DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA 18 DA ACADEMIA ESPÍRITO-SANTENSE DE LETRAS DATA: 09/11/2010 Acadêmico: José Carlos Mattedi Discurso em duas partes: 1º - Apresentação; 2º - A Literatura contra a violência; PARTE 01: Apresentação Senhoras e senhores, é com muita honra que me torno, nesta data, 9 de novembro de 2010, membro da Academia Espírito-Santense de Letras. Sinto-me orgulhoso em integrar uma Casa que abraçou grandes vultos da literatura e da História capixaba, como Afonso Cláudio de Freitas Rosa, Heráclito Amâncio Pereira, Levy Rocha, Guilherme Santos Neves, Luiz Serafim Derenzi, Estelita Lins, Ceciliano Abel de Almeida, Virgínia Tamanini, Thiers Velloso, Adelpho Poli Monjardim, Hermógenes Lima Fonseca, Augusto Ruschi, Elmo Elton, Roberto Almada, Renato Pacheco, e tantos outros, ilustres representantes das Letras do nosso Estado. A Academia Espírito-Santense de Letras sempre se notabilizou por contar, entre seus pares, com mentes brilhantes do pensamento capixaba. Um deles foi o saudoso e querido Miguel Marvilla, poeta e contista, ocupante da Cadeira nº 18 e que desencarnou em 2009, cuja vaga deixada tornei-me postulante e que agora, por aclamação dos meus pares, tomo posse. Digolhes que é uma honra sentar, a partir desta data, na Cadeira que foi ocupada pelo admirável Marvilla, e é com orgulho que me integro a esta Casa. Ofereço a minha diuturna e humilde atividade literária que mantenho desde a tenra idade, e prometo trabalhar em conjunto com os demais confrades, visando o engrandecimento maior da Academia, projetando-a cada vez mais no cenário nacional. Com o meu ingresso nesta valorosa Casa, berço da intelectualidade capixaba e que enche de orgulho aos amantes das letras, atendo assim a um desejo pretérito. Lembro-me da minha infância quando descobri os livros e fiz deles grandes amigos, e prometi a mim mesmo que escreveria por toda a vida. E assim venho fazendo. Ainda criança, rascunhei poesias. Aos 13 anos, em três cadernos escolares, terminei o meu primeiro livro, um romance juvenil. Já na adolescência, decidi ser jornalista. E depois vieram as primeiras obras editadas, que hoje são oito, além de artigos publicados em revistas. Enfim, a “amizade” com os livros levaram-me a ser um escritor de livros e de notícias, e me ensinaram a ser um cidadão. Recordo-me com carinho do meu tatear nos livros. Minha mãe, servente de escola, saía cedo para o trabalho e me levava junto, apesar de eu só ter aula à tarde. Com as manhãs livres, eu passava a maior parte do tempo na pequena biblioteca do colégio, tornando-me um assíduo amante da leitura. E na rua em que morava, costumava perturbar os vizinhos pedindo revistas em quadrinhos emprestadas, já que na minha casa não havia livros. Assim, agradeço a minha mãe Amabile pela oportunidade de vida, ou seja, de ter me apresentado aos livros, mesmo que indiretamente. Agradeço ao meu irmão Antônio Carlos, que na época morava no Rio de Janeiro, que sempre chegava de viagem trazendo na bagagem revistas e exemplares da Coleção Conhecer, com as quais eu me deliciava em longas leituras. Mais tarde, já na puberdade, Tônio me presenteou com livros da série Robinson Crusoé e de Monteiro Lobato. Agradeço as minhas irmãs Kátia e Sandra que foram heroínas ao serem obrigadas ao ouvir, pacientemente, a leitura dos meus primeiros escritos. Quanto ao meu pai Ézio, recordo dele com muito amor. Éramos uma família unida, apesar da inevitável dor do aprendizado, e continuamos unidos por laços etéreos, graças a Deus. Casei-me com Daniele, esposa e companheira, e tivemos João Henrique, nosso filho querido, inspiração para duas obras infantis. E foi, a partir do casamento, que produzi a maioria dos meus escritos. Encontrei, no seio do lar, a tranqüilidade para investir na minha missão pessoal: escrever livros. E assim, no silêncio da noite ou nas claras manhãs, rascunhei e depois publiquei os meus sonhos, os meus mistérios, os meus ideais. Acredito que livros são como tesouros da humanidade, pois as ideias são eternas. Senhoras e senhores, no início deste ano de 2010, o amigo e agora confrade Leonardo Monjardim incentivou-me a disputar uma vaga na Academia Espírito-Santense de Letras. A princípio fui refratário à ideia, argumentando que este era um projeto para depois dos 50 anos de vida. Mas fui convencido do contrário por amigos e familiares. E hoje tomo posse na Cadeira nº 18 que tem como patrono monsenhor Eurípedes Calmon Nogueira da Gama Pedrinha, capixaba ilustre nascido na Vila do Riacho, em 1864. Ainda jovem mudou-se para o Rio de Janeiro onde fez seus estudos religiosos e recebeu às ordens de presbítero secular. Foi agraciado com o título de monsenhor após se empenhar na instalação do bispado no Espírito Santo. Orador sacro e parlamentar, Eurípedes Nogueira da Gama publicou a obra Tímidos Ensaios, além de outros trabalhos de menor importância. Faleceu em 1919, aos 54 anos. O 1º ocupante da Cadeira 18 foi o baiano Manoel Teixeira Leite, nascido em 1891. Aos 10 anos, mudou-se com a família para Vitória. Foi telegrafista na cidade de Anchieta, mas abandonou o cargo para seguir o jornalismo, sua vocação. Trabalhou na Imprensa Oficial, no Diário da Manhã, na revista Vida Capichaba, bem como em A Tribuna e A Gazeta. Publicou o livro de poemas Plenilúnios e deixou algumas obras inéditas. Faleceu em 1985, aos 94 anos. O 2º ocupante da Cadeira 18 foi o advogado, professor e magistrado Eugênio Lindenberg Sette. Capixaba de Vitória, nasceu em 1918. Brilhante jurista, recebeu do Tribunal de Justiça do Estado o Colar do Mérito Judiciário. Cronista e poeta, publicou os livros Sinfonia das Ruas de Vitória, Praça Oito e Torta Capixaba. Eugênio Lindenberg faleceu aos 72 anos, em 1990. Falarei agora do meu antecessor, o último ocupante da Cadeira 18: o nosso saudoso e querido Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira, um dos mais admirados poetas capixabas. Ele nasceu perto do mar, em Marataízes, no dia 29 de setembro de 1959. Ainda criança, deixou sua terra e veio morar em Vitória, na Cidade Alta. Sua casa foi o antigo Convento de São Francisco, que funcionava na época como orfanato. Lá de cima, o garoto Miguel gostava de observar o vai e vem de navios na baía de Vitória. Curioso pela Geografia, sabia todas as capitais do mundo, e gostava de recitá-las quando provocado. Na juventude deixou o orfanato e foi morar sozinho. Amante dos livros, formou-se em Letras pela UFES. Depois, passou a trabalhar na Caixa Econômica Federal. Em 1987, com apenas 28 anos, descobriu um câncer linfático, mas conseguiu curar-se da doença. Casou-se com Nilza Maria Del Puppo - a quem Miguel carinhosamente chamava de “Polenta” - e tiveram dois filhos. Com o fim do casamento, anos depois o poeta encontrou uma nova companheira, Priscila, com quem conviveu os seus últimos quatro anos de vida. Em 10 de outubro de 2009, inesperadamente, o poeta nos deixou. Aos 50 anos, faleceu em Vitória. A paixão pelos livros marcou a vida de Marvilla. Quando criança, a literatura despertou nele grande fascínio. Ele gostava de contar que no orfanato havia uma porta que ficava sempre fechada. Menino curioso, não sossegou enquanto não conseguiu saber o que havia por trás daquela porta, e lá descobriu um tesouro: livros e revistas em quadrinhos. E, a partir dali, tornou-se um amante da literatura. Uma obra, nessa época, marcou a sua vida: Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, que leu quando tinha 14 anos. Já na universidade, seu magnetismo pessoal e sua poesia afloraram. Sua figura era conhecida no campus e na popular Rua da Lama, onde circulava