pela qual
A exclusão, por sua vez, encontra-se na
vem passando o Estado diante dos efeitos
provocados pelo modelo perverso de globalização, balizadora da nova organização
produtiva:
À medida que se rarefaz o trabalho e mais ainda o trabalho
seguro, a integração garantida por ele torna-se mais precária.
E, nessa medida, o trabalho passa a definir mais as situações
de exclusão do que as situações de desigualdade (Santos,
1995, p.25).
A pertença subordinada ao trabalho, geradora do antagonismo entre os
donos dos meios de produção e os trabalhadores, que compreende o conflito
denominado por Marx como luta de classes, transmuta-se para a ausência dessas
relações, para o fim do conflito, para a não-pertença ao trabalho assalariado como
geradora de exclusão. Para Santos (1995), o sistema de desigualdade está sendo
transformado em sistema de exclusão.
Castel (1998), por sua vez, prefere a denominação desfiliação do que ele
chama de zonas de coesão social, espaços de garantia de sobrevivência digna do
indivíduo, nomeando como sobrantes os trabalhadores inimpregáveis do ponto de
vista do mercado. Para o autor:
[ . . . ] ao tema da exclusão, hoje abundantemente orquestrado,
preferirei o da desfiliação para designar o desfecho desse
processo. Não se trata de uma vaidade de vocabulário. A
exclusão é estanque. Designa um estado, ou melhor, estados
de privação. Mas a constatação de carências não permite
recuperar os processos que engendram essas situações.
(Castel, 1998, p.26, grifos meus).
Frigotto em texto intitulado “Exclusão e/ou Desigualdade Social? Questões
teóricas e político-práticas”, balizador de sua exposição na mesa sobre “Pensar a
exclusão” na 3ª Reunião Anual do GT Educação, Trabalho e Exclusão Social da
CLACSO, em Guadalajara, México de 20 a 24 de novembro de 2001, apresenta
vários autores que teorizam sobre a categoria exclusão para expressar o momento
atual de crise do capitalismo. Destaco suas ponderadas análises esclarecedoras das
considerações de Jameson e Oliveira:
Numa mesma direção e, referindo-se diretamente à questão
da exclusão, Oliveira (2000), salienta a dimensão política da
exclusão. “Na verdade, não é uma exclusão pelo mercado, que
é geralmente onde a gente aponta; é uma exclusão do campo
dos direitos.”(Oliveira, 2000:89 in Frigotto,2001, p.04 ).
O autor, ao mencionar a exclusão do campo dos direitos referenciando as
elaborações de Chico de Oliveira, o embate político que a categoria enfrenta ao
envolver gênero, raça e etnia, propõe uma reflexão para o antônimo de exclusão
enquanto emancipação, não inclusão.
Frederic Jameson nos traz uma contribuição crucial ao
distinguir a antinomia da contradição. A antinomia explicita-se
por uma forma mais clara de linguagem e afirma “proposições
que efetivamente são radical e absolutamente incompatíveis, é
pegar ou largar (...) x ou y, e isso de forma tal que faz com a
questão da
situação
ou do contexto desaparecer por
completo. De modo totalmente diverso “a contradição é uma
questão de parcialidades e aspectos; apenas uma parte dela é
incompatível com a proposição que a acompanha”; na verdade,
ela pode ter mais que ver com forças, ou com estado de
coisas, do que com palavras e implicações lógicas.(...) Nesse
caso, é a situação que explica a disparidade, gerando, em sua
incompletude, as perspetivas múltiplas que nos fazem pensar
que a matéria em questão é agora x ou y, ou, melhor ainda, ao
mesmo tempo tem jeito de x, tem jeito de y. ( 1997:18, in
Frigotto, 2001, p.05 - 06)
A partir, essencialmente,
desses dois autores, Frigotto privilegia a
antinomia, que é fecunda para reflexão da exclusão social como sintoma da
desigualdade social no campo da contradição.
