NOVOS OLHARES SOBRE A ESCRAVIDÃO
Charles Nascimento de SÁ
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FTC/FACSA
A escravidão no Brasil tem nos maus tratos e na violência do sistema sua principal
afirmação. Ao longo das últimas décadas diversos historiadores, de posições políticas e ideológica
diferenciadas, tem atestado o caráter brutal desse regime durante seu período de existência no
Brasil. Os maus tratos com que foram tratados os escravos provenientes da África, bem como
aqueles de origem indígena foram atestados por todos aqueles que fizeram estudos sobre essa
temática. No entanto, os estudos atuais tem apontado para novas possibilidades de adaptação desse
sistema e os mecanismos que cativos e senhores fizeram uso na construção e do escravismo
brasileiro.
O quadro acima, de autoria do pintor francês Jean Batist Debret (1768 – 1848) evoca bem
essas afirmativas. Nesse trabalho, em um primeiro plano bem destacado, vê-se um negro totalmente
imobilizado. Cordas e um pedaço de vara impedem qualquer tipo de reação de sua parte. Despido,
ele apenas pode gritar enquanto é açoitado pelo feitor. Suas roupas estão colocadas no canto direito
do que parece ser a casa grande da fazenda retratada na pintura.
Fazendo uso de uma enorme vara o feitor, de pele branca, açoita o negro. Ele está vestido, o
escravo não, ele tem poder o escravo não. Isso comprova totalmente a versão apresentada por todos
aqueles que viram no escravismo brasileiro uma fonte de reificação do negro. A brutalidade dos
açoites demonstra de modo assaz contundente que nesse sistema não tinha o negro nenhuma
possibilidade de resistência. Era um sistema que pela sua própria brutalidade gerava mais violência
tornando a todos, escravos e livres, propensos ao uso constante da força.
É interessante nesse ponto observar como Debret caracterizou a violência e os maus tratos do
sistema escravista brasileiro. Francês e adepto das idéias defendidas pela Revolução de 1789 ele,
como poucos, soube retratar esse sistema fazendo uso de sua arte para criticá-lo. Os dissabores da
escravidão a esse período já eram tema de debates e controvérsias em todo o território nacional. A
manutenção da economia agrária baseada na mão-de-obra escrava era, no entanto, um poderoso
componente para que esse tipo de trabalho fosse descartado no Brasil imperial. Debret soube, como
poucos, observar as sutilezas e possibilidades de adaptação e reconfiguração do escravismo
brasileiro. Foi essa possibilidade sempre recorrente que permitiu que este tipo de trabalho
perdurasse por longos três séculos e meio.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 02: História e Imagem.
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Se observamos detidamente no segundo e terceiro plano dessa imagem iremos perceber mais
ao fundo um outro escravo amarrado a uma árvore sendo açoitado. Fenômeno intrigante é que quem
executa o açoitamento é outro escravo. Para ampliar essa visão tem-se ainda duas escravas negras
que observam a cena. Elas não estão em prantos ou tentando evitar os maus tratos. Pelo contrário
parecem observar detidamente aquela cena. Parecem mesmo se deleitar. Será que aquele negro
estava apanhado por ter feito algo contra seu senhor ou sua propriedade? Ou estaria ele sofrendo
devido a alguma erro cometido contra aquelas mulheres que o observavam? São indagações que se
levantam e que demonstram a amplitude do fenômeno escravista e sua vinculação ao cotidiano dos
moradores do Brasil durante o período em que vigorou esta instituição.
Uma coisa segue concreta nessa cena: os escravos, da mesma forma que seus senhores
aceitavam a escravidão. Esta era uma instituição na qual a sociedade se baseava, tê-la era tão natural
quanto a existência da Igreja Católica e sua função evangelizadora e mantenedora das concepções
sociais de então.
Mais ao fundo pode-se perceber várias casas onde residiam os escravos. Senzala era o nome
dado à habitação utilizada pelos cativos. Diferente daquilo que a historiografia tradicional afirmava,
isto é, um galpão em que todos os escravos eram colocados, amontoados tal qual um vara de porcos,
não é desse modo que é retratada a senzala por Debret.
Para a historiografia tradicional cativos devido à sua moradia tinham uma vivência
semelhante à de animais. Daí para pensar que a escravidão reificou e embruteceu os cativos foi só
um passo. Pensar nos negros como animais e não humanos foi outro. Durante muito tempo pensouse a senzala como um depósito no qual os escravos eram amontoados vivendo na sujeira e comendo
o resto daquilo que sobrava. Esse foi uma das justificativas para o aparecimento da feijoada, os
restos daquilo que os senhores não comiam eram colocados para os escravos, misturados ao feijão e
servido. Hoje já se sabe que a origem desse prato típico da culinária brasileira não aconteceu dessa
forma, mas pelo contrário, foi fruto da mistura de diversas iguarias européias, americanas e
africanas.
O que Debret nos coloca é a existência de não uma mais de várias casas. Nessas pequenas
construções viviam os africanos em grupo ou família comiam, dormiam, realizavam as tarefas
domésticas e cotidianas que possibilitava a eles estabelecer sua vida no Novo Mundo. Desse modo
o quadro elaborado pelo pintor francês vem nos esclarecer sobre as múltiplas possibilidades de se
analisar e compreender a escravidão brasileira. Nessa moradias os negros desenvolviam sua
famílias. Nesses pequenos espaços pai, mãe e filhos desenvolviam diversas práticas, refazendo aí
valores e tradições que permaneciam vivo mesmo com a perseguição dos senhores e da Igreja.