vendendo seus dois primeiros livros, impressos em mimeógrafos: Do amor à Política, de 1978, escrito em parceria com o confrade Oscar Gama, e A Fuga e o Vento, de 1979. Depois vieram outros lançamentos: Exercício do Corpo; Os Mortos estão no Living; Lição de Labirinto; Tanto Amar; Sonetos da Despaixão; Dédalo, sua obra mais conhecida, lançada em 1996; Nelson Abel de Almeida: um homem e um espírito de lugar; Jardins de Vitória; Luísa, Juliana, Sigmund; e O Império Romano e o Reino dos Céus, sua dissertação de mestrado em História. Com sua obra ganhou vários prêmios, inclusive internacionais. Contudo, a paixão de Marvilla pelos livros não se resumia apenas em escrevê-los, mas também em editá-los. Foi assim que colocou na praça dezenas de livros de autores capixabas como responsável pela Editora Flor & Cultura, e pela Coleção Palavras da Cidade, da Prefeitura de Vitória. Sua marca: o zelo pela edição de qualidade. Miguel foi também editor da Revista Você, da UFES, e organizou as coletâneas Escritos entre Dois Séculos, A Parte que nos Toca e Alguns de Nós. Em toda sua produção, Marvilla deixa traços de um poeta e cronista preocupado com a realidade cruel e desumana, e com as inquietações do homem preso em labirintos ou à beira do precipício. Por metáforas, ou não, ele fala de amores e das encruzilhadas da vida. O que detestava era ser rotulado de pós-moderno ou de quererem lhe colocar amarras. Miguel brigava e lutava contra as influências, e jamais deixou de ser um combatente criativo da linguagem. Uma vez, nos idos de 1996, quando eu era repórter do Caderno Dois de A Gazeta, entrevistei o poeta na ocasião do lançamento de Dédalo. Naquela conversa de redação, ele me falou da sua paixão pelo poeta Fernando Pessoa e da dualidade do homem - do ser e do não ser. Na última vez que o vi, ele atravessava a Praça Costa Pereira. Usava uma camisa amarela e um jeans desbotado. Na hora pensei comigo: “Lá vai um homem simples e de bons sonhos”. Não sei porque mas gravei aquela imagem, sem saber que semanas depois o poeta nos deixaria. Bem, meus amigos, gostaria de encerrar a minha homenagem a Miguel Marvilla com a leitura de um dos seus belos poemas. Convidei uma admiradora do trabalho do poeta e nova integrante da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras, Renata Bonfim. (LEITURA DO POEMA) PARTE 02: A literatura contra a violência Senhoras e senhores, neste meu discurso de posse na Cadeira 18 da Academia Espírito-Santense de Letras, abordarei o tema: A literatura como ação afirmativa contra a violência. Como nova semente desta Casa, gostaria de convocar os meus pares, os confrades da nossa ilustre Academia, para que voltem suas escritas para o combate silencioso e consciente deste mal de todos os séculos que é a violência, mas que neste princípio do século XXI, infelizmente, aflora de forma efetiva e absurda, chegando mesmo à banalização. Nas ruas, nas praças, nas escolas, nas casas, nos jogos eletrônicos, nos jornais, na televisão, em todos os lugares, vemos a violência cada vez mais entronizada no nosso cotidiano. Insuflada por ideias vãs, por costumes e princípios arcaicos, a violência já não deveria compor o cenário da civilização pós-moderna. Vivemos a época do avanço científico, das novas tecnologias, da globalização. Mas, diante de tamanha dianteira materialista, faz-se necessário que abramos os olhos para o avanço moral do homem, para princípios que levem em conta o amor ao próximo. Há uma violência que se ramifica em sua diversidade. Parece que há uma desconstrução da paz. Passamos por um forte período de assolações morais que invertem virtudes e valores, que são abafados e sufocados. Vivemos, assim, um período de reflexão sobre esses tempos amargos, em busca de alternativas à degradação do ser humano. Sabemos que a violência