O estudo de caso realizado na cidade de Pelotas, no Estado do Rio Grande
do Sul, cuja abordagem metodológica consistiu no levantamento etnográfico, com
registros em diários de campo, de visitas realizadas nas casas de desempregados
adultos egressos dos cursos do PLANFOR (Plano Nacional de Formação
Profissional), presença em seus seminários e atividades de convívio, a categoria
analítica mais apropriada, essencial para a interpretação da realidade em estudo,
também não se tratando de "vaidade de vocabulário", mas de uma ferramenta de
análise mais conveniente para a compreensão da realidade, é do desempregado
como figura de desordem, segundo as elaborações de Balandier (1997).
O trabalhador brasileiro, ao brutalizar-se frente à máquina, tornando seu
corpo parte da engrenagem e moldado a ela, tornando-se, na maioria das vezes,
vítima de inúmeras doenças profissionais, tais como: surdez, mutilações de
membros (em especial os dedos), impotência sexual, LER (Lesões por Esforço
Repetitivo), deformações na coluna, tinha seu soldo no final do mês e com ele
consumia, estava incluído na sociedade, tinha a possibilidade (mesmo que remota)
de pensar na velhice. Tinha, de certa forma, assegurada a aposentadoria,
concebendo esse fim de carreira como promessa de felicidade para o tão esperado
convívio com a família, possibilidade de “não fazer nada”, libertar-se do trabalho que
o escravizou por anos e, como o sonho dos trabalhadores, segundo Hill desde o
século XVII, finalmente realizar um labor que lhe proporcionasse liberdade... Com o
desemprego estrutural, coloca-se para os trabalhadores a impossibilidade de serem
explorados, a impossibilidade de fazerem planos a curto, médio e, ainda mais longo
prazo.
Do combate acirrado da luta de classes, narrado pelas disputas dos
sindicatos com os patrões nas greves, é possível vislumbrar outras situações: o luto
da carteira profissional assinada.
Esse luto materializa-se na longa procura dos trabalhadores por um posto de
trabalho, no envolvimento precário em outras alternativas de geração de trabalho e
renda, pois o trabalhador, muitas vezes, almeja o encontro do emprego, ter um
patrão, voltar a ser mandado, há dificuldades em apostar em outras alternativas e
vivenciar dificuldades novas em relação às anteriores. Ao mesmo tempo, o luto traz
a lição de vida do desemprego, como falou a esposa de Éverton Rodrigo (um dos
sujeitos da pesquisa), outras possibilidades que se colocam, principalmente na ótica
da solidariedade, na valorização humana. É importante esclarecer que os nomes dos
egressos dos cursos do Qualificar que seguem no texto são fictícios, foram criados
na escrita da tese de doutorado para facilitar a leitura e preservar a identidade dos
envolvidos na amostra etnográfica.
Éverton Rodrigo, em visita a sua casa, contou que, nesse período em que
esteve desempregado, ia nos lugares, comparecia aos seminários pelo Integrar
Alimentação, pelo Conselho de Desenvolvimento do bairro Dunas, onde morava,
que estava participando, já que possuía tempo disponível, sempre imaginando que
alguém poderia lhe dar um emprego, não tirava esse objetivo da cabeça, nas suas
palavras:
Fui para todos os congressos que pude em Porto Alegre, em Pelotas. Sempre
"correndo atrás" para aprender mais e, quem sabe, nestas voltas, conseguir um
emprego, percebendo que o mundo é mais do que me rodeia e tentando nestes
espaços emprego.
Preencheu ficha em muitos lugares e se lhe chamassem parava de estudar,
porém só conseguiu emprego quando terminou o Ensino Fundamental.
Nas visitas à Ana Amélia, outra aluna envolvida na amostra etnográfica,
presenciei situações que me causaram mal- estar, mas que demonstraram a
resistência, a coragem nessas situações de privação, o esforço por manter a
dignidade. Os dois filhos pequenos que estão na escola: Édson com 10 anos (na 3a
série) e João com 12 anos (na 4a série), são preciosos para o casal. Permanecendo
em sua casa, algumas vezes, próximo do horário do meio-dia, quando os meninos
chegavam da escola, observei que, nas panelas sobre o fogão, não havia comida
suficiente para os dois adultos e as crianças. De fato eles deixavam sobrar para os
filhos.
Virgínia, do programa Coletivos de Trabalho do núcleo do Movimento dos
Trabalhadores Desempregados (MTD no Balneário do Prazeres, possui uma criação
de coelhos e galinhas, bem ao lado de sua casa, para que não sejam roubados. Seu
objetivo correspondia em levar a criação para o assentamento rururbano do MTD.
