BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE INFRAÇÃO, GÊNERO E
ADOLESCÊNCIA
Adriano Teodoro1
O presente conto traz à baila a questão da infração juvenil feminina, não só no
que concerne ao ato infracional, mas também em outras nuances que compõem a
complexidade do tema como circunstâncias pessoais, de classes sociais, de raça e de
gênero. Nesse sentido, importa compreender a questão de gênero enquanto uma
construção social, bem como desvelar os fatores condicionantes ao cometimento do ato
infracional feminino e a resposta da sociedade para essas “transgressões”. Na análise
sob a ótica de gênero destacamos os valores culturais que perpassam esse tema e
influenciam nas menores incidências dos atos infracionais pelas meninas (conforme o
gráfico 1): os papéis reservados às mulheres na sociedade que associam a figura
feminina ao privado, doméstico; as diferenças de oportunidades; a representação social
do “sexo frágil”.
Analisar o cometimento de atos infracionais por adolescentes do sexo feminino é
uma tarefa que apresenta enormes desafios, sobretudo pela escassez de referências
bibliográficas sobre essa questão. Segundo Assis e Constantino (2001) essa ausência de
estudos sobre a infração feminina está relacionada a
reduzida incidência se comparada à masculina –, o papel
secundário da mulher na sociedade e na vida extrafamiliar, o
preconceito que atribui pouco ou nenhum valor às
manifestações de desajuste social da mulher e a falta da pressão
da opinião pública que não se interessa pelo tema (ASSIS e
CONSTANTINO, 2001, p.19).
1
Graduado em Serviço Social
UERJ. [email protected]
pela
UFRJ,
mestrando
em
Serviço
Social
pela
GRÁFICO 1 – Comparativo entre sexo masculino e feminino em meio fechado –
Brasil - 2010
Fonte: SDH/PR
Em se tratando de uma sociedade com características patriarcais, na qual a
mulher enfrenta desafios para superar as condições de desigualdade em relação aos
homens, as jovens em cumprimento de medidas socioeducativas também sofrem
reflexos da condição subalternizada da mulher. Uma das formas de expressão da
desigualdade de gênero no sistema socioeducativo se dá no fato de as meninas não
terem acesso ao direito da regionalização das medidas, sobretudo como dito
anteriormente pelo menor número de meninas no sistema socioeducativo em relação aos
meninos.
O resultado é uma visão clara de como gênero, raça e classe
social se entrelaçam e se potencializam, como fatores de
discriminação, para direcionar o curso destas vidas
precocemente
‘adultizadas’,
na
direção
de
um
encontro/desencontro destas jovens consigo mesmas e com os
outros (COSTA, 2001, p.10).
O conto “Purpurina, lantejoulas e lágrimas” representa o cotidiano de uma
unidade de atendimento socioeducativo feminino. Nesse sentido, iremos relacionar os
fatos apresentados à realidade da instituição responsável pelo atendimento
socioeducativo no Rio de Janeiro em relação às medidas de internação provisória,
internação e semiliberdade: o Departamento Geral de Ações Socioeducativas
(DEGASE). Essa instituição apresenta uma série de mazelas, mas ao longo do tempo
vem sofrendo alterações e adequações em sua estrutura e em sua dinâmica que
demonstram um avanço em relação ao passado no atendimento aos jovens em
cumprimento de medidas socioeducativas. Dentre essas alterações podemos destacar a
criação da Escola de Gestão Socioeducativa – criada em 2001 na qual, dentre as suas
atividades, destacamos: o incentivo à produção técnico-científica na área socioeducativa
e a formação continuada dos profissionais da instituição –, assim como a maior abertura
da instituição a entidades da sociedade civil que realizam projetos sociais.
Ao longo desse período de existência do DEGASE, desde 1993, alguns grupos
estiveram presentes prestando assistência religiosa e realizando trabalhos como o
apresentado no conto sobre a educação em valores humanos. Segundo Simões (2010) a
religião é uma alternativa para a intervenção tradicional das políticas públicas.
As ações desenvolvidas com um caráter socioeducativo
tradicional, como ir à escola, realizar algum tipo de atividade
lúdica ou esportiva, o acompanhamento psicológico e social do
adolescente e das famílias, por exemplo, permanecem sendo
realizadas. Entretanto, não parecem suficientes para a
ressocialização dos jovens. A impressão que se tem é que,
apenas com estas atividades, o ciclo vicioso que leva e traz
jovens ao sistema permanece o mesmo (p.15-16).