não pode acabar, pois é constitutiva do homem. Mas é possível mudar o homem, dotando-o de uma consciência universal que pensa no próximo de maneira fraterna e divina. Que tipo de violência observamos? São várias as formas de violência, comportamentos que causam danos a outrem, infringindo sua integridade física ou psicológica. Segundo os manuais, a violência caracteriza-se pela ação impaciente e baseada na ira, que não convence ou busca convencer o outro, simplesmente o agride. Embora a mais evidente das violências seja a física, existem outras, como a psicológica, a ideológica, a cultural, a de Estado e até a violência nas artes. Há violência contra a mulher, contra a criança, contra o negro, contra o homossexual, contra o pobre. Senhores e senhoras, vivemos em um mundo cercado pela brutalidade, e as vítimas – na maior parte dos casos – são incapazes de se defender, tornando-se reféns da intolerância, da rejeição, da indiferença, da discriminação, do desrespeito, do preconceito. O homem pós-moderno, frente à desenfreada violência, adoece. É vítima de seqüelas psicoemocionais, muitas vezes, irreversíveis. Podemos assim afirmar que a violência é contrária ao direito, à justiça do homem, e às leis naturais, e por isso não podemos aceitá-la e muito menos compactuar com ela. Meus queridos confrades da Academia Espírito-Santense de Letras: não podemos fechar os olhos para esta epidemia do século XXI. Convoco-os nesta luta, usando como arma as nossas ideias, as nossas letras. De que vale a evolução intelectual se não é usada para o bem coletivo? O Livro dos Espíritos é bastante sábio quando diz que o progresso intelectual geralmente precede ao progresso moral. Segundo o texto, a inteligência daria ao homem maior discernimento entre o bem e o mal, e disso resultaria em modificações de procedimentos e expectativas. Já Emmanuel, na obra espírita O Consolador, completa afirmando que “a parte intelectual sem a moral pode oferecer numerosas perspectivas de queda”. Nós, escritores, não devemos então nos furtar ao momento, sermos omissos quando observamos o mal triunfar. É preciso combater toda e qualquer tipo de violência com a força do bem, com a força da nossa escrita. Somos homens instruídos, e não podemos usar o véu da escuridão, tapando os olhos para a brutalidade cotidiana. E, se não somos adeptos da violência em suas mais variadas dimensões, então devemos combatê-la com a arma que nos é tão próxima: a literatura. Este não é um convite, mas um chamamento aos meus partícipes para que nos engajemos nesta cruzada, seja por intermédio da poesia, do romance, da prosa, do conto, da crônica, etc. Mas, não falo aqui em uma literatura passiva. Clamo por uma literatura de caráter militante ou pró-ativa, qual seja: baseada no compromisso social. É necessário que nós da Academia sejamos mais engajados, que abracemos o movimento em defesa da nãoviolência e da justiça social. Que nós, chamados de imortais por nossas ideias, também sejamos imortais pela nossa militância em defesa da paz. Assim, contra a violência, a literatura! Uma das expoentes deste gênero engajado é a escritora cabo-verdiana Dina Salústio. Em seus contos, ela questiona a violência da hiper-competitividade que domina a sociedade capitalista, e faz uma reflexão sobre a ética distorcida, estimuladora da violência e que induz as pessoas a ser, ou a desejar ou a querer aquilo que não são ou não possuem. São os filhos da violência. São pessoas que usam máscaras para poderem sobressair, para serem heróis de qualquer coisa. Infelizmente, diz a escritora, “não nos educaram para corajosamente debatermos os nossos medos, falhas, hesitações e infernos”. Enfim, senhoras e senhores, somos todos protótipos da violência. É da tradição de parte da literatura capixaba, uma atenção aos temas da