UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LUIZ MANOEL DA SILVA OLIVEIRA SUBVERTENDO O LEGADO DE CALIBAN: PERSPECTIVAS PÓS-COLONIAIS DE SUPERAÇÃO DA SUBALTERNIDADE EM UM ESTUDO COMPARATIVO DE JASMINE, DE BHARATI MUKHERJEE, E ALIAS GRACE, DE MARGARET ATWOOD RIO DE JANEIRO 2007 2 LUIZ MANOEL DA SILVA OLIVEIRA SUBVERTENDO O LEGADO DE CALIBAN: PERSPECTIVAS PÓS-COLONIAIS DE SUPERAÇÃO DA SUBALTERNIDADE EM UM ESTUDO COMPARATIVO DE JASMINE DE BHARATI MUKHERJEE E ALIAS GRACE DE MARGARET ATWOOD Tese apresentada à Coordenação dos Cursos de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura, na área de concentração Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ). CoOrientadora: Profa. Dra. Peonia Viana Guedes (UERJ). UFRJ – Faculdade de Letras Rio de Janeiro, 2º semestre de 2007 3 LUIZ MANOEL DA SILVA OLIVEIRA SUBVERTENDO O LEGADO DE CALIBAN: PERSPECTIVAS PÓS-COLONIAIS DE SUPERAÇÃO DA SUBALTERNIDADE EM UM ESTUDO COMPARATIVO DE JAS MINE, DE BHARATI MUKHERJEE, E ALIAS GRACE, DE MARGARET ATWOOD Tese apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura, na área de concentração Literatura Comparada. Aprovada em ___ de __________ de 2007. BANCA EXAMINADORA: __________________________________________ Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ) Orientador __________________________________________ Profa. Dra. Peonia Viana Guedes (UERJ) Co-Orientadora __________________________________________ Profa. Dra. Ruth Persice Nogueira (UFRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ) __________________________________________ Profa. Dra. Leila Assumpção Harris (UERJ) __________________________________________ Profa. Dra. Angélica Maria dos Santos Soares (UFRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha (UFRJ) 4 . À memória da minha mãe, Luzia, e do meu pai, Alfredo, que enfrentaram mares de dificuldades, para que eu chegasse até aqui; À memória da minha tia, Francisca, responsável por calmarias providenciais naqueles mares revoltos. 5 AGRADECIMENTOS Ao muito estimado Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho, que me orientou nesta pesquisa, com auxílio metodológico, observações críticas fundamentais, paciência, dedicação e muita amizade; À Profa.Dra. Peonia Viana Guedes, que, com sua co-orientação nesta pesquisa e a sua presença amiga, prolongou os apoios acadêmicos e emocionais já a mim concedidos desde a época da Graduação; À FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, que me concedeu o suporte financeiro indispensável para a realização desta pesquisa; Ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras da UFRJ, que me apresentou possibilidades de encarar a Literatura por prismas inusitados; À Profa, Dra. Ruth Persice Nogueira, também minha mestra e amiga, que sempre me incentivou a trilhar o caminho fascinante das descobertas literárias; À Profa. Dra. Leila Assumpção Harris, por seu entusiasmo, apoio constante e incentivo, desde o Mestrado; À minha esposa, Sílvia Regina, e meus filhos, Victor Luiz e Elisa Beatriz, pelo amor, paciência e abnegação em abrir mão de imensas quantidades de tempo, a eles não dedicadas, para que eu pudesse realizar e completar esta pesquisa; À minha sogra, Cylne Delgado Moreira, pelos apoios de várias naturezas que suavizaram momentos críticos coincidentes com os da realização deste estudo; A todos os meus amigos e amigas, aos presentes e aos já ausentes desta dimensão, que me agraciaram com os mais variados apoios nestes últimos anos. 6 SINOPSE OLIVEIRA, Luiz M. S. Subvertendo o Legado de Caliban: Perspectivas Pós-Coloniais de Superação da Subalternidade em um Estudo Comparativo de Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Um estudo da representação literária da superação da subalternidade e da construção identitária híbrida e emancipada dos sujeitos pós-coloniais femininos, em uma perspectiva comparatista entre os romances Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood, utilizando o Caliban de A Tempestade como metáfora fundacional dos sujeitos colonizados representados nas Literaturas em Língua Inglesa e os fundamentos críticoteóricos atinentes às Teorias Pós-Estruturalistas, às Teorias Feministas, às Teorias PósColoniais e aos Estudos Culturais. 7 RESUMO OLIVEIRA, Luiz M. S. Subvertendo o Legado de Caliban: Perspectivas Pós-Coloniais de Superação da Subalternidade em um Estudo Comparativo de Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. O objetivo principal desta Tese é evidenciar a representação literária da superação da subalternidade e da conseqüente aquisição de agenciamento, voz e poder pelo sujeito póscolonial feminino, nos romances contemporâneos em língua inglesa Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood. Para atingir esta meta, optou-se pelas seguintes estratégias: a) considerar a personagem shakesperiana Caliban, de A Tempestade, como metáfora fundacional dos sujeitos colonizados representados literariamente, enfatizando o seu potencial de resistência à dominação do colonizador europeu, simbolizado por Próspero, através do aprendizado da língua inglesa; b) estabelecer relações intertextuais significativas entre obras literárias em inglês contendo representações dos colonizados com os romances estudados, para avaliar, sob uma ótica comparatista, a complexidade do processo de construção das identidades híbridas do sujeito subalterno, em geral, e em condição feminina, especificamente, assim como a sua liberação das características subalternas herdadas de Caliban; c) ressaltar o papel fundamental das Teorias Pós-Estruturalistas, do cruzamento das Teorias Feministas com as Teorias Pós-Coloniais, e da Desconstrução derrideana para o estudo do processo de formação de identidade das protagonistas dos romances em causa, focalizando em especial a correlação existente entre a fragmentação das narrativas dos romances e das personalidades de Jasmine e Grace Marks; e, por fim, d) sublinhar a relevância do domínio da língua inglesa para a emancipação do sujeito pós-colonial feminino. Embora tenha havido um diálogo com diversas correntes do pensamento, privilegiaram-se nesta tese, sobretudo no que diz respeito às questões da subjetividade, identidade e alteridade, as contribuições das Teorias Pós-Estruturalistas, das Teorias Pós-Coloniais, das Teorias Feministas e dos Estudos Culturais. Destacam-se, assim, as idéias e postulados teóricos de Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Roberto Fernández Retamar, Bill Ashcroft, Gayatri Chakravorty Spivak, Homi K. Bhabha, Edward W. Said, Stuart Hall, JeanFrançois Lyotard, Fredric Jameson, Sarah Mills, Luce Irigaray, Leela Gandhi, Linda Hutcheon, Ania Loomba e Patricia Waugh, dentre outros. 8 ABSTRACT OLIVEIRA, Luiz M. S. Subvertendo o Legado de Caliban: Perspectivas Pós-Coloniais de Superação da Subalternidade em um Estudo Comparativo de Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. The main purpose of this Dissertation is to highlight the literary representation of the process of overcoming subalternity by post-colonial female subjects as well as of their consequent acquisition of agency, voice, and power in two contemporary novels written in English: Bharati Mukherjee’s Jasmine and Margaret Atwood’s Alias Grace. In order to accomplish this task, the following strategies have been chosen: a) to consider the Shakespearean character Caliban from The Tempest as an effective literary metaphor for the individuals subjected to colonization, due to his willingness to resist the domination exerted by the European colonizer, represented by Prospero, through the learning and mastering of the English language; b) to establish meaningful intertextual connections between literary works in English on the colonized subject and the two post-colonial novels aforementioned, in order to study, from a comparative perspective, the complexity of the process of constructing the hybrid identities of post-colonial (female) subjects, as well as their gradual discarding of Caliban’s negative legacy; c) to stress the fundamental roles of Post-Structuralist Theories, of the intersections between Feminist and Post-Colonial Theories, and of Derridean Deconstruction, for the analysis of the process of identity formation of the novels’ protagonists, by focusing particularly on the correlation between the fragmentation of the novels’ narratives and of their protagonists’ personalities; and, finally, d) to emphasize the importance of the domain of the English language for the emancipation of the post-colonial (female) subject. Although there has been a dialogue with other currents of thought, the main theoretical support of this dissertation, especially as regards the issues of identity, subjectivity and alterity, has come from Post-Structuralist and Feminist Theories, as well as from Cultural Studies. Among these, it is worth mentioning the contributions of Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Roberto Fernández Retamar, Bill Ashcroft, Gayatri Chakravorty Spivak, Homi K. Bhabha, Edward W. Said, Stuart Hall, Jean-François Lyotard, Fredric Jameson, Sarah Mills, Luce Irigaray, Leela Ghandi, Linda Hutcheon, Ania Loomba, and Patricia Waugh. 9 RÉSUMÉ OLIVEIRA, Luiz M. S. Subvertendo o Legado de Caliban: Perspectivas Pós-Coloniais de Superação da Subalternidade em um Estudo Comparativo de Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Alias Grace, de Margaret Atwood. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Le principal but de ce travail c’est ce d’évidencer la représentation littéraire du procès de surmonter la subalternité et la conséquente acquisition d’agencement, voix et pouvoir par le sujet post-colonial féménin, dans les romans contemporain de langue anglaise Jasmine, de Bharati Mukherjee, et Alias Grace, de Margaret Atwood. Pour cela, on a choisi les processus suivants : a) considérer le personnage shakesperéan Caliban, de La tempête, comme métaphore fondationale des sujets colonisés représentés littérairement, à cause de son potentiel de résistence à la domination du colonisateur européen, symbolisé par Propère, à travers de son apprentissage de la langue anglaise ; b) établir de relations intertextuelles significatives entre des oeuvres littéraires en anglais qui portent de représentations des colonisés et les protagonistes des deux romans étudiés, à fin d’évaluer, dans une perspective comparatiste, la complexité du procès de construction des identités hybrides du sujet subalterne féménin, aussi bien que sa libération du légat négatif de Caliban ; c) signaler le rôle fondamental des théories post-structuralistes, du croisement des théories féménistes avec les théories post-coloniales, et de la déconstruction dérrideanne pour l’étude du procès de formation d’identité des protagonistes des romans étudiés, en considérant surtout la correlation existente entre la fragmentation des narratives des romans et des personalités de Jasmine et Grace Marks ; et finalement d) mettre en évidence l’importance du domaine de la langue anglaise pour l’émancipation du sujet post-colonial féménin. Quoiqu’on a établi un dialogue avec de diverses courants du pensée contemporain, on a privilegié dans cette thèse, surtout en ce qui concerne de questions de subjectivité, d’identité et d’alterité, les contributions des théories post-structuralistes, des théories post-coloniales , des théories féménistes et des Études Culturels. Entre les théoriciens abordés, on doit mentionner à Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Roberto Fernández Retamar, Bill Ashcroft, Gayatri Chakravorty Spivak, Homi Bhabha, Edward W. Said, Stuart Hall, JeanFrançois Lyotard, Fredric Jameson, Sarah Mills, Luce Irigaray, Leela Gandhi, Linda Hutcheon, Ania Loomba et Patricia Waugh. 10 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................... 11 Capítulo 1 – Considerações Preliminares .............................................................................. 30 1.1 Considerações sobre o Pós-Estruturalismo, o Pós-Modernismo e a Desconstrução ...................................................................................................... 30 1.2 A Reinterpretaçao dos Binarismos Lingüísticos de Saussure ............................... 44 1.3 Os Estudos Culturais e as Teorias Pós-Coloniais ................................................. 48 1.4 A Contribuição do Comparatismo e da Interdisciplinaridade .............................. 57 Capítulo 2 – O Papel da Fragmentação na Narrativa e na Problematização da Subjetividade das Protagonistas Jasmine e Grace Marks .................................. 62 2.1 A Fragmentação na Contemporaneidade .............................................................. 62 2.2 A Fragmentação da Narrativa e das Identidades em Jasmine .............................. 66 2.3 A Fragmentação da Narrativa e das Identidades em Alias Grace ...................... 109 Capítulo 3 – A Contribuição dos Jogos de Sentidos Ficcionais para o Processo de Formação Identitária das Protagonistas Jasmine e Grace Marks .................... 134 Capítulo 4 – A Literatura Colonial e Pós-Colonial em Língua Inglesa como Instâncias de Enunciação e Resistência do Subalterno: de Caliban a Jasmine e Grace Marks .............................................................................................................. 163 Capítulo 5 – A Representação da Superação da Subalternidade de Jasmine e Grace Marks Enquanto Sujeitos Pós-Coloniais: A Reinvenção do Potencial de Caliban na Trajetória de Subjetificação ......................................................... 200 Considerações Finais .......................................................................................................... 246 Bibliografia ......................................................................................................................... 252 Sítio da Internet Referido Sem Autoria Definida ............................................................... 262 11 INTRODUÇÃO O lançamento de um olhar sobre as nossas histórias passadas, enquanto indivíduos ou povos oriundos de processos traumáticos de colonização, tanto na posição de dominante/colonizador ou de dominado/colonizado, tem exigido cada vez mais reavaliações constantes, para que as intrincadas conseqüências contemporâneas das relações que se estabeleceram e as que ainda se encontram em tessitura dinâmica possam começar a ser compreendidas de uma maneira mais clara, assim como para que novos paradigmas mais abrangentes possam abrigar os entendimentos e subjetividades resultantes desse processo. Nessa medida, uma vez que o nosso objetivo primordial aqui é defender a tese de que o sujeito pós-colonial (de modo geral) e o sujeito pós-colonial feminino (de forma específica) têm conseguido, pelo menos no texto literário, superar as condições de subalternidade impostas tanto pelas práticas imperialistas passadas e as neocoloniais presentes, quanto pelo fardo opressor da sociedade patriarcal (mormente no caso do subalterno enquanto mulher), as abordagens aqui eleitas se estendem também para searas que transcendem o escopo dos estudos literários tradicionais e penetram o campo da interdisciplinaridade. Em vista disso, ao utilizarmos um recorte bastante específico de A Tempestade, de Shakespeare, – toda a riqueza e a exuberância da rebeldia e da subversão de Caliban enquanto objeto das idealizações do colonizador Próspero –, e então elegermos o próprio Caliban como um dos ícones fundadores da expressão da resistência do sujeito colonial/pós-colonial subalterno nas literaturas em língua inglesa, já estamos antecipando uma postura interdisciplinar. Ou seja, essa natureza da abordagem justifica-se plenamente em se considerando o fato de que estamos na tentativa de produzir uma Tese na área da Literatura Comparada em que o Caliban shakesperiano, – personagem de uma peça teatral –, será encarado como uma entidade de quem as protagonistas Jasmine, de Bharati Mukherjee, e Grace Marks, de Margaret Atwood, deverão herdar as características de subversão, tanto para 12 minar as forças hegemônicas que as oprimem, quanto para descartar as sombras da subalternidade que as envolvem respectivamente nos romances Jasmine e Alias Grace 1. Essa relação tensa e dual aponta em última análise para a promoção e o fortalecimento do sujeito pós-colonial, numa perspectiva mais ampla, e para o empoderamento do sujeito pós-colonial feminino, de modo mais específico e contundente. E, naturalmente, essa representação positiva ficcional reverbera situações que de fato têm acontecido nas relações contemporâneas entre indivíduos (ex-colonizados e imigrantes), em países desenvolvidos (as ditas nações do primeiro mundo) e nos países em desenvolvimento (as ditas nações do terceiro mundo). Portanto, além de se utilizarem as visões críticas e as “leituras” do Caliban de A Tempestade como mote inicial para se efetivar a comparação entre os romances de Mukherjee e Atwood, vamos concomitantemente discutir parcelas dos discursos históricos acerca de alguns aspectos coloniais e pós-coloniais que permeiam as relações entre Ocidente e Oriente, com justificável ênfase na situação de certas colônias e ex-colônias inglesas, assim como importantes aspectos das Teorias Pós-Coloniais e Feministas e determinados conceitos de importância capital nas narrativas pós-modernas. Numa palavra, quebra-se, de início, a fronteira entre gêneros artístico-literários em virtude de se utilizar o personagem de uma peça teatral do final da era elisabetana inglesa (pertencente ao gênero “dramático”) como ícone do sujeito colonial subalterno, para se apropriar das suas características subversivas e se constatar como as protagonistas de duas produções literárias pós-modernas enquadradas no gênero “romance” lidam com esses elementos subversivos comuns a todos eles. Além do mais, a representação literária das qualidades e das “falhas” do colonizado inauguradas por Caliban na memorável peça 1 Em virtude de estarmos lidando com uma vasta gama de livros e artigos, tanto de publicação recente quanto muito antiga, - o que poderia gerar confusões entre a data original de publicação e a data da edição com que trabalhamos nesta Tese -, optamos por não mencionar datas entre parênteses quando se tratar de menção simples à obra no corpo do texto. Somente informaremos a data (da edição com que efetivamente trabalhamos) quando se tratar de referência completa (autor/ano/página). No entanto, na “Bibliografia”, procuramos, tanto quanto possível, inserir a data da publicação original de cada obra, além da data da publicação da edição com que trabalhamos (N. da A.). 13 shakesperiana também serão verificadas nos ícones subseqüentes do colonizado em outras obras literárias inglesas que também serão brevemente abordadas nesta Tese a título de ilustração emblemática da condição do sujeito subalterno, para melhor se entender o processo que se pretenderá demonstrar nas caracterizações das personagens de Atwood e Mukherjee. É oportuno frisar que, especificamente com relação a Alias Grace, a questão da quebra das barreiras entre os gêneros vai se acirrar não somente em função do flagrante uso da metaficção historiográfica, mas também por causa de outros usos e interpolações textuais pertencentes a outros “gêneros” diferentes do “romance”, dos quais Margaret Atwood vai amplamente lançar mão. Todavia, cumpre retardar referências mais específicas sobre o assunto, que serão tratadas com mais vagar em todos os capítulos desta Tese, direta ou indiretamente. Voltando agora o foco da nossa abordagem para um outro aspecto bastante relevante da questão, deparamo-nos com as complexas questões de poder, dominação e subordinação. A esse respeito, destacamos algumas breves especulações acerca das motivações de certos grupos humanos, desde um passado remoto, para exercer domínio sobre outros povos, tribos ou nações. Encontraremos razões históricas, sociais e econômicas claramente elevadas ao “status” de justificativas naturais para o fato, ou, até mesmo, razões de ordem religiosa ou cultural, numa posição principal, escamoteando razões sub-reptícias, quase sempre calcadas na pressuposição da intrínseca inferioridade generalizada (étnica, religiosa, cultural, social, econômica ou política) do povo que sofre os efeitos da colonização. Na verdade, a história de todos os povos está repleta de situações em que essa idéia se confirma. Portanto, seria possível pinçar interessantes casos ilustrativos, se o nosso objetivo aqui fosse revestido de um cunho eminentemente histórico. Contudo, o que se pretende colocar aqui em evidência é como o fenômeno do enfraquecimento do poderio das nações imperialistas entre os séculos XIX e XX acabou por se fazer representado direta ou 14 indiretamente em várias obras literárias anglo-saxônicas anteriores ao pós-modernismo e que ora são reinterpretadas à luz das visões críticas contemporâneas. Nessa medida, as relações de poder que sempre existiram entre indivíduos, grupos de indivíduos e entre metrópoles e colônias (ou até mesmo, mais recentemente, entre exmetrópoles e ex-colônias), após o surgimento dos Estudos Culturais, têm-se mostrado instigantes e reveladoras de novos conceitos, graças ao reexame das suas naturezas múltiplas, enfocando-se não somente os aspectos da dominação e da subjugação, mas também as muitas variações da questão escamoteadas no interespaço entre o binarismo “dominação/subjugação”. Não se pode negligenciar aqui que até chegarmos a este estágio de pensamento sobre essas relações foi necessário que a história mundial testemunhasse diversos acontecimentos, muitos deles sangrentos, para que os avanços políticos e sociais provocados pela emancipação político-administrativa de várias ex-colônias tivessem condições de se consubstanciar. Contudo, desde o final do século XIX, o poderio antes quase que inexpugnável dos grandes impérios começou a dar sinais de exaustão. Com efeito, de acordo com Benjamin Abdala (1998, p. 1502), no período que vai de 1830 a 1914, tivemos a última grande fase do processo colonialista, que se vinculou intimamente à expansão demográfica e à Revolução Industrial. Nesse período verificou-se o estabelecimento definitivo dos vários impérios europeus pelo mundo afora, os quais atingiram dimensões geográficas e estatísticas inegavelmente impressionantes. O império britânico atingiu a marca de trinta e cinco milhões de quilômetros quadrados, seguido pelo império francês com os seus doze milhões. Se usarmos uma visão de conjunto, por volta do final do período assinalado acima, os impérios britânico, francês, belga, holandês, germânico e italiano constituíam um bloco de duzentos milhões de europeus dominando setecentos milhões de pessoas. 15 Acreditamos que somente estes fatos históricos e estatísticos recém-evocados já seriam suficientes para que as reavaliações e o reexame das múltiplas questões suscitadas pelo colonialismo e pelo pós-colonialismo merecessem um lugar de ainda mais destaque nas discussões contemporâneas sobre a cultura, a literatura, a história, as identidades e os direitos humanos, dentre uma série de outros campos, ao invés de se tentar solapar esse tipo de discussão, como o fazem muitos críticos ácidos que não vêem utilidade em se reabrirem certas chagas da humanidade que, por motivos ideológicos, se esforçam para apagar da nossa memória. Aproveitando ainda mais um pouco a esteira de considerações levadas a efeito por B. Abdala, podemos enfocar o aspecto e o período que nos interessa aqui mais de perto, a época turbulenta da segunda década do século XX, em que as bases do império colonialista começaram, de fato, a ruir: A partir de 1920, a crise final dos impérios coloniais eclodiu. Os clamores por emancipação política e independência da parte dos povos colonizados, associados aos problemas gerados pelos custos financeiros de se manterem colônias que muitas vezes não mais produziam lucros para a metrópole, facilitaram o enfraquecimento do sistema colonial, principalmente após 1945. Em três décadas (1945-1975), sob o choque provocado pelos movimentos nacionalistas e a reestruturação das políticas colonialistas, os impérios coloniais começaram a se desfigurar. As velhas estratégias de dominação e exploração direta e arrasadora dos primórdios do passado colonialista passaram a dar lugar a formas novas e mais sutis de dominação, mas que nem por isso podem ser consideradas menos cruéis (ABDALA, 1998, p. 1502-1503). Em complemento às palavras recém-citadas de Abdala, Angelika Bammer diz-nos que todo o tumulto que se instalou nos territórios dominados pelas antigas metrópoles de certa forma gerou grandes movimentações e deslocamentos de grupos, indivíduos e povos por todo o século XX, como nunca se havia registrado na história da humanidade. Bammer refere-se à separação das pessoas das suas culturas nativas tanto pelo deslocamento físico para outras áreas (como refugiados, imigrantes, migrantes, exilados ou expatriados), quanto pela imposição colonial de uma cultura estrangeira (que ela denomina “displacement”), como uma 16 das experiências mais traumáticas e formativas do século XX. Ela afirma que quaisquer que sejam os cálculos estatísticos, os números são alarmantes. Somente para citar um exemplo, como o do deslocamento de grupos humanos em conseqüência das perseguições nazistas propriamente ditas e da Segunda Guerra Mundial, Bammer estima que, durante os anos da dominação de Hitler, mais de trinta milhões de pessoas foram forçadas a abandonar os seus países, enquanto que a distribuição populacional da Europa depois do final da Segunda Guerra ocasionou a migração permanente de uma outra leva estimada em vinte e cinco milhões de pessoas. Por fim, Angelika Bammer dá uma informação vital acerca desses deslocamentos quando também os associa aos efeitos das políticas coloniais e pós-coloniais, como se verifica no trecho abaixo2: Os dados referentes aos refugiados registram uma história semelhante. Além das guerras e dos ditos desastres naturais, a combinação das práticas coloniais e imperialistas, executadas numa escala de abrangência internacional, e das discriminações étnicas, religiosas e raciais praticadas e sancionadas pelo Estado dentro dos próprios países de origem dos perseguidos tornaram a migração e a expulsão em massa de pessoas uma característica “natural” e familiar das políticas domésticas e internacionais do século XX. 3 Bammer ainda ilustra a situação com mais dados impressionantes ao afirmar que o século XX testemunhou o maior número de refugiados jamais registrado oficialmente pela História – entre sessenta e cem milhões, desde 1945. Com relação ao caso das pessoas que, embora não expulsas, são obrigadas a se deslocar dentro dos seus próprios países por processos de colonização interna ou externa, os dados são alarmante, mas imprecisos. Por exemplo, segundo a autora, nem todos os vinte e três milhões de indivíduos que viveram sob o governo imperial francês na Indochina, nem tampouco os trezentos e quarenta milhões de 2 A maior parte das traduções das referências bibliográficas e citações em língua estrangeira é do autor da Tese. Quando este não for o caso, inserir-se-á nota de rodapé indicando a autoria da tradução em questão (N. do A.). 3 No original em inglês: “Refugee counts tell a similar story. In addition to wars and so-called natural disasters, the combination of colonial and imperialist practices carried out on an international scale, and state-sanctioned ethnic, religious, and racial discrimination practiced intranationally have made mass migration and mass expulsion of people a numbingly familiar feature of twentieth-century domestic and foreign policy” (BAMMER, 1994, p. xi). 