DESAFIOS DA UNIVERSIDADE IBERO-AMERICANA:
DESENVOLVIMENTO E IDENTIDADE
Herman Jacobus Cornelis Voorwald
Reitor da UNESP - Brasil
Sobretudo e antes de tudo: devemos conceber modelos de
desenvolvimento viáveis e menos desumanos, caros e
insensatos que os atuais. Disse antes que esta é uma tarefa
urgente: na verdade, é a tarefa do nosso tempo.
Octavio Paz
1. Introdução: sobre desenvolvimento
As teorias do desenvolvimento não formam um todo coerente e bem articulado. Há diversas
controvérsias. No entanto, por muito tempo, prevaleceu a concepção “progressivista” de
desenvolvimento: a história universal seria estruturada em “níveis de desenvolvimento”num
processo linear cumulativo. Essa concepção afirma, intrinsecamente, que existe um
referencial decisivo para a avaliação crítica de qualquer realidade regional. (Bartholo, 1992).
Está aí subjacente a convicção de que a História tem um sentido final (Löwith, 1991).
“Futuro”, “desenvolvimento”, “progresso”, “modernização” transformam-se em palavras
mágicas. O progresso é tido como um “...movimento irreversível e incontível que impele
automaticamente para frente [rumo ao objetivo final], não só as coisas, como também o
pensamento e a vontade do homem.” (Freyer, 1965, p. 184).
Está aí uma certa forma de conceber o presente a partir do futuro, convertendo-o em préhistória do objetivo final. Ao mesmo tempo em que essa crença progressista se impõe ao
proclamar que a modernização e o progresso são resultados da própria natureza do curso
objetivo das coisas e não meramente surgida das cabeças humanas, exige o engajamento do
homem no serviço do progresso, estruturando toda a vida social conforme esse objetivo. Para
essa ideologia desenvolvimentista as formações sócio-culturais são vistas conforme uma
escala de proximidade com o final consumador da história. Assim, aquele que se entende
mais desenvolvido, que se sente mais próximo da consumação da história, só consegue
enxergar o Outro pertencente a uma formação cultural distinta como o menos desenvolvido,
carente de educação desenvolvimentista. O Outro é tão somente o ainda não mesmo
(Bartholo, 1992). Sua alteridade é devida unicamente a carências, deficiências e atrasos, os
quais devem ser superados.
Dentro desse quadro, o Brasil - assim como toda Ibero-América – foi e continua sendo
designado como não-moderno, atrasado, subdesenvolvido ou, ainda, pior, em
desenvolvimento. A desvalorização do próprio aparece aqui na identificação de si pelas suas
carências: não somos o que devemos ser, isto é, não somos eficientes, competentes,
administrados, organizados, em suma, desenvolvidos ou "modernos". Pode aqui, também,
somar-se a concepção de que o passado e as raízes culturais têm um valor tão-somente
negativo: nosso passado é tão somente um entrave para o nosso futuro. Deve ser renegado e
menosprezado. Subjacente a tais convicções está a ilusão de que uma sociedade, um país,
uma nação, uma civilização pode ser obra do planejamento e da determinação
desenvolvimentista e que o mundo humano é uma “página de papel em branco”, à espera de
um plano, de um projeto, de uma administração.
Na década de 1980, quando a palavra sutentabilidade ainda não havia se tornado um termo
onipresente, o pensador mexicano Octavio Paz (1992, p. 210) escreveu:
Uma revisão leal do que ocorre tanto em nosso país quanto em outras partes
do mundo nos levaria a ver com outros olhos o tema do desenvolvimento a
toda a brida e custe o que custar. Esqueçamo-nos por um momento dos
crimes e das burrices que foram cometidos em nome do desenvolvimento (...)