Sua filha estava acampada, e no MTD a regra é assentar quem está acampado.
Pensa em ir junto com sua filha quando sair o lote, pois tem problema de saúde que
a impossibilita de ficar no barraco e então sofrer as privações de chuva, de frio de
quem está no barraco de lona.
Na experiência de Virgínia dos Coletivos de Trabalho, sendo que essa quer
morar em um assentamento, a criação dos bichos se coloca como alternativa
alimentar. Para Virgínia é ainda perspectiva de trabalho e geração de renda no
assentamento rururbano.
Além disso, Virgínia mostrou as mudas de árvores frutíferas que estava
cuidando também para levar para o assentamento. Possuía um barzinho em sua
casa, onde vendia bolachinhas, salgadinhos, refrigerantes para o pessoal do bairro.
Um dia arrombaram a sua peça e roubaram tudo o que tinha. Ela sabe quem roubou,
mas é perigoso denunciar, conforme suas palavras:
“─ A polícia prende e solta e eles voltam para o bairro com raiva de quem
denunciou.”
Virgínia faz artesanato para vender, ajudar no valor de R$ 250,00 recebido
pelos Coletivos de Trabalho que pressupõe esse auxílio mensal, frentes de trabalho
na forma de mutirão de limpeza dos bairros, pintura de escolas públicas e cursos de
Educação Profissional. Quando visitei a casa de Virgínia, ela estava fazendo cestos
de papel, mostrou-me um ensaio de bandeira do Movimento dos Trabalhadores
Desempregados que estava pintando. Existia um coração no centro da bandeira,
sua imagem do Movimento tem um coração, sua representação do MTD é um
coração.
Dormir para a família de Ana Amélia, mais do que descansar, é uma forma
de resistir às privações. Nas três visitas que fiz na sua casa, no turno da manhã,
pelas 10 horas, quando então o contrato emergencial na prefeitura de seu esposo
estava suspenso, o casal estava dormindo. Durante o chimarrão que tomávamos,
após eles acordarem com o meu chamado em frente da casa, contaram que não
havia nenhum bico para fazer, estavam os dois em casa. Concluí, já após a segunda
visita, quando percebi a quantidade de comida nas panelas, relacionando ao
depoimento de Ana Amélia em deixar o alimento para os filhos, que era uma forma
de o casal "vencer" mais facilmente duas refeições acordando tarde: o café da
manhã e o almoço.
O sono também se coloca como uma forma de superar a depressão, pois
visitei Ana Amélia justamente no dia em que receberam a notícia do fim do contrato
emergencial de seu marido na prefeitura municipal: a tarde chuvosa do dia 28 de
maio de 2002, quando havia marcado com Ana Amélia.
As visitas posteriores
ocorreram sem aviso anterior. Ana Amélia ficara acordada para me receber e
afirmou:
Coloquei todos para dormir, Neri e os meninos, recebemos a notícia do fim do
contrato emergencial dele que, pela renovação ainda tinha dois meses. Estamos
todos de baixo astral, abalados, os R$ 300,00 dele não dá, imagina sem, eu fiquei
acordada para te receber.
Ana Amélia, que cria alternativas de vencer a fome e a tristeza através do
sono, é a mesma pessoa que afirma que não vai buscar o sopão e o carreteiro
servidos semanalmente no bairro onde mora, no Getúlio Vargas pela a 1a dama,
porque tem gente que precisa mais do que ela, enquanto ela tiver, ela não busca as
refeições, ou seja, enquanto ela “agüentar”, mesmo sabendo que tem pessoas que
não precisam tanto e buscam, ela não vai fazer isso. Há uma postura ética envolvida
nessas suas atitudes: uma ética do cuidado, ao deixar para quem precisa mais na
comunidade, fazendo o sacrifício de vencer as refeições, deixando o alimento de
casa para os filhos. Talvez haja também uma ética do trabalho: buscar as refeições,
servidas nos potes para família, quando não conseguir outra forma, via os “bicos” de
trabalho por ela e o marido eventualmente realizados.