17 colonizados sob o domínio inglês no subcontinente indiano podem ser considerados como “deslocados” pelo governo colonial, mesmo que se entenda “deslocamento” de uma forma metafórica. Como se percebe, as condições gerais de vida sempre foram difíceis e tortuosas para a maioria dos povos que vivia sob o domínio implacável das nações imperialistas, tendo que amargar uma longa “via crucis” até a conquista da sua emancipação política. Destacamos, dentre várias dessas histórias de emancipação, a da Índia, a maior e, quiçá, a mais importante colônia inglesa desde os primórdios do Império Colonial Britânico. A emancipação política da Índia, conseguida em 1948, somente não foi mais traumática devido à firme e decisiva ação do seu famoso líder político e espiritual, Mahatma Gandhi, defensor da política de resistência pacífica e da desobediência civil, claramente inspirada nos princípios filosóficos do Transcendentalismo norte-americano de Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau. Assim, como o foco principal desta Tese visa buscar uma base teórica de sustentação para se detectarem nas produções literárias coloniais e pós-coloniais indícios de aquisição de agenciamento, voz e poder por parte do colonizado, principalmente através da aquisição do inglês, enquanto língua do dominador, para subverter a lógica da dominação imperialista, podemos, de início, usar o exemplo de Gandhi para ilustrar a questão por um viés histórico. Nascido na Índia em 1869, ele estudou Direito em Londres de 1888 a 1891. Residiu na África do Sul, de 1893 a 1914, onde tomou a defesa da comunidade indiana, sujeita a um racismo que as autoridades tendiam a oficializar, e publicou, em 1909, A Autonomia da Índia, livro que contém um verdadeiro repositório contra o materialismo ocidental e contra a violência. Essa doutrina era baseada no Hinduísmo, no Cristianismo, no Transcendentalismo (como já afirmamos anteriormente) e em pensadores como Leon Tolstói. De volta à Índia, em 1915, ainda permaneceu fiel aos ingleses por alguns anos, até o Massacre de Amritsar, em 1919. A 18 partir de então, engajou-se em várias lutas, sem abrir mão da sua filosofia pacifista, sendo aprisionado várias vezes, mas vendo também evoluir o processo emancipatório indiano, até que um fanático lhe tirou a vida, em 1948. Ora, a lição de Gandhi parece-nos suficientemente emblemática para fazer parte desta Introdução, na medida em que ele aprendeu e dominou a língua inglesa muito bem, chegando a se graduar em Direito na sede da metrópole e acumulando também a vivência em outra nação que igualmente sofrera os efeitos do colonialismo e do imperialismo inglês. Em suma, Gandhi teve uma vida de preparação e estudo dos meios e da ideologia do dominador até não ver mais alternativa de conduta que não a de lutar, mesmo que pacificamente, contra os métodos sangrentos e desumanos do Império Britânico. A história real de Gandhi e da emancipação da Índia encerra a mesma tônica que pretendemos se materialize nesta Tese: o estudo de algumas das estratégias que autores e autoras têm usado, principalmente na reescritura e reexame de obras ditas canônicas, que deixem transparecer indícios de que o sujeito subalterno passa a dominar a linguagem do dominador, não para docilmente lhe cumprir os desígnios, a exemplo do que acontece com Sexta-Feira, em Robinson Crusoe, mas para subverter a lógica da dominação via língua, literatura e cultura impostas (atitude cujo embrião já é perceptível nos impropérios do Caliban de A Tempestade). Ainda a título de ilustração dos estratos históricos que dão conta dos mecanismos da dominação, podemos evocar o recuado fato do expansionismo do Império Romano na Antiguidade, que se alastrou por imensas extensões territoriais e teve na conquista dos gregos um dos momentos talvez mais caracteristicamente singulares nas relações dominadordominado. Essa alegada peculiaridade se traduz pelo fato de que, de um modo geral, os romanos impunham a sua dominação eminentemente militar, que precedia a introdução da administração burocrática, legislativa e política nas regiões dominadas, porém mantinham 19 certa tolerância quanto às práticas culturais e religiosas dos povos dominados, cuja comprovação é também perceptível no caso do povo Hebreu, antes e depois de Cristo. Todavia, mais singular ainda se configura o caso da conquista da Grécia, no qual, em contrapartida ao exercício do domínio militar sobre os gregos, os romanos não puderam se isentar da dominação cultural e religiosa helênica que naturalmente se infiltrou e se impôs no seu império, com a incorporação das divindades do panteão grego, mesmo que renomeadas, e com uma ou outra modificação em seus papéis e funções mitológicas. Além desse fato relevante, outros aspectos da cultura helênica foram similarmente absorvidos pela sociedade romana, principalmente com a utilização de preceptores gregos para a educação dos jovens (DURANT, 2001, p. 158-159). Se considerado à luz dos Estudos Culturais, tal estado de coisas já aponta para certas formas de hibridismo e para a propalada indissociabilidade entre as identidades/alteridades de colonizadores e colonizados, conforme figura nos postulados das Teorias Pós-Coloniais (ASHCROFT, 2002, p.11 e GANDHI, 1998, p. 11). Já quanto ao período que vai do século XI, na Idade Média, até o começo do século XVI, as estratégias de dominação colonial se desenvolveram sob a égide de grandes companhias comerciais, criadas e mantidas pelos principais países colonizadores e importantes cidades européias, tais como Veneza, Gênova e Pisa. Entretanto, foi a partir do século XVI em diante que o colonialismo começou a assumir formas mais irregulares e variadas, devido ao avanço e à expansão das então nascentes potências colonizadoras, tais como Espanha, Portugal, França, Holanda e Inglaterra, que começaram a estender os tentáculos do seu poderio para regiões longínquas e outros continentes, como a África, a Ásia e as Américas, e, mais tarde, a partir do século XIX, também para a Oceania. Os resultados de tais ações de dominação quase sempre eram precedidos ou concomitantes a um “esforço civilizatório” cujo objeto eram os nativos dessas terras, os quais eram comumente designados como animais - tidos como bugres e desprovidos de alma. A situação era de tamanha 20 intolerância com relação às diferenças do “Outro”, enquanto colonizado, que, por vezes, a própria religião européia hegemônica, velada ou explicitamente, endossava as razões para a alegada inferioridade dos povos conquistados, como no caso da América espanhola e da América portuguesa. Como era de se esperar, os países que haviam adotado as visões reformistas não se diferenciavam muito dos católicos quanto a essas práticas colonialistas. Fica claro, então, que as ações de conversão para o Cristianismo visavam mais a uma “domesticação” do que consideravam ser tendências selvagens, incivilizadas e beligerantes dos nativos do que a uma real intenção de salvação espiritual, com o apagamento das práticas religiosas, ritualísticas e culturais autóctones. Em suma, no caso das colônias de países católicos, a despeito da sinceridade de alguns dos religiosos envolvidos nos esforços de conversão e civilização dos ditos índios, nativos ou selvagens – fato que não se pode negar – a principal finalidade dessa domesticação e pacificação dos aborígenes era desprover-lhes dos meios de resistência contra o efeito de “rolo compressor” que tinham sobre eles as ações mercantilistas coloniais. Com relação aos países protestantes, dos quais podemos ter a Inglaterra como referência emblemática, o apagamento da cultura e das práticas religiosas dos povos colonizados se processou pela via do ensino da língua inglesa para a leitura dos textos bíblicos. Fazendo uma pequena digressão para ilustrar o fato de que as práticas coloniais realmente muito se assemelhavam, a despeito de o colonizador ser católico ou protestante, podemos ainda rememorar o caso do passado colonizador das Américas espanhola e portuguesa, em que também encontramos exemplos bastante traumáticos de carnificina e de violência desmedida contra os colonizados, como o dos lamentáveis e vergonhosos episódios ocorridos na missão jesuítica dos Sete Povos das Missões, em área do sul do Brasil e países vizinhos. Infelizmente, a destruição dessa Missão pela sanha imperialista desmedida não 21 parece se ter inscrito como símbolo de vergonha de uma forma mais peremptória como o episódio merecia. Ainda a respeito da alegada superioridade das nações européias, pretexto constante para dominar e civilizar os povos colonizados de todos os continentes, vale ressaltar as palavras do crítico e pensador cubano Roberto Fernández Retamar, em que ele expõe as feridas abertas por esse trágico encontro de culturas tão díspares e desconstrói algumas versões históricas oficiais que não focalizam o massacre dos colonizados com a devida atenção: Com relação ao nascimento do capitalismo, muitos fatos devem ser enfocados. Primeiramente, a invasão da América que se seguiu a 1492; a conquista e o genocídio, monstruosos como se mostraram; os milhões de pessoas arrancadas da África, e posteriormente de outras regiões e enviadas para as colônias para trabalhar como bestas; as diversas e ulteriores formas de exploração (...) uma história de atrocidade, rapina, desprezo, arrogância, ganância desmedida, espoliação ecológica, desprezo por outras culturas e intolerância a religiões não-cristãs. 4 É digno de nota, ainda, citar que Fernández Retamar desconstrói uma série de outras crenças e pressuposições, oriundas de leituras históricas que sempre privilegiaram a versão dos colonizadores a respeito dos horrores verificados em nome das ditas práticas civilizatórias cristianizantes. Ele cita, por exemplo, que embora a visão eurocêntrica hegemônica tenha admitido que os centros urbanos europeus dos séculos XIV, XV e XVI sediassem as cidades mais desenvolvidas de então, essa visão, além de extremamente tendenciosa, escamoteia situações reais não enfatizadas em muitos registros históricos do passado. Contudo, hoje já figuram em certas edições informações tais como a que dá conta de que, como observa o crítico, em 1492, na época da dita “descoberta”, estima-se que existiam em terras americanas 4 No original em inglês: “In relation to the birth of capitalism, several facts must be pointed out. First, the European invasion of America following 1492; the conquest and the genocide, monstrous as they are; the millions wrenched from Africa, and later from other places, enslaved and sent to work like beasts; the diverse and ulterior ways of direct or indirect exploitation; (...) a story of atrocity and rapine, of arrogance, greed and ecological despoliation, of hubristic contempt for other cultures and intolerance of non-Christian faiths” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 164). 22 cerca de dez milhões de habitantes espalhados pelas Américas. De igual modo, o conglomerado urbano mais populoso do mundo conhecido não se situava na Europa, pois era a cidade de Tenochtitlán, onde hoje fica a Cidade do México, novamente agora a mais populosa do planeta. Além disso, doenças como a peste e problemas como a indigência humana e a escassez de recursos naturais e de comida, que campeavam na Europa, eram inexistentes nas Américas e especialmente em Tenochtitlán, onde algumas das nações aborígenes tinham sistemas de plantio irrigado, esgoto e água potável, estradas e sistemas políticos e religiosos organizados, além de outros avanços, não compartilhados pelos “civilizados” europeus. Cabe, aqui, então, perguntar: Quem seriam, de fato, os civilizados e quem seriam os bugres, os ditos incivilizados? Entretanto, tal estado de coisas ainda é passível de se submeter a uma outra série de considerações atinentes aos Estudos Culturais contemporâneos, que dão uma contribuição vital para se entender a complexidade das relações de dominação política e cultural implícitas nas práticas coloniais e pós-coloniais, notadamente no que diz respeito a questões de raça, gênero, alteridade, identidade e etnia. Tais questões surgiram com a inauguração da ênfase nos Estudos Culturais por volta da década de 1950, nos meios intelectuais ingleses, e têm a função precípua de reexaminar as relações colônia/metrópole, assim como a de evidenciar e denunciar essas já aludidas formas sutis de dominação imperialista contemporânea, como nos ensina Edward Said em Cultura e Imperialismo. Para Said (1993, p. 9), o império é a relação, formal ou informal, com que um Estado efetivamente controla a soberania política de uma outra sociedade politicamente organizada. Esse processo pode se consubstanciar pela força ou colaboração política, dependência econômica, social ou cultural. Enfim, Said afirma que o imperialismo é simplesmente o processo ou política de se estabelecer e manter um império. Contemporaneamente, o colonialismo direto praticamente desapareceu; o imperialismo, como devemos encará-lo atualmente, ainda subsiste onde ele sempre esteve, em uma esfera cultural 23 geral, assim como nas práticas específicas de certos procedimentos políticos, ideológicos, econômicos e sociais. É nessa altura, então, que resolvemos começar a emitir alguns pontos de vista que já aproximam as considerações teóricas ainda incipientes desta Introdução às referências às escritoras que desafiam com a sua produção as questões imperialistas. Bharati Mukherjee, por assim dizer, especializou-se em histórias de sobrevivência protagonizadas por imigrantes intrépidos. No seu primeiro romance, The Tiger’s Daughter, de 1971, por exemplo, ela retrata Tara Banerjee Cartwright, uma mulher indiana oriunda da região de Bengala, bem sucedida na vida e educada no Ocidente, cujas constantes tensões com referência aos seus papéis como mulher bengali e esposa de um americano sobrepujam os bem intencionados esforços para entender o seu próprio mundo de diversidades culturais. Em Jasmine, de 1989, e Holder of The World, de 1993, descrevem-se as dificuldades do sujeito feminino enquanto imigrante e engajado na busca de identidade, assim como o sentido de segurança no lugar em que se habita. Em ambos os romances, a busca de identidade e os deslocamentos diaspóricos problematizam a discussão da questão pós-colonial e a expandem para domínios sobremaneira violentos e grotescos, embora bastante reais, denotando as tensões geradas pelas colisões de culturas diferentes. É interessante ressaltar que no caso de Mukherjee as diásporas experimentadas por ela mesma devem ter exercido algum tipo de influência na configuração das suas personagens itinerantes. Com efeito, segundo nos afirma Peonia Viana Guedes (2001, p. 230), Bharati Mukherjee nasceu no seio de uma família de classe média alta em Calcutá, Índia, em 1938, e recebeu uma educação de elite em um convento dirigido por freiras irlandesas. Após a sua formatura no ensino médio, passou alguns anos na Inglaterra e na Suíça e, ao retornar para a Índia, estudou nas Universidades de Calcutá e de Baroda, onde terminou o Mestrado em Inglês e Cultura Indiana Antiga. Em 1961, ela foi aos Estados Unidos participar do “Writer’s 24 Workshop” e receber o grau de Doutorado pela Universidade de Iowa. De 1966 a 1981, Mukherjee e o marido, o escritor canadense Clark Blaise, viveram no Canadá. Depois desse período, o casal emigrou para os Estados Unidos. Desde então, Mukherjee tem escrito livros de ficção e não ficcão, tem recebido prêmios literários, lecionou redação criativa nas Universidades de Colúmbia e de Nova Iorque, e atualmente leciona na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Margaret Atwood, considerada uma das mais importantes autoras canadenses da atualidade, também desafia as representações subalternas da mulher, enquanto critica severamente os mitos pioneiros e fundacionais do Canadá, assim como os mitos culturais quotidianos que submetem a mulher a papéis de subalternidade anteriormente não questionados. De acordo com Claire Buck (1992, p. 301), Atwood conjuga a excelência da sua produção intelectual a um elevado grau de sensibilidade para com as questões sociais e humanas, trabalhando incansavelmente como ativista e porta-voz de várias causas sociais, sendo inclusive membro ativo de instituições como a Anistia Internacional, por exemplo. Conseqüência natural disso, a produção literária de Atwood tem influenciado enormemente a escrita feminina contemporânea, dentro e fora do Canadá. Em 1970, ela reescreve Roughing in the Bush, or Life in Canada, da autora canadense do século XIX Susanna Moodie. Nessa reescritura, ela desafia o estereótipo da mulher colonizadora rude, que predominara na literatura canadense até então. Em The Journals of Susana Moodie (1970), Atwood produz um moderno trabalho de conscientização que suplanta as meras características de um diário realista, sublinhando temas feitos populares por Moodie e todos os escritores que nela se miraram. Tais temas incluem maridos ausentes, mulheres que sobrevivem bravamente a toda sorte de tragédias, crianças perdidas e frustrações, de modo geral. Em um outro romance de sua autoria igualmente importante, Surfacing, de 1972, Atwood apresenta uma história cheia de pujança, que utiliza o tema da sobrevivência, mas 25 também investiga e desafia os estereótipos femininos canadenses, classificando os Estados Unidos e as maneiras americanas como destrutivos, hipócritas e superficiais. Nesse romance, a mulher rejeita os homens americanos, que são descritos como subproduto da cultura popular e precursores do tipo de turista que procura experiências diferentes vindas das regiões remotas das áreas colonizadas, sublinhando uma visão do Canadá como nação pós-colonial. Além disso, a jornada da protagonista sem nome para achar o lócus apropriado para a sua “desconstrução psicológica e emocional” (movimento do eu estereotipado para a individualidade ou autoconstrução) é retratada como uma jornada de volta ao passado, à natureza e ao inconsciente (WHEELER, 1997, p. 270-271). Todavia, segundo nossa interpretação, Jasmine e Alias Grace apresentam possibilidades mais significativas para se proceder a uma análise comparativa das literaturas produzidas respectivamente por suas autoras, com a finalidade de se constatar a representação literária da superação do estigma de Caliban, por parte do sujeito pós-colonial, como descreveremos nos parágrafos seguintes. Muito embora existam diferenças fundamentais na abordagem da mulher enquanto sujeito pós-colonial nos dois romances em questão, assim como diferenças significativas na condução da narrativa, em contrapartida há uma grande quantidade de pontos comuns nas trajetórias das suas protagonistas. Em vista disso, a escolha das palavras apropriadas em um trabalho acadêmico que pretende lidar com as delicadas e complexas questões concernentes a obras literárias pósmodernas que apresentam tal natureza de especificidade deve ser um item tratado com muita cautela. Assim, quando nos propomos levar a efeito esta Tese comparativa sobre Jasmine e Alias Grace, enfocando especificamente as suas vertentes de interpretação enquanto formas de escrita pós-coloniais, e, desse modo, aproximando as representações das protagonistas das imagens suscitadas pelo Caliban shakespeariano, se faz necessário explicar por que termos 26 como “sombra”, “legado” e “superação de subalternidade” serão, aqui, tão fortemente associados a Caliban. De imediato, acorrem-nos as idéias de Gayatri Chakravorty Spivak contidas no artigo “Can the Subaltern Speak?” a respeito das suas considerações sobre a condição do sujeito pós-colonial feminino, que serão citadas em mais de um capítulo nesta Tese, e das quais já antecipadamente aproveitamos a noção básica de que a mulher sempre amargou a desvantagem de estar duplamente excluída nas sociedades coloniais, por razões políticas e de gênero, o que a mergulha em profundas “sombras” e lhe confere a condição de apagamento identitário. Dessa maneira, um dos primeiros motivos para a utilização de termos tais como “sombra” é justamente o espectro variado de possibilidades de interpretação das situações de exclusão e de segregação que afetam tanto Caliban, como um dos primeiros ícones literários do colonizado subalterno, quanto Jasmine e Grace Marks, entendidas como “herdeiras” dos legados de Caliban nas literaturas de língua inglesa da contemporaneidade. Seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos, de imediato, enfatizar as possíveis conotações negativas do vocábulo “sombra”, recordando-nos das associações de idéias que se tornam possíveis a partir do seu desdobramento semântico para “escuridão”, por exemplo, - o espaço onde a luz não alcança; o espaço da negatividade, da demonização e da reiteração da suposta inferioridade étnica e da nulidade da subjetividade do subalterno. Fazendo uma incursão mais profunda nas questões de identidade e alteridade, “ser uma sombra” equivale a não ser o sujeito, o ser, a personalidade, aquele que possui identidade e individualidade, mas uma mera extensão de um “Outro” opressor e obliterador de qualquer esforço de construção de subjetividade desse indivíduo apagado e retido nas armadilhas que a subalternidade imposta lhe cria. Não seria preciso nos alongarmos nesse ponto, bastando essas breves considerações preliminares acerca de “sombra”, para que ilações da mesma natureza referentes a “legado” e “subalternidade” se subordinem às significações a que “sombra” nos 27 reporta. De qualquer forma, voltaremos a essas argumentações em momentos mais apropriados no decorrer da Tese. Dessa forma, optamos por abordar a temática da aquisição de agenciamento, poder e voz por parte do sujeito subalterno enquanto mulher e colonizada em Jasmine e Alias Grace, – com o conseqüente afastamento dos tradicionais estigmas de Caliban – , através da divisão desta Tese em cinco capítulos. No primeiro deles, intitulado “Considerações Preliminares”, a nossa intenção principal é propor uma reflexão acerca das mudanças de parâmetros que marcaram a Teoria, a Cultura, a Literatura, a Lingüística e outros campos do saber, quando da exaustão do pensamento estruturalista e do surgimento de outras vertentes interpretativas dos fenômenos sociais e culturais que nos cercam. Nesse capítulo inicial também se pretende tanto articular as bases teóricas principais que nortearão as argumentações pela Tese afora, como evidenciar a fluidez, a elasticidade e o caráter de indeterminação das correntes pósestruturalistas, que conseqüentemente deram uma contribuição “sui generis”, por assim dizer, para o entendimento e a concepção das novas formas de subjetividade da contemporaneidade, naturalmente afastadas das concepções reducionistas e excludentes herdadas do pensamento iluminista. Todavia, deve-se aqui registrar que as concepções teóricas abordadas não se concentram exclusivamente nesse capítulo, pois por todos os outros recorremos de novo às noções já arroladas no Capítulo 1, assim como evocaremos o concurso de novos conceitos, sempre que se fizer necessário. No segundo capítulo - “O Papel da Fragmentação na Narrativa e na Problematização da Subjetividade de Jasmine e Grace Marks” -, pretendemos demonstrar a estreita associação entre a fragmentação estrutural e semântica dos dois romances (a desarrumação seqüencial lógico-cronológica dos eventos narrativos, o combate à tradicional ordem dos eventos do enredo em começo, meio e fim, e o questionamento implícito do que seja o romance enquanto gênero narrativo) e a fragmentação identitária das duas protagonistas. Em outras palavras, 28 nesse capítulo já começamos a desconstruir o sentido negativo de que o termo “fragmentação” possa estar imbuído, mostrando que as várias alteridades das protagonistas, expostas lado a lado com as “fraturas” e descontinuidades do texto, constituem, em última análise, fatores de enriquecimento identitário e promotores de uma subjetividade positiva em processo de formação. Já o terceiro capítulo, que recebe o título “A Contribuição dos Jogos de Sentidos Ficcionais para o Processo de Formação Identitária das Protagonistas em Jasmine e Alias Grace”, reveste-se também de fortes intenções desconstrutivistas, uma vez que temos ali a intenção de trazer contribuições teóricas do passado, como as de Henry James e Schlegel, desautorizando assim posições conservadoras que visam a negar a qualidade literária de obras contemporâneas, pelo fato de suas temáticas poderem estar imbricadas com questões de alta relevância no mundo de hoje, como as atinentes aos Estudos Culturais, por exemplo. No Capítulo 4 – “A Literatura Colonial e Pós-Colonial em Língua Inglesa como Instâncias de Enunciação e Resistência do Subalterno: de Caliban a Jasmine e Grace Marks”, objetivamos estabelecer uma larga correlação intertextual entre algumas obras literárias em língua inglesa, escritas no passado ou na atualidade, e Jasmine e Alias Grace, com o fim de, através desse diálogo entre as obras, avaliar os silêncios e as enunciações discursivas que acabam por realçar a efetividade do processo de construção identitária de Jasmine e Grace Marks. Para executar essa tarefa, começamos a usar a imagem do Caliban de A Tempestade, realçando o seu potencial subversivo, já um indício mínimo de conquista (mesmo que gradativa) de agenciamento por parte do colonizado subalterno. No Capítulo 5, finalmente, – “A Representação da Superação da Subalternidade de Jasmine e Grace Marks Enquanto Sujeitos Pós-Coloniais: A Reinvenção do Potencial de Caliban na Trajetória de Subjetificação” – pretendemos unir as pontas de muitas das diversas instâncias em que as personagens são representadas positivamente, como resultado da 29 conquista de agenciamento ou de definições e autodefinições discursivas que apontam para a emancipação identitária. Por fim, com a Parte intitulada “Considerações Finais”, pretendemos duas coisas, basicamente: primeiro, ousamos substituir a tradicional terminologia “Conclusão”, para adotarmos um mínimo de coerência com as Teorias Pós-Estruturalistas que utilizamos por toda a Tese, bem como para nos coadunarmos mais com as finalizações dos dois romances, que não “concluem” nada, a rigor, de uma forma peremptória com relação às questões identitárias dos sujeitos pós-coloniais femininos que retratam; e, em segundo lugar, tentamos juntar, de forma sucinta, as diversas referências e idéias desenvolvidas por toda a Tese para corroborar a efetividade da nossa hipótese principal. Em vista de tudo isto, os fundamentos teóricos desta Tese se nortearão pelos vieses críticos do Pós-Modernismo, do(s) feminismo(s), dos Estudos Culturais e das Teorias PósColoniais. Dessa forma, vários textos e idéias de teóricos como Jacques Derrida, Fredric Jameson, Ania Loomba, Gayatri Spivak, Edward Said, Homi Bhabha, Stuart Hall, Luce Irigaray, Michel Foucault, Linda Hutcheon e Jean-François Lyotard, dentre outros, serão, de forma geral, utilizados para subsidiar teoricamente as argumentações do trabalho. 30 CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 1.1 – Considerações Sobre o Pós-Estruturalismo, o Pós-Modernismo e a Desconstrução Neste capítulo inicial, antes de começarmos a abordagem mais direta da questão crucial da representação literária da emancipação da subjetividade das protagonistas Jasmine e Grace Marks, decidimos enfocar alguns dos mais emblemáticos aspectos do pensamento estruturalista e das posições críticas que nele se têm inspirado, destacando-se, entre eles, o generalizado ímpeto revisionista e desconstrucionista do Pós-Estruturalismo/Pós- Modernismo. Desse modo, como desdobramento dessa abordagem de ruptura, não poderíamos negligenciar a contribuição fundamental dos Estudos Culturais, para promover a visibilidade das minorias e dos seus problemas, assim como para realçar as interseções relevantes entre as Teorias Pós-Coloniais e as Teorias Feministas. Como todos esses aspectos são amplamente difusos e não sujeitos a rotulações simplistas, decidimos dar início às presentes considerações pela teia de relações envolvendo o Pós-Estruturalismo com outras posturas críticas e filosóficas surgidas simultaneamente ou até mesmo em decorrência do pensamento pós-estruturalista. Assim sendo, uma evidência primária dessas inter-relações e imbricamentos já se faz evidente pelo fato de que o termo “pós-estruturalismo” começou a ser usado teoricamente na década de 1970, juntamente com o “pós-modernismo” de Jean Baudrillard e Jean Françoise Lyotard, a “pós-crítica” de Fredric Jameson e a “desconstrução” de Jacques Derrida (BAROSS, 1994, p. 158) – ou seja, uma intensa rede de relações 31 entrecruzadas de diversos ramos do saber já começa a se imbricar e a se problematizar para fornecer posições históricas, sociológicas, filosóficas, lingüísticas, literárias, psicanalíticas e políticas (sem prejuízo de outras categorias não mencionadas aqui) que apontam para uma miríade de possibilidades de significados e interpretações dos diversos fenômenos (de várias naturezas) que giram em torno das atividades humanas, em função das novas formas de se pensar o mundo advindas desses posicionamentos, de questionamentos e reexames conceituais. A despeito de ter em sua agenda a intenção de oferecer propostas alternativas às limitações das concepções fechadas e reducionistas do Estruturalismo, o Pós-Estruturalismo não constitui uma escola de pensamento unificada ou até mesmo um movimento. A esse respeito, Patrícia Waugh (1998, p.177) emite opinões notáveis e esclarecedoras, ao comparar as agendas do pós-modernismo (que aqui trataremos como equivalente a “pósestruturalismo”) com as do feminismo. Diz-nos ela que o termo pós-modernismo estabeleceuse definitivamente graças a uma tomada de consciência típica dos eventos de fim de milênio, juntamente com a reflexão sobre todos os outros termos e conceitos encabeçados pelo prefixo “pós”, a partir dos anos de 1970 e 1980 em diante: pós-industrialismo, pós-marxismo, póshumanismo e, até mesmo, pós-feminismo. Entretanto, ao estabelecer um confronto entre “pósmodernismo” e “feminismo”, o discurso de Waugh dá conta das dificuldades de se fechar uma conclusão definitiva acerca do que seja “pós-modernismo”, como se retrata a seguir: Um problema crucial em se avaliarem as relações entre o pós-modernismo e o feminismo é que, embora o feminismo possa, em termos gerais, ser definido como um movimento político cujos objetivos são, em última análise, emancipatórios, o pós-modernismo não pode ser descrito de forma tão simples. O termo pósmodernismo tem sido utilizado para designar um espectro surpreendentemente amplo de práticas culturais, escritores, artistas, pensadores e opiniões teóricas relacionadas com a modernidade tardia. O tema também se refere a um sentido de mudanças radicais nas formas de pensamento que nós herdamos do Iluminismo europeu do século XVIII. 