e vejamos o que acontece nos Estados Unidos e na Europa ocidental: a
destruição do equilíbrio ecológico, a poluição dos espíritos e dos pulmões, as
aglomerações e os miasmas nos subúrbios infernais, os estragos psíquicos na
adolescência, o abandono dos velhos, a erosão da sensibilidade, a corrupção da
imaginação, o aviltamento de Eros, a acumulação do lixo, a explosão do
ódio... Diante desta visão, como não retroceder e procurar outro modelo de
desenvolvimento? Trata-se de uma tarefa urgente e que requer igualmente
ciência e imaginação, honestidade e sensibilidade; uma tarefa sem
precedentes, porque todos os modelos de desenvolvimento que conhecemos
(...) levam ao desastre. Nas circunstâncias atuais a corrida para o
desenvolvimento é pura pressa de se condenar.
Indo além da dicotomia esquerda versus direita vigente na época, Paz critica todos os
modelos de desenvolvimento existentes. E suas palavras ainda podem nos fazer pensar: o
que é, afinal, desenvolvimento? Surgiram, nas últimas décadas, modelos alternativos de
desenvolvimento? São efetivamente viáveis e nos salvam da condenação? Existem modelos
que devam ser seguidos?
Sabemos que a intenção originária do conceito de sustentabilidade é expressar uma crítica a
modelos de desenvolvimento socialmente injustos e ambientalmente nefastos. Nessa
confrontação, há alguma esperança não apenas de mudança de modelo, mas sim do conceito
fundamental do marco teórico. Tal esperança não pode depender apenas de uma sutileza
semântica: ela só existe como uma ruptura político-filosófica, ao se afirmar que a ruptura não
é uma questão eminentemente técnica. É, sim, um imperativo ético. A condição de
possibilidade da afirmação desse imperativo ético é o reconhecimento e o real exercício dos
direitos das pessoas, comunidades, regiões e povos à identidade cultural, à gestão
democrático-participativa dos recursos e processos produtivos e ao exercício das “liberdades
substantivas” que – segundo Amartya Sem (2008) – é o direito de todas as pessoas ao acesso
à educação, saúde, habitação, saneamento, enfim, a uma vida digna, independentemente de
seu poder aquisitivo.
Ao tentar superar tais modelos de cunho tecnocrático-cientificista, é fundamental que as
pessoas e comunidades sejam protagonistas na produção de suas condições de existência e
modos de vida, num processo onde novas institucionalidades são reiteradamente
requisitadas, elaboradas e implementadas. Diversidade cultural, eqüidade e justiça social são
alguns dos elementos valorativos cuja afirmação é compromisso da ética da sustentabilidade.
O modo de afirmação de tal compromisso é gestado historicamente, não sendo possível
reduzi-lo a uma única e exclusiva forma de manifestação. Ou seja, se modelos houverem,
eles devem ser amplos e flexíveis o suficiente para que o Homem Situado – tal como o
intelectual marroquino Hassan Zaoual (2006) chama o homem concreto em seu território e
com sua herança histórico cultural dignificada – possa expressar-se.
O adjetivo sustentável aparece, hoje, em todos os lugares e corre o risco de se tornar um
modismo. É real a possibilidade da retórica da sustentabilidade se degradar na apropriação
oportunista de um termo “politicamente correto”. Para que isso não aconteça é necessário
reafirmar desde um ponto de vista teórico conceitual que os poderes da modernidade técnica
crescem num vácuo ético, por pretenderem desconhecer limites, enquanto no cerne do agir
ético está o reconhecimento e fixação de limites. O desenvolvimento sustentável impõe à
racionalidade econômica fins e valores extra-econômicos, que fundamentam um sentido
ético-político para o desenvolvimento. A sustentabilidade é um fenômeno complexo que
integra dimensões diversas, num sistema de “vasos comunicantes”. Devemos considerá-la de
modo compreensivo e integrado como sustentabilidade em diversas dimensões: social,
ecológica, espacial, político-institucional, econômica; cultural. A ética da sustentabilidade
afirma o valor da diversidade cultural como patrimônio universal. Os projetos de
desenvolvimento sustentável devem afirmar as identidades nacionais, regionais, étnicas e
religiosas presentes em cada sociedade. As mazelas da globalização - desemprego, exclusão
social e anulação de culturas locais - são um desafio a ser enfrentado pela ética da
“sustentabilidade”, com base na afirmação da pluralidade de projetos nacionais e da
diversidade cultural como valores positivos.