A partir dessa constatação do dormir para "passar por uma decepção",
"segurar energia", "pular refeições" em relação a família de Ana Amélia, uma das
respostas para a questão de número 17 ─ Depois de terminar os Coletivos de
Trabalho seus planos são ─ do questionário aplicado nos integrantes dos Coletivos
de Trabalho, uma resposta de uma pessoa da Colônia dos Pescadores Z3 recebeu
uma significação diferenciada "Ficar em casa dormindo". Na medida em que a
convivência com a família de Ana Amélia determina uma reflexão maior para essa
resposta, dormir pode não ser somente descansar em uma situação de desemprego.
Há uma demonstração de controle das necessidades vitais para resistir às privações
da falta de emprego, falta de trabalho remunerado:
[ . . . ] em muitas sociedades ocidentais, o controlo
comportamental tornou-se há alguns séculos particularmente
intenso, diferenciado e universal; é o controlo do
comportamento social está mais do que nunca ligado ao
autocontrolo, à auto-regulação do ser humano singular. (Elias,
1993, p.136)
Do mesmo modo que é possível ver o fato de dormir como uma situação de
controle para vencer refeições, controlar os sentimentos e a energia, também
poderia ser julgado como alienação, fuga do problema, Martins (2002) contribui para
uma outra interpretação do fenômeno da alienação:
[ . . . ] a alienação não é um processo passivo, mas sim um
processo social ativo. Nele, o sujeito ativa e criativamente
desenvolve mecanismos socialmente compensatórios para as
privações que os alcançam.
Num certo sentido ele se apossa da adversidade e para isso
dispensa os intermediários.( p.44)
Dormir é uma forma de enfrentar o problema do desemprego, sem
intermediários, já que a solução não está posta: não há naquele momento uma
ocupação. Dormir muito pode significar para o trabalhador, tanto a compensação
para o cansaço da jornada excessiva de trabalho quanto a compensação pela
ausência dela, não demonstrando aos vizinhos que não saiu para trabalhar logo
cedo.
A pessoa que respondeu "Ficar em casa dormindo", para seus planos após
o término dos Coletivos de Trabalho, é uma mulher com 40 anos de idade, que
participa do grupo da reciclagem de lixo na Colônia de Pescadores Z3, freqüenta a
Igreja do Evangelho Quadrangular, ou seja, é evangélica pentecostal. Há mais de
três anos ela não tem carteira assinada. Antes trabalhava como doméstica. Estudou
até a 3a série, tem quatro filhos, três em idade escolar e é solteira. Atribui ao fato de
não conseguir trabalho de carteira assinada, que é a questão de número 18 do
questionário, por ser "velha"; o que mais gosta nos Coletivos de Trabalho é de
"trabalhar na rua" e o que não gosta é de "estudar"; respondeu que participa de um
outro projeto do governo ─ está estudando.
Por todas essas respostas ao questionário, é possível concluir que essa
mulher é bastante ativa, ainda mais tendo três filhos que freqüentam a escola e
sendo solteira. Talvez provenha sozinha o sustento das crianças. É procedente
refletir sobre seus motivos para "dormir" no momento em que terminarem os
Coletivos de Trabalho, até porque o grupo da reciclagem tem seus cursos e
atividades no turno da tarde, o que torna pouco provável a hipótese de ter seu sono
atrasado das atividades atuais e querer recuperar ao término das atividades.
Outra situação de "sono" que enfrentei com os sujeitos da pesquisa, ocorreu
na visita que fiz a Renato no dia 6 de março de 2002. Ele estava dormindo quando
cheguei meia hora antes do combinado: 14 horas e 30 minutos, quando marcara às
15 horas. Ele estava muito desanimado na primeira visita que fazia à sua casa.
Nesse dia fiquei sabendo que, a exemplo de Ana Amélia e seu esposo, nem "bicos"
ele estava conseguindo naquele mês. Pretendia se oferecer como amigo da escola
de suas crianças para pelo menos ter o que fazer, ocupar o tempo.