5 5 No Original em inglês: “A Crucial problem in trying to assess the relations between postmodernism and feminism is that, although feminism can be broadly defined as a political movement whose objectives are 32 Entretanto, as surpresas que o pós-modernismo nos reserva não param por aí; por exemplo, um fato curioso que surge dessa indeterminação pós-estruturalista é que os autores e teóricos mais comumente classificados como “pós-estruturalistas”, como Jacques Derrida, Michel Foucault e Roland Barthes, raramente aceitavam essa rotulação para os seus trabalhos exatamente por admitirem que não seguiam nenhuma doutrina específica e que não estavam comprometidos com nenhum método específico de especulação, mesmo porque tais possíveis comprometimentos iriam de encontro aos princípios difusos, elásticos e amplamente inclusivos (e tão “não essencialistas” quanto possível), típicos das argumentações pósestruturalistas. Neste ponto, fazemos uma pequena digressão, recordando algumas palavras de Linda Hutcheon, em que ela expõe a necessidade de uma vigorosa teorização do PósModernismo 6, citando em seu artigo “Beginning to Theorize Postmodernism”, o fato de que com ela concordam outros críticos e teóricos a esse respeito, como o renomado Ihab Hassan. Ambos apontam para o fato de que mesmo correndo o risco de se elaborarem definições para o termo/movimento (o que seria tão indesejável para os teóricos do Pós-Modernismo, por “essencializar” e delimitar os termos “pós-estruturalismo” e “pós-modernismo”), há a necessidade premente desse risco para se evitar outro perigo iminente: a transformação do termo em clichê ou neologismo, negando-lhe a possibilidade do “status” de uma conceituação cultural adequada. Deixando as polêmicas conceituais à parte, é digno de registro que os posicionamentos céticos e as atitudes subversivas da maioria dos teóricos e críticos pós-estruturalistas em relação aos legados culturais da nossa sociedade e ao “projeto de modernidade” indubitavelmente originaram uma tensa rede de inter-relações entre trabalhos possuidores de ultimately emancipatory, postmodernism cannot be described so easily. The term ‘postmodernism’ has now come to designate a bewilderingly diverse array of cultural practices, writers, artists, thinkers and theoretical accounts of late modernity. It also refers to a more general sense of radical change in the ways of thinking we have inherited from the eighteenth-century European Enlightenment (WAUGH, 1998, p. 177).” 6 Nesta referência (como será por toda a Tese), usamos os termos “Pós-Modernismo” como sinônimo de “PósEstruturalismo”, seguindo o que dispõe Irena R. Makaryk e Z. Baross (1994, p. 158). 33 naturezas, contornos, políticas e interesses conflitantes, tais como a crítica à Metafísica, de Derrida, os questionamentos de Foucault sobre a formação do poder e da episteme e as críticas feministas radicais ao falocentrismo, de Luce Irigaray e Hélène Cixous, somente para citar alguns exemplos. Não constitui então uma grande surpresa o fato de que “pós-estruturalismo” e “pósmodernismo” tornaram-se termos intercambiáveis (BAROSS, 1994, p. 158), sinalizando que, além do excesso atual de rótulos, a virada para o “pós” no campo da Teoria é comumente vista como um sintoma do “mal-estar” que o próprio termo denuncia, a saber: “a condição pós-moderna” de Lyotard, “a era do simulacro” (da “cópia”, da “simulação”, da negação do “original”), da crise e, na verdade, “do imenso processo de destruição do significado” 7. Ainda com respeito à virada para o “pós”, temos a seguinte elucidação de Homi K. Bhabha: É o tropo dos nossos tempos colocar a questão da cultura na esfera do além. Na virada do século, preocupa-nos menos a aniquilação – a morte do autor – ou a epifania – o nascimento do “sujeito”. Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do “presente”, para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo... (BHABHA, 2003, p. 19). 8 Deve-se acrescer a isto que todos esses fenômenos, condições e situações novas que são os objetos de estudo desses críticos e intelectuais transcenderam o domínio meramente teórico e começaram a se manifestar nas várias áreas sociais; ou seja, passou a reinar certa confusão entre a vida real e a teoria – áreas que até então eram tidas como distintas e descontínuas. O resultado desse estado de coisas tem enriquecido tanto as áreas de estudo da Crítica quanto aquelas da Teoria, uma vez que passou a ser possível “ler” as teorias do “pós” como um diagnóstico de uma época (com a realidade social exercendo o papel de referente para elas) ou como uma mudança de rumo radical (dirigindo-se ataques contra a representação 7 8 No original em inglês: “The immense process of the destruction of meaning” (BAROSS, 1994, p. 158). Os destaques no texto são do próprio Homi K. Bhabha. 34 e o referente, por exemplo). De um modo geral, essa situação dá conta do início do apagamento das fronteiras entre os campos de estudo estabelecidos e dos seus objetos, realçando as questões palpitantes referentes à intertextualidade e à interdisciplinaridade, que tanto têm reorientado as áreas de interesse da Literatura Comparada na contemporaneidade. A confusão entre a vida real e a teoria a que nos referimos no parágrafo anterior ficou sobremaneira agravada quando alguns estudiosos da cultura do Pós-Modernismo, tais quais Ihab Hassan, Al Foster e Arthur Kroker, descobriram que o mesmo espírito subversivo envolvendo a vida real e a Teoria também permeava a Pintura, o Cinema, a Música e a narrativa de vanguarda, que então passaram a expor os seus artifícios de ilusão para transgredir e desconstruir uma outra distinção tradicional que ainda estava de pé – aquela entre o meio e a mensagem. Estava pronto então o campo para que a arte em larga escala também seguisse os mesmos passos da Teoria, juntando-se a ela no ataque à realidade que já estava sendo protagonizado não somente pela própria Teoria, mas também pela cultura na era do Pós-Modernismo. O conseqüente enfraquecimento do real antes perpassado por noções como “original”, “autêntico”, “referência estável” e “significado” passou a ser duplamente encarado tanto como uma característica quanto como um efeito dos questionamentos pósestruturalistas, de forma que a propalada “confusão” entre diferentes domínios (significado e significante, evento e conceito, cópia e original, dentre outros) tornou-se o marco mais característico do Pós-Estruturalismo. Ainda com referência ao prefixo “pós”, tornou-se um consenso a importância que vozes (como as de Nietzsche, Heidegger e Freud), conceitos e correntes do passado (como a Metafísica Ocidental e o Estruturalismo) têm para a Teoria Pós-Estruturalista. Derrida, Lyotard e Barthes repetidamente retornam a essa questão para efusivamente rejeitarem qualquer argumentação que denuncie ou aspire a ultrapassar esses elementos que antecederam o Pós-Estruturalismo. Isto assim se configura porque as noções do frescor de um recomeço, 35 de superação e de progresso mais se coadunam com o “traço heróico” da Modernidade, como afirmou Lyotard (1984), e constituem exatamente as noções que as idéias do “pós” têm em mente desestabilizar. A argumentação deve funcionar aqui como uma “anamnese” do passado que se notabilize pelo deslocamento e pela ruptura do sistema discursivo. Barthes, que teve uma trajetória estruturalista, talvez seja o único “pós-estruturalista” de fato, tendo sido o responsável por colocar a noção da quebra da representação do significado na agenda das discussões teóricas (BAROSS, 1994, p. 159). O Estruturalismo causou um grande impacto em dois campos: na Lingüística de Saussure e na Antropologia de Claude Lévi-Strauss. Embora Lévi-Strauss tenha procurado desenvolver seus conceitos sociológicos através de um modelo científico análogo em sua forma à Lingüística, Saussure conferiu uma base sincrônica à Ciência da Linguagem através da criação de um novo objeto e de uma nova unidade de análise - o signo lingüístico e o sistema do signo. Tal estrutura era composta de um significante e de um significado separados por uma barra. O signo então encerrava uma relação arbitrária entre o sinal material (a letra ou o som) e o conceito imaterial (o significado). Como mais tarde os lingüistas estruturalistas mudaram o foco da argumentação lingüística do significado para a organização, o significado deixou de ser visto como intrínseco ao elemento significante. Dessa forma, o significado (o sentido) dos signos lingüísticos tornou-se perceptível somente através da relação com outros signos (ou seja, em uma relação opositiva a eles), existindo assim somente na forma da língua e não em sua substância. Além do impacto na Lingüística e na Sociologia, o Estruturalismo provocou uma ruptura no discurso da Modernidade em dois aspectos relevantes. Primeiramente, a estrutura ou o simulacro de uma função passou a regular todas as aparências – o concreto, o particular e o histórico. Essa estrutura implicava uma “vantagem” sobre o empírico e o histórico. Então, uma vez que essa estrutura passou a regular a História, pressupõe-se que ela também a 36 transcendia. Desse modo, a estrutura imobilizou o tempo e “esvaziou” a Modernidade do seu conteúdo heróico de História enquanto revivescência, renovação, renascença e progresso. Ou seja, o Estruturalismo então desestabilizou um dos principais pressupostos da Modernidade. De acordo com a visão crítica de Jacques Derrida (1978) a esse respeito, a estrutura entendida como um campo fechado não admite nenhum lugar secreto (internamente), nem tampouco nenhum limite (externamente). A segunda instância de ruptura dá-se quando a Ciência da Linguagem (vista como oposta à fala do indivíduo ou “parole”) separa o significado do signo e o reconstitui como o efeito do jogo da estrutura. Dessa forma, resulta desse processo que o sujeito falante é destituído de sua posição no discurso como elemento que cria e autoriza o significado. Foucault lembra-nos que apesar de todo esse ímpeto, o Estruturalismo ainda alimentava mais uma ilusão - a tentativa de mostrar o mundo à consciência como se ele fosse feito para ser lido pelo homem. De qualquer forma, ainda que se argumente que o Estruturalismo tenha evidenciado a morte do sujeito falante, ele não conseguiu invalidar o discurso centrado no sujeito, o que é de grande utilidade aqui para os nossos propósitos principais. A desestabilização dessa última ilusão estruturalista é um dos vários objetivos do Pós-Estruturalismo, o que obviamente transcende os limites do pensamento saussuriano. Derrida decidiu se inspirar em certas conclusões de trabalhos anteriores de Nietzsche, como as que resultaram nas idéias de que “a teoria rompe uma ordem e uma economia opondo os próprios conceitos dessa mesma ordem ou economia aos seus próprios discursos” 9 . Logo, Derrida passou a ser conhecido como o lançador de uma nova fase do Pós- Estruturalismo com Of Grammatology e Writing and Difference. Nesses dois livros seminais, Derrida volta-se para os textos fundacionais de Saussure e Lévi-Strauss com a finalidade de submeter a noção de “estrutura” e “signo”, enquanto formas estáveis e unificadas, às 9 No original em inglês: “(..) theory disrupting an order and an economy by turning its concepts against its own discourse” (BAROSS, 1994, p. 159). 37 especulações e ao escrutínio de um novo método introduzido por ele, que passou a ser conhecido como “Desconstrução” 10. A Desconstrução, que é de fundamental importância para os fins últimos desta Tese, revela que no discurso da Lingüística Estruturalista escamoteiam-se os conceitos fundamentais de uma filosofia que sempre objetivara estabelecer uma exterioridade contingente e superficial para o pensamento articulado. Conseqüentemente, o signo lingüístico passou a regular a ordem que permitia que essa filosofia desde o início tratasse a sua própria escrita como não problemática, por se basear nos seguintes pressupostos: considerar o significado como produtor de si mesmo e vindo de dentro do indivíduo (do “self”), tratar o seu próprio texto como uma janela para o pensamento e a consciência, assim como considerar o significado como absolutamente estável e imediatamente acessível e ancorado no texto. Não se pode olvidar aqui que esses trabalhos de Derrida também têm o mérito de objetivarem a releitura da Filosofia e da escrita, além do exame da relação entre a Filosofia e a Lingüística. Assim, os conceitos de “supplément” e “différance”, por exemplo, extrapolam e transcendem as noções de diferença de Saussure, com o fim de desautorizar o conceito metafísico da “presença” inscrito no signo lingüístico. Derrida propõe a reformulação da “ausência” (que, para Saussure, constitui uma negatividade “pura”) como uma presença ausente. Decorre daí que o significante tornou-se então um suplemento do referente ausente que ele não representava, mas cujo espaço vazio ele ocupava. Em função disto, a significação sempre envolverá o jogo silencioso do adiamento (“deferral”), assim como a representação nunca apresenta, mas vai simplesmente adiar a presença do significado, (o que se aplica aos nossos fins aqui, uma vez que as protagonistas Jasmine e Grace Marks nunca atingirão aqui 10 Por toda a Tese, optamos por grafar “Desconstrução” com letra maiúscula, quando o termo se referir especificamente ao princípio teórico-filosófico criado por Jacques Derrida. No entanto, quando o sentido do termo estiver mais próximo da designação de um conjunto de estratégias narrativas pós-modernas usadas por determinado(a) autor(a), que também incluam os princípios derrideanos, o referido termo será grafado com letra miníscula (N. do A.). 38 um “significado” fechado e acabado, ou seja, uma identidade fixa e delimitável). A significação, que para Saussure é um jogo de diferenças opositivas binárias (como será mais detalhado ainda neste capítulo), foi reformulada pela Desconstrução e passou a constituir um jogo de adiamento do significado, ou seja, o adiamento da presença desse mesmo significado no espaço e no tempo. Além disso, o significado nunca está ancorado (no texto ou em outra categoria discursiva), nunca pára, nunca se estabiliza e nem tampouco se conclui, de acordo com o que afirma Stuart Hall: Isso é o que Derrida, em outro contexto, denomina différance: “o movimento do jogo ‘produz’ (...) essas diferenças, esses efeitos de diferença” (Derrida, 1981, 1982). Não se trata da forma binária de diferença entre o que é absolutamente o mesmo e o que é absolutamente “Outro”. É uma onda de similaridades e diferenças, que recusa a divisão entre oposições binárias fixas. Différance caracteriza um sistema em que “cada conceito [ou significado] está inscrito em uma cadeia ou em um sistema, dentro do qual ele se refere ao outro e aos outros conceitos [significados], através de um jogo sistemático de diferenças” (Derrida, 1972). O significado aqui não possui origem nem destino final, não pode ser fixado, está sempre em processo e “posicionado” ao longo de um espectro. Seu valor político não pode ser essencializado, apenas determinado em termos relacionais (HALL, 2003, p. 60-61). Conforme se percebe, o pensamento crítico-desconstrucionista de Derrida foi de importância capital para minar os pressupostos do Estruturalismo, além de acumular o mérito sobressalente de favorecer a abertura de caminhos para uma nova modalidade de crítica textual – uma troca não meramente de conteúdo, mas uma verdadeira “intromissão” na Ciência da Linguagem. O desdobramento natural dessa “intromissão” de Derrida levou, na verdade, a um profundo reexame crítico no seio das ciências humanas da relação entre a linguagem, por um lado, e a verdade, o erro, o conhecimento, o poder, a razão, o desejo e o sujeito falante, de outro lado. Em decorrência disto, a Desconstrução tem tido uma influência marcante na Crítica Literária, desestabilizando as antes claras fronteiras entre a ficção e a Teoria, a Literatura e a Filosofia, a leitura e a escrita, o crítico e o escritor. 39 A contribuição da Teoria Psicanalítica de Lacan também teve um lugar de destaque na sua união com o desconstrucionismo de Derrida para subverter muitos dos princípios do Estruturalismo. De fato, as idéias de Lacan unidas às de Derrida propiciaram uma nova categoria de escrita: a leitura, que tem aqui um alcance semântico muito superior e mais rico do que o sentido imediato e mais genuinamente denotativo que o termo comporta, ou seja, o simples fato de ler números, palavras, letras, expressões, períodos, parágrafos etc - o que não necessariamente inclui a apreensão do sentido do que se lê. Na verdade, nos referimos aqui, por exemplo, a uma leitura de Lacan sobre Freud, como analisado por J. Gallop em Reading Lacan, de Derrida sobre Platão, conforme abordado por G. Hartman em Saving the Text; de Derrida sobre Rousseau, conforme exposto por Paul de Man em Blindness and Insight:Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism; e de Hélène Cixous sobre a nossa Clarice Lispector em Readings with Clarice Lispector. A efetivação dessa “leitura” de outros escritores, teóricos, intelectuais e pensadores, principalmente os do passado, transfere essa mesma leitura e conseqüentes novas interpretações para outras esferas de significação, já que se entra num jogo em que são abundantes as apropriações, as relações intertextuais em todos os níveis, a quebra das fronteiras entre os gêneros, a paródia e o pastiche, dentre outros recursos discursivos e narrativos. Devemos ressaltar aqui que alguns desses recursos, como o afrouxamento das barreiras entre os gêneros e a intertextualidade, são fundamentais para a leitura comparativa de Jasmine e Alias Grace, conforme ficará mais evidente nos capítulos subseqüentes. Seguindo o rastro de outros pensadores e teóricos que deram a sua contribuição decisiva para o desconstrucionismo, devemos recordar que nos campos do pensamento social e da Filosofia da Ciência, Michel Foucault inaugurou um método chamado de “genealogia”, bastante semelhante aos princípios da Desconstrução. A genealogia de Foucault constitui um questionamento das formações e dos regimes discursivos. Ela não visa simplesmente a 40 substituir a História como escrita pelo sujeito moderno, mas antes pretende deslocá-la dessa posição. Em Madness and Civilization, Foucault reescreve a história da razão a partir do ponto em que ela ganha conhecimento sobre o seu objeto - a loucura -, vista como uma história de silenciamento e de supressão da voz da insanidade na linguagem, o que nos é de grande auxílio aqui, pois o discurso da loucura em Alias Grace (em larga escala) e Jasmine (fortemente sugerido pela avó de Jasmine, conforme aqui abordado no Capítulo 2, quando se enfoca a “insanidade” dos desejos de emancipação profissional da protagonista) acaba por servir aos propósitos de formação identitária das protagonistas. Enfim, percebemos a loucura como forma de comportamento subversivo que mina a hegemonia dos discursos familiar, social e médico, oferecendo visibilidade para o sujeito subalterno e exercendo papel preponderante no seu processo de subjetificação. Um processo semelhante envolverá até mesmo com mais propriedade a trajetória de Grace Marks, uma vez que ela foi tida e diagnosticada como louca e confinada em um hospício por grande período de tempo. Porém, a “loucura” de Grace Marks também lhe conferiu um “status” diferenciado e uma posição discursiva privilegiada que contribuiu para a problematização do seu processo de construção identitária, conforme se enfocará nos próximos capítulos. É importante ressaltar aqui que a “genealogia” de Foucault constituiu um desdobramento do seu método anterior denominado “arqueologia”. Dessa forma, a “genealogia” enfatiza a questão do conhecimento frente à diversidade de domínios que se apresentam. Por exemplo, temos, dentre esses domínios, as ciências e a epistemologia, que Foucault analisa em The Order of Things e The Archaelogy of Knowledge; a Medicina, que recebe o seu escrutínio em The Birth of the Clinic: An Archaeology of Medical Perceptions; a punição, analisada em Discipline and Punish: The Birth of the Prison; e a ética, a sexualidade e as tecnologias do “self” em History of Sexuality. Essas “histórias” têm por finalidade principal analisar a relação entre os diversos discursos e os seus objetos (o corpo, a doença, a 41 sexualidade, a disciplina, a verdade e o conhecimento), para se poder escrever uma genealogia do sujeito moderno. Todavia, um mérito posterior desses escritos foi a descoberta de que esses discursos funcionam tanto como regimes quanto como objetos, pois, enquanto regimes, eles estão implicados em relações de poder – a produção e o controle dos seus objetos, porém, enquanto objetos, eles estão sujeitos aos seus próprios regimes de operações discursivas. Voltando o foco agora para Roland Barthes, notamos que os seus escritos marcaram a virada teórica do Estruturalismo para o Pós-Estruturalismo, mudando o objeto de questionamento da obra para o texto, da afirmativa para a enunciação e da História para o discurso. Dessa forma, se a “obra” for considerada uma estrutura tão estável, fechada e idêntica a si própria, então o “texto” há de ser o lugar da produtividade e da disseminação, conforme exposto por Derrida em Dissemination, enfim um campo de encontro em que até mesmo o autor é um mero visitante, de acordo com o que Barthes desenvolve em From Work to Text, ou até mesmo uma função da escrita (como atesta Foucault em History of Sexuality, volume 3, 1986), sem nenhum acesso privilegiado ao significado. Barthes enriquece aqui esse arrazoado pós-estruturalista com a afirmação de que, de fato: “tudo significa incessantemente e muitas vezes, mas sem estar fadado a uma grande totalidade final ou a uma estrutura definitiva”.11 Baross lembra-nos que a esse respeito vêm ao encontro dessas idéias de Barthes os conteúdos gerais de vários escritos de Lacan que articulam a seguinte impossibilidade: O real é aquele objeto ausente (o referente) para o qual nem a teoria nem o sujeito podem recuperar o acesso. O preço da consubstanciação do objeto e da existência na linguagem é exatamente aquela perda, ou seja, uma relação com o ‘real’ permanentemente mediada pelo adiamento e pela postergação. 12 11 Na versão em inglês: “Everything signifies ceaselessly and several times, but without being delegated to a great final ensemble, to an ultimate structure” (BARTHES, 1977, p.12). 12 Na versão em inglês: “The real is that absent object (referent) to which neither theory nor subject can regain access. The price of subjecthood, of being in language, is that loss: a permanently mediated (delayed/deferred) relation to the ‘real’ ” (BAROSS, 1994, p. 161). 42 É digno de nota registrar que essa dificuldade foi enfrentada por muitas correntes teóricas, porém talvez nunca tão urgente e dolorosamente como pelas Teorias Feministas, cujos membros desde o início da era pós-estruturalista se engajaram na luta para recuperar o feminino, que sempre esteve excluído dos discursos dominantes da Filosofia, da Crítica e da narrativa ficcional. Não é surpresa afirmar que as ativistas do movimento logo lançaram mão das contribuições da Psicanálise e da Desconstrução para elaborar as suas teorias, pois, apesar das diferenças de definição entre o pós-modernismo e o feminismo, as duas correntes têm em comum o ímpeto crítico contra a noção universal e racional do Sujeito, já que os pressupostos do Iluminismo concebem esse conceito como predominantemente masculino, assim como o fazem com a História, considerando-a uma “grande narrativa” universal do progresso da humanidade. Tal comunhão de interesses entre o pós-modernismo e o feminismo se torna inequívoca quando S. Hekman afirma: O feminismo e o pós-modernismo são as únicas teorias contemporâneas que apresentam uma genuína crítica radical ao legado iluminista do modernismo. Nenhuma das outras teorias sobre o cenário intelectual contemporâneo oferece uma forma de deslocamento da epistemologia masculinista da modernidade. 13 Naturalmente, as dificuldades encontradas foram hercúleas, principalmente por conta dos legados obliterantes das articulações ideológicas do patriarcado de que os campos do saber estavam imbuídos. Não obstante, as correntes feministas pós-estruturalistas se engajaram irreversivelmente na busca do espaço das vozes femininas excluídas dos discursos das ciências, da Filosofia e das artes como um todo e da própria escrita feminista, que é o aspecto que mais de perto nos interessa aqui, para os propósitos da presente Tese. Essa busca logo de início envolveu uma tarefa dupla – a da crítica e a da representação. Na verdade, a 13 No original em inglês: “Feminism and postmodernism are the only contemporary theories that present a truly radical critique of the Enlightenment legacy of modernism. No other approaches on the contemporary intellectual scene offer a means of displacement and transforming the masculinist epistemology of modernity” (HEKMAN, 1990, p. 189). 43 crítica feminista passou a entender a representação do feminino duplamente como um espelho: ao mesmo tempo em que esses discursos refletem as mulheres como criaturas sofrendo pela falta do falo, essa imagem negativa também funciona como um outro espelho em que o sujeito masculino reconhece a si próprio como completo, de acordo com K. Silverman. Por outro lado, uma vez que essa vertente crítica inicial falhou em prover o feminino com uma identidade positiva, esse mesmo posicionamento crítico evidencia a dificuldade que as Teorias Feministas tiveram para descobrir e escrever uma posição discursiva a partir da qual o feminino pudesse se articular de uma forma totalmente não problemática. Entretanto, as teorias feministas foram agregando mais especulações que acabaram por enriquecer os seus debates, dotando as argumentações de outros contornos referentes à raça, à etnia, à nacionalidade, às diásporas contemporâneas, à sexualidade e aos cruzamentos entre o feminismo e as Teorias Pós-Coloniais, como de certa forma se enfocará por toda a Tese. No entanto, somente para dar mais uma contribuição momentânea ao entendimento dos esforços das teóricas feministas para firmar posições mais favoráveis às mulheres, citamos o que Patrícia Waugh relata sobre o quadro atual em que se inserem os feminismos vigentes: Recentemente, a teoria feminista tem manifestado um grande número de inequívocos sintomas pós-modernos: um certo flerte com conceitos como o sublime, com a idéia da alteridade radical (outridade), ou até mesmo com a possibilidade de um “espaço” feminino fora das hierarquias patriarcais e da racionalidade, e um gosto por imagens sugestivas da fluidez e do hibridismo, tais como as do “cyborg” e a do nômade. 14 De um modo geral, com a Desconstrução, as Teorias Pós-Estruturalistas adotam uma verdadeira virada lingüística, renunciando às suas posições privilegiadas na linguagem e sobre os seus objetos de estudo, e renunciando igualmente à busca das causas, do autor, da 14 No original em inglês: “Recently, feminist theory has come to manifest a number of overt postmodern symptoms: an infatuation with such concepts such as the sublime, with the idea of radical alterity (otherness) or the possibility of a feminine ‘space’ outside of rationality and patriarchal hierarchies, and a fondness for images suggestive of fluidity such as the cyborg or the nomad”(WAUGH, 1998, p. 178). 44 objetividade científica, ou até mesmo de um valor básico instituído anterior ao que o texto está transmitindo. Enfim, apropriadamente como atesta Baross, “o texto (e o seu significado) não é mais concebível como um modo de presença originário e unificado. Todas as coisas começam (e já são) uma reprodução: o significado já é sempre reconstituído pela postergação e pelo adiamento” 15 , dessa forma abrindo espaços de formulações teóricas de questões relacionadas a grupos minoritários, como nesta Tese ilustraremos com a ajuda das Teorias Feministas e Pós-Coloniais. 1.2 – A Reinterpretação dos Binarismos Lingüísticos de Saussurre Dentre os vários tipos possíveis de abordagem de que podemos lançar mão para enfocar a aquisição da linguagem e da cultura do dominante por parte do colonizado para subverter a hegemonia imperialista e liberar esse mesmo sujeito colonizado do estigma da subalternidade, decidimos escolher de início a visão do conteúdo ideológico dos binarismos lingüísticos saussurianos, filtrados pela ótica das Teorias Pós-Coloniais, de acordo com os postulados defendidos por Bill Ashcroft e alguns outros teóricos. Não obstante, serão aqui também aproveitadas as contribuições das teias de relações intertextuais que envolvem Jasmine e Alias Grace (entre si e esses próprios romances com outros escritos ficcionais), assim como o papel do comparatismo literário, dos Estudos Culturais e das relações estreitas entre as Teorias Pós-Coloniais e as Teorias Feministas, para se propor a visualização de uma trajetória das duas protagonistas que represente simultaneamente tanto a sua liberação dos estigmas “calibanescos”, quanto as suas respectivas transformações em sujeitos das suas próprias histórias. 15 No original em inglês: “The text (its meaning) is no longer thinkable as an originary or unified mode of presence. Everything begins with, and is already, a reproduction: meaning is always already reconstituted by deferral and delay” (BAROSS, 1994, p. 161). 