2. Questões para a Universidade
Como pode a universidade contribuir para repensar o desenvolvimento? Como pode ajudar
na superação da atitude de cópia acrítica de modelos heteronomamente idealizados?
O conceito de sutentabilidade enfatiza a responsabilidade da geração atual perante as
gerações futuras. Mas as gerações atuais não são todas iguais em todos os paises e regiões!
Sem discordar da necessária centralidade dos conceitos da sustentabilidade na
responsabilidade para com o futuro, nos países ditos periféricos não seria fundamental uma
ênfase maior no combate às injustiças e à exclusão das gerações atuais? Em outras palavras, o
“centro de gravidade” da sustentabilidade, por exemplo nos países latino-americanos (para
não falar dos africanos), não deveria ser mais deslocados para o presente? Para a urgência da
superação da indignidade humana já?
Os desafios para o financiamento e a governança da universidade não dependem de qual a
concepção de desenvolvimento hegemônica. É eticamente justificado defender a autonomia e
a alocação de recursos para a universidade sem que tenhamos claro quais são suas metas e
quais as formas adequadas de prestação de contas?
Se as universidades ibero-americanas podem assumir e propagar a ética da sustentabilidade,
no nível do universalismo de valores, elas necessitam também afirmar as identidades
culturais próprias de suas nacionalidades e de suas regionalidades, no nível da
particularidade e singularidades históricas.
Tal postura nada tem de xenofobismo, mas é avessa a seguir modelos acriticamente. Sobre os
perigos de seguir modelos, Leopoldo Zea (1983) faz a distinção entre superposição e
assimilação cultural. Tal distinção é fundamental para entendermos as condições de
possibilidade de perseguirmos um desenvolvimento sustentável autenticamente endógeno a
partir de nossa herança ibero-americana. A assimilação é precisamente o contrário de
superposição. Sobrepor é por, sem alteração, uma coisa sobre outra, mesmo que distintas e
contraditórias; ao contrário, assimilar é, de certa forma, igualar; fazer de coisas distintas uma
só. Assimilar significa superar os conflitos próprios do que foi diversamente superposto,
eliminando-os através de um esforço de síntese. Quando existe apenas superposição, impera
a contradição. Contradição menor na realidade cotidiana, mas radical no pensamento e na
criação cultural, ética e política, enfim, no mundo da cultura. Para Zea, é assim que, em tanto
que camadas superpostas, as heranças culturais diversas, ao mesmo tempo em que foram
conformando uma identidade própria do ibero-americano, se apresentaram como o mais
sério obstáculo que este homem necessitou - e necessita - vencer a fim de fazer surgir sua
personalidade e identidade. Só através da assimilação dessas camadas pode-se superar o que
parece superficial, simulado ou simples imitação, assumindo uma realidade e um presente,
condição para qualquer modernidade. A assimilação dependerá fundamentalmente da
capacidade de tomar consciência desse passado como realidade com a qual se tem de contar
para que se ajuste com os campos dos projetos com o futuro.
O escritor modernista brasileiro Oswald de Andrade apresenta idéias semelhantes com seu
conceito de antropofagia cultural. O conceito é inspirado no canibalismo de ameríndios, que
numa cerimônia guerreira imolavam o inimigo valoroso apresado em combate afim de
adquirir sua força e virtude. Evoca, assim, os “nativos” que nem rejeitavam nem
macaqueavam a cultura européia, e sim consumiam seus portadores para ingerir seus
poderes “mágicos”. A “antropofagia” é metáfora de uma estratégia de assimilação cultural e
de uma atitude perante o outro. Em outras palavras, não devemos ser contra modelos, mas
fazê-los alvo de nossa crítica: são os esforços de assimilação que possibilitam o exercício da
criatividade em lugar da simples imitação de modelos de desenvolvimento elaborados de
forma heterônoma. Não podemos abrir mão de escolher quais presas queremos
antropofagicamente deglutir. Ou, em outras palavras, não podemos abrir mão de nossa
autonomia epistemológica, especialmente em definir quais são os problemas que queremos
enfrentar.