miséria, das desigualdades sociais e da violência. Podemos citar os escritos de Carmélia Maria de Souza, Wilson Coelho e Valdo Motta. E é da tradição cultural brasileira, o engajamento político e o compromisso social do intelectual, neste caso, do escritor. Eu pergunto: isso se perdeu aqui no Espírito Santo? Nossos intelectuais já não são valorosos combatentes das violências sociais, e se esqueceram do engajamento na luta em defesa da cidadania e dos direitos fundamentais do homem? Creio que a revolta e a indignação devem se apossar do narrador diante da violência desmedida. O narrador não pode vivenciar uma estranha sensação de inércia e de impotência frente às barbaridades que assolam o cotidiano. Vejo na literatura engajada o papel social do escritor, que deve fugir ao sentimentalismo e a demagogia, e que sofre diante das denúncias que faz e por se ver limitado às suas denúncias. Bem, é com essa proposta que chego à Academia Espírito-Santense de Letras: lutar por uma literatura capixaba mais atuante e participativa. Não é demagogia, senhores acadêmicos. É apenas ou tão somente fazer da nossa escrita um instrumento em favor da não-violência, de combate à brutalidade que nos consome noites em claro, que esfacela nervos, que tira vidas tão preciosas. É necessária uma postura ativa, que saiamos da posição de atores inertes e apenas observadores das mazelas do mundo. O intelectual do século XXI, amigos confrades, para garantir sua sobrevivência como pensador moderno, deve antes de tudo fazer uma urgente autocrítica e, em seguida, testar novas formas de participação e engajamento. Garanto que não é só idealismo ou pureza cristã, mas sim um compromisso com a vida. Por exemplo, temos que dar voz, mesmo que de forma indireta, às classes menos favorecidas e aos marginalizados em nossa literatura. Temos que lutar, mesmo que silenciosamente na solidão das nossas criações, por um mundo de oportunidades. Temos que colocar as nossas mentes a serviço daqueles que sofrem e clamam por justiça, os chamados indefesos, sem, no entanto, precisarmos recorrer a falsas colorações heróicas ou vitimizadas. Temos que marcar um lugar de relativa abertura da voz da periferia em nossos escritos. Dar voz aos excluídos é combater a violência ideológica e social que segrega, que mata o sonho e a esperança. No livro As Leis Morais, Rodolfo Caligaris sublinha que a inércia e a despreocupação para com o outro, principalmente o pobre e o fraco, é uma típica ação de egoísmo e orgulho, pois vive-se uma omissão individualista e de superioridade. Mas não é isso que espero encontrar na Academia de Letras. Como letrados, não é difícil para nós fazermos a anatomia do cotidiano de miséria, de crimes, de exploração e de discriminação, retrato de um sistema neoliberal que exclui, oprime e traz desesperança. Podemos gritar com os nossos textos sobre todo tipo de violência que nos incomoda, mas também podemos abordar todo o tipo de inconformismo que há nos bolsões de pobreza, entre os miseráveis e os fracos, entre aqueles que não têm voz. Logo, podemos ser os porta-vozes dos impedidos de gritar, dizendo: Chega de violência aos indefesos! A cultura, certamente, deve ser produzida como um exemplo de resistência às mazelas da pós-modernidade. Assim, a literatura – expressão ímpar da cultura - tem de responder ao mar de intolerância e de indiferença social. Precisamos, senhor presidente, de uma nova coleção para as produções da Academia. Temos, hoje, as importantes coleções José Costa e Roberto Almada, e a série Escritos de Vitória. Mas precisamos de uma nova coleção, mais voltada para a realidade atual, que retrate as turbulências da nossa sociedade e inclua a literatura marginal, feita na periferia. Hoje, não há mais distinção entre cultura “alta” e cultura “baixa”, seja ela uma