45 Ashcroft retorna aos binarismos do lingüista francês Ferdinand de Saussure para expor os limites do pensamento estruturalista. Aschcroft afirma que, de acordo com Saussure, os signos lingüísticos têm significado não somente em virtude de uma simples referência a objetos reais, mas principalmente em virtude da sua oposição a outros signos lingüísticos. De acordo com essa linha de raciocínio, cada signo representa em si próprio uma função binária entre o significante (o sinal, ou som ou a imagem da palavra) e o significado (ou seja, o sentido do sinal, o conceito ou imagem mental que é invocada). Saussure também defende a idéia de que a ligação entre o significante e o significado é totalmente arbitrária, ou seja, não existe nenhuma necessidade natural para a ligação entre a palavra “cão” e o significado “cão”, por exemplo. Porém, uma vez que a ligação esteja estabelecida no campo lingüístico e social, ela passa a ser válida para todo usuário da língua. Como conseqüência, estabeleceu-se a premissa de que os signos lingüísticos assumem significados através de uma relação de “diferença opositiva” entre eles mesmos e outros signos lingüísticos, quando estabelecida uma comparação, de forma que a “oposição binária” se tornava a mais extrema forma de diferenciação possível entre eles. Como se torna fácil concluir, essas oposições constituíam um “sistema binário de relações fechadas”, que se tornou muito recorrente na construção cultural da realidade, constituindo a pedra de toque que orientará a maior parte das críticas dirigidas a esse aspecto das oposições binárias por diversos teóricos e pensadores pós-estruturalistas. O problema mais contundente que se pode identificar a partir das relações estabelecidas nesse sistema binário é a supressão das ambigüidades e dos espaços de significação intersticiais, o que torna essas relações sobremaneira excludentes e limitadoras. Dessa forma, quaisquer possibilidades de significação que se situem nos interespaços de relações binárias, tais como as fornecidas pelas oposições homem/mulher, criança/adulto, amigo/inimigo, por exemplo, se tornam impossíveis. 46 Com o advento das novas formas de se encarar a realidade, a sociedade e a cultura, que se originaram com o desdobramento e a exaustão do Estruturalismo, passou-se a criticar e a denunciar a limitação dessa lógica binária. As teorias feministas pós-estruturalistas contemporâneas têm fartamente demonstrado que muitas dessas relações opositivas escamoteiam uma rede hierárquica em que um dos termos da oposição binária é sempre dominante. Assim, o homem teria prevalência sobre a mulher, o nascimento sobre a morte, o branco sobre o preto, somente para citar alguns exemplos e suas claras implicações de ordem política, de gênero e de etnia. Conclui-se, segundo essas teorias, que esse sistema binário acaba sendo emblemático e endossante das formas de dominação exercidas pelas forças hegemônicas (tais quais as estratégias e políticas das nações imperialistas) sobre povos e indivíduos de territórios colonizados. Nessa medida, qualquer estado ou condição que não se encaixe nesse sistema de oposição binária está fadado à repressão e sujeito a um ritual. Por exemplo, o estado intersticial entre “criança” e “adulto” – “adolescência” – é tratado como uma categoria escandalosa, um rito de passagem sujeito a considerável desconfiança e ansiedade. Uma relação da mesma natureza acontece quando se quer dar conta dos estados intersticiais entre “homem” e “mulher”, pois, muito além das questões sobre o que define um indivíduo como pertencente ao gênero “masculino” ou “feminino”, estão implicadas outras questões mais complexas de alteridade, identidade e de opção e/ou orientação sexual. Ou seja, a aparentemente “inocente” disposição dos signos lingüísticos nas oposições binárias são representantes das complexas teias de relações de dominação, poder e submissão entre indivíduos e grupos, com conseqüentes implicações sociais, históricas e políticas. Os Estudos Culturais, a Literatura e a Crítica norte-americana contemporânea fornecem-nos farto e riquíssimo material de estudo dessa última situação, através das produções literárias dos representantes das comunidades de “gays” e lésbicas norte- 47 americanas, por exemplo, que têm procurado não somente defender os seus direitos civis como também representar esses direitos e suas lutas na literatura contemporânea. Como resultado desse processo discriminatório, o estado intersticial entre o binarismo colonizador/colonizado, por exemplo, evidenciará os sinais de uma ambivalência extrema, manifestada em atitudes de imitação, esquizofrenia cultural, ou vários tipos de obsessão com identidade. O desdobramento desse esquema colocará uma ênfase maior em um dos elementos do binarismo. A relação mais direta dessas interpretações pós-estruturalistas nos faz, então, lembrar as bases nas quais se funda a lógica imperialista. Dessa forma, pode-se facilmente concluir que a lógica binária do Imperialismo não passa de um desenvolvimento da tendência do pensamento Ocidental, em geral, de lançar um olhar ao mundo inteiro e aos fenômenos culturais e tentar interpretá-los à luz das relações binárias que estabelecem uma relação “natural” de dominância. Uma simples distinção entre centro/margem, colonizador/colonizado, metrópole/colônia e civilizado/primitivo, por exemplo, representa, de forma bem contundente, a extrema violência em que o Imperialismo assenta suas bases e que ele ostensivamente tenta perpetuar. O mais impressionante é que essas oposições binárias são estruturalmente relacionadas umas com as outras, em cadeia, o que reforça a aludida lógica do Imperialismo. Nas oposições a seguir, podemos visualizar essa corrente estrutural de interrelações, de um e de outro lado: colonizador branco civilizado avançado bom bonito humano professor doutor / colonizado preto / primitivo / atrasado / mau / feio / bestial / aluno / paciente / 48 Nesse caso, as oposições binárias constroem uma categoria escandalosa entre cada uma das oposições, de forma que tais oposições podem ser consideradas caso a caso, - quando lidas horizontalmente - , assim como podem assumir um sentido totalizador coletivo, se lidas verticalmente; ou seja, se efetivarmos uma leitura horizontal, cada termo à esquerda estará em posição hegemônica de dominação em relação ao da direita; porém, se lido o primeiro bloco inteiro, verticalmente, e o segundo, do mesmo modo, em seguida, mais inflexíveis parecem se tornar as relações entre colonizador e colonizado. Assim, podemos de imediato perceber que o sistema binário “inocentemente” originado no campo da Lingüística de Saussure passou a endossar as ideologias imperialistas de dominação, dando origem a idéias e conceitos tais como o impulso de “explorar” ou de “civilizar”. 1.3 – Os Estudos Culturais e as Teorias Pós-Coloniais Em vista de todo o exposto até aqui, podemos concluir que a abrangência das Teorias Pós-Coloniais abarca esse interespaço do tabu, a área intermediária entre as oposições binárias estruturalistas, em que passam a vicejar a ambivalência, o hibridismo e a contínua desconstrução das certezas do edifício imperialista, como veremos mais adiante. Um dos sistemas binários mais catastróficos perpetuados pelo Imperialismo é a invenção do conceito de raça, que teve a sua origem nas classificações taxonômicas da Biologia. Tal conceito tem servido aos propósitos de dominação imperialista, na medida em que se reduzem todas as complexas diferenças físicas e culturais inerentes às sociedades colonizadas a meras oposições endossantes da sanha imperialista de dominação. Nessa medida, os conceitos de preto/pardo/amarelo/branco podem ser simplesmente reduzidos ao binarismo branco/preto. 49 Um outro efeito bastante sintomático desse sistema estruturalista binário imperialista de ver o mundo e endossar naturalmente os processos de dominação, em todos os níveis, pode ser vislumbrado na oposição entre Ocidente/Oriente, o que gerou uma série de interpretações equivocadas e preconceituosas das práticas, das culturas e dos diversos povos orientais, de um modo geral e de acordo com o ponto de vista do colonizador branco europeu. Para tornar então mais claras as concepções que se formaram acerca do Oriente, passaremos a abordar algumas idéias de Edward Said, para verificar os seus pensamentos teóricos que também contribuem para enriquecer o campo das discussões pós-estruturalistas. Em seu livro Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography, Said faz um estudo das cartas de Conrad, consideradas como ficções autobiográficas, em relação às suas obras, vistas como autobiografias ficcionalizadas. Esse estudo visa a correlacionar o processo de autodefinição aparente nas cartas de Conrad ao desenvolvimento da sua obra ficcional. Tal pesquisa de Said se torna relevante na medida em que ele passa a incorporar obras literárias ao seu rol de objetos de estudo, para melhor entender a problemática sócio-cultural imperialista (e, nesta Tese, este é um dos nossos objetivos, ou seja, relacionar a Teoria da Cultura com os exemplos pinçados de obras literárias). Dessa forma, Said demonstra que o passado é sempre narrado de novo nos escritos de Conrad (de certa forma, é o que exporemos no Capítulo 4, quando abordaremos a problemática pós-colonial em Heart of Darkness, também de autoria de Conrad), como uma fórmula de se evitar a autodesintegração. Já em Beginnings, Said dá continuidade ao seu estudo da narrativização da experiência, enfocando as mudanças de parâmetro que se desencadearam na estrutura do romance moderno. Digno de nota é dizer que, na esteira dessas considerações, esse estudo da narrativização toma um rumo político em seu livro Orientalismo, que é o que nos interessa mais diretamente aqui para a ilustração da conquista de vez e voz por parte do subalterno, a partir da desconstrução das visões cristalizadas e monolíticas sobre o Oriente e o Orientalismo de modo geral. Nesse livro, Said 50 relata a história das caracterizações através das quais os pensadores e intelectuais do mundo ocidental têm constantemente ficcionalizado o Oriente desde o início do século XIX, no afã de abarcar a magnitude dos povos e culturas diferentes que se encontram naquela parte do mundo. Como esse ímpeto não poderia estar separado das estratégias imperialistas de dominação do Outro que então estavam a pleno vapor, as idealizações que advieram dos incontáveis romances, poemas, relatos de viagem e estudos sobre a cultura dos povos muçulmanos, por exemplo, assim como os referentes aos outros povos orientais, ajudaram a formar as idéias pré-concebidas e artificialmente construídas ao bel-prazer desses pensadores e escritores ocidentais. Em conseqüência, em Orientalismo, Said vê a necessidade de recontar a história do Orientalismo em si, e, fazendo isso, ele intervém, decisivamente, na formação e definição discursiva da questão. Ele começa a sua abordagem dizendo que as experiências e contatos que os diferentes povos ocidentais dominadores (americanos, franceses, britânicos, alemães, russos, espanhóis, portugueses, italianos e suíços) tiveram com o Oriente variaram ao extremo. Todavia, uma forma de “resolver” o Oriente pode ser encontrada na consideração do lugar especial ocupado por este na experiência ocidental européia. Assim, Said afirma que: O Oriente não está apenas adjacente à Europa; é também onde estão localizadas as maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, idéia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais 16da Europa (SAID, 2001, p. 13-14). É altamente relevante comentar que as idéias acerca da alteridade mencionadas acima por Said encontram eco em definições de outros estudiosos, como bem refletem as seguintes idéias de Ashcroft sobre o conceito de alteridade: as suas associações com alternância, alterego, outridade e a indissociabilidade da construção identitária do indivíduo da construção 16 O destaque do termo é do próprio autor. 51 identitária dos seus “outros”, conforme será mencionado com mais vagar no Capítulo 2 (ASHCROFT, 2002, p. 11 e GANDHI, 1998, p. 11). Como reforço dessa idéia da ruptura da visão binária e monolítica, para a qual até mesmo os estudos sobre subjetividade e alteridade contemporaneamente têm contribuído, cumpre citar as palavras de Said sobre o que ele entende acerca do Orientalismo, como credencial para prosseguirmos até as manifestações emancipatórias dos povos e indivíduos ditos “subalternos”: Portanto, orientalismo não é um mero tema político de estudos ou campo refletido passivamente pela cultura, pela erudição e pelas instituições; nem é uma ampla e difusa coleção de textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo de algum nefando complô imperialista “ocidental” para “subjugar” o mundo “oriental”. É antes uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de “interesses” que, através de meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e sociológica, o Orientalismo não apenas cria como mantém; ele é, em vez de expressar, uma certa vontade ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo); é acima de tudo um discurso (...). Com efeito, o meu verdadeiro argumento é que o Orientalismo é – e não apenas representa – uma considerável dimensão da moderna cultura político-intelectual, e como tal tem menos a ver com o Oriente que com o “nosso” mundo (SAID, 2001, p. 24). Já em outro livro seu, Cultura e Imperialismo, Said continua o esforço elucidativo, quando também desmistifica os conceitos de “imperialismo” e “colonialismo”, igualmente essenciais para a compreensão dos movimentos de resistência dos povos e indivíduos subjugados: Usarei o termo “imperialismo” para designar a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante; o “colonialismo”, quase sempre uma conseqüência do imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes. Como diz Michael Doyle: “O império é uma relação, formal ou informal, em que um Estado controla a soberania política efetiva de outra sociedade política. Ele pode ser alcançado pela força, pela colaboração política, por dependência econômica, social ou cultural. O imperialismo é simplesmente o processo ou a política de estabelecer ou manter um império”. Em 52 nossa época, o colonialismo direto se extinguiu em boa medida; o imperialismo, como veremos, sobrevive, onde sempre existiu, numa espécie de esfera cultural geral, bem como em determinadas práticas políticas, ideológicas, econômicas e sociais. Nem o imperialismo nem o colonialismo são simples atos de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleto de palavras e conceitos como “raças servis” ou “inferiores”, “povos subordinados”, “dependência”, “expansão” e “autoridade” (SAID, 1999, p. 40). A par dessas novas considerações em que se delineiam redefinições de conceitos tais como “orientalismo”, “subjetividade”, “alteridade” e “subalternidade”, somente para citar alguns dos termos correntes nos estudos e abordagens pós-coloniais, podemos começar a traçar a desconstrução das visões imperialistas binárias acerca dos povos e sujeitos póscoloniais, trazendo à tona um fórum para as novas possibilidades de expressão e conquista de identidade desses representantes do dito mundo subalterno. Contudo, a tarefa não é tão simples como parece, uma vez que as relações entre colonizador e colonizado são de fato muito mais intrincadas do que se poderia supor, de acordo com o que Leela Gandhi, em PostColonial Theory (1998, p. 11) expõe. Numa notável série de argumentações a autora afirma que os resíduos persistentes da colonização somente se decomporão se e quando nós estivermos dispostos a reconhecer os comportamentos recíprocos dos dois parceiros coloniais. Dessa forma, e ainda segundo Gandhi, a condição colonial teria acorrentado o colonizador e o colonizado em uma dependência implacável, assim como também moldou o seu caráter e ditou as suas condutas. O desejo do colonizador pela colônia, dessa forma, fica bastante transparente; porém, muito mais difícil é aquilatar a contrapartida desse desejo da parte do colonizado. A situação é tão extrema que Gandhi chega a emitir as seguintes especulações em forma de interrogação: “Como pode o colonizado negar a si próprio tão cruelmente?” ou “Como poderia ele detestar os colonizadores e, ainda assim, admirá-los tão passionalmente?” (GANDHI, 1998, p. 11). 53 Comprova-se, então, o vigor da já aludida indissociabilidade das alteridades do colonizador e do colonizado. Ainda nesse livro, Leela Ghandi se refere a um memorável desafio lançado por Gayatri Chakravorty Spivak, em 1985, contra a cegueira da Academia Ocidental acerca das questões de classe e raça, através de um polêmico e bombástico artigo intitulado “Can the Subaltern Speak?”. Nesse artigo, Spivak fartamente discorre sobre a difícil situação do sujeito colonial/pós-colonial subalterno feminino, no tocante à sua aquisição de voz e subjetividade, estabelecendo, por assim dizer, uma visão bastante pessimista, tal a crueza da conclusão a que chega, quando esse sujeito pós-colonial é vitimado por dois tipos de discriminação – de nacionalidade (por ser colonizado, o que também já embute a discriminação racial) e de gênero (por ser mulher). O trecho diz o seguinte: A questão não é a da participação feminina em insurreições, ou das regras básicas da divisão do trabalho, pois, para ambos os casos, há muitas evidências de discriminação. A questão é, de fato, que, tanto como objeto da historiografia colonial quanto como sujeito da insurreição, a construção ideológica de gênero mantém o homem na posição de dominante. Se, no contexto da produção colonial, o subalterno não tem nenhuma história e, portanto, não pode ter voz, o subalterno na condição de mulher está ainda muito mais mergulhado nas sombras. 17 Na verdade, o trecho recém-citado é a culminância de um conjunto de interessantes considerações acerca da precariedade generalizada em que se situa o sujeito subalterno nas sociedades coloniais e pós-coloniais. A autora também afirma que muitos esforços têm sido despendidos para conservar a noção do “Ocidente como sujeito”, o que pode ser interpretado como a “Europa como sujeito”. O desdobramento natural desse projeto deu origem à idéia do “Outro da Europa” (as sociedades colonizadas). Não seria preciso dizer que, subrepticiamente a esse arrazoado, sempre persistiu um projeto imperialista constantemente sequioso de tornar a vida mais difícil para o “Outro da Europa”, através da obliteração da 17 No original em inglês: “The question is not of female participation in insurgency, or the ground rules of the sexual division of labor, for both of which there is ‘evidence’. It is, rather, that, both as object of colonialist historiography and as subject of insurgency, the ideological construction of gender keeps the male dominant. If, in the context of colonial production, the subaltern has no history and cannot speak, the subaltern as a female is even more deeply in shadow” (SPIVAK, 1997, p. 28). 54 produção científica e ideológica da colônia, assim como da instituição da lei para salvaguardar os interesses imperialistas. Da mesma forma, toda a produção cultural da metrópole devia constantemente se empenhar no apagamento do “Outro” enquanto sujeito. Vale ressaltar aqui que devido à importância das idéias precisas e contundentes de Spivak, por toda esta Tese utilizaremos farta referência à última citação de “Can the Subaltern Speak?”, assim como pinçaremos outras alusões apropriadas feitas pela autora em outras das suas obras. Um paralelo interessante e bastante apropriado podemos traçar aqui entre essa famosa citação de Spivak e uma outra afirmação feita por Wanda Balzano, ao analisar a situação de opressão dupla a que as mulheres irlandesas sempre estiveram sujeitas, em função da trágica e sanguinolenta colonização inglesa. Tais idéias nos ajudam a compreender grande parte dos percalços enfrentados por Grace Marks, Mary Whitney e Nancy Montgomery (as duas outras moças imigrantes irlandesas no romance, com quem Grace intercambia aspectos indentitários), que ainda amargavam o elemento complicador de estarem no Canadá do século XIX, na verdade um braço forte do Imperialismo Britânico. A passagem referida realmente nos recorda as palavras de Spivak, como se cita abaixo: Destituída de poder sobre o seu próprio corpo e por muito tempo mantida fora de cena por situações opressivas negativas, a “coolleen” (clichê para “mulher irlandesa”) tem tido a sua voz negada duplamente. Por um lado, ela é silenciada e marginalizada pelo poder patriarcal enquanto mulher, por outro lado, ela é desvalorizada e diminuída pela cultura imperialista britânica enquanto falante de gaélico (ou de irlandês, se alguém assim preferir). Essa desvantagem verbal dupla torna a situação mais difícil para a mulher irlandesa expressar as suas experiências pessoais e políticas adequadamente, complicando ainda mais a noção do que seja “ser irlandês/a”, que Éilís Ní Dhuibhne derivou lingüisticamente da noção do que é “ser inglês/a”. 18 18 No original em inglês: “Dispossessed of her body and for long hidden under negative imperatives, the ‘coolleen’ (cliché of Irishwoman) has been doubly denied her voice. On the one hand silenced and marginalised by patriarchal power as a woman, on the other hand devalued and minimalised by British imperialist culture as Gaelic-speaking (or Irish if one wishes). This double verbal deprivation makes it more difficult to express personal or national experiences adequately, so complicating the notion of ‘Irishness’ that Éilís Ní Dhuibhne derives linguistically from that of ‘Englishness’ ” (BALZANO, 1996, p. 93). 55 Dando prosseguimento às palavras de Spivak e Balzano, recorremos agora a outras palavras emblemáticas de Homi Bhabha, em seu artigo “Signs Taken for Wonders”, em que ele nos provê de mais subsídios para entender não somente a dominação colonial em si, mas também o fascínio que certos aspectos marcantes da cultura do dominador exercem sobre o colonizado. Nesse sentido, Bhabha afirma que: Há uma cena envolvendo os escritos culturais do colonialismo inglês que se repete tão insistentemente depois do início do século XIX – e, através dessa repetição, tão triunfalmente inaugura uma literatura do império – que eu me vejo propenso a repetir isso mais uma vez. Trata-se do cenário encenado nos selvagens e iletrados rincões coloniais da Índia, África e do Caribe, em que tem lugar a súbita e fortuita descoberta do livro inglês. Esse fato é, como todos os mitos de origem, memorável por seu equilíbrio entre epifania e enunciação. 19 Nesse artigo, Bhabha defende a premissa de que o encanto que o livro inglês exerce sobre as populações colonizadas funda-se na “condição iletrada” dos membros dessas populações. Em tais circunstâncias, o aprendizado do inglês para possibilitar o acesso às informações e à cultura do colonizador cuidadosamente dispostos nos livros ingleses se torna um dos sinais tidos como “mágicos e maravilhosos”, e que acaba por constituir um meio efetivo pelo qual o colonizador controla a imaginação e as aspirações das sociedades colonizadas. Ainda nesse artigo, Bhabha enfoca um fator que também é objeto de especulações no artigo de Spivak (1997), mencionado anteriormente – a questão da obliteração da produção cultural e do apagamento da identidade do Outro enquanto colonizado subalterno. Uma vez que todo o “encantamento” produzido pela aquisição da língua inglesa pelo colonizado No original em inglês: “There is a scene in the cultural writings of English colonialism which repeats so insistently after the early nineteenth century – and, through that repetition, so triumphantly inaugurates a literature of empire – that I am bound to repeat it once more. It is the scenario, played out in the wild and wordless wastes of colonial India, Africa, the Caribbean, of the sudden fortuitous discovery of the English book. It is, like all myths of origin, memorable for its balance between epiphany and enunciation” (BHABHA, 1997, p.29). 19 56 produz a sua “sedução” pela posterior leitura dos livros ingleses, abre-se uma nova frente para se facilitarem as estratégias de colonização, já que a língua e a cultura dos povos colonizados vão assumindo uma posição secundária, ou até mesmo passam a ser sujeitas ao total apagamento em face da aquisição do inglês e da leitura dos livros ingleses, novos forjadores da identidade e das aspirações desses mesmos povos colonizados. Na esteira dessas considerações vale ainda frisar que Bhabha também sublinha que nessa atitude hipnotizadora que o livro inglês causa na mente dos colonizados exerce um papel central a leitura da Bíblia, o que nos reporta à intenção de também desmerecer e apagar as manifestações religiosas dos povos colonizados, geralmente tidas como bárbaras e primitivas. A respeito do papel da Bíblia e da sua influência na mente dos sujeitos colonizados, podemos rememorar uma emblemática passagem de Alias Grace, em que a protagonista esboça uma visão crítica sobre a inquestionabilidade do conteúdo das mensagens e dos livros bíblicos, conforme será enfatizado no Capítulo 4, o que constitui uma forma de desautorizar as “inatacáveis” verdades bíblicas vistas como uma das “grandes narrativas” que o Pós-Estruturalismo tem por intenção desestabilizar. Enfim, tendo em vista que os críticos e teóricos contemporâneos são muitos e não param de escrever sobre as relações entre “centro” e “margem”, assim como sobre “colonizador” e “colonizado”, e as outras problemáticas suscitadas pelos presentes estudos das relações coloniais e pós-coloniais entre os diferentes povos e indivíduos, certamente poderíamos ter citado muito mais estudiosos da questão. Porém, para efeito de simplificação, optamos por nos concentrar nos conceitos críticoteóricos citados neste capítulo e achamos conveniente destacar algumas opiniões de Michael Groden, por serem elucidativas de uma das funções precípuas dos Estudos Culturais, para finalizar esta parte do capítulo. Assim, deve-se ressaltar que os Estudos Culturais têm decisivamente contribuído para a expressão das vozes das minorias que anseiam pela 57 efetivação da promoção da sua condição de “objetos das idealizações” dos povos e grupos dominantes para a tão nova e almejada condição de “sujeitos”, donos dos seus próprios destinos. A esse respeito, no texto de Groden (1993) encontramos a informação de que os Estudos Culturais se firmaram como uma importante disciplina acadêmica no mundo anglófono entre os anos de 1960 e 1990 e ganharam logo prestígio por fomentarem várias das grandes mudanças teóricas então em curso. Os Estudos Culturais ganharam ainda mais destaque, porque foram responsáveis por importantes mudanças de foco das pesquisas acadêmicas, em função da sua característica interdisciplinar, acontecendo paralelamente aos avanços nos estudos étnicos e nos estudos das questões feministas. Enfim, para atestar a condição de relevância irreversível que os Estudos Culturais assumiram nesse contexto pós-estruturalista, destacamos uma interessante posição do autor a esse respeito quando ele afirma que uma marca de diferenciação entre os Estudos Culturais e os já consagrados estudos canônicos é que para os estudos culturais há novos e diferentes objetos de estudo antes impensáveis na área da crítica e teoria literárias (GRODEN, 1993, p. 179). 1.4 – A Contribuição do Comparatismo e da Interdisciplinaridade Tão importantes quanto as Teorias Pós-Coloniais ou as Teorias Feministas, por exemplo, também se afiguram as novas influências e tendências que se incorporaram aos objetos de interesse da Literatura Comparada, dentro de uma perspectiva pós-estruturalista dinâmica e multifacetada que problematiza as infindáveis redes de possibilidades comparativas que se estabeleceram, nestes últimos anos, e que extrapolaram as fronteiras da própria Literatura. Consideradas, então, a vastidão e a acuidade das abordagens que a 58 Literatura Comparada passou a abarcar desde a época da chamada “Escola Americana”, mercê de uma atitude interdisciplinar e inclusiva que ela acolhe, evocamos aqui alguns conceitos fundamentais que Eduardo Coutinho traz a lume em um artigo que traça um breve histórico das relações entre a Literatura Comparada e interdisciplinaridade. Um dos trechos destacados do artigo que mais nos interessam diz o seguinte: A segunda fase na constituição da Literatura Comparada no meio acadêmico, a designada “Escola Americana”, caracterizou-se, entre outras coisas, pela ênfase sobre o seu cunho interdisciplinar, máxime no que concerne à Literatura e outras áreas do conhecimento (...) (COUTINHO, 2003, p.14). A interdisciplinaridade passou então a desempenhar um papel tão importante que atualmente se vai além da idéia de que a Literatura Comparada efetiva meramente comparações de literaturas nacionais, como ocorria na fase inicial da disciplina. Além disso, Coutinho ainda nos esclarece que a Literatura Comparada propicia um método de ampliação da perspectiva do indivíduo na abordagem separada de obras literárias. Essa perspectiva constitui uma maneira de se voltar para além dos estreitos limites oferecidos pelas fronteiras nacionais, “com o fim de discernir tendências e movimentos em várias culturas nacionais e observar as relações entre a literatura e outras esferas da atividade humana” (COUTINHO, 2003, p. 14). Além de possibilitar a conseqüente associação da Literatura com outras formas de expressão artística, tais como a Música e o Cinema, e outros campos do saber, como a Filosofia, a História, a Política, a Psicologia e a Psicanálise, por exemplo, a predominância de uma atitude interdisciplinar na Crítica e na Teoria literária tem aberto caminho para a incorporação dos Estudos Culturais e das Teorias Pós-Coloniais na interpretação de textos ficcionais contemporâneos, premissa que encontra eco no artigo de Groden (1993, p. 179), já citado anteriormente neste capítulo. 