O resultado escolar de seus filhos naquele ano, que ele estivera durante a
maior parte sem trabalho, não foi nada satisfatório: a mais velha com 16 anos
reprovou, não passou para o 2o ano do Ensino Médio; o rapaz com 15 anos,
reprovou por meio ponto em Matemática, e sua escola não tem dependência de
matérias, ficou na 8a série. A mais nova com 10 anos também reprovou, ficou na 3a
série. A única que aprovou na escola foi a de 12 anos que não convive com a
família, mora com sua sogra que tem problemas de saúde, seu o sogro já é falecido.
Em dezembro de 2002, ao final do levantamento de dados, o filho de 15 anos foi
também morar com a avó que não está conseguindo enxergar, precisa de ajuda
para deslocar-se. Estudam na Escola Estadual Assis Brasil, que Clarice, esposa de
Éverton Rodrigo, gostaria de colocar seus filhos, é difícil conseguir vaga nessa
escola.
Talvez a iniciativa de ser amigo da escola de Renato seja, além de ocupar o
tempo como ele falou, para compensar a reprovação dos três filhos que moram com
ele, afetados provavelmente pelo clima de desânimo familiar, até porque nas visitas
percebi que os filhos respeitam muito o pai, há entrosamento, consideram seus
pedidos, não retrucam.
No caso de Renato, desempregado, teve que repetir o gasto com material
escolar, roupas, merenda para os três filhos que mantém na escola. A única que
teve sucesso na escola é a filha que não está convivendo com a família, não está
convivendo com o desemprego do pai, com o papel de provedora da mãe que
trabalha como serviços gerais em uma creche municipal.
Além da sensibilidade na investigação dos motivos que levam ao baixo
rendimento dos alunos, e no caso dos filhos de Renato, de uma família inteira, é
preciso também desenvolver alternativas de dependências de matérias para os
alunos não ter de cursar um ano inteiro de novo por causa de meio ponto em
Matemática, como foi o caso do filho de Renato. Até porque a nova Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional ─ 9394/96 respalda a criação de alternativas pela
escola para promoção dos alunos. Seu texto tem uma postura de aprovação,
inclusão em relação à avaliação.
A reprovação na escola é uma forma de luto provocada pelo desemprego,
uma morte indireta, quem morre é a auto-estima dos filhos do desempregado e dele
próprio. Morre o gosto pela aprendizagem, vive a promessa de gastos com material
escolar, roupas para a mesma série, um ano repetido, um ano de vida repetida, um
ano vivo de morte na escola.
O filho de Éverton Rodrigo, de nove anos, segundo depoimento de sua mãe,
ficou muito revoltado durante o período em que o pai estava em casa,
desempregado, pois, nas palavras de Clarice: - Faltavam muito as coisas. Também
brigava muito com as outras crianças no núcleo do ASEMA (Apoio Sócio – educativo
em Meio Aberto) o qual freqüenta na Associação de Moradores no Bairro Dunas
onde mora. Estava muito nervoso.
O desemprego do pai influenciou o filho mais novo, no seu comportamento
nervoso, agressivo, não no rendimento escolar, como na família de Renato quando a
reprovação atingiu a todos, mas na agressividade. No ano de 2002, quando o pai
estava empregado, o menino estava calmo, sem brigar, participando com muita
motivação das atividades do ASEMA, no turno em que não está na escola,
atividades de capoeira, reforço escolar.
As pessoas moradoras da periferia, egressas do Integrar e dos Coletivos de
Trabalho, participantes do Conselho de Desenvolvimento do Loteamento Dunas com
as quais convivi em Pelotas, ilustram bem a afirmação de Milton Santos (2000) sobre
o papel dos pobres no momento atual e a diferenciação que o autor faz entre "pobre"
e "miserável". Os desempregados com os quais convivi em Pelotas são pobres:
O exame do papel atual dos pobres na produção do presente e
do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e
miséria. A miséria acaba por ser a privação total, com o
aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma
situação de carência, mas também de luta, um estado vivo,
de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível
(p.122, grifos meus).
Convivi com pessoas pobres em Pelotas que lutam, inclusive dormindo,
enfrentam a vida com consciência de sua situação, lutam para resistir a tantas
situações de privações, tantas demonstrações de morte: falta de comida, reprovação
dos filhos na escola.