No canto direito do quadro dois escravos conversam em frente a uma senzala. Um dos
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negros apresenta um objeto a o outro, provavelmente estão fazendo algum tipo de troca ou venda de
produtos. Esta era outra característica da escravidão nacional. Nela os negros tinham a possibilidade
de vender mercadorias por eles produzidas acumulando com isso determinado pecúlio. Isso
possibilitava a eles a obtenção de uma certa economia que podia ser utilizada para aquisição de sua
alforria.
Apesar de parecer contraditório a existência dessa possibilidade de obter algum tipo de
pecúlio não eliminava a escravidão. Ao contrário, fortalecia a dependência entre escravos e
senhores pois da boa vontade desses últimos residia a autorização para que os escravos possuíssem
seus bens. Manter-se obediente e trabalhador era essencial para que os cativos continuassem
adquirindo as economias que mais tarde lhe dariam a liberdade.
O próprio Debret comprova a existência de pequenas propriedade escravistas no pequeno
morro que existe ao fundo. Nele notamos um casa cercada. Pela estrutura e tamanho percebe-se que
ela não se trata de um lugar reservado aos senhores do lugar, era provavelmente uma residência
escrava. Mas por que ela se encontra cercada? Nesse caso o mais lógico é pensar na criação de
pequenos animais. Além de plantarem muitos escravos também criavam porcos, galinhas, gado e
outros bichos. Alguns para ampliarem mais rapidamente seu criatório recorriam ao furto de animais
das fazendas vizinhas.
A existência de propriedades escravas foi durante algum tempo negada pela historiografia
mais tradicional. Posteriormente os avanços na pesquisa histórica comprovaram que o sistema
escravista possuía de fato um espaço para que os escravos tivessem algum tipo de propriedade. A
isso chamou-se de brecha camponesa. Esse fenômeno era interpretado então como um desvio no
sistema. Somente com os avanços na pesquisa e maior contato com os estudos realizados em outra
áreas da América Latina e nos Estados Unidos é que se chegou à conclusão de que esse processo era
intrínseco ao desenvolvimento do escravismo na América colonial.
No canto esquerdo notam-se três casas e três negros. Um deles está de joelhos, muito
provavelmente tentando acender uma fogueira. Nessas casas tão pequenas a presença constante do
fogo em qualquer época e sobre qualquer condição foi algo que espantou a muitos observadores
europeus. Eles não entendiam como em um ambiente tão minúsculo e baixo podia-se conviver com
a fumaça produzida pelo fogo. O historiador norte-americano Robert Slenes, professor da Unicamp,
foi quem respondeu a essa indagação. Indo à África ele descobriu ser esse tipo de construção muito
comum entre os povos sub-saarianos. Assim a construção das senzalas que inicialmente pretendiam
impor ao negro sua posição de inferioridade frente à casa-grande serviu na verdade para torná-lo
mais próximo das suas antigas habitações na África. Xilogravuras realizadas nesse período vieram a
comprovar tal afirmativa ao mostrarem negros construindo quilombos usando casas semelhantes
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àquelas que existiam nas fazendas escravocratas.
Para os cativos manter o fogo aceso possibilitava que as almas dos antepassados sentissem
frio e permanecem em contato com seus descendentes. Muitos observadores do século XIX já tinha
notado que quando o senhor ou um de seus capatazes apagava o fogo isto produzia uma enorme
tristeza nos negros. Muitos chegavam mesmo a ficar doentes não realizando mais nenhum tipo de
trabalho. A ignorância quanto a esses e outros aspectos da cultura africana levaram ao entendimento
errôneo de serem os negros inferiores e atrasados.
O quadro de Debret foi obviamente fruto do século dezenove. A isso pode-se argumentar
serem as observações feitas nesse pequeno artigo destituídas de validade para outros períodos.
Poderíamos mesmo dizer que se pretendêssemos lançar essa luzes para os séculos inicias da
colonização ou mesmo o século dezoito estaríamos produzindo um anacronismo. Isso realmente
deve ser levado em consideração, ainda mais quando sabe-se que muitas das conclusões
equivocadas de nossos maiores clássicos (Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio B. de
Holanda) caíram justamente nesse erro. Tendo analisados em sua maior parte, documentos do
século XIX generalizaram suas conclusões para a Colônia.
Não queremos aqui reviver esses erros. Porém, a existência desse tipo de situação no século
dezenove, quando a escravidão já enfrentava enormes críticas de muitos setores da sociedade
nacional e internacional, nos mostra o quanto esse sistema foi dinâmico e as muitas possibilidades
de acomodação que ela vivenciou.
A existência de todas essa possibilidades nos transmitem a certeza de que como fenômeno
histórico o escravismo colonial foi bastante dinâmico. Conseguiu adaptar-se às mais diferentes
situações e possibilidades. Debret, como poucos, soube retratar a crueza desse regime, que
transformava seres humanos em objetos de seus senhores. Como poucos, no entanto, ele também
soube transmitir e perceber que essa instituição teve também múltiplas possibilidades de se adaptar
às mudanças que o tempo lhe imputou.
LEITURAS
ALENCASTRO, Luiz Filipe de. O Trato dos Viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
RIBEIRO,
Almir.
Feitores
castigando
escravos.
Disponível
em:
http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/bco_imagens/debret/debret.htm# Acesso em: 02 jan. 2006.
SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. UFRJ, 2003.
SLENES, Robert W. Na Senzala uma Flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 02: História e Imagem.
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ANEXOS
Figura 1: Feitores.
Fonte: RIBEIRO, 2006.
RIBEIRO, Almir. Feitores castigando escravos. Disponível em:
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 02: História e Imagem.
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