59 Como sinal de um desdobramento radical da preponderância das visões interdisciplinares, nas fases posteriores da Literatura Comparada vem-se observando que os Estudos Culturais têm posto em xeque noções como as de “identidade” e “nacionalidade”, da mesma forma que têm promovido a desestabilização do locus de pertencimento da obra literária. Ou seja, anteriormente, apesar de já interdisciplinar, a Literatura Comparada deixava bem claras as fronteiras entre as disciplinas, de forma que, como nos assevera Coutinho, se considerado um estudo comparatista sobre o tema do incesto ou da revolução, as vertentes interpretativas sinalizariam claramente que a abordagem estaria se dando pelo viés que enfatizava o literário, em vez de o fazer pelo viés psicanalítico ou sociológico. Essas barreiras hoje caíram por terra, em virtude do crescente questionamento sobre o objeto de estudo da Literatura Comparada – as obras literárias – e de certos conceitos fundamentais que constituíam os seus pilares tais como “nação” e “idioma”. Por fim, Coutinho nos adverte que: Destituída de sua aura de esteticidade, a obra literária passa a ser vista como um produto da cultura e a literatura como uma prática discursiva como muitas outras. O resultado é que a interdisciplinaridade perde também sua especificidade e a abordagem interdisciplinar generaliza-se. Os estudos literários tornam-se todos interdisciplinares, uma vez que passam a inscrever-se na esfera da cultura, marcada justamente pela confluência de áreas diversas do saber (COUTINHO, 2003, p. 21). Parece-nos, então, oportuno cotejar as palavras de Rita Felski, acerca das contribuições do feminismo norte-americano para o entendimento das características contemporâneas do texto literário, que parecem ecoar as idéias de Coutinho. Diz ela: O feminismo norte-americano tem servido para lembrar aos críticos que a literatura não se refere unicamente a si própria, ou aos processos metafóricos e metonímicos, mas está profundamente imbricada com as relações sociais reais, reveladoras das maquinações da ideologia patriarcal através das suas representações de gênero e das relações femininas e masculinas. 20 20 Tradução de Lúcia Helena Vianna. 60 Contudo, a aceitação dessas novas concepções ainda encontra bastante resistência nos meios acadêmicos, mercê da interpretação errônea do que seja a “destituição da aura de esteticidade”, referida por Coutinho, que a obra literária tem sofrido contemporaneamente. Na verdade, a incorporação interdisciplinar extrema que gera a interpenetração de/em outros campos do saber “destituiu” a obra literária da condição de estar unicamente associada a objetivos estéticos e artísticos; daí, a confusão que endossa posições mais tradicionalistas que comumente têm negado a muitas produções contemporâneas a qualidade de se inscreverem como obras literárias. Em outras palavras, tais críticos e intelectuais olham com desconfiança qualquer obra literária que abarque em suas temáticas questões palpitantes como as de gênero ou identidade, assim como as pós-coloniais e as transnacionais. Um argumento muito comum entre eles é que a ênfase exagerada nessas abordagens secundariza a tal ponto o estético na obra de arte que essa mesma obra passa a não ser vista como literatura propriamente dita, restando lugar para o mero panfletarismo. Sem negar uma relativa dose mínima de acerto dessa posição tradicional, há-de se reconhecer a exagerada insistência numa posição algo purista que a grande maioria das obras literárias pós-modernas têm sobejamente provado ser inapropriada, ultrapassada e estanque. Em virtude de tais polêmicas, procedemos nesta Tese a uma reflexão acerca da relatividade dessas posições ultraconservadoras, através da elaboração do Capítulo 3, em que os romances Jasmine e Alias Grace são analisados à luz de idéias de críticos e escritores do século XIX, tais como Henry James e August Wilhelm von Schlegel, assim como de outros críticos, intelectuais, pensadores ou filósofos contemporâneos, como Cornelius Castoriadis e Wolfgang Iser. Enfim, o nosso intuito principal com a escritura do Capítulo 3 é desconstruir a premissa de que somente se podem aplicar pressupostos teóricos da contemporaneidade para a análise de obras literárias pós-modernas, ou que as teorias do passado não se coadunam com a análise dessas mesmas obras de ficção. Em outras palavras, 61 trata-se aqui da quebra de barreiras “intransponíveis”, como será apropriadamente ilustrado e defendido por Wofganf Iser, conforme abordaremos nesse capítulo por vir. Por fim, dada toda esta breve exposição de alguns aspectos relevantes do cenário contemporâneo, esperamos ter assentado as bases teóricas mínimas para o prosseguimento das nossas discussões. Dessa forma, convergem para subsidiar os propósitos desta Tese não somente os pressupostos pós-estruturalistas que minam posicionamentos críticos reducionistas e sistemas interpretativos monolíticos e essencialistas, mas também a interdisciplinaridade e a intertextualidade, vistas como recursos e estratégias constituintes da Literatura Comparada na contemporaneidade. Em conseqüência disso, abre-se o espaço indispensável para a discussão de questões mais atinentes aos Estudos Culturais, como identidade, gênero, transnacionalidade e diásporas, por exemplo. Assim, tornou-se possível lançar mão das várias contribuições teóricas pós-estruturalistas e conjugá-las com as estratégias comparatistas para avaliar a representação do processo de formação identitária dos sujeitos pós-coloniais femininos representados por Jasmine e Grace Marks nos dois romances contemporâneos aqui em estudo. 62 CAPÍTULO 2 O PAPEL DA FRAGMENTAÇÃO NA NARRATIVA E NA PROBLEMATIZAÇÃO DA SUBJETIVIDADE DAS PROTAGONISTAS JASMINE E GRACE MARKS 2.1 - A Fragmentação na Contemporaneidade Dentre as várias possíveis vertentes de análise e interpretação de obras literárias pósmodernas como Jasmine e Alias Grace, certamente aquelas que privilegiarem o papel da desconstrução e da fragmentação hão de conter uma maior capacidade de sedução. Na verdade, isto se dá porque a fragmentação e a desconstrução desempenham funções absolutamente vitais nos dois romances, potencializando-se de tal modo que se intercambiam e se imbricam numa intercomplementaridade que aponta exatamente para a multiplicidade de sentidos interpretativos. Embora talvez se pudesse argumentar que nada há de tão espetacular nesse fato, uma vez que essa situação poderia ser tida como mais ou menos recorrente na maioria das obras literárias, uma leitura mais atenta das duas obras de imediato revelaria que tanto Bharati Mukherjee quanto Margaret Atwood ostensivamente privilegiam esses dois recursos das estéticas do pós-modernismo na escritura dos seus respectivos romances. Em vista dessa constatação absolutamente fundamental para os propósitos desta Tese, decidiu-se que neste capítulo será levada a cabo a análise das contribuições que os efeitos da fragmentação e da desconstrução trazem para a representação da aquisição de voz e poder das protagonistas dos dois romances. Tais estratégias são usadas pelas duas autoras de forma que simultaneamente se aproximam (em muitos aspectos) e se afastam (em alguns outros), porém 63 se revelam, em última análise, de indubitável relevância para a formação das subjetividades das protagonistas de ambos os romances. Um dos pontos de aproximação entre o uso dessas estratégias é que a fragmentação e a (“des”)organização das narrativas configuram uma teia inquebrantável com a multiplicidade das identidades das personagens de um modo inequivocamente intencional, da mesma forma que o irrestrito uso de técnicas de desconstrução não somente amplia os sentidos ficcionais, como também assimila a fragmentação da narrativa e a faz ficar imbricada com a representação das múltiplas alteridades das protagonistas. Dessa forma, começando a observação desses aspectos por Jasmine, podemos constatar que a quase absoluta falta de linearidade na ordem cronológica de apresentação dos eventos da narrativa processa-se lado a lado com a apresentação das diversas personalidades da protagonista: fragmentos da narrativa esfacelada (o que já desconstrói o tradicional conceito aristotélico de arrumação da narrativa em começo, meio e fim) espelham, refletem e ecoam as várias visões de Jasmine, tornando-a uma representação literária admirável do sujeito pós-colonial feminino do mundo contemporâneo, com suas diversas idades, nomes, papéis, condições e comportamentos metamórficos indispensáveis às suas necessidades de adaptação, sobrevivência e deslocamentos diaspóricos. Assim, a estreita relação entre essas duas camadas de fragmentação torna-se um todo intercomplementar. Pode-se então afirmar que a ênfase no uso dessa estratégia por parte de Mukherjee não somente assume essa relevância associativa entre as duas formas de fragmentação (da narrativa e das personalidades da protagonista) como também aponta para a relevância de conceitos fundamentais para a literatura e a arte contemporâneas, tais como: identidade, alteridade, subjetividade, descentramento, condição pós-moderna, dentre outros importantes conceitos. 64 Porém, antes de iniciar a abordagem da eficácia dessas complementações entre a fragmentação da narrativa e a fragmentação das personalidades da protagonista em Jasmine, a referência à seguinte definição teórica de “fragmentação” nos sugere a interessante e rica noção de que o termo em si já apresenta a possibilidade de interpretação dicotômica e problematizadora da sua própria aplicação em vários setores das atividades humanas na contemporaneidade, dentre eles a Literatura. Assim, baseando-se nas idéias de Jean-François Lyotard em The Postmodern Condition: A Report on Knowledge, Joseph Childers assim sumaria as noções do teórico francês acerca de “fragmentação”: O conceito (de fragmentação) é oposto ao de TOTALIDADE 21 – tanto como uma descrição do “self” ou do SUJEITO, do sistema de valores em que vivemos imersos, ou das experiências materiais do nosso cotidiano. A fragmentação é freqüentemente associada às condições do mundo PÓS-MODERNO e pós-industrial. Para muitos, especialmente aqueles indivíduos extremamente envolvidos com formas específicas de ESSENCIALISMO ou crença em formas transcendentais de estética, conceitos morais e ações políticas, a fragmentação é altamente indesejável. Para outros indivíduos, especialmente aqueles que defendem noções de DESCENTRAMENTO ou de INDETERMINAÇÃO – ou seja, aqueles que percebem o sentido de todas as coisas como produzido de uma maneira contingencial e sem uma fundamentação absoluta – a fragmentação é encarada como a inevitável conseqüência do capitalismo e da proliferação da tecnologia. Para este último grupo, a fragmentação não configura em si mesma um estado deletério de coisas e pode até mesmo ser objeto de comemoração. 22 Indubitavelmente, a definição de Childers é bastante elucidativa do conceito de fragmentação, demonstrando que o termo em si já encerra um componente de problematização. Entretanto, mais adiante, ele ainda revela que, a despeito da posição recémcitada de que teóricos da pós-modernidade celebram a fragmentação, existe outra faceta do 21 O destaque deste e dos outros termos subseqüentes constam no original em inglês. No original em inglês: “The concept itself is opposed to that of TOTALITY – whether as a description of the self or SUBJECT, the system of values we inhabit, or the material experiences of everyday life. Fragmentation is often linked to the conditions of a POSTMODERN, postindustrial world. For many, especially those invested in particular forms of ESSENTIALISM, or belief in transcendent forms of aesthetics, morals or political action, fragmentation is much lamented. For others, especially those who espouse notions of DECENTERING or INDETERMINACY – that is, for those who perceive all meaning to be contingently produced and without any absolute foundation – fragmentation is seen as the inevitable consequence of capitalism and the proliferation of technology. For this latter group, fragmentation is not necessarily in and of itself a deleterious state” (CHILDERS, 1995, p. 117). 22 65 termo que possibilita a manipulação de pessoas e instituições por parte de grupos que almejam a opressão do “Outro”, através do exercício do poder, como o próprio Childers explica abaixo: Ao mesmo tempo, todavia, a fragmentação pode ser usada pelas diversas instituições sociais (tais como os governos, as corporações militares e aquelas que controlam os sistemas educacionais, dentre outras) para exercer poder sobre as pessoas através da promoção da constante alienação do indivíduo e da frustração, em última análise, de qualquer tentativa de o indivíduo atingir unidade ou totalidade. 23 Conforme se evidencia no trecho acima, a questão da problematização do termo “fragmentação” reveste-se de nuances ainda mais complexas na medida em que ele pode ser entendido no mínimo de duas formas bem diferentes que apresentam efeitos ideológicos também claramente distintos. É interessante destacar ainda que termos como “unidade” e “totalidade” geralmente se inscrevem numa esfera interpretativa essencialista, representando associações de sentidos que não se coadunam com os parâmetros da Desconstrução de Derrida. No entanto, quando Childers encara a fragmentação como um fator facilitador da manipulação de grupos subalternos, o conceito insere-se no campo semântico oposto ao de “unidade” e “totalidade”. Isto posto, se a complexa questão da aquisição de identidade do colonizado for levada em conta aqui, estes dois últimos termos poderiam equivaler não a sentidos fechados e acabados, mas a algum mais amplo e encampador de outras possibilidades, como “integralidade”. Em outras palavras, para os opressores a ênfase na fragmentação da identidade dos colonizados impediria que estes concluíssem o processo de abandono da condição de eternos objetos das idealizações dos opressores e construíssem sua nova e sempre desejada condição de sujeitos das suas próprias histórias. Acreditamos que a autoconstrução do colonizado como sujeito equivale ao tal atingimento da “unidade” ou 23 No original em inglês: “At the same time, however, it can also be used by existing institutions (such as governments, the military, education, or corporations) to exercise power over people by emphasizing the increasing alienation of the individual and the ultimate futility of any sort of attempted unity or totality”(CHILDERS, 1995, p.117). . 66 “totalidade” a que Childers se refere na última citação (não tendo necessariamente nada a ver com as visões essencialistas), uma vez que ainda nesse trecho o sentido de “fragmentação” é negativo e serve aos interesses dos opressores, o que respalda e confere plausibilidade aos entendimentos não essencialistas de “unidade” e “totalidade” no caso específico da última reflexão de Childers sobre a fragmentação. É exatamente em meio a essa fluidez cambiante de interpretações que as estratégias de desconstrução usadas por Bharati Mukherjee e Margaret Atwood vão abrir brechas que levarão o leitor a entender a fragmentação como elemento inalienável das caracterizações dos sujeitos ditos subalternos, e a configurá-la como elemento facilitador do processo de aquisição de identidade desses sujeitos, enfatizando o estabelecimento de parâmetros mais positivos, visto que esse processo será constantemente permeado por estratégias de resistência à dominação por parte dos colonizados. 2.2 - A Fragmentação da Narrativa e das Identidades em Jasmine Primeiramente, em referência direta a como Bharati Mukherjee trabalha com essa questão no seu romance, não podemos olvidar a forma como a autora inteligentemente mescla aspectos da fragmentação da narrativa e da subjetividade da protagonista de uma forma tão flagrantemente imbricada que chega a causar impactos e provavelmente possíveis enganos de interpretação. A título de ilustração, podemos nos reportar a uma das mais significativas passagens do livro, posicionada estrategicamente na abertura do primeiro parágrafo do capítulo 1, como que a sinalizar para o leitor mais atento a tônica que caracterizará a natureza da narrativa que está por vir. Essa passagem é revestida de um caráter tão emblemático que dá conta de um grande número de referências altamente desconstrutivas que, a despeito de causarem um estranhamento inicial, provar-se-ão absolutamente vitais para interpretações 67 mais abrangentes dos sentidos do romance. A citação igualmente abarca algumas noções aparentemente “não intencionais”, conforme se vê a seguir: Muitas vidas atrás, debaixo de uma figueira-da-índia no vilarejo de Hasnapur, um astrólogo virou as suas orelhas – as suas antenas parabólicas – para as estrelas e previu a minha viuvez e o meu exílio. Eu tinha apenas sete anos de idade naquela época, era rápida e aventureira, e os meus braços estavam todos feridos por folhas e espinhos. 24 De modo geral, uma cuidadosa e atenta atitude de leitura normalmente se consubstancia pelo leitor somente quando já consegue estabelecer alguns elos mínimos de identificação com a história, ou seja, quando o estranhamento inicial é superado, mormente em se tratando de um romance tão pouco convencional quanto Jasmine. Levando-se em conta que tal processo pode-se dar tão mais rapidamente quanto o leitor reconhecer “em que terreno está pisando”, podemos ter como certo que a leitura de Jasmine pode demandar um pouco mais de tempo e avanço pelo texto para que o leitor sinta-se minimamente confortável, uma vez que a exposição do uso da fragmentação como estratégia narrativa simultaneamente desestabiliza as noções tradicionais de narrativas sistematicamente arrumadas e dispostas em começo, meio e fim, assim como retarda a instalação de uma sensação de segurança por parte daquele leitor. Em suma, o leitor terá primeiro que reconhecer o terreno pantanoso com o qual está lidando, descondicionar-se da influência de parâmetros narrativos tradicionais e penetrar na fluidez e na miríade de incertezas que a estratégia pós-moderna de Mukherjee oferece, de uma forma aventureira e desafiante dos mais diversos paradigmas fechados. Para ilustrar de um modo pragmático tal estado de coisas, basta que nos reportemos brevemente a alguns dos pontos abordados pela narradora na citação anterior. Em poucas linhas, ela consegue fazer uma série de referências aparentemente irrelevantes que se provarão 24 No original em inglês: “Lifetimes ago, under a banyan tree in the village of Hasnapur, an astrologer cupped his ears – his satellite dish to the stars – and foretold my widowhood and exile. I was only seven then, fast and venturesome, scabrous-armed from leaves and thorns” (MUKHERJEE, 1991, p. 1). 68 absolutamente imprescindíveis para a recepção dos vários sentidos da história. Para começar, a expressão “muitas vidas atrás” pode sugerir uma referência irônica às muitas fases da vida de um indivíduo, usando-se o conceito religioso-cultural da reencarnação como base metafórica, assim como de fato constituir uma referência direta a esse próprio conceito brahmanista, como uma plausível característica inerente à personalidade da protagonista indiana. À primeira vista, não é tão simples vislumbrar as reais intenções da narradora, pois as duas possibilidades não se excluem. No entanto, à medida que avança a leitura do romance, ganha força a interpretação irônica da passagem sem que se descarte completamente a possibilidade de que a voz que narra esteja de fato considerando a reencarnação como parte do repertório de crenças e conceitos que compõem a complexa psicologia da multinomeada personagem Jasmine. Ou seja, absolutamente nada parece ser desconsiderado. Um outro trecho da fala da narradora corrobora a incorporação de conceitos religiosos e culturais da Índia, quando ela faz referência à figueira-da-índia (“banyan tree”, no original em inglês), visto que os simbolismos relacionados a essa árvore e à figueira em geral inserem-se em contextos místicos hindus e de tradições de outras culturas também. Na cultura judaico-cristã, por exemplo, há o registro de referências à figueira por Cristo nos textos bíblicos, em que Ele teria feito uma alusão negativa a essa árvore, comparando um exemplar dela que não produzia frutos às pessoas que não produzem obras de elevação espiritual, tão idealmente esperadas dos então convertidos àquela forma de religião inovadora e subversiva no seio do Império Romano de dois mil anos atrás. Muitas outras referências poderiam ser feitas, porém nos restringiremos no momento a mais uma alusão feita por Jean Chevalier: Na Ásia oriental, o papel da figueira é extremante importante. No entanto, estou me referindo aqui a uma variedade muito especial da planta, a majestosa figueira-daíndia, conhecida cientificamente na Botânica como Ficus religiosa. Trata-se da mesma árvore da eternidade para os Upanixades, assim como a árvore da vida do Bhagavad Gita. (...) Na iconografia primitiva, ela representa o próprio Buda (...) e é tida como um símbolo de imortalidade e de sabedoria suprema (...) (CHEVALIER, 1982, p. 427-428). 69 Logo após as referências supostamente “não intencionais” à reencarnação e à figueirada-índia, aparece a referência ao astrólogo (figura que também será irreverentemente evocada no final do romance). Essa alusão é bastante relevante porque, na mística e milenar Índia, a figura do astrólogo sempre foi objeto do respeito e da admiração de todos. Além disso, na passagem em questão, o astrólogo está fazendo as suas previsões debaixo de uma árvore tradicionalmente sagrada na cultura indiana, o que garante um “status” duplo de verdade “incontestável” às suas previsões. Como se vê, é dessa forma tão radical e contundente que Bharati Mukherjee primeiramente vai atacar as definições monolíticas e interpretações peremptórias de fatos que circunscrevem o destino e a identidade dos indivíduos a formas e modelos inexoravelmente deterministas. Essa atitude da autora não somente sinaliza as estratégias que ela utilizará para esse fim por todo o romance, como também dá conta da sua talentosa capacidade de tão economicamente evocar uma plêiade de sentidos fundamentais para a sua obra ficcional, compactados nas apenas cinco parcas primeiras linhas do parágrafo de abertura do romance. Não resta dúvida de que toda essa cena inicial constitui um choque de desconstrução de conceitos das mais variadas naturezas (religiosa, social, psicológica, sociológica, política, dentre outras). No entanto, a estratégia da autora avança um pouco mais ainda nesse pequeno trecho abordado: ao comparar as orelhas do astrólogo a uma antena parabólica, ela não somente dessacraliza os supostos poderes premonitórios do astrólogo, como também evidencia inequivocamente a total falta de vontade de a narradora aceitar a má sorte vaticinada para ela pelo astrólogo (a viuvez e o exílio). Não se pode negligenciar aqui a relevância da recusa categórica a essa possibilidade dupla de destino malfadado para a mulher, uma vez que, diferentemente das sociedades ocidentais, a viuvez sempre constituiu uma espécie de “danação” para as mulheres indianas. 70 Mesmo que a aquisição de costumes e a assimilação de influências culturais ocidentais tenham mudado bastante os hábitos culturais da Índia de hoje, não resta dúvida de que esses parâmetros culturais seculares ainda resistem em várias localidades recônditas daquele vasto país. Na verdade, na sociedade hindu tradicional a mulher gozava de um “status” não muito superior ao da condição de sombra do seu marido. Dessa forma, em caso de morte do marido, a mulher se resumia a um ser quase nulo, para não se falar ainda na culpa que advinha dessa má-sorte, pois se no destino da mulher “estivesse escrito” que enviuvaria isto estaria se dando em virtude de pecados por ela cometidos em outras encarnações. Assim, sempre foi um lugarcomum cultural na Índia que a viúva decidisse se suicidar, atirando-se nas chamas da cerimônia de cremação dos restos mortais do seu marido (suicídio ritualístico conhecido como “sáti”), sem que os circunstantes esboçassem grandes reações que impedissem a viúva de cometer esse “desatino” (aos olhos das sociedades ocidentais e à luz dos princípios cristãos). É digno de nota que Mukherjee também incorporará esse dado cultural ao enredo do seu romance, porém não sem desconstruir e questionar a eficácia de tal procedimento. Ainda sobre a condição da viúva, deve-se destacar que àquelas que não optassem pelo “sáti” estaria reservado um destino de confinamento e desprezo. Em aldeias interioranas como a descrita no romance, por exemplo, as viúvas geralmente deixavam de morar com os seus filhos e outros familiares e passavam a residir com outras mulheres viúvas da mesma família ou de outras famílias, formando uma categoria social à parte, sem receber muitas visitas de parentes ou amigos, visto que a viuvez teria se dado em função de pecados transcendentais pretéritos. Isto é bem exemplificado no romance pela passagem em que depois de o seu marido ser assassinado, Jasmine vai morar numa cabana com sua mãe, que também havia se tornado viúva. Esse episódio voltará a ser enfocado adiante neste capítulo. Quanto à questão do exílio, a outra parte do vaticínio do astrólogo, Mukherjee brilhantemente introduz na temática do romance o outro fator (a opressão por razões políticas 71 e de gênero) que assombra e interfere nas condições de agenciamento, voz e identidade da mulher colonizada, completando a noção de exclusão em dose dupla, uma vez que o “status” negativo da viuvez é o emblema da dominação patriarcal a oprimir a mulher, assim como a condição colonial/pós-colonial de imigrante, refugiada ou exilada, vai igualmente constituir uma fonte de opressão. A abordagem mais detida desses tópicos será retomada com mais vagar quando se discutirem as interseções significativas entre esses aspectos fragmentadores da identidade da protagonista e os descontínuos estratos narrativos onde tais aspectos se fazem vislumbar. Sem medo de incorrer em exageros, pode-se afirmar que a primeira passagem do romance já indica a força e a tenacidade da protagonista para lutar contra um destino prédeterminado e infalivelmente negativo para ela, o que demonstra um indício mínimo de agenciamento e de aquisição de poder, a despeito das situações de desvantagem a que ela vai estar submetida por todo o resto da obra. Da mesma forma, não pairam dúvidas no ar quanto ao fato de que Mukherjee parece bastante consciente a respeito de como tirar proveito da manipulação dessas várias nuances da fragmentação para a representação de processos identitários pós-coloniais femininos mais positivos, que implicam um conseqüente processo de representação do empoderamento feminino. Ainda nos valendo da passagem inicial, podemos afirmar que ela constitui uma efetiva e enfática negação da “totalidade” como sinônimo de “conformidade”, “essencialismo” e “subalternidade”, numa bastante bem elaborada forma de expressão: para começar, a narradora Jane Ripplemeyer (uma das alteridades/identidades da protagonista) consegue comprimir os episódios da sua vida como a menina Jyoti, de sete anos de idade, em apenas três páginas (em que as vozes de Jyoti e Jane se confundem); depois, Jyoti peremptoriamente recusa as previsões desditosas do astrólogo para o seu destino, ao mesmo tempo em que 72 impõe a sua própria voz como uma outra mulher (Jane Ripplemeyer), o que o leitor somente entenderá no segundo capítulo do romance. Acresça-se a tudo isso que o episódio da infância da protagonista havia sucedido quando ela tinha apenas sete anos, enquanto que a voz da brava narradora Jane ecoa do momento em que ela está em Iowa, dezessete anos depois do incidente com o astrólogo na aldeia de Hasnapur. Em vista da natureza das estratégias sinalizadas por Mukherjee já no início do capítulo 1 de Jasmine, fica claro que desde então ela outorga à sua protagonista uma marca de diferença, bem ao modo como Derrida concebe esse conceito. Dessa forma, podemos afirmar que a autora não somente confere à sua protagonista seis diferentes nomes e personalidades distintas (Jyoti, Jasmine, Kali, Jazzy, Jase e Jane), mas também voz e agenciamento para resistir à totalidade (no sentido essencialista e unicista do termo). No bojo desse processo de empoderamento, a narradora vai aprendendo a tirar vantagens das conseqüências negativas que a fragmentação impõe à sua trajetória e às suas alteridades. Visto que normalmente a maioria dos sentidos de “identidade” no mundo ocidental tem gravitado em torno de concepções que reproduzem de alguma forma as noções de sujeito herdadas do Iluminismo, tais concepções têm-se circunscrito a modelos racionalistas fechados