Para uma parcela dos profissionais das unidades que atuam com os
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas
as atividades de assistência religiosa são vistas como aquelas
que acalmam os meninos e meninas, que os levam a refletir
sobre seus atos morais e, assim, mais aproximados da ética
religiosa, não estariam tão suscetíveis à reincidência. Portanto,
são compreendidas como a chave da transformação moral dos
adolescentes. Nesse sentido, a ação socioeducativa deve vir
acompanhada de elementos morais, para que se torne, de fato,
eficaz (SIMÕES, 2010, p.16).
A nosso ver o acesso à assistência religiosa pelos adolescentes, além de ser um
direito previsto na legislação, é um importante espaço de vocalização para o jovem,
contudo, esse espaço também pode ser caracterizado como um local de enquadramento
moral.
No conto também percebemos uma característica da condição feminina juvenil
no sistema socioeducativo, a maior aproximação, a busca por acolhimento e referência.
As meninas sofrem menos condicionamentos “externos” do que os meninos em relação
aos códigos de conduta comportamentais. Sejam eles externos- em decorrência do
pertencimento a uma determinada facção- ou sejam internos- na unidade- por meio das
regras de funcionamento ou por imposição dos agentes na busca de disciplina.
Essa maior proximidade, por vezes, é vista pelos profissionais que compõem as
equipes técnicas de atendimento aos adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas como desafio. As meninas comumente são caracterizadas como tendo
atitudes mais “ousadas” e menos respeitosas em comparação aos meninos.
Vale ressaltar que, em matéria de atendimento digno, a balança da relação de
gênero tende a pender de forma positiva para as meninas. A dinâmica nas unidades
socioeducativas é diferente para as meninas se comparada ao atendimento dispensado
aos adolescentes do sexo masculino, um atendimento mais coercitivo e rigoroso no que
concerne à disciplina dos meninos.
Outro ponto de destaque do texto é a apresentação das violações de direitos
sofridas pelas meninas até o ingresso no sistema socioeducativo. As violações vão do
privado ao público, ressaltando espaços que deveriam ser de proteção como o âmbito
familiar e se tornam locais de violação. São violências domésticas, abusos sexuais,
situações de abandono, assim como situações de ausências diversas, em especial, a
ausência do Estado que não foi capaz de prover direitos sociais básicos como a saúde e
a educação contribuindo para o ingresso de adolescentes no sistema socioeducativo com
baixa escolaridade, usuários de drogas e com transtornos mentais.
No conto a autora coloca dois tipos distintos de adolescentes que passam pelas
unidades socioeducativas: o das “filhas do sistema”- composto pelas jovens que
constantemente reincidem em atos infracionais- e o daquelas que “prometeram nunca
mais voltar”.
O alto índice de reincidência é uma realidade do sistema socioeducativo do
estado do Rio de Janeiro e uma série de determinações compõe essa realidade, tais
como o reencontro dos adolescentes, ao término da medida, com fatores que os deixam
expostos ao cometimento do ato infracional; “o estigma do menor”; o uso de drogas; a
falta de oportunidades concretas de pertencimento social, acesso ao mercado de trabalho
e à educação de qualidade. Nesse sentido, “as determinações estruturais demandam a
intervenção do Estado na promoção, garantia e defesa de direitos, alguns desses já
garantidos legalmente, no entanto, não efetivados na sua plenitude” (GARCIA et al.
2012, p.102). Assim como,
Há necessidade de uma intervenção em nível individual que
fortaleça a autoestima e possibilite ao jovem a reflexão crítica
sobre sua história e suas potencialidades. Com o despertar do
protagonismo juvenil busca-se que ele vislumbre uma
perspectiva de futuro e estabeleça e alcance, paulatinamente,
metas estabelecidas a partir de um novo projeto de vida (Idem).
O ponto de partida para uma análise preliminar seria o perfil do público que
entra nessa ciranda perversa. São jovens, em sua maioria, com a idade entre 16 e 18
anos; sexo masculino; com o nível de escolaridade não condizente com essa idade e, por
diversas vezes, não apresentam o nível de instrução de acordo com o grau de
escolaridade, havendo casos de analfabetismo e analfabetismo funcional; usuários de
drogas e negros/pardos.