Esta atitude assimilativa-antropofágica é nossa arma contra as ilusões de sermos
desenvolvidos copiando modelos e sendo iguais aos idealizadores desses modelos. Contra os
macaqueadores que acham que ser desenvolvidos e modernos só pode se dar se deixarmos
de ser nós mesmos para nos transformar em totalmente outros. É nossa afirmação de que o
desenvolvimento “... foi, até agora, o contrário do que significa a palavra: revelar o que está
envolvido, desdobrar-se, crescer livre e harmoniosamente”. (Paz, 1992).
3. Contribuições ao debate
Após o envio de algumas provocações iniciais sobre o tema, alguns reitores participaram do
debate. *
O Professor Senén Barro Ameneiro, reitor da Universidad de Santiago de Compostela,
España:
*
•
Sugeriu definir e especificar melhor o campo de reflexão do eixo temático, já que o
tema “universidade e sociedade” pode ser muito amplo e corre-se o risco perder-se
em divagações;
•
Feito isto, sugere que a discussão tome um rumo prático, capaz de gerar propostas
para serem implantadas nas universidades e úteis para a atuação junto a governos e
atores sociais, econômicos e culturais;
•
Considera útil recolher e analisar material sobre o tema “universidade e sociedade”
presente em encontros de ibero-americanos de chefes de estado e de governo, assim
como em fóruns de debate como a Segunda Conferência Mundial sobre Educação
Superior;
•
Propõe que a análise do papel da universidade, seguindo o modelo GRI (Globe
Reporting Iniative), seja feita em 3 eixos, a saber: econômico, social e ambiental.
Os textos completos enviados pelos debatedores, sem as incorreções advindas da minha síntese, podem ser
http://desafios.universiablogs.net/2009/10/23/provocacoes-iniciais-para-o-debate-do-eixoacessados
em
tematico-universidade-e-sociedade/#comments.
O Professor Francisco González Cruz, reitor da Universidad Valle Del Momboy, Venezuela:
•
Considera importante diferenciar os desafios da universidade latino-americana dos
da européia (espanhola e portuguesa), pois há em Latino América certo desconcerto
em relação aos caminhos do desenvolvimento sustentável;
•
Coloca como tarefa a revisão dos conceitos de desenvolvimento frente a novos
conhecimentos e teorias, bem como à valorização da diversidade biológica e cultural;
•
Chama à reflexão sobre a globalização que, se de um lado, propiciam o acesso à
informação, de outro lado, impõe um só modelo de produção, comercialização e
consumo;
•
Propõe o termo “lugarização” para o “proceso mediante el cual un lugar toma
responsabilidad de su destino, conscientemente de los desafíos que enfrenta, tanto en
la valorización de sus fortalezas horizontales, endógenas, propias, singulares, como
en el aprovechamiento de las fuerzas verticales que vienen desde lo global y
traducirlas adecuadamente a lo local.”
•
Percebe, e propõe que se traga ao debate, experiências latino-americanas que, de
forma criativa e audaz, têm enfrentado esses desafios.
A Professora Ana Dayse Rezende Dórea, vice-reitora da Universidade Federal do Alagoas,
Brasil:
•
Considera útil e necessário o debate sobre o conceito de desenvolvimento. Pensa na
“há iniqüidade social e no imenso papel que todos nós temos em relação à miséria
material e espiritual em que ainda vive a maior parte de nossos semelhantes. Tudo
isso leva de fato a uma constante desconfiança em relação aos modelos de
desenvolvimento disponíveis. Mesmo o da sustentabilidade.”