e reducionistas. Indubitavelmente, tal pressuposição acarretaria a problematização da representação do processo de construção identitário levado a efeito em Jasmine já que “construção” geralmente sugere “unificação” e “ajuntamento de partes separadas para formar um todo”, ao passo que “fragmentação” sugere “divisão em partes”, o que é aparentemente oposto à idéia de “unidade”. Ademais, se “unidade” for interpretada como sinônimo de essencialismo, certamente não será exclusivamente essa acepção do termo que as estratégias pós-modernas de representação implicam. Ao se observar a vitalidade e o dinamismo que caracterizam as ações da protagonista Jasmine, no entanto, chega-se logo à conclusão de que a “unidade” procurada por Mukherjee assume um caráter híbrido na medida em que o conceito 73 implica aqui a junção das várias alteridades da protagonista para formar um tipo de identidade multifacetado e em constante modificação, que atenda à necessária adaptação e enfrentamento das vicissitudes com que os sujeitos pós-coloniais têm que se deparar para sobreviver nos territórios de adversidade por que transitam. Assim, longe de constituírem dados negativos, o hibridismo e a fragmentação assumem nuances mais positivas e passam a implicar a correlação com conceitos da Desconstrução, tais como “divisão”, “multiplicação”, “desdobramento”, “reavaliação”, “descontinuidade”, “análise”, “experimentação” e “descentramento”. Todo esse complexo processo identitário consubstancia-se nas diversas iniciativas que a protagonista levará a efeito para dotar a aparentemente simplória Jyoti das condições necessárias para se transformar em outras personagens e ser várias mulheres, ao mesmo tempo em que sendo uma só. Esse processo se acelera quando alguns eventos trágicos na vida de Jasmine acabam por assumir o efeito de uma catapulta a arremessá-la a uma nova cultura (a ocidental) e a um novo país (os Estados Unidos). Ela se vê repentinamente presa num turbilhão de acontecimentos que a compelem a assumir novos nomes e novas identidades na medida em que é obrigada a se engajar em movimentos diaspóricos na América, é exposta a todo tipo de experiências inusitadas e alguns homens vão passando pela sua vida. Vale ressaltar que todos esses episódios são narrados descontinuamente, de modo que parecem peças de um quebra-cabeça que o leitor vai encaixando aqui e ali para tentar chegar à identidade multifacetada que está em processo de construção. De fato, Jyoti, a personalidade original da protagonista, é aparentemente como qualquer outra garota de uma aldeia interiorana da Índia. Entretanto, essa aparente tabula rasa já esboça resistência aos vaticínios do astrólogo aos sete anos de idade, o que prova que ela não era tão simplória assim. Jyoti acaba dando lugar a Jasmine, quando se casa com Prakash; de Jasmine ela momentaneamente se transforma na própria deusa Kali, quando chega aos 74 Estados Unidos e é estuprada por “Half-Face”, o capitão do navio que traz imigrantes ilegais para a América. A própria protagonista alega ter “incorporado” Kali após ter sido estuprada, uma vez que a doce Jasmine de Prakash jamais teria tido coragem de matar uma pessoa. Desse ponto em diante, ela se transforma em Jazzy e depois em Jase, a babá da filhinha do professor universitário Taylor (por quem ela se apaixona), em Nova Iorque. Tudo isso sucede antes de a protagonista se mudar para Iowa e se transformar em Jane Ripplemeyer (a principal voz narradora do romance). Jane é também a esposa do banqueiro Bud Ripplemeyer. A constatação de que Jyoti não é uma alteridade tão simples quanto se poderia supor implica necessariamente a premissa de que Mukherjee se esmerou na construção da sua protagonista; prova disso é não somente o episódio do astrólogo no primeiro capítulo do romance, mas também os vários indícios espalhados pela história de que Jyoti/Jasmine possui em sua alma as sementes da resistência à dominação. A título de ilustração dessa complexidade, poderíamos citar a passagem em que a voz narradora de Jane Ripplemeyer enfaticamente assevera no fim do primeiro capítulo, em complemento às previsões do astrólogo “Eu sei o que não quero ser” 25, numa clara representação desses referidos indícios de voz e agenciamento, condições mínimas para a construção identitária. Assim, se por um lado a voz da narradora deixa claro que repele veementemente aquilo que ela não quer ser, por outro lado essa mesma voz deixa em aberto as múltiplas possibilidades de realização identitária que lhe possam convir e de que ela possa tirar proveito em favor próprio. Partindo-se, então, do Capítulo 1 e prosseguindo na análise do imbricamento das duas formas de fragmentação que permeiam o romance, lançaremos mão de algumas contribuições teóricas de especialistas em análise do discurso, tais como S. Rimmon-Kenan, S. Chatman e M. Toolan, para aquilatarmos o quanto Jasmine é um lídimo representante das formas pósmodernas não convencionais de narrativas. 25 No original em inglês: “I know what I don’t want to become” (MUKHERJEE, 1991, p. 3). 75 Jasmine é um romance composto de vinte e seis capítulos, desprovidos de títulos, cujo tamanho varia de duas a vinte e uma páginas; e a sua narrativa é muito habilmente conduzida por uma narradora em primeira-pessoa (Jane Ripplemeyer), que tem o estrito controle de todos os episódios e cuja voz muitas vezes parece migrar para a boca de uma das suas outras alteridades, o que forma um emaranhado polifônico enriquecedor das estratégias narrativas empregadas pela autora. Esse fenômeno se dá especialmente quando a narradora se refere a passagens e personagens com tanto distanciamento que confunde o leitor: afinal de contas, se trataria da voz de Jane, de Jyoti, de Jasmine, ou de algum outro alter-ego posterior à “reencarnação” da protagonista como Jane, ou seja, uma personalidade ainda não nomeada, mas que a autora sugere existir depois de Jane. Ainda que a existência dessa alteridade nova seja meramente hipotética, ela é digna de registro, principalmente porque no último capítulo do livro existe a clara possibilidade de que Jane possa se transformar em outra mulher (a nova esposa de Taylor), ou até mesmo continuar o seu ciclo de metamorfoses identitárias. Como se pode inferir, saber exatamente quem é a narradora do romance de Mukherjee o tempo todo e em todas as partes da narrativa não é tão simples quanto se poderia esperar. A esse respeito, os estudos de S. Rimmon-Kenan sobre tipos de narrativas podem lançar algum lume sobre a questão e nos subsidiar no entendimento das formas como a narradora de Jasmine conduz essa complexa narrativa. Ao discorrer sobre a questão, diz ele: A história é sempre apresentada no texto através da mediação de algum “prisma”, “perspectiva” ou “ângulo de visão”, verbalizados pelo narrador, mas não necessariamente pertencentes a ele. Em concordância com o que Gennette (1972) afirma, eu também nomeio essa mediação de “focalização”. (...) Obviamente, uma pessoa (e, por analogia, um agente narrativo) é capaz tanto de falar quanto de ver, e até mesmo de fazer as duas coisas ao mesmo tempo – um estado de coisas que facilita a confusão entre essas duas atividades (...). Mas uma pessoa (e, por analogia, um agente narrativo) também é capaz de executar a tarefa de contar o que uma outra pessoa vê ou viu. Assim, falar e ver, e narração e focalização, podem (mas não precisam) ser atribuídos ao mesmo agente (...). 26 26 No original em inglês: “The story is presented in the text through the mediation of some ‘prism’, ‘perspective’, ‘angle of vision’, verbalized by the narrator though not necessarily his. Following Genette (1972), I call this mediation ‘focalization’. (...) Obviously, a person (and, by analogy, a narrative agent) is capable of both speaking and seeing, and even of doing both things at the same time – a state of affairs which facilitates the confusion between the two activities. (...). But a person (and, by analogy, a narrative agent) is also capable of 76 Em vista do exposto, concluímos que narração e focalização não podem ser reduzidas a classificações simplistas. Para ilustrar, então, essas sutis mudanças de focalização e enfatizar que tais mudanças são realçadas e facilitadas pela fragmentação da narrativa e das alteridades de Jyoti, muitas passagens do livro poderiam servir. No entanto, antes de exemplificar a situação com passagens específicas, torna-se imperioso proceder-se à desconstrução de certos aspectos da narrativa. Não se quer afirmar com isto que Jasmine careça de indícios de desconstrução, pois a situação é exatamente a oposta: no romance sobejam indícios que corroboram a peculiaridade da narrativa, além do farto uso da desconstrução em vários níveis e da representação das novas maneiras de se avaliarem os aspectos do colonialismo e do póscolonialismo referentes à formação da subjetividade. Naturalmente, não se poderia negligenciar aqui o imbricamento das Teorias Feministas com os discursos das Teorias PósColoniais e os postulados dos Estudos Culturais. Em suma, o que se pretende nesta parte da Tese é desenvolver algumas reflexões sobre o que Derrida entende por Desconstrução, para então avaliarmos quão desconstrutiva é a narrativa de Bharati Mukherjee em Jasmine. Em vista disso, e apresentando mais uma visão teórica sobre a Desconstrução – como complemento do que já foi abordado no capítulo anterior -, resolvemos destacar que, para J.A.Cuddon, a Desconstrução de um texto não se processa pelo ceticismo indiscriminado ou pela subversão arbitrária, mas antes pelo desfazimento dos nós das forças antagônicas de significação dentro desse próprio texto. Além disso, Cuddon também afirma que a idéia de Desconstrução não deve ser confundida com “destruição”, conforme Bárbara Johnson estabelece em The Critical Difference, em que ela também afirma que para se erradicar essa confusão basta ter em mente que desconstruir tem a ver com analisar interminavelmente. undertaking to tell what another person sees or has seen. Thus, speaking and seeing, narration and focalization, may, but need not, be attributed to the same agent.(...)” (RIMMON-KENAN, 1983, p. 46). 77 Cuddon ainda afirma que os precursores do movimento são os filósofos fenomenologistas modernos, como Husserl e Heidegger; Ferdinand de Saussure e a sua Lingüística Científica (baseada nos sistemas fechados de significantes e significados ligados arbitrariamente, com nenhuma referência absoluta, substancial e motivada); muitos revisionistas de Nietzsche; e muitos artistas de vários ramos, como James Joyce (com o seu Finnegans Wake). Entretanto, as especulações sobre os princípios da Desconstrução podem ainda ser vislumbrados em momentos anteriores da nossa cultura ocidental, conforme nos assevera C. Holman na citação abaixo: Há algo de desconstrutivo acerca do que Darwin fez com as hierarquias biológicas das relações presente-passado e humano-animal; do que Freud fez com as hierarquias das relações adulto-criança, razão-sonho, consciente-inconsciente e muitas outras; da mesma forma que também há indícios de desconstrução no que Picasso (que chamava a sua arte de “uma soma de destruições”) fez com as hierarquias de perspectiva e orientação na pintura. 27 Na Verdade, a Desconstrução passou a ser o aspecto mais influente do PósEstruturalismo, uma vez que com as obras já aludidas no Capítulo 1 Derrida lançou as bases dessa nova corrente de pensamento filosófico, acarretadora da nevrálgica distinção entre différance e difference, que se refere ao princípio do infindável e contínuo adiamento do significado. Todavia, qualquer reflexão sobre a Desconstrução seria incompleta se não se fizessem menções à “disseminação”. Prosseguindo com a visão teórica complementar dada por Cuddon, diz-nos ele que em uma aplicação especial tornada popular por Derrida, o termo é tão exaustivamente explorado de modo que se podem tirar vantagens tanto da sua raiz latina sêmen (“semente”) quanto da sua relação com a forma grega “sema” (“signo”, “sinal”), com o claro propósito de que o significado na linguagem está amplamente espalhado, semeado, não 27 No original em inglês: “There is something deconstructive about what Darwin did to the biological hierarchies of present-past and human-animal; what Freud did to the hierarchies of adult-child, reason-dream, conscious-unconscious, and several others; what Picasso (who called his art “a sum of destructions”) did to the hierarchies of perspective and orientation in painting” (HOLMAN, 1992, p. 129). 78 semeado, marcado e não marcado. Como resultado, os significados de “disseminar” abarcam as idéias de “semear”, “espalhar”, “propagar” e “difundir”. O termo “disseminação”, assim, basicamente sugere plurissignificação. Ademais, do modo como Derrida concebe o termo, a disseminação é dotada de conotações sexuais e procriativas. Tal processo sugere um jogo textual livre que é alegre, instável e “excessivo” -, em estreita relação com o conceito Nietzscheano do dionisíaco na arte. Cuddon coroa o seu raciocínio afirmando que: Em suma, um texto pode possuir tantos sentidos diferentes que ele não pode ter um único SENTIDO. Não existe nenhum sentido essencial garantido. Uma prática desconstrutiva imediata seria elaborar as indagações para questionar o que se pode entender por “garantido”, “essencial” e “sentido” naquele contexto específico. 28 Após esta exposição bastante simplificada de alguns aspectos sintomáticos da Desconstrução e da Disseminação, as seguintes considerações de P. Lye sobre os efeitos da Desconstrução de Derrida nos textos literários parecem constituir um adequado ponto de partida para se abordarem os sentidos entrelaçados causados pela fragmentação da narrativa e pela fragmentação das subjetividades da protagonista em Jasmine: A literatura é um tipo de escrita claramente aberto à desconstrução, já que ela tão intensamente se baseia nos sentidos múltiplos das palavras, nas exclusões, nas substituições, na intertextualidade, nas afiliações entre os sentidos e os signos, no jogo da diferença, na repetição (e, logo, na diferença significativa). De acordo com Jakobson, a literatura (ou a leitura enquanto literatura) serve à função poética do texto. Este fato, pressupõe-se, num entendimento ao modo de Derrida, significaria que uma leitura inocente e transcendental de um texto torna-se imbricada e complicada por uma contraleitura que desconstrua as assunções significativas básicas desse mesmo texto.29 28 No original em inglês: “In short, a text may possess so many different meanings that it cannot have a MEANING. There is no guaranteed essential meaning. An immediate deconstructive practice would be to question the foregoing sentence by asking what is meant by ‘guaranteed’, ‘essential’, and ‘meaning’ in that context” (CUDDON, 1992, p. 223). 29 No original em inglês: “Literature is a writing clearly open to deconstructive reading, as it relies so heavily on the multiple meanings of words, on exclusions, on substitutions, on intertextuality, on affiliations among meanings and signs, on the play of meaning, on repetition (hence significant difference). In Jakobson’s phrasing, literature attends to (or, reading as literature attends to), the poetic function of the text. This, in (one guesses) a Derridean understanding would mean that the naïve, thetic, transcendental reading of a text is complicated (folded-with) by a counter-reading which de-constructs the thetic impetus and claims” (LYE, 1997, p. 4). 79 Como resultado, uma leitura desconstrutiva do texto é uma leitura que analisa as especificidades das diferenças críticas desse texto com relação a ele mesmo. A partir desses pressupostos, decidiu-se aqui levar a efeito uma estratégia desconstrutiva de análise da narrativa de Jasmine exatamente para tentar o desfazimento dos nós ocasionados pela narrativa não-linear e cronologicamente descontínua, com o objetivo de contrastar o resultado obtido com a estratégia empregada por Mukherjee. Se um pouco de ênfase for dado à arrumação da seqüência temporal dos eventos no romance, a fragmentação da personalidade de Jyoti vai continuar existindo (num nível menos intenso). Em suma, se arrumássemos cronologicamente toda a saga de Jyoti/Jasmine, a fragmentação continuaria sendo uma estratégia importante, porém estaria sobremaneira desacelerada e desproblematizada demais para atingir os propósitos de uma leitura pós-colonial das multifacetadas personalidades da protagonista. Dessa forma, se tal arrumação fosse tentada, ou se a autora tivesse optado por seguir a ordem cronológica na apresentação dos episódios narrativos, a estrutura do romance poderia apresentar aproximadamente a seguinte configuração: a) Eventos referentes à existência da protagonista como Jyoti – Os eventos referentes à vida de Jyoti, a garota interiorana do vilarejo de Hasnapur, e as descrições da época em que ela tinha sete e treze anos, assim como os episódios que descrevem os aspectos social, religioso, familiar e político do cenário da Índia são narrados principalmente nos capítulos 1, 6, 7, 8, 9,10 e 11. Desse modo, se tais episódios tivessem sido narrados cronologicamente, os capítulos que os contêm poderiam ser renumerados na ordem de 1 a 7; b) Eventos referentes à existência da protagonista como Jyoti/Jasmine _ O capítulo 12 mostra o momento em que Jyoti casa com o homem que ela escolhe (o que já é um fator de diferença entre ela e outras meninas 80 indianas), junto do qual ela consegue ser feliz por um curto espaço de tempo. Após o casamento com Prakash, este renomeia-lhe Jasmine. Este então seria o novo oitavo capítulo do romance nessa suposta rearrumação; c) Eventos referentes à existência da protagonista como Jasmine – O capítulo 13 mostra o trágico encontro de Jasmine com a morte. Nesse fatídico capítulo, uma parte das predições do astrólogo registradas no capítulo1 torna-se uma infeliz realidade na vida de Jasmine, uma vez que Prakash é morto na explosão de uma bomba num ataque terrorista. Ironicamente, o terrorista visava à morte de Jasmine e não à de seu marido, pois se tratava de um fundamentalista profundamente contrariado com o comportamento e a vestimenta ocidentalizada de Jasmine. Também é digna de nota aqui uma noção sutilíssima de que não só a protagonista, mas também outros personagens do romance intercambiam as suas alteridades com as dos deuses do hinduísmo. No caso de Prakash, toda a sua generosidade e amor para com Jasmine (comportamento bastante incomum para um marido indiano) aproximam-no da alteridade do deus Vishnu, que encarna a generosidade, o amor e a misericórdia. O novo número deste capítulo seria 9. Também não deve ser tão “não intencional” o fato de que a autora tenha escolhido o capítulo “13” exatamente para narrar uma das piores desgraças da vida de Jasmine, o que evidenciaria a assimilação de uma das superstições ocidentais mais populares acerca desse número, especialmente nos Estados Unidos. Tal especulação é absolutamente plausível, uma vez que a autora mistura elementos da religiosidade e do misticismo indiano (astrologia, reencarnação, referências religiosas ao brahmanismo etc). Em suma, se todos esses elementos místicos orientais estão presentes, por que 81 ela não poderia ter lançado mão de um elemento correlato do ideário místico e supersticioso do Ocidente? d) Eventos referentes à existência da protagonista como Jasmine/Jyoti/Jasmine – No capítulo 4, já como viúva, Jasmine retorna para a sua família e passa a morar na cabana das viúvas, junto com a sua mãe Mataji, que enviuvou quando o pai de Jasmine fora morto por um touro. Assim, momentaneamente ela desce do “plano” de Jasmine para a sua existência anterior como Jyoti. Todavia, ela é dirigida pelas boas influências de Prakash, de quem meio sobrenaturalmente parece ouvir a voz dizendo “Não se arraste para Hasnapur e para o feudalismo. Aquela Jyoti está morta” 30 , de forma que ela decide voltar a ser Jasmine de novo. Para tanto, ela emigra para os Estados Unidos, com documentos falsos, levando consigo alguns dos pertences do seu querido Prakash. Deve-se destacar aqui como a autora interessantemente retrata a divisão cultural que já domina a mente de Jasmine: ao mesmo tempo em que tem consciência de que não deve voltar a ser Jyoti e assumir um tipo de vida feudal em Hasnaspur, ela tenta emigrar para os Estados Unidos, não para morar, mas para fazer uma fogueira no campus da universidade onde Prakash planejava estudar. Nessa fogueira, Jasmine praticaria o suicídio. Ou seja, ela não consegue entender que nos Estados Unidos as pessoas não assistiriam impassíveis a esse ritual porque isso não faz parte do repertório cultural norte-americano. Este capítulo receberia o número 10; e) Eventos referentes à “morte” de Jasmine – Nos capítulos 14 e 15, Jasmine descreve as terríveis condições dos seus deslocamentos diaspóricos como 30 No original em inglês: “Don’t crawl back to Hasnapur and feudalism. That Jyoti is dead” (MUKHERJEE, 1991, p. 87). 82 uma imigrante clandestina para os Estados Unidos, além de registrar também a ajuda recebida do capitão do navio ilegal (“Half-Face”) e as suas supostas “boas” intenções enquanto seu guia e protetor nas primeiras horas em solo norte-americano. Tal ajuda vai até o ponto em que ele se oferece para dividir o mesmo quarto de motel com Jasmine para melhor “protegêla”. Esses capítulos seriam renumerados como 11 e 12; f) Eventos referentes à existência da protagonista como Jane/Jase – No capítulo 18, da página 109 até o final do último parágrafo da página 114, a narradora reporta-se a eventos sobre Jane Ripplemeyer; dessa parte em diante, o foco da narrativa é desviado para os momentos posteriores à simbólica morte de Jasmine, visto que ela é estuprada por Half-Face e momentaneamente “incorpora” a Deusa Kali para poder matá-lo. Quando a protagonista foge do motel, ela parece se tornar uma mulher sem nome (pois a inocente Jasmine teve a sua morte simbólica com o estupro e a intrépida e vingativa Kali teve uma existência meteórica para matar HalfFace, de modo que essas duas alteridades não pareciam servir para aquele momento). A protagonista atravessa esses momentos de angústia, fuga e desespero até o instante em que miraculosamente Lílian Gordon, “uma generosa senhora quaker”, atravessa o seu caminho, e ajuda-a se transformar em Jase. Lílian é uma ativista social que protege imigrantes ilegais. Ela a encaminha para ser a babá da filha do casal Taylor e Wylie Hayes em Nova Iorque, onde ela passa a ser decentemente tratada como um ser humano. Curiosamente, é interessante observar que esse capítulo receberia o número “13”, caso fosse implantada a linearidade da narrativa; 83 ou seja, diferentemente do capítulo 13 real do romance, este novo capítulo 13 passaria a conter a melhor existência da protagonista; g) Eventos referentes à existência da protagonista como Jazzy – Nos capítulos 18 e 19, Jasmine é ajudada por Lílian Gordon, com quem passa algum tempo, antes de ser encaminhada para a casa do casal nova-iorquino para ser a babá da filha deles. Esta é a parte da existência da protagonista em que ela aparentemente não tem nome, embora haja a referência de que Lílian a nomeia Jazzy. É interessante notar que Lílian a chama de “Jazzy” por não entender a pronúncia de “Jasmine”, o mesmo se dando quando a protagonista chega à casa dos seus novos patrões, que decidem chamá-la de “Jase” por não entenderem a forma como a protagonista pronuncia “Jazzy”. Tal fato evidencia que no processo de americanização da protagonista o apeerfeiçoamento do seu domínio do inglês vai desempenhar um papel fundamental. Os capítulos 18 e 19 poderiam então ser renumerados para 14 e 15; h) Eventos referentes à existência da protagonista como Jane Ripplemeyer – Os episódios narrativos referentes prioritariamente à Jane Ripplemeyer figuram nos capítulos 2, 3, 4, 5, 17, 20, 24, 25 e 26. Nesses capítulos, Jane relata principalmente a sua rotina em Baden (Iowa) como mulher de Bud Ripplemeyer, porém também rememora esparsamente alguns instantes das suas existências anteriores. Tais capítulos poderiam ser renumerados como 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, respectivamente; Em suma, se fosse tentada essa renumeração e reorganização dos eventos narrativos do romance de uma forma cronológica, o número de capítulos poderia até se reduzir de 26 para 84 24 (porque algumas das referências imbricadas poderiam se acomodar organizadamente nos capítulos apropriados). Como um exercício especulativo para se visualizarem lado a lado a versão original (super fragmentada) e essa possível versão da história “mais arrumada”, a tentativa poderia até nos fazer entender melhor os movimentos do romance, porém faria com que a história perdesse o que ela tem de mais atrativo – a representação exacerbada de como a identidade de um sujeito pós-colonial feminino pode ser objeto de esfacelamentos e metamorfoses tão extremas, experimentados tragicamente por esse mesmo sujeito de uma forma silenciosa e solitária. Além disso, uma possível arrumação cronológica da narrativa e do fluxo das alteridades de Jyoti/Jasmine não resolveria todos os problemas de identificação da narradora-protagonista, para não falar da estrutura interna de certos capítulos, que contêm muitas referências cruzadas às várias existências da protagonista. No capítulo 7, por exemplo, há a exposição da intimidade da vida familiar de Jyoti, através do episódio em que se narra que Jyoti era uma aluna excelente e, por causa disso, ela havia estudado muito mais que suas irmãs. A narradora então descreve uma crise familiar acontecendo quando Jyoti recusa o oferecimento de um emprego em um banco (algo muito ousado para uma garota) e diz que ela quer estudar medicina. Essa passagem se torna emblemática para os objetivos da autora porque a “simplória” Jyoti já é capaz de impor sua voz para escolher uma carreira profissional absolutamente impensável para uma mulher. É igualmente digna de registro a imediata associação que Dida, a avó de Jyoti, faz entre a atitude “destemperada” da neta e a loucura e a influência da Deusa Kali, como se observa no seguinte trecho: Meu pai ficou ofegante e disse: “Esta garota está louca! Eu vou escrever nas costas do dicionário: esta garota está louca!” (...) Dida entendeu alguma coisa de pronto pela primeira vez e disse em punjabi: “Culpem a mãe. A insanidade tem que vir de algum lugar. É a mãe que é louca. (...)” Por todo aquele dia e até tarde da noite, nós continuamos a ouvir aquele coro: “A garota está louca. A mãe dela é louca. O país todo ficou louco. Kali Yuga chegou.” 31 31 No original em inglês: “My father gasped. “The girl is mad! I’ll write in the back of the dictionary: the girl is mad!”(…) Dida caught on for the first time. She said in Punjabi “Blame the mother. Insanity has to come from somewhere. It’s the mother who is mad.” (…) All that day and deep into the night, we heard their chorus. “The girl is mad. Her mother is mad. The whole country is mad. Kali Yuga has already come” (MUKHERJEE, 1991, p. 45). 85 Conforme se percebe claramente na passagem em referência, a alegação de “loucura” evidencia a fragilidade dos laços de solidariedade entre as mulheres oprimidas na Índia, - fato também perceptível entre mulheres oprimidas de outras sociedades, ocidentais ou orientais - , que acabam sendo paradoxalmente as primeiras porta-vozes desse discurso patriarcal, escandalizador de qualquer tentativa de comportamento transgressor de mulheres que ousam sair dos estritos limites das idealizações que lhes são impostas. Ademais, uma vez que o conformismo feminino acerca das condições subalternas da mulher nessas sociedades não raro faz com que elas encarem tal situação discriminatória como natural, qualquer tentativa individual de subverter esse processo é tomada à conta de expressão de comportamento insano. A esse respeito, Leila Assumpção Harris e Lílian Nacimento Pinho desenvolveram valiosas considerações em que os conceitos de sanidade e de insanidade em Alias Grace ganham contornos outros que não aqueles do discurso patológico da Psicanálise. Todavia, as suas afirmações também se encaixam na presente problemática de Jasmine, quando elas frisam que: “Não se trata aqui da loucura como patologia, mas como construto social, como classificação atribuída pela sociedade àqueles indivíduos considerados fora dos padrões normais” (HARRIS, 2003, p. 385). Na passagem em destaque, Dida, a avó de Jyoti, de imediato classifica as altas aspirações profissionais da menina (tornar-se médica) como inequívocos indícios de loucura – o que se encaixa no sentido de “loucura” dado por Leila Harris e Lílian Pinho. Para a situação adquirir uma aura mais inexorável ainda, Dida esbraveja que a culpa pela loucura da neta é da mãe de Jyoti, ou seja, se houve algum fator hereditário determinante daquela situação “mórbida”, ele não teria sido de responsabilidade do seu filho (o pai de Jyoti, o homem), mas sim da mãe da menina, com a mensagem subliminar de que as mulheres da sua própria família seriam “mentalmente equilibradas” porque se acomodaram aos modelos sociais de submissão reservados para elas naquela 86 sociedade. Mais adiante, as estratégias sarcásticas e a refinada maneira de Mukherjee lidar com sutilíssimos estratos de ironia vão de certa forma “endossar” esses prognósticos de Dida, quando a mãe de Jyoti (e a própria Jyoti/Jasmine) fica viúva; ou seja, além de “loucas”, mãe e filha ainda têm o “merecimento transcendental” de amargar o doloroso “status” de viúvas numa sociedade que as excluirá e as considerará párias exatamente por esse motivo. Entretanto, retornando o foco da nossa atenção para a peculiar reação discriminatória da avó de Jyoti, ainda se podem evocar outras implicações relevantes trazidas à baila pelas idéias de Luce Irigaray acerca da posição da mulher na sociedade patriarcal e da natureza das relações entre as mulheres. De acordo com Irigaray, a ordem social determina a ordem sexual. Nas sociedades patriarcais, os homens são “os sujeitos da produção e os agentes das trocas”32, ao passo que as mulheres são os produtos (“commodities”). Na sua visão, a economia, como um todo, é baseada em “relações homossexuais”, visto que todas as trocas ou transações econômicas acontecem entre os homens. Em uma sociedade desse tipo, ela afirma, “a mulher existe somente para propiciar a mediação, a transação, a transição e a transferência entre um homem e um outro, ou seja, entre um homem e ele próprio” 33 . Conseqüentemente, Irigaray também frisa que tão logo uma mulher trava uma relação de qualquer natureza com outra mulher ela se torna masculina. Essa constatação explica perfeitamente o comportamento de Dida, na medida em que ela se torna “masculina” ao se tornar porta-voz da sociedade patriarcal opressora quando Jyoti expressa a sua vontade de deixar de ser “commodity” (objeto das idealizações da sociedade patriarcal, que se expressa na passagem em referência com a sua recusa em “ser bancária”) para ser um “sujeito” (“ser médica”, condição profissional mais complexa e oferecedora de maior emancipação – fruto da sua escolha). Outro aspecto emblemático envolvendo Dida é a referência a “Kali Yuga”, que poderia passar despercebida em função da sutileza e do aparente “descaso” com que a 32 No original em inglês: “ (...) producer subjects and agents of exchange” (IRIGARAY, 1985, p. 192). No original em inglês: “ (…) woman exists only as an occasion for mediation, transaction, transition, transference, between man and his fellow man, indeed between a man and himself” (Ibid, p. 193). 