cultura de massa ou popular. Estamos, certamente, vivendo na planície da cultura elitista e repetitiva. Temos que pensar na cultura que vem do submundo, dos guetos e favelas, da cultura mais engajada e mais crítica socialmente. Não podemos cair no erro de ficar repetindo os ideais dos vencedores. Temos que oferecer páginas em branco para que os indefesos possam escrever sua História. Novas e ricas páginas de literatura capixaba estão sendo escritas por jovens estigmatizados e que conhecem uma realidade que nós, acadêmicos, certamente não conhecemos. O que precisamos, senhores, é de uma concreta democratização de expectativas. Democratizar expectativas é também permitir, por exemplo, que a literatura de capixabas ilustres, como Virgínia Tamanini, Fernando Tatagiba, Renato Pacheco, e tantos outros, chegue à periferia. Como? Montando pequenas bibliotecas em centros comunitários ou distribuindo obras dos escritores locais. Cito o exemplo da cidade de Bogotá, na Colômbia, que criou o projeto Livros ao Vento. São lançados milhares de exemplares em versões de bolso de clássicos universais, que são distribuídos nos pontos de ônibus. Na contracapa, um pedido singelo: (abre aspas) “Ao terminar a leitura, passe este livro para outra pessoa ou deixe-o em um lugar público. Deixe que este livro voe” (fecha aspas). Penso que, para esta e outras ideias serem implantadas em nossa terra, seriam necessárias parcerias entre a Academia e o setor público ou privado, exemplo que já vem sendo conduzido tão bem pelas gestões da Casa. Mas, é fácil? Não, não é. Mas acredito que o Espírito Santo pode se tornar um símbolo da democratização da leitura. Nas comunidades onde o futuro é tão incerto, a literatura vira uma ferramenta contra a violência, pois o livro conscientiza o indivíduo de que ele pode intervir no meio, tornando-o um ator do processo de mudança social. Senhoras e senhores, penso que há três visões de mundo: uma individualista e egoísta da sociedade, ou seja, o importante é o benefício próprio em detrimento do próximo; outra de inércia ou de indiferença perante as ações e modelos sociais; e uma terceira que olha o mundo de maneira coletiva, pensando no bem-estar do próximo, no que resultará em benefício para todos... Minha visão de mundo é coletiva. Sempre foi. Assim aprendi com minha mãe: dar sem querer receber; ser ao invés de ter. E é desta forma, meus caros confrades, que pretendo me portar na Academia Espírito-Santense de Letras. Mas eu pergunto: Qual o papel do intelectual contemporâneo? Qual o nosso papel nesta sociedade que virou refém de todo tipo de violência? Será que temos de assistir a tudo impassíveis? Ou podemos ser atores do nosso tempo, mais representativos e ilustradores de uma realidade vil? É certo que não podemos ser omissos. Não fazermos nada é contribuir com o caos, é sermos apenas espectadores. Temos que reagir, lutar sem esmorecer. Temos que fazer dos nossos escritos a ponta de lança para atingirmos o coração dos leitores. Temos, acima de tudo, de procurar em cada linha, em cada frase, em cada palavra, fazer o bem com a nossa literatura, buscar melhorar o mundo com os nossos ideais e os nossos sonhos. Porém, como bem disse Martin Luther King, “o que me preocupa não é o grito dos violentos, mas o silêncio dos bons”. Gostaria que essa insatisfação, esse mal-estar que me corroe perante variada violência, possa também aflorar nos membros da Academia e assim, quem sabe, criar um ambiente para ousadias e rompimentos. “O progresso é o resultado da insatisfação”. É o que acredito. E esse progresso vem com a revolução moral, não aquela arcaica e deplorável, mas que pensa no amor ao próximo, no bem-estar da coletividade. Ou seja, vivemos o caos, mas do caos renasce uma nova vida. É o que acredito. Muito obrigado. José Carlos Mattedi