•
Traz ao debate o nome de Nestor Canclini e suas reflexões sobre os conflitos culturais
da globalização. Canclini, ao examinar o papel da cultura nos acordos de integração
supranacionais, afirma ter a impressão de um mero arranjo de empresários;
•
Concorda com a proposta do Professor Barro Ameneiro, de se percorrer pactos já
afirmados (acordos, declarações, etc.) atinentes ao mundo ibero americano e verificar
as potencialidades destes documentos, no sentido de buscarmos uma efetivação
prática das boas políticas já desenhadas, assim como examinar os vazios deixados
por esses mesmos acordos sobre o tema da responsabilidade social das
universidades;
•
Concorda, ainda, que o modelo do GRI, apontado pelo reitor Barro Ameneiro,
poderá ser uma boa opção para análise do que as universidades já fazem em termos
de responsabilidade social corporativa e para propor nossas potencialidades. Mas,
neste ponto, coloca as seguintes questões: como seria a nossa forma de associação ao
GRI? como poderíamos aproveitar esta participação para uma integração mais forte
do espaço ibero-americano? como esse instrumento poderia nos ser útil na
formulação de políticas interuniversitárias do macro espaço com vistas ao combate
às desigualdades, mantendo-se evidentemente o respeito pelas especificidades e
peculiaridades regionais?
O Professor Rodrigo Arocena Linn, reitor da Universidad de la República, Uruguay:
•
Contribui com o debate colocando a seguinte questão: como promover
transformações e avaliar resultados de modo a contribuir para fazer realidade o
direito à educação superior de qualidade como um bem público e social?
•
Argumenta que tal questão é inerente ao ideal de universidade conectada com seu
povo, democraticamente gerida e socialmente comprometida;
•
Afirma que não tem qualidade nem pode ser considerada um bem público e social a
universidade que não oferece oportunidade de acesso à maioria da população;
•
Aponta algumas dimensões fundamentais da qualidade das universidades:
promoção do protagonismo dos estudantes, incorporação das atividades de pesquisa
e de extensão a todos os planos de estudo, desenvolver diálogos e colaborações entre
disciplinas e saberes.
•
Propõe um critério geral para avaliar a qualidade da universidade num país
periférico: o quanto a universidade se constitui como uma instituição para o
desenvolvimento, tendo como dimensão fundamental o fomento da pesquisa e da
inovação orientadas para a inclusão social.
•
Lembra que a universidade de qualidade promove a participação e o aprendizado da
cidadania, além de buscar atrair a contribuição de amplos setores sociais.
•
Faz considerações sobre a internacionalização da universidade, suas oportunidades e
ameaças. Pensa que as universidades que compartilham o ideal de bem público e
social colaboram entre si na construção de espaços compartilhados de ensino,
pesquisa e extensão. Devem, ainda, colaborar com outros atores sociais, difundindo o
ensino, compartilhando saberes e fomentando o uso socialmente valioso do
conhecimento.
O Professor Luis Eduardo Alverde Montemayor, reitor da Universidad Anáhuac Querétaro,
México:
•
Lembrou que algumas organizações trabalham com desenvolvimento institucional
de universidades e que podem ser úteis para prestar assessoria em arrecadações de
fundos, comunicação, marketing e relações com egressos.
4. Outra volta do parafuso
Do resumo apresentado, ouso afirmar que os participantes valorizam, de forma geral, o
debate conceitual, sem perder de vista a necessidade de elaboração e implementação de
propostas para ações concretas, imediatas, urgentes. É pouco provável e até pouco desejável
que o debate conceitual seja conclusivo. Mas isso não pode implicar no adiamento ou
imprecisão na formulação de propostas de intervenção na realidade.
É como se as discussões mais conceituais – dentre outras sobre o conceito de
desenvolvimento, sobre as contradições da globalização, sobre a valorização da diversidade,
sobre a inserção do local no global – devessem iluminar e inspirar as propostas concretas e
pragmáticas de intervenção na realidade. Construir um equilíbrio e identificar os vasos
comunicantes entre estes dois níveis de preocupação é um desafio para nossos esforços.