33 87 narradora insere a oração “Kali-Yuga já chegou” 34. Na verdade, a expressão “Kali-Yuga” não é importante aqui somente por conter o nome de uma das divindades mais apavorantes do panteão Hindu, mas antes por designar uma era prevista nas tradições hinduístas de muito terror e desgraças para a humanidade, na qual reinariam tais estados caóticos que as próprias bases da sociedade patriarcal estariam ameaçadas, como se percebe na seguinte citação: Kakbhushundi disse: “No Kali-Yuga, o berço cálido do pecado, os homens e as mulheres estarão desvinculados das normas dos comportamentos justos e corretos e agirão ao contrário do que os Vedas ensinam. Na era de Kali, cada virtude será suplantada pelos pecados do Kali-Yuga: todos os bons livros terão desaparecido; os impostores terão promulgado um número de crenças que eles inventarem das suas próprias cabeças. (...) Cada homem e cada mulher se regozijará em se revoltar contra os Vedas. Os brâmanes venderão os Vedas; os reis sangrarão seus súditos; (...) Dominados pelas mulheres, todos os homens dançarão ao som das canções femininas, como fazem os macacos controlados pelos seus adestradores. (...) As esposas que tiverem seus maridos vivos não usarão nenhum ornamento, enquanto que as viúvas enfeitar-se-ão de acordo com as últimas tendências da moda. (...)” . 35 Contudo, a teia de implicações significativas para os fins desta Tese não se restringe – e nem o poderia – a esta parte do capítulo. Ainda mais à frente, há situações emblemáticas envolvendo outras personagens. Trata-se a primeira delas da passagem em que a narradora faz menção aos personagens Pitaji e Mataji pela primeira vez fazendo uso dos seus primeiros nomes sem os terem apresentado com mais minudência anteriormente; são o pai e a mãe de Jyoti, respectivamente. Essa estratégia acaba sendo problemática por tornar o texto mais obscuro e “desarrumado”, fazendo com que o leitor tenha que saber de eventos envolvendo personagens introduzidas abruptamente, que somente farão sentido em um segundo momento. A outra passagem dessa natureza situa-se no final do capítulo, quando a narradora diz: 34 No original em inglês: “Kali-Yuga has already come” (MUKHERJEE, 1991, p. 45). No original em inglês: “Kakbhushundi said: In the Kali-Yuga, the hot-bed of sin, men and women are all steeped in unrighteousness and act contrary to the Vedas. In the age of Kali, every virtue had been engulfed by the sins of Kali-Yuga; all good books had disappeared; impostors had promulgated a number of creeds which they had invented out of their own wit. (…) Every man and woman takes delight in revolting against the Vedas. The Brahmans sell the Vedas; the kings bleed their subjects; (…) Dominated by women, all men dance to their tune like a monkey controlled by its trainer. (…) Wives having their husbands alive have no ornaments on their person, while widows adorn themselves in the latest style (…)” (UTTAR-KANDA, 1999, p. 1-2). 35 88 “Quando eu disse à Wylie uma vez que minha mãe me amava tanto que chegou a tentar me matar, ou até mesmo que ela quase se matou de outra vez, ela puxou a sua filha Duff para mais perto dela” 36 . Os principais problemas aqui são: a) a narradora da passagem é provavelmente Jane Ripplemeyer, que é quem parece narrar a maior parte da história; todavia, ela refere-se aos pais de Jyoti pelo seu primeiro nome, o que a distancia do contexto narrado, como se Pitaji e Masterji não fossem os pais de quem narra a cena (Jane), o que também reforça a noção de que a protagonista, na condição de uma mulher mais madura e com outro nome, sente-se de fato uma personalidade diferente da menina Jyoti; b) quando a narradora refere-se à Wylie na citação acima, ela está se referindo à mulher que a contratara como babá da sua filha Duff. No entanto, em um certo momento, quando ela usa a expressão “a filha deles”, ela também está se referindo ao pai de Duff, Taylor; contudo, como duas linhas acima ela estava se referindo somente à Wylie, a expressão adequada deveria ter sido “sua filha”, ou “filha dela”, em vez de “filha deles”. Surpreendentemente, entretanto, o que se torna mais enigmático para o leitor é que Taylor e Wylie Hayes somente farão sua primeira aparição coerente e detalhada no romance numa passagem bem posterior, na página 114 do capítulo 18. Em suma, estas são apenas algumas ilustrações de fenômenos narrativos de mesma natureza que são abundantes no romance e dão a sua contribuição para deixar as informações literalmente fora de lugar. Não é de se estranhar, portanto, que tal número de referências descontínuas e desordenadas figurem como obstáculos à pronta recepção da história pelo leitor. Rememorando o capítulo 1 de Jasmine, mais uma vez, tem-se o episódio principal envolvendo a pequena menina de sete anos (Jyoti) veementemente recusando a predição da sua futura viuvez por um astrólogo no vilarejo indiano de Hasnapur. No final desse breve capítulo, ocorre a primeira descontinuidade provocada por um interessante fenômeno 36 No original em inglês: “When I said to Wylie once that my mother loved me so much she tried to kill me, or she would have killed herself, she pulled Duff, their daughter, a little close to her” (MUKHERJEE, 1991, p. 45). 89 polifônico subitamente interposto na narrativa pela narradora, privando o leitor da expectativa de um esquema narrativo tradicionalmente linear e cronologicamente organizado, quando a narradora afirma: Eu nadei para a parte do rio envolta em halos solares dourados. Furiosamente, eu usava os meus pés e minhas mãos como se fossem remos. Repentinamente, meus dedos tocaram a carcaça de um pequeno cachorro, já enrijecida pela água. Estava totalmente apodrecida e os olhos do bicho já tinham sido consumidos. No instante em que toquei o animal morto, a carcaça partiu-se em duas partes, como se a água as tivesse mantendo unidas até aquele momento. Um cheiro nauseabundo dominou o ambiente enquanto os restos do cachorro rapidamente afundavam. (...) Aquele cheiro insuportável ainda guardo vividamente na memória. Eu hoje tenho vinte e quatro anos e moro em Baden, Iowa, mas toda vez que eu levo um copo d’água até os meus lábios, aquele fedor volta com a rapidez de um raio. Eu sei exatamente o que não quero para mim. 37 Para que a passagem acima seja plenamente compreendida em todo o seu potencial de desconstrução, vale ressaltar que ela se segue ao pânico e ao alvoroço em que se encontrava a pequena Jyoti ao escapar do astrólogo que predissera a sua viuvez e o seu exílio sob um pé de figueira-da-índia. Quando tenta se desvencilhar do místico, Jyoti cai e corta a língua com os dentes (o que já prenuncia um evento posterior em que a protagonista voluntariamente cortará a língua com uma faca, quando assumir a alteridade da deusa Kali, para matar Half-Face); ao mesmo tempo, um pequeno galho escapa da lenha amarrada que ela carregava na cabeça e a sua ponta lhe produz um ferimento em forma de estrela bem no meio da testa. Segue-se que o astrólogo entra em transe de novo e a narradora afirma sobre si própria: “Eu era um nada, um pontinho insignificante no sistema solar. Maus momentos estavam por vir. Eu estava indefesa e marcada. A minha estrela sangrava” 37 38 . O astrólogo então continua a repreender a menina, No original em inglês: “I swam to where the river was a sun-gold haze. I kicked and paddled in a rage. Suddenly my fingers scraped the soft waterlogged carcass of a small dog. The body was rotten, the eyes had been eaten. The moment I touched it, the body broke in two, as though the water had been its glue. A stentch leaked out of the broken body, and then both pieces quickly sank. (...) That stentch stays with me. I’m twentyfour now, I live in Baden, Elsa County, Iowa, but every time I lift a glass of water to my lips, fleetingly I smell it. I know what I don’t want to become” (MUKHERJEE, 1991, p. 3). 38 No original em inglês: “I was nothing, a speck in the solar system. Bad times were on the way. I was helpeless, doomed. The star bled” (MUKHERJEE, 1991, p. 1). 90 citando o caso de uma outra mulher que vivenciara uma previsão astrológica trágica, quando todas as evidências apontavam para a não concretização do mau-agouro. Jyoti então se sente momentaneamente enlevada pelas fragrâncias das flores e pela visão que tinha das árvores retorcidas em redor, como se elas se curvassem para protegê-la, como se elas fossem fantasmas femininos benfazejos, como ela própria afirma: “Eu sempre tive a impressão de que espíritos femininos me protegiam. Eu nunca me senti um nada” 39. Jyoti vai então ao encontro das irmãs, que se apavoram ao vê-la ferida na testa e gritam: “O que aconteceu? (...) Agora o seu rosto está marcado com essa cicatriz para o resto da vida! Como é que a nossa família vai poder arranjar um marido para você?” 40, ao que Jyoti responde: “Isto não é uma cicatriz, é o meu terceiro olho” 41 , numa alusão às histórias que a sua mãe contava sobre os sábios santificados que desenvolviam um terceiro olho bem no meio das suas testas, símbolo de sabedoria e acesso a conhecimentos místicos e transcendentais dos mundos invisíveis. Por fim, Jyoti afirma para as irmãs: “Agora, eu sou uma sábia” 42 . As suas irmãs param de se banhar no rio, pegam os seus vasos de água e o fardo de lenha que Jyoti trouxera da floresta e vão ao encontro das outras mulheres à beira de um poço ali perto. Jyoti decide então se banhar numa parte mais atraente do rio, onde se depara com a carcaça do cachorro descrita na citação da página anterior. Em suma, nas três primeiras páginas de abertura do romance, Bharati Mukherjee consegue condensar tanta informação relevante para o entendimento de toda a obra com uma assombrosa economia de palavras e uma linguagem quase telegráfica que desnorteiam e desestabilizam qualquer leitor menos prevenido. Além disso, fica patente o tom de superação do estigma da subalternidade, que a narradora deixa absolutamente claro na rápida progressão dos eventos narrados: a) primeiro, o astrólogo prediz a viuvez e o exílio de Jyoti; b) logo, 39 No original em inglês: “I always felt the she-ghosts were guarding me. I didn’t feel I was nothing” (Ibid, p.2). No original em inglês: “What happened? (...) Now your face is scarred for life! How will the family ever find you a husband?” (Ibid, p. 2). 41 No original em inglês: “It’s not a scar, it’s my third eye” (Ibid, p. 2). 42 No original em inglês: “Now I’m a sage” (MUKHERJEE, 1991, p. 2). 40 91 Jyoti se aterroriza, cai e recebe um ferimento com formato de estrela na testa (o que pode ser mau, se for uma cicatriz; mas pode ser bom, se visto como um “terceiro olho” emancipatório e doador de uma forma de poder exclusiva dos homens sábios); c) em seguida, Jyoti readquire sua força e se sente protegida pelas fragrâncias das flores e pelas árvores das florestas; d) depois, ao se separar das suas irmãs, escolhe nadar numa parte do rio agradável, mas se depara com a carcaça podre do cachorro; e) por fim, no último parágrafo, não é mais Jyoti quem controla a narrativa, mas sim Jane Ripplemeyer (na verdade, a mesma Jyoti, já madura e moradora não de Hasnapur, mas de Iowa, nos Estados Unidos). Nesse instante, a carcaça podre do cachorro transforma-se em metáfora de todos os males, todos os escolhos de submissão e sofrimento que Jyoti, Jasmine, Kali, Jazzy, Jase e Jane Ripplemeyer – enfim, todas as “identidades” da protagonista – tiveram que enfrentar por serem várias e a mesma mulher simultaneamente. Como complicador dessa situação, a protagonista de Jasmine, enquanto representação do sujeito pós-colonial feminino, além de naturalmente não se enquadrar no propalado padrão americano WASP (“White Anglo-Saxon Protestant”, ou seja, o padrão branco, de ascendência anglo-saxônica e de religião do ramo protestante), também é mulher (subalterna por razões de gênero), imigrante (subalterna por razões políticas, oriunda da Índia, país de terceiro mundo e ex-colônia britânica), não-branca e de tipo exótico (subalterna por razões de etnia e possuidora de uma beleza “enfeitiçante” e de “naturais” tendências para a lascívia, característica comumente idealizada e imposta pelos europeus colonizadores a todas as mulheres não-brancas das colônias de países europeus). Na verdade, tem-se muita informação tanto clara quanto veladamente sugerida no espaço restrito desse primeiro capítulo. Conduzindo a narrativa dessa maneira, desde o início do livro, a narradora quebra a tradicionalmente esperada linearidade da história, apresentando dois momentos absolutamente extremos na vida da protagonista. A distância entre a vida de Jyoti em Hasnapur, com sete anos de idade, e a da já americanizada Jane Ripplemeyer, em 92 Iowa, dezessete anos depois, abre uma lacuna bastante difícil para o leitor preencher de imediato. Tal quebra na narrativa, assim como a da já referida menção a Wylie e Taylor, no capítulo 7, antes que sejam efetivamente apresentados no capítulo 18, é forte o suficiente para gerar um tipo de frustração no leitor que se pode explicar pelo que Michael J. Toolan afirma sobre as narrativas de modo geral e que bem se aplica ao desconforto que o tipo de narrativa de Jasmine proporciona desde o capítulo 1: As narrativas parecem tipicamente possuir uma ‘trajetória’. Elas geralmente vão para algum lugar, e se espera que elas de fato levem a algum lugar, apresentando algum tipo de desenvolvimento e até mesmo um fechamento ou conclusão. Todos esperamos que as narrativas tenham começos, meios e fins (conforme Aristóteles estipulou em sua Arte Poética). 43 Muito embora se possa afirmar que o romance em questão tenha um início turbulento, após a leitura do segundo capítulo a recepção da história começa a ficar menos problemática. No entanto, não se pode negar que essas alternâncias radicais do foco narrativo tornam mais complicadas a leitura e a recepção da história e requerem maior habilidade do leitor para interpretar o romance. A esse respeito, um pouco mais de luz pode ser lançada na tentativa de se bem analisar e lidar com a narrativa de Jasmine se forem levadas em conta as seguintes considerações que S. Chatman faz acerca das idéias que Genette desenvolve sobre a seqüência cronológica dos eventos de uma narrativa: Genette estabelece distinção entre seqüência normal, em que a história e o discurso têm a mesma ordem (1 2 3 4) e as seqüências anacrônicas. E deve-se ressaltar que a anacronia pode ser de duas naturezas: o “flashback” (analepse), quando o discurso quebra o fluxo da história para o rememoramento de eventos anteriores (2 1 3 4), e o “flashforward” (prolepse), quando o discurso dá um salto para frente, em direção a eventos subseqüentes ou intermediários. 44 43 No original em inglês “Narratives typically seem to have a ‘trajectory’. They usually go somewhere, and are expected to go somewhere, with some sort of development and even a resolution, or conclusion provided. We expect them to have beginnings, middles, and ends (as Aristotle stipulated in his Art of Poetry)” (TOOLAN. 1998, p. 4). 44 No original em inglês: “Genette distinguishes between normal sequence, where the story and discourse have the same order (1 2 3 4), and ‘anachronous’ sequences. And anachrony can be of two sorts: flashback (analepse), 93 Seguindo então essa forma de se analisar a narrativa, podemos afirmar que uma das estratégias mais fartamente usadas por Mukherjee em Jasmine é exatamente a analepse, que se torna um meio eficaz pelo qual a narradora-protagonista vai evocando as diferentes mulheres que ela foi no passado, assim como as circunstâncias físicas e psicológicas de cada uma dessas alteridades. Na verdade, a dinâmica história que a narradora de Jasmine tece torna-se de difícil compreensão, num primeiro momento, também em função desse uso recorrente e intercalado da analepse (“flashback”) com a prolepse (“flashforward”), à medida que ela lança mão desses dois recursos narrativos para unir as diversas pontas das histórias das mulheres passadas (que a narradora já havia “encarnado”) com os episódios da vida de Jane Ripplemeyer (a alteridade mais madura e posterior da protagonista-narradora). Em vista de uma apreciação mais detida do uso de todo esse processo que amalgama a fragmentação da(s) identidade(s) da protagonista com a fragmentação extrema dos eventos narrativos, e com a conseqüente criação de uma atmosfera narrativa de difícil recepção imediata, podemos reconhecer que não só o romance de Mukherjee é dotado de um tom sobremaneira típico das estéticas da pós-modernidade (principalmente por rejeitar a fórmula “princípio-meio-fim”), mas também que o leitor passa a ficar seduzido pela (des)arrumação da narrativa, quando os primeiros obstáculos são ultrapassados. Levadas em consideração tais perspectivas, percebe-se que a desconstrução permeia esses recursos narrativos usados por Bharati Mukherjee. Resulta desse processo que um novo olhar analítico lançado sobre Jasmine, após compreendida a magnitude dessas estratégias narrativas, passa a desvelar uma série de outras características e estratégias surpreendentes também empregadas no romance pela autora para evidenciar a admirável saga da sua where the discourse breaks the story-flow to recall earlier events (2 1 3 4), and flashforward (prolepse) where the discourse leaps ahead, to events subsequent to intermediate events” (CHATMAN, 1978, p. 64). 94 protagonista multinomeada, enquanto engajada numa diáspora para a construção de sua autoimagem e identidade. A natureza e a organização dessas estratégias narrativas não convencionais geram situações à primeira vista enigmáticas, mas que ganham novos sentidos quando se percebe que elas ecoam as complexas, tortuosas e fragmentadas situações vividas pela protagonista Jasmine. Não seria preciso dizer que as noções de fragmentação, diáspora, desterritorialização e hibridismo vão ocasionar situações trágicas e dificuldades que obrigarão Jasmine a elaborar respostas adequadas em termos de adaptação, assimilação, superação de traumas emocionais e dores físicas e emocionais das mais variadas naturezas. De fato, torna-se bastante admirável todo o mosaico oferecido pela confluência da fragmentação da narrativa e das identidades de Jasmine que permeia a “via crucis” da protagonista. Primeiramente, a ainda Jyoti é recolocada por Jane Ripplemeyer dentro da atmosfera mística e misteriosa de Hasnapur, o vilarejo onde ela nascera, o que já deixa claro um certo poder para manipular a narrativa dando saltos para a frente ou para trás, sem a mínima preocupação com as conseqüentes dificuldades na recepção da história que essa estratégia vai causar. Feita esta primeira intervenção fundamental na narrativa, a mulher que então nos é apresentada não passa de uma menina de certo modo inocente, mas que não se furta a dizer um sonoro e retumbante “não” às nada alvissareiras previsões que um astrólogo lhe faz sobre a sua vida futura. Deve-se ressaltar aqui que essa cena inicial reporta-nos a um dos vários lugares-comuns da cultura da Índia – a onipresença do misticismo como um elemento de determinismo irrecorrível governando as vidas e os destinos das pessoas. Desse modo, o que o astrólogo faz nessa cena é algo a que ele estaria bastante acostumado, por ser parte da sua rotina e função social; a única novidade aqui é o tom de desconstrução de que a narradora reveste a cena, adicionando uma negação absoluta e peremptória da protagonista ao vaticínio do místico, enunciada por um ser duplamente em vantagem: uma mulher na também desvantajosa faixa etária infantil. Não podemos olvidar aqui que, conforme muitos teóricos do 95 pós-colonialismo afirmam, a infantilização dos colonizados fora uma das várias estratégias dos dominadores para justificar a “necessária” tutela que esses povos requereriam; ademais, uma vez que a criança sempre amargou um “status” de inferioridade no mundo ocidental até bem poucas décadas, a infantilização imposta por motivos de dominação figura como eficiente estratégia para desabonar a subjetividade dos colonizados. Dessa forma, a retratação de Jasmine como a rebelde menina Jyoti já serve para desconstruir de imediato qualquer presunção de que a criança seja necessariamente tão incapaz, manipulável, carente de tutela e desorientada. Em conseqüência, a infantilização do sujeito subalterno pós-colonial, enquanto mulher ou não, já figura como um conceito subliminarmente combatido no primeiro capítulo do romance de Bharati Mukherjee. Subseqüentemente ao notável episódio de abertura de Jasmine, entre a alteridade de Jyoti e a de Jane Ripplemeyer, várias outras alteridades da protagonista alternar-se-ão, como se fossem verdadeiras “reencarnações” da mesma mulher recebendo diferentes nomes. Como há passagens no romance em que a protagonista tanto clara quanto sutilmente se refere à reencarnação, conforme sobejamente enfatizado nesta Tese, concluímos que a autora resolveu lançar mão do uso dessa estratégia fragmentadora para endossar as profundas diferenças de personalidade que cada uma das alteridades de Jasmine apresenta. Torna-se necessário, em função dessa peculiaridade, deixar bem claros outros pontos em relação ao tópico “reencarnação”, uma vez que faremos uso dele aqui para endossar as estratégias de fragmentação da personalidade da protagonista: a) em diversos trechos do romance, a narradora refere-se à reencarnação, com uma rica variedade de tons – não somente pia e seriamente (ao modo de quem realmente acreditasse nesse conceito religioso, por pertencer à cultura hindu), mas também irônica e ceticamente (exatamente como um observador externo da cultura religiosa hindu, como alguém que estivesse simplesmente fazendo uso dos conceitos relacionados à reencarnação para endossar as suas estratégias de 96 fragmentação da personalidade das suas personagens); b) todas as considerações acerca da reencarnação aqui utilizadas privilegiam o seu “status” como um lugar-comum típico da cultura da Índia, originado no intricado sistema religioso do hinduísmo e, em função disso, suficientemente significativo para ser apropriado por Mukherjee como um elemento do seu próprio meio cultural, por se formarem as indispensáveis condições para representar as camadas de fragmentação da complexa identidade de sujeitos femininos pós-coloniais como Jasmine; c) a despeito das suas dimensões religiosas e míticas, as únicas características do conceito que interessam aqui são as que têm a ver com o seu potencial de simbolismo do renascimento, das mudanças, dos movimentos de reconfiguração e rearrumação de esquemas e situações anteriores que apontem para as questões da desconstrução. Um outro fator marcante que endossa o uso da reencarnação para interpretar as diversas facetas de personalidade de Jasmine é a presença recorrente de referências míticas, religiosas e supersticiosas por todo o romance, de que a tão aludida cena do astrólogo no capítulo de abertura já é um exemplo radical. Assim, a existência da protagonista feminina de Mukherjee como Jasmine é crucial para o seu processo de amadurecimento, porque essa “reencarnação” como Jasmine funciona como uma eficiente “ponte” ligando a sua existência anterior como a menina e depois adolescente Jyoti (antes do seu casamento com Prakash) às suas posteriores “existências” ou “reencarnações” como Kali, Jazzy, Jase e Jane Ripplemeyer. Entretanto, é precisamente quando se lança um olhar sobre essas existências da protagonista postas em ordem cronológica (exatamente o que não é oferecido no romance) que se percebe que a dimensão e a força da protagonista encampam não somente as características de todas as suas outras existências, mas também alguns traços de Brahma, Vishnu e Shiva. Conseqüentemente, a amálgama dessas muitas mulheres, somada à incorporação por parte de Jasmine de várias 97 características dessas divindades indianas, acaba por dar uma contribuição significativa para a representação da sua complexidade identitária. À luz desses esclarecedores comentários sobre misticismo e reencarnação, acreditamos que a ênfase recorrente no uso desses conceitos como estratégias de fragmentação no romance (vistos como recursos narrativos pós-modernos) abre espaço para a interpretação das várias facetas da personalidade da protagonista como verdadeiras reencarnações da garotinha Jyoti de Hasnapur. Enfim, temos que levar em consideração todas essas referências e analisá-las detidamente. Por exemplo, além do episódio da querela entre o astrólogo e Jyoti, poderíamos evocar também a passagem em que Jane diz que ela deu a seu marido Budd uma nova trilogia para ele contemplar – Brahma, Vishnu e Shiva -, numa mais que clara alusão ao hibridismo e à mistura de fatores culturais e religiosos, quando pessoas de diferentes etnias, línguas e culturas se associam ou mantêm contato (no caso de Jane e Budd, por relação de casamento). Além disso, infere-se do tom das palavras de Jane que ela está oferecendo ao seu marido uma trilogia religiosa alternativa tão válida quanto à do Pai, do Filho e do Espírito Santo do mundo cristão ocidental a que Bud pertence. Nessa especulação, vale a pena frisar que a transição de uma para outra “existência” deixa no ar um certo sentido de morte e renascimento e de que a nova mulher saída desse processo conseguiu trilhar mais alguns passos em direção à maturidade. Porém, há algo mais no ar: percebe-se que a protagonista continuamente renasce (se transforma) em outras personalidades, sem nunca ficar claro se ela em algum momento atingirá uma identidade final e estável; porém, o que fica fora do escopo da dúvida é que de fato o processo de maturidade é irreversível, como o conseqüente empoderamento advindo desse processo. Desse modo, conforme fartamente exposto no romance, as múltiplas “reencarnações” de Jyoti transformam-se no principal recurso que a autora usa para desconstruir e dotar de complexidade a primeira e (relativamente) simplória faceta (Jyoti) do sujeito pós-colonial 98 feminino apresentado no romance. Seguindo essa linha de raciocínio, Jyoti é aparentemente um “tabula rasa”, em comparação com as outras alteridades da protagonista apresentadas em Jasmine. No decorrer do processo de sucessão dessas alteridades, torna-se interessante observar a aquisição de novos hábitos, estilos e comportamentos diferentes pela protagonista à medida que a história transcorre. Na verdade, se todas as conseqüências e implicações do uso ostensivo das noções ligadas à reencarnação como recurso narrativo facilitador da fragmentação da personalidade forem consideradas mais detidamente, outra série de fatos corroboradores desse processo de fragmentação também será igualmente evidenciada. Por exemplo, as previsões astrológicas sobre a viuvez e o exílio de Jyoti no capítulo 1 somente tornam-se plausíveis e fazem sentido se levada em conta a noção hindu de que tais fados estão “escritos nas estrelas” para aqueles que os merecem, em virtude de haverem cometido pecados e faltas graves em encarnações anteriores. Conseqüentemente, se tais maus presságios estão previstos para Jyoti, isto ocorre porque ela já teria existido em outros corpos em encarnações anteriores e essas graves faltas e pecados teriam sido supostamente cometidos por ela. Em suma, a estratégia da autora de fazer a sucessão de alteridades de Jyoti ser vista ou comparada com reencarnações, de uma forma velada ou explícita, problematiza a questão da fragmentação da subjetividade, na medida em que a “consciência de sujeito” da protagonista passa a englobar uma multiplicidade de personalidades, com vidas, nomes e relacionamentos diferentes, como se cada existência anterior tivesse sido de algum modo apagada e uma personalidade nova surgido e se inserido em novo ambiente social e afetivo. A passagem seguinte dá conta de toda essa farta recorrência de dados e referências correlacionadas com a reencarnação, endossando-se, assim, a intenção da autora de evocar esse princípio místico e cultural da Índia e incorporá-lo às suas estratégias narrativas, ao 99 assumir uma postura ao mesmo tempo cética e sarcástica, mas também de respeito e reverência a um conceito predominantemente não-europeu: Exceto pelas visitas de meus irmãos nos finais de semana, Mataji e eu ficávamos sozinhas na sombria cabana das viúvas, somente um pouco melhor instaladas do que os “Mazbis” e os Intocáveis. Minhas amigas jovens, como a Vimla, nunca nos visitavam. Uma má-sorte tão inexplicável e aparentemente imerecida parecia contagiosa. Ela não queria a sua jovem existência impoluta de forma alguma conspurcada. Um touro e uma bomba tinham tornado as duas viúvas, mãe e filha! Como elas devem ter pecado para sofrer tanto assim agora! 