O curso de qualificação profissional coloca-se no patamar da compensação,
embora com um certo limite, pois Ana Amélia realizou o curso de padaria, confeitaria
do Qualificar, por intermédio da assistente social, freqüentando o curso no bairro
onde mora – no Getúlio Vargas. Compareceu aos dois seminários do Qualificar em
que eu apliquei questionários nos alunos com fins de um estudo exploratório para a
tese. Ela foi a única pessoa que compareceu aos dois seminários em Pelotas,
demonstrando a sua disponibilidade, sua força de vontade. Possui inúmeros cursos
do Qualificar. Penso que aproveitou todos os seminários que o Sindicato da
Alimentação proporcionou via programação do Integrar. No entanto, quando
comentei com ela que haviam vagas no curso de técnico em vendas, que estavam
sobrando vagas para o exercício de final de 2002 do PLANFOR, contei que havia
presenciado duas funcionárias do SINE (Serviço Nacional de Emprego) de Pelotas
procurando pessoas para o curso, ela recusou. Estava com possibilidade de cuidar
de uma senhora doente no seu bairro. Percebi um certo desalento de tantos cursos,
até porque ela já trabalhou em lojas e tem consciência da dificuldade de retornar a
essa atividade com a sua idade – 45 anos, é negra. Melhor um “bico” com um
retorno, embora insuficiente, precário, mas imediato.
Éverton Rodrigo, assim como Renato, também reclamou a perda do curso
de garçom no ano de 2001, pois deixou de fazer um "bico" na festa promovida pela
patroa de sua esposa que é empregada doméstica. Veio o convite para ele
trabalhar, mas não quis assumir pois não tinha noção nenhuma do serviço do
garçom, não quis arriscar, nas suas palavras: “fazer feio e deixar Clarice “mal” com
sua patroa”.
O facto de o ser humano singular deixar pelo caminho uma
grande abundância de alternativas não aproveitadas, de vidas
não vividas, de papéis não desempenhados, de sensações que
não teve e de oportunidades não aproveitadas, tem a sua
razão na natureza das sociedades que exigem ao indivíduo
uma especialização mais ou menos elevada.(Elias, 1993,
p.154)
Tal afirmação de Norbert Elias, alerta para o fato de o momento atual, por
sua pluralidade de ofertas e possibilidades, deixar pessoas pelo caminho, alheias a
tais possibilidades, diante da exigência constante de qualificação pelo mercado de
trabalho.
Para Éverton e Renato, o curso de garçom, aliado à sua formação de Ensino
Fundamental se colocava como mais uma alternativa para sobreviver ao
desemprego.
O curso de qualificação profissional para os sujeitos adultos sempre se
coloca na tentativa do aproveitamento das oportunidades, na procura da vida, na
fuga da morte, ainda mais diante das exigências atuais do mundo do trabalho.
Dormir não é somente descansar para essas pessoas, é pular refeições, é
sarar a tristeza de ter perdido uma forma de ganho certo para a família. Criar bichos
pode significar lazer, mas também alternativa alimentar, de geração de renda. O
barzinho em casa interditado pela violência urbana que penaliza mais os que menos
têm; a reprovação como conseqüência do desemprego vivenciado pela família, tudo
isso representa formas de luto e de luta em situações de desemprego.
O curso de qualificação profissional apresenta-se como um instrumento de
compensação do tempo disponível e seus incrementos de lanche e vale- transporte,
bem como a possível colaboração no Programa Amigos da Escola.
A condição do “ser” se confunde, se funde na condição do “estar”, e na
abordagem realizada, o ser e o estar em situação de desemprego. A situação de
desemprego
produz,
reproduz
figuras
de
desordem:
o
desempregado,
a
desempregada, adultos.
É um ser e estar de luto por não ter a carteira assinada e, com essa, as
dificuldades da providência da alimentação, do lazer, dos gastos com a escola,
roupa, contas de telefone, gás de cozinha... lutar para superar o luto e aprender com
as lições de solidariedade, com a capacidade extrema de superação que utiliza o
sono, os cursos de Educação Profissional disponíveis, enfim, superar as situações
de morte que as limitações do desemprego promovem, ser e estar na vida com
todas as vicissitudes que essa luta diária representa.
Referências Bibliográficas
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NA VIDA E NA MORTE, LIÇÃO E LUTO NA LUTA