Além da tensão conceitual-prática, é bastante significativa a distinção de perspectivas entre
as universidades européias e latino-americanas. Reafirmado que tais tensões podem ser
enriquecedoras, vamos dar atenção a elas.
A Professora Ana Dayse Rezende Dórea diz, de forma crua, o porquê devemos suspeitar dos
modelos de desenvolvimento prontos e acabados: é que a maior parte das pessoas ainda vive
numa profunda miséria material e espiritual. Claro, essa suspeição é maior entre os latinoamericanos, como enfatiza o Professor Gonzáles Cruz, quando alerta que os desafios da
universidade latino-americana são diferentes dos das européias (espanhola e portuguesa).
A contribuição ao debate proporcionada pelo Professor Arocena Linn tem o pressuposto de
que a universidade tem o dever de estar orientada para a superação desta miséria espiritual e
material! Para tanto, ela deve estar conectada com o seu povo, atraindo, cada vez mais,
amplos setores sociais para participarem de seus debates e fazeres. Utilizando as palavras
do Professor, a universidade só será um bem público e social se tiver qualidade e ter
qualidade, na situação latino-americana, é orientar seus esforços – integrando a pesquisa, o
ensino e a extensão – para a inclusão social.
Um dos aspectos mais triviais desse compromisso com a inclusão social continua ainda
sendo extremamente candente especialmente para as universidades latino-americanas: o de
propiciar oportunidades às pessoas. Como o nível de conhecimento é determinante do nível
de empoderamento dos grupos e das pessoas, a universidade só contribui para ampliar a
desigualdade social se não consegue democratizar o acesso aos saberes nela gerados ou
reproduzidos. Mas essa tarefa de democratizar o acesso constitui desafio gigantesco.
Em primeiro lugar, há uma realidade fora dos muros universitários: a qualidade da educação
pré-universitária. As diferentes formas de “controle para ingresso” identificam os estudantes
mais momentaneamente preparados, não os mais capazes, nem os com maior potencial, nem
os com maior paixão pelo conhecimento. As formas de acesso à universidade privilegiam os
que podem investir mais nos estudos pré-universitários. Tentativas – algumas polêmicas –
para minimizar essa injustiça vêm sendo realizadas, mas ainda permanece o gosto amargo
de que precisamos fazer muito mais neste sentido. O investimento na formação de bons
futuros professores para os ensinos pré-universitários é fundamental e é um dos caminhos
que estamos privilegiando.
Uma situação ainda emblemática entre nós: o jovem ingressa na universidade, mas não
consegue manter-se estudando por dificuldades financeiras. O contingente desses jovens –
que superaram tantas barreiras, mas que acabam sendo “expulsos” pela carência de dinheiro
– é enorme e necessita de atenção e recursos substanciais. Mesmo nas universidades públicas
e gratuitas como a UNESP, busca-se multiplicar recursos e esforços para manter os talentos,
engajados e com tranqüilidade para se dedicarem à vida acadêmica.
Dentre os diversos adjetivos associados ao desenvolvimento – econômico, científico,
tecnológico, sustentável – o mais caro para a universidade latino-americana ainda é o social.
Pode haver desenvolvimento econômico-científico-tecnológico e, ainda assim, a maior parte
da população viver na indignidade. Desenvolvimento significa luta por justiça numa
situação de hegemonia da injustiça.
É dentro deste quadro de carências, compromissos e demandas que os esforços e os
resultados das universidades latino-americanas devem ser avaliados. Ou melhor, deveriam
ser avaliados. Mas não é bem assim. As avaliações internacionais de universidades não são
elaboradas para este tipo de contexto sócio-cultural.