Uma ressalva deve ser feita. A análise da reincidência, tendo como parâmetro o
perfil do jovem, pode acarretar na construção de um “tipo ideal” de jovem autor de ato
infracional. Sem dúvida, uma leitura por esse viés pode acarretar em estereótipos e
estigmas. No entanto, a nossa leitura é a de que existe uma seletividade por parte do
sistema de justiça na qual os jovens, com as características acima elencadas, possuem
uma chance maior de cair nas malhas do sistema de justiça juvenil.
O principal mérito do conto é iluminar o fato, comumente esquecido pelos
“analistas” da temática, de que a condição principal dessas meninas é a adolescência.
Nesse sentido, uma série de características comuns a essa faixa etária representam
desafios para os profissionais que trabalham com esse grupo: como a dimensão
temporal mais associada ao presente, além da necessidade de pertencimento social e a
dificuldade de submissão a regras que não foram discutidas e que envolvam uma
relação mais assimétrica.
O conto apresenta uma série de impactos na vida da (o) jovem que cumpre uma
medida socioeducativa, a despeito dos defensores da redução da maioridade penal que
anseiam por mais punição, “os depoimentos de adolescentes que cumprem medida de
internação remetem a formas de isolamento social que antecedem e excedem a privação
de liberdade” (SIGNORINI, 2011, p.382).
A autora toca em um ponto que, a nosso ver, é de extrema relevância em se
tratando da discussão sobre famílias, adolescentes, dentre outros: “a falta de estrutura
familiar”. A expressão “famílias desestruturadas” – e todas as ideias associadas – dizem
respeito à reprodução de modelos baseados na estrutura familiar burguesa, o modelo
nuclear e incide em discriminações a outras configurações familiares, sobretudo nas
famílias monoparentais chefiadas por mulheres expostas às mais diversas situações de
vulnerabilidade. A pesquisa realizada por Silva e Gueresi (2003) revela que a ausência
familiar não é fator determinante para o cometimento de atos infracionais, pois à época
81% dos adolescentes que haviam ingressado no sistema socioeducativo conviviam com
a família.
Segundo Signorini (2011) a família é a principal responsável pela garantia de
direitos e do bem-estar dos adolescentes encontrando-se acima de instituições como a
escola, igreja e a comunidade. No caso específico dos jovens em conflito com a lei, a
despeito do reconhecimento de conflitos e de violência nas relações familiares, a família
é o espaço de referência e lugar de comprometimento coletivo e troca de experiências.
Portanto, à guisa de conclusão, ressaltamos a importância no investimento na
família, ou seja, é necessário que o Estado estabeleça uma relação com a família que
não se caracterize em uma relação de assujeitamento e possibilite que a mesma acesse
bens e serviços, de modo que também tenham a proteção social esperada.
Na prática o sistema socioeducativo tem creditado à família um
lugar de menor valia que termina por acrescentar um empecilho
à própria socioeducação, já às voltas com tantos desafios: onde
se quer alçar o adolescente à condição de sujeito de direitos,
será preciso antes enfrentar a questão da atenção aos direitos
sociais da instituição familiar (SIGNORINI, 2011, p.396).
Referências
ASSIS, S.G; CONSTANTINO, P. Filhas do mundo: infração juvenil feminina no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
COSTA, A.C.G. Prefácio. In: ASSIS, S.G; CONSTANTINO, P. Filhas do mundo:
infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
GARCIA,J. Os jovens em conflito com a lei: entre discursos e olhares.
In:SOARES,J.D.L; SUSANA,E.N (org.). As margens da inclusão: debates
contemporâneos. Rio de Janeiro: PoD, 2011.
SIGNORINI,H. Sobre a participação da família no processo socioeducativo. In:
DAYRELL, J; MOREIRA, M,I.C; STENGEL, M. Juventudes contemporâneas: um
mosaico de possibilidades. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS, 2011.
SIMÕES, P. (coord.). Pescadores de homens: o perfil da assistência religiosa no
sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, ano 29, n.64, 2010.
SILVA,E.R.A; GUERESI,S. Adolescentes em conflito com a lei: situação do
atendimento institucional no brasil. Brasília: IPEA, agosto de 2003.
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