Como bem lembrou o Professor González Cruz, existem diversas iniciativas – “audazes e
criativas”, segundo suas palavras – de universidades latino-americanas buscando responder
os desafios historicamente impostos. No entanto, por mais frutuosos que sejam tais esforços,
isso pouco ou nada contará para que tais instituições sejam consideradas de “Classe
Mundial”, segundo os critérios hoje vigentes nas avaliações mais consagradas.
Voltemos ao conceito de “lugarização” proposto por Gonzáles Cruz. Segundo o professor é o
“... proceso mediante el cual un lugar toma responsabilidad de su destino,
conscientemente de los desafíos que enfrenta, tanto en la valorización de sus
fortalezas horizontales, endógenas, propias, singulares, como en el
aprovechamiento de las fuerzas verticales que vienen desde lo global y
traducirlas adecuadamente a lo local”.
Fica-nos evidente que a lugarização da universidade latino-americana passa por uma mais
adequada avaliação de seus esforços nos níveis nacionais e internacionais. A palavra
adequada, aqui, significa sensível às realidades sociais e às heranças histórico-culturais
regionais.
5. Propostas para a ação
Além das propostas já indicadas, surgidas do debate e encaminhadas à organização do
evento, ouso apresentar mais três propostas. Elas estão baseadas nas diversas contribuições
enviadas.
5.1. Por um ranking ibero-americano de universidades
A sugestão, por ora, é a criação de um grupo de trabalho para a elaboração de um método
para implantação de um ranking de universidades alternativo aos atuais. Estes
unidimensionalisam o papel da universidade, sem considerar os contextos nos quais elas
atuam. O ranking a ser criado deve ser capaz de ser aplicado em situações diversas,
considerando prioridades nacionais e regionais.
Esta proposta está baseada nos conceitos de desenvolvimento situado, autonomia
epistemológica e valorização da diversidade cultural. O primeiro grande ganho seria uma
mudança de postura: deixaríamos de ser somente analisados e passaríamos a contribuir com
o grupo que é capaz de propor critérios e avaliar a situação internacional.
5.2. Por mais periódicos científicos sobre a experiência da universidade ibero-americana
Sugiro a criação de uma revista nova, internacional multi-institucional, voltada para a
divulgação e para o debate sobre como as universidades ibero-americanas estão enfrentando
os seus múltiplos desafios.
Esta proposta está baseada na convicção de que o conjunto de universidades iberoamericanas não são meras espectadoras das mudanças, mas, ao contrário, têm
recados significativos para o resto do mundo. Baseia-se também na constatação de
uma riqueza de experiências que está sendo pouco compartilhada e pouco valorizada
entre essas universidades.
5.3. Por um fórum sobre financiamento das universidades
Embora seja uma questão bem específica dos desafios da universidade ibero-americana,
cujas experiências são pouco compartilhadas, ela é recorrente.
A criação de um fórum sobre soluções para o financiamento das universidades pode ser de
grande valia para os próximos anos. Existem situações muito distintas e peculiares, mas o
aprendizado mútuo é promissor.
Referências
Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade, Cia das Letras: São Paulo, 2008.
Hans Freyer, Teoria da época atual, Editora Zahar: Rio de Janeiro, 1965.
Hassan Zaoual, Nova Economia das Iniciativas Locais: uma introdução ao pensamento pósglobal, DP&A; COPPE/UFRJ: Rio de Janeiro, 2006.
Karl Löwith, O sentido da história, Edições 70: Lisboa, 1991.
Leopoldo Zea, América com consciencia, Universidade Nacional Autónoma de México, 2a
edição, 1983.
Octavio Paz, Os labirintos da Solidão, Paz e Terra: São Paulo, 1992.
Oswald de Andrade, A crise da filosofia messiânica, in Volume VI das Obras Completas de
Oswald de Andrade, Do pau-brasil à antropofagia e às utopias, 2a edição, Editora
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1978.
Roberto dos Santos Bartholo Jr., A dor de Fausto, Editora Revan: Rio de Janeiro, 1992.
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1. Introdução: sobre desenvolvimento