45 O trecho acima destacado ilustra peremptoriamente o ostracismo que Jasmine e a mãe experimentaram quando foram morar juntas na cabana das viúvas, em virtude da morte dos seus maridos, o que configura mais uma forma de opressão sobre a mulher embutida num hábito cultural arraigado na Índia e cruelmente levado a efeito também pelas outras mulheres da comunidade, como a personagem Vimla, referida na passagem em destaque, uma outrora amiga de Jasmine, dos tempos em que ela não era “marcada” ou “amaldiçoada” pelos castigos de ordem transcendental configurados pela viuvez. É relevante frisar que a parte da passagem grifada no original e transcrita acima acaba por confirmar um fenômeno polifônico recorrente no romance; neste caso, é como se o fluxo do discurso de Jasmine tivesse sido interrompido e a “voz” de Vimla se interpolasse e conduzisse momentaneamente aquele diminuto trecho da narrativa. Deve ser frisado que, acerca dessa leitura das diversas vidas da protagonista como “reencarnações”, existe pelo romance afora uma noção de rompimento entre uma e outra personalidade da protagonista, o que ocasiona um distanciamento entre a voz narradora 45 No original em inglês: “Except for the visits of my brothers on the weekends, Mataji and I were alone in the widow’s dark hut, little better than Mazbis and Untouchables. My young friends, like Vimla never visited. Inexplicable, seemingly undeserved misfortune is contagious. She didn’t want her unblemished young life in any way marred. A bull and a bomb have made them widows, mother and daughter! How they must have sinned to suffer so now.!” (MUKHERJEE, 1991, p. 87). 100 preponderante de Jane Ripplemeyer e as referências que ela faz das suas outras “vidas” em que tinha outros nomes. Resulta disso que o papel do leitor fica realçado, na medida em que muito se demandará dele para o entendimento da história, como já foi referido anteriormente. Um outro desses nós problematizadores da narrativa está no capítulo 2, por exemplo. Ali, numa determinada passagem, além de a narradora apresentar algumas novas personagens - o seu marido Budd Ripplemeyer, o seu filho adotivo Du Ripplemeyer e um amigo, Darrel - , Jane Ripplemeyer também se refere a que um certo Taylor não queria que ela se mudasse de Iowa (e, nessa existência em que a protagonista encontra Taylor, seu nome era Jase). Em síntese, partindo-se do primeiro episódio envolvendo o astrólogo e Jyoti em Hasnapur, a narrativa do capítulo dá um salto para um momento posterior da existência de Jyoti, quando então a voz de Jane assume a narrativa (dezessete anos após o primeiro episódio descrito). A partir daí, o foco narrativo do capítulo 2 retoma dois outros “flashbacks” referentes à existência da protagonista como Jase (em Nova Iorque) e Jane, quando da sua permanência em Iowa e da sua união com Budd Ripplemeyer. Ainda para tornar a situação mais complicada, a narradora faz várias referências cruzadas a diversos fatos e situações, sugerindo que o seu nome é Jane Ripplemeyer, mas ao mesmo tempo se refere ao seu nome original indiano (Jyoti). Além disso, ela faz essas referências com tal distanciamento que se tem a impressão de que não se está referindo a ela própria nem quando menciona Jyoti, nem quando menciona Jane, a mulher de Bud, como se observa abaixo: (...) A propriedade dos Ripplemeyer: de Bud, minha e de Du. Jane Ripplemeyer tem uma conta bancária. Jyoti Vijh também tem uma em uma outra cidade. O pai de Bud fundou o primeiro banco de Baden no sobrado acima da barbearia; agora Bud preside o banco em um prédio elegante entre a Kwik Copy e a nova Drug Town.46 46 No original em inglês: “(...) The Ripplemeyer land: Bud’s and mine and Du’s. Jane Ripplemeyer has a bank account. So does Jyoti Vijh, in a different city. Bud’s father started the First Bank of Baden above the barber’s; now Bud runs it out of a smart building between The Kwik Copy and the new Drug Town” (MUKHERJEE, 1991, p. 43). 101 Não seria preciso dizer que esse tipo de narrativa não convencional, cheio de referências fragmentadas dispostas numa estrutura de quebra-cabeça, espelha a trajetória da personagem feminina do romance, que é igualmente fraturada, distorcida e dolorosa. De forma análoga, a natureza do comportamento da protagonista, conforme se verifica do início ao final do romance, assim como a seqüência de episódios frenéticos subjacentes à sua trajetória enquanto sujeito pós-colonial feminino subalterno, constituem um fértil terreno para a aplicação, confirmação e, em alguns casos, negação de uma série de conceitos e teorias defendidos por muitos intelectuais e estudiosos que lidam com os estudos pós-coloniais. Tais idéias e conceitos podem ser de valiosa ajuda para a apreensão do complexo processo de transformação e formação de identidade de Jasmine. Retornando a outros aspectos referentes à idéia de reencarnação como poderoso recurso narrativo corroborador da fragmentação, podemos citar uma passagem bastante emblemática no início do capítulo 14, que aborda a questão exatamente de acordo com a crença indiana. Nesse momento, percebe-se que a autora incorpora a questão da reencarnação com toda a exuberância e naturalidade religiosa e cultural com que os indianos crentes encaram a questão. Mas, além desse detalhe fundamental, é também uma passagem crucial na narrativa, porque trata do momento em que Jasmine tinha ficado viúva e, em conseqüência, simbolicamente “descera” do “plano” de Jasmine para o de “Jyoti” (sua existência original, primeira, anterior ao casamento com Prakash e à existência como Jasmine). A passagem é emblemática também do processo peculiar de aquisição de poder por parte da protagonista, uma vez que ali se expressa tanto a sua firme determinação de não se conformar com o “status quo” negativo para a mulher naquela sociedade excludente, quanto a sua recusa em docilmente se acomodar à condição indesejável das viúvas na Índia. É, finalmente, um dos momentos de reflexão de Jasmine: 102 Pense Vijh & Wife! Prakash me exortava de todo canto da nossa triste escura sala. Não existe morte, existe somente uma ascensão ou uma descida, uma mudança para outros planos da existência. Não se arraste de volta para Hasnapur e para o feudalismo. Aquela Jyoti não existe mais.47 Algumas linhas à frente, ainda no mesmo capítulo, registra-se um outro episódio muito relevante, quando Jasmine menciona um comentário feito por um “swami”, um professor de religião hindu, de que a missão suprema do ser humano é criar uma nova vida. Assim, quando Jasmine dá uma resposta negativa para a indagação feita pelo “swami” sobre quantos filhos ela tinha, ele começa a rezar. A reação de Jasmine ao sinal de reprovação do religioso revela uma forma bastante idiossincrática de se encarar o que seja “criação de vida”, desconstruindo a noção e desatrelando-a do entendimento monolítico de que seja exclusivamente “reprodução”. Além disso, a passagem corrobora enfaticamente a incorporação dos “ensinamentos” do seu falecido marido Prakash, que naquele momento lhe parecem muito mais sábios e confiáveis do que os do “swami”: Depois, eu pensei, afinal de contas nós tínhamos criado vida. Prakash pegou a Jyoti e dela criou Jasmine, e Jasmine está fadada a completar a missão de Prakash. Vijh & Wife. Uma visão tinha se formado. Havia milhares de rúpias em nossa conta bancária. Ele já tinha a sua aceitação garantida na Flórida e o seu “visa”. Eu contei tudo isso a meus irmãos, juntamente com o plano que eu tinha arquitetado. Eles ficaram estupefatos. Uma garota provinciana indo sozinha para a América, sem emprego, marido e documentos? Eu devia estar louca! Certamente, eu estava. Eu contei a eles que tinha feito uma promessa para Deus de fazer aquilo. Era uma questão de dever e de honra. Eu não ousei contar nada a minha mãe. 48 A narrativa, em seguida, flui pelos capítulos 3, 4 e 5, focalizando reminiscências da vida de Jane enquanto esposa de Bud. Tal fato ajuda o leitor a juntar mais algumas partes do 47 No original em inglês: “Think Vijh & Wife! Prakash exhorted me from every corner of our grief-darkened room. There is no dying, there is only an ascending or a descending, a moving on to other planes. Don’t crawl back to Hasnapur and feudalism. That Jyoti is dead” (MUKHERJEE, 1991, p. 87). 48 No original em inglês: “Later, I thought, We had created life. Prakash has taken Jyoti and created Jasmine, and Jasmine would complete the mission of Prakash. Vijh & Wife. A vision had formed. There were thousands of rupees in our account. He had his Florida acceptance and his American visa. I turned everything over to my brothers, along with my plan. They were stupefied. A village girl, going alone to America, without job, husband, or papers? I must be mad! Certainly, I was. I told them I had sworn it before God. A matter of duty and honor. I dared not tell my mother ” (Ibid, p. 88). 103 verdadeiro quebra-cabeça que é a vida de Jane. No início do capítulo 4, por exemplo, Jasmine refere-se ao fato de que Bud decide começar a nomeá-la Jane, imitando o modo como o personagem Tarzan costumava fazer com a Jane na antiga produção cinematográfica norteamericana, baseada no romance Tarzan of the Apes, de Edgar Rice Borroughs, que acabou se transformando numa famosa série televisiva: “Mim, Tarzan; você, Jane”, de que Bud faz uma paródia dizendo: “Eu, Bud; você, Jane” 49. É interessante realçar como a questão da outridade sutilmente desponta deste aparentemente insignificante episódio. Ou seja, naquela série de filmes hollywodianos, apesar de brancos, Tarzan e Jane são dois personagens bastante diferentes, cujas vidas estão ligadas pelo destino: Jane é uma jovem mulher americana, muito bem educada, que se apaixona por Tarzan, um homem inglês que fora perdido nas selvas africanas desde a sua infância e que sobreviveu por ter sido criado por macacos. Esta referência intertextual insere-se numa série maior à qual retornaremos com mais vagar no Capítulo 5, quando a questão identitária estiver sendo focalizada mais de perto. No capítulo 18, há outro momento emblemático de ironia bem refinada, em que Jane Ripplemeyer está confabulando com a Dra. Mary Webber, uma americana que acredita em experiências transcendentais (viagens astrais e reencarnação). Na passagem, a principal razão para o entusiasmo da referida personagem baseia-se em sua convicção de que, sendo Jane oriunda da Índia, seria natural se esperar que ela gostasse de conversar sobre tais assuntos, ou mesmo tivesse a obrigação “natural” de acreditar neles. Nesse ponto, então, a ironia é soberba, pois Jane responde às inquirições da Dra. Webber dizendo: “Eu respondo a ela que sim, eu estou certa de que eu já renasci muitas vezes e que de muitas dessas vidas eu me recordo perfeitamente”, e acrescentando, após uma pequena pausa: “Sim”, eu digo a ela “eu acredito mesmo em você. Nós certamente continuamos a visitar o mundo de tempos em 49 No original em inglês: “Me, Bud, you Jane” (MUKHERJEE, 1991, p.22). 104 tempos. Eu mesma já viajei no tempo e no espaço. Isto é mesmo possível” 50 . Dando à Dra. Webber esses tipos de resposta, usando as noções de misticismo e reencarnação, Jane está na verdade se referindo à sucessão de desgraças e infortúnios que a acometeram em vez de estar falando de reencarnação propriamente dita. Mas o que se torna ainda mais digno de ênfase é que a Dra. Mary Webber não tem nenhuma condição de compreender que está sendo ironizada pelas aparentes concordâncias de Jane com as suas pronunciadas crenças. Torna-se digno de nota aqui que Jasmine, enquanto sujeito pós-colonial híbrido em formação, já é capaz de apresentar alguns tipos de comportamento contraditórios como sinais de aquisição de uma certa visão crítica da sua própria situação peculiar: fazendo troça com as crenças da Dra. Webber em reencarnação, ela demonstra uma visão cética acerca do conceito. Entretanto, a situação é mais complexa do que parece, pois, quando lamenta as agruras da sua presente existência enquanto Jane Ripplemeyer, a personagem deixa virem à tona resquícios inequívocos da sua fé religiosa indiana, como na passagem seguinte: “Eu nunca deveria ter existido como a Jane Ripplemeyer de Iowa, Baden (...) Quando o futuro de Jyoti fora bloqueado depois da morte de Prakash, o Senhor Rama a devia ter levado embora deste mundo” 51 . Além dessa passagem, ainda temos a sua afirmação ambígua “Teoricamente, eu acredito em reencarnação” 52 , um pouco antes de dar à Mary Webber as respostas que ela queria ouvir. Em suma, Mukherjee desconstrói o conceito de reencarnação e brinca com ele, não deixando nada de fora: nem o seu oscilante ceticismo, nem a sua utilização para fragmentar a personalidade da protagonista ou representar os seus deslocamentos diaspóricos, ou, até mesmo, a real possibilidade de assumir momentaneamente a crença na reencarnação para explicar as agruras por que ela sempre passa. 50 No original em inglês: “I tell her that that yes, I am sure that I have been reborn several times, and that yes, some lives I can recall vividly (...) Yes, I do believe you. We do keep revisitng the world. I have also traveled in time and space. It is possible” (MUKHERJEE, 1991, p. 113). 51 No original em inglês: “I should never have been Jane Ripplemeyer of Baden, Iowa. (...) When the future of Jyoti was blocked after the death of Prakash, Lord Yama should have taken her” (Ibid, p. 113). 52 No original em inglês: “Theoretically, I believe in reincanation” (Ibid, p. 112). 105 Após deixar a casa de Professorji, seu amigo indiano e imigrante ilegal nos Estados Unidos, Jasmine começa a aprender a como ser uma americana enquanto trabalha na casa de Willie e Taylor, tendo a função principal de babá da filha adotiva do casal, Duff. Lá, ela tem contato com o ‘modus vivendi’ americano, e então se torna capaz de fazer certas comparações entre a Índia e a América. Esta é a razão pela qual o que resta de Jasmine se extingue, ocasionando o “nascimento” de Jase, totalmente hipnotizada pelo dinamismo do que significava “ser uma americana”, como se depreende do que a própria personagem afirma: Eu deveria ter sido mais econômica; uma boa poupança é a única garantia que se tem. Se há uma coisa que eu deveria ter aprendido com os sovinas Vadheras é que Jyoti deveria ter economizado mais. Mas agora a Jyoti era uma deusa sáti, pois ela foi cremada numa pira funerária atrás do apinhado motel na Flórida. Jasmine viveu para o futuro, para a “Vijh & Wife”. Já a Jase ia muito para o cinema e vivia para o presente (...) Pois para toda confiável criada Jasmine, sempre haverá Jase, a incansável aventureira. Eu me arrepiava ao empuxo dessas forças contraditórias. Eu rezava para que o meu emprego como a mãe postiça de Duff nunca tivesse fim. 53 Entretanto, a velocidade das transformações é o que de fato parece caracterizar Jasmine como um típico sujeito pós-colonial híbrido, como ela mesma reconhece, em passagens como a que segue: Eu me sinto muitas vezes como uma pedra em movimento arremessada em uma névoa diáfana, incapaz de se fixar, incapaz de desacelerar, mas mesmo assim nem um pouco disposta a abandonar a corrida. Eu estou ativa, eu vou para a frente mais e mais. Onde eu vou parar, somente Deus sabe. 54 53 No original em inglês: “I should have saved; a cash stash is the only safety net. I’d learned that if nothing else from the scrimping Vadheras. Jyoti would have saved. But Jyoti was now a sati-goddess; she had burned herself in a trash-can-funeral pyre behind a boarded-up motel in Florida. Jasmine lived for the future, for Vijh & Wife. Jase went to the movies and lived for today. (...) For every Jasmine the reliable caregiver, there is a Jase the prowling adventurer. I thrilled to the tug of opposing forces. I prayed my job as Duff’s ‘day mummy’ would last forever” (MUKHERJEE, 1991. p. 156-157). 54 No original em inglês: “I feel at times like a stone hurtling through diaphanous mist, unable to grab hold, unable to slow myself, yet unwilling to abandon the ride I’m on. Down and down I go, where I’ll stop only God konws” (Ibid, p. 123). 106 Dessa forma, depois de dramaticamente avistar em Nova Iorque o terrorista que tinha matado Prakash, chega a hora de ela findar (ou suspender) a sua existência como Jase, e então rumar para Iowa para se transformar em Jane Ripplemeyer, a esposa de Bud. É sobremaneira admirável a percepção de como Mukherjee lida com o uso dos princípios reencarnacionistas tanto para desconstruir e problematizar a personalidade simplória de Jyoti, como para construir uma nova e intricada subjetividade da personagem pós-colonial feminina em questão, para a qual ela arrisca algumas definições. Como se pode perceber por todo o romance, há um número abundante de referências correlacionadas ao renascimento, mudança, encarnação, apropriação e incorporação de outras personalidades, por exemplo. De forma semelhante – mas ainda muito mais sutil – existem referências esparsas aos deuses do panteão hindu no meio de passagens emblemáticas da narrativa, principalmente com relação a Kali, Brahma, Shiva e Vishnu. Se o leitor suspeita de certas intenções da parte da autora e procede a pesquisas sobre os papéis dessas deidades, ele vai acabar descobrindo uma conexão muito sintomática entre essas tais referências e as muitas “encarnações” de Jasmine. De qualquer maneira, todo o processo de interpretação das estratégias de apropriação de crenças religiosas e de idéias místicas (ou míticas) pertencentes às tradições culturais da Índia, como um todo, e daquelas estritamente relacionadas à reencarnação, em particular, tornam flagrantes as intenções de Mukherjee de usar todo esse material para engendrar recursos narrativos de desconstrução altamente eficazes, a despeito de fazê-lo de forma sutil ou radical, ou até mesmo de tal fato implicar aceitação, crítica, ou mero propósito irônico para a desconstrução e a reavaliação de valores orientais ou ocidentais atinentes à construção da identidade do indivíduo. Este é o caso com a representação das várias mulheres, personalidades, facetas da mesma personalidade, alteridades, máscaras ou “reencarnações”, 107 como majoritariamente optamos por rotular as representações fragmentadas da(s) identidade(s) da protagonista de Mukherjee nesta Tese. Resulta daí que, tendo em mente que o recurso provido por tais estratégias facilita e endossa a fragmentação e problematiza a personalidade da pequena Jyoti de Hasnapur, como um passo indispensável para a sua transformação num típico sujeito pós-colonial, podemos alinhar todo esse processo com a narrativa quebrada, não cronológica e não linear. Em suma, um tipo de fragmentação faz eco do outro, da mesma forma que essa quebra e essa desarrumação do discurso narrativo tornam-se metáforas da fragmentação das identidades da protagonista de Jasmine. De forma semelhante, toda a complexidade, instabilidade e tensão decorrentes do processo identitário representado literariamente no romance de Mukherjee espelham possibilidades factíveis de relações entre as antigas colônias e suas então metrópoles (e, por implicação, entre colonizadores e colonizados), assim como entre grande parte das atuais nações ditas de terceiro-mundo (em sua maioria, ex-colônias) e os presentes países desenvolvidos (geralmente, as ex-metrópoles coloniais do passado). Constrói-se, então, a atmosfera pós-colonial que traz todo esse legado complexo do passado colonial, ressignificando-o dentro da atmosfera da contemporaneidade. À luz da intrincada rede de conexões com a qual os sujeitos pós-coloniais são postos em contato, as suas tentativas de construção identitária tornam-se um processo comumente difícil e doloroso, a requerer deles uma grande capacidade de adaptação a mudanças, assimilação de novas culturas e desenvolvimento de estratégias efetivas de sobrevivência nas suas tão características e (por vezes) compulsórias diásporas. Como um dos resultados desse processo, o sujeito pós-colonial pode lançar mão das suas múltiplas e fragmentadas experiências como ponto de partida para a construção da sua identidade, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas pelo caminho, porque esse sujeito, enquanto homem ou mulher, terá invariavelmente adquirido uma mais vasta gama de recursos e experiências emocionais do 108 que os indivíduos pertencentes às culturas dominantes e que não estejam sujeitos tão radicalmente aos impositivos da fragmentação por razões políticas e históricas. Fica patente aqui que a aquisição dessas vivências peculiares por parte dos sujeitos pós-coloniais ditos subalternos acaba por implicar um certo sentido de superioridade emocional em função de estarem submetidos a experiências múltiplas, fluidas e variáveis, e por se situarem nos entrelugares das culturas pelas quais eles têm que transitar. No caso de Jasmine, a fragmentação da personalidade representada pelas suas múltiplas vidas como mulheres diferentes torna-se um meio eficaz através do qual ela parece estar no caminho certo para atingir a sua simbólica “moksha”, ou seja, a liberação espiritual das “reencarnações” e conseqüente aquisição de iluminação no hinduísmo, conforme explicado por Civita (p. 1238-1239), o que equivale a dizer que o processo identitário de Jasmine está um pouco mais perto da sua conclusão (ou, no mínimo, ganhando mais complexidade). No último capítulo do livro, embora a protagonista esteja, por assim dizer, sob a influência de Shiva e, por causa disto, em movimento para vivenciar novas experiências, algo diferente está acontecendo: ela está voltando para Taylor. Isto significa que a protagonista está dando um passo atrás, retrocedendo para uma vida anterior. Entretanto, distintamente de quando Jasmine voltou a ser Jyoti depois da trágica viuvez, dessa vez Jane Ripplemeyer está voltando para uma “encarnação” em que ela fora de fato feliz e da qual desejara nunca ter saído. Deve-se aqui acrescentar que “estar sob a influência de Shiva”, conforme mencionado acima, equivale a dizer que se está corporificando no texto uma das sugestões de intercâmbio de alteridade a que a protagonista está sujeita; dessa vez, com Shiva, a faceta da Trilogia Trimúrti composta por Brahma, Vishnu e Shiva. Ressalte-se que Shiva é a faceta da divindade responsável, entre outras coisas, pelas mudanças radicais na vida dos indivíduos, dos povos e do universo, como será abordado mais atentamente no Capítulo 5. 109 Quando Jane decide voltar para Taylor, fica indefinida no ar a questão de se ela vai voltar a ser Jase ou não. O leque de possibilidades se abre, pois já fora sinalizado pela narradora que ter sido Jase fora prazeroso; por outro lado, o fato pode também significar que a protagonista está deixando de “ser Shiva”. Todavia, mesmo que retorne para a sua existência como Jase, ela não será a mesma, uma vez que terá o legado de todas as experiências ricas, duras e traumáticas adquiridas como a mulher de Bud em Iowa. Assim, a despeito de se Jane Ripplemeyer vai se fixar na sua antiga existência como Jase ou não, ou se ela vai continuar “suscetível” aos movimentos de Shiva e seguir “reencarnando” como outras mulheres ou não, o que de fato importa é o resultado de todo esse processo. E, no bojo dessas conseqüências, realmente dignas de nota são as heranças culturais e as experiências multiculturais híbridas acumuladas pela protagonista, que serão partes inalienáveis da identidade que está construindo. Em suma, conseguindo manter um equilíbrio entre resistência e assimilação cultural, Jasmine está no caminho da construção de um tipo de identidade marcadamente mais rico do que os daqueles sujeitos não submetidos às agruras da fragmentação cultural, psicológica, política, lingüística e emocional. Este dado ficcional de certa forma reflete o que os Estudos Culturais têm sobejamente provado ser verdadeiro nas relações sociais e políticas do mundo contemporâneo, em que países pobres e ricos e imigrantes e populações das nações desenvolvidas debatem-se, desentendem-se, ou por vezes, integram-se. 2.3 - Fragmentação da Narrativa e das Identidades em Alias Grace Procedendo a uma mudança bastante radical de foco, encetamos agora a apreciação das contribuições conferidas pela Desconstrução e pela fragmentação da personalidade e da narrativa ao processo de formação identitária de Grace Marks, a protagonista do romance 110 Alias Grace, de Margaret Atwood, no intuito de detectar os fatores em comum que apontem para a liberação das protagonistas Jasmine e Grace Marks da condição de sujeitos subalternos. Enquanto a fragmentação das alteridades da protagonista de Mukherjee e a própria complexidade da narrativa não-linear de Jasmine são elevadas a um grau superlativo, as rupturas narrativas e o esfacelamento identitário de Grace Marks no romance de Atwood processam-se obedecendo a um ritmo menos acelerado, mas nem por isso menos significativo e traumático. A questão em Alias Grace é a de se vislumbrarem os vieses de intercessão que permitam um diálogo com Jasmine e ressaltem as semelhanças e as diferenças entre as estratégias narrativas que apontem para a questão do empoderamento das protagonistas femininas. Para marcarmos o início das especulações acerca das descontinuidades narrativas de Alias Grace em si e das múltiplas facetas da personalidade de Grace Marks, é necessário frisar que existe um fator diferenciador fundamental entre o romance de Mukherjee e o de Atwood: em Grace Marks, existe a mistura e o imbricamento entre elementos ficcionais e elementos históricos, uma vez que o drama da protagonista de Atwood se problematiza a partir de um duplo homicídio de fato ocorrido no verão de 1843, numa pequena cidade chamada Richmond Hill, situada ao norte de Toronto, no Canadá. As vítimas desse crime foram o fazendeiro Thomas Kinnear e a sua própria governanta e amante, Nancy Montgomery, que estava grávida de um filho do patrão. Os dois foram encontrados mortos no porão da casa da fazenda e dois empregados irlandeses de Kinnear foram imediatamente tidos como os supostos assassinos do casal: a nossa Grace Marks, então contando 16 anos de idade, e James McDermott, um peão de 21 anos, soturno, de poucas palavras e de feições graves e nada amistosas. Os registros oficiais relatam que os dois jovens imigrantes desapareceram da cena do crime, mas foram prontamente encontrados dias mais tarde em uma taverna barata de Lewiston, do outro lado da fronteira canadense, em território norte-americano. De volta ao 111 Canadá, os dois foram julgados e condenados à morte, porém a consumação da pena somente afetou a James McDermott, uma vez que Grace Marks teve a sua pena capital comutada para prisão perpétua, por conta da pouca idade e pela pressão de alguns grupos de militantes políticos e religiosos, que acreditavam pairarem dúvidas sobre o grau de participação de Grace nos homicídios hediondos à vista do povo canadense (deve-se ressaltar aqui que a gravidade incontestável dos crimes fora sobremaneira intensificada pelo fato de terem sido supostamente cometidos por dois imigrantes irlandeses, cujos desdobramentos se farão mais claros em capítulo posterior). Dessa forma, com os depoimentos de acusação do jovem Jamie Walsh, um outro empregado de Thomas Kinnear, confirmaram-se as condenações de Grace e McDermott, vindo este a ser enforcado em novembro de 1843. A partir desse momento, Grace Marks foi confinada na Penitenciária Kingston também em novembro daquele mesmo ano. Porém, a saga e o périplo da figura histórica/personagem de ficção Grace Marks estavam apenas no seu início, uma vez que uma série de circunstâncias passou a determinar uma tortuosa mobilidade da personagem. De fato, nove anos após a prisão, no mês de maio de 1852, consta o registro da sua transferência para o Hospício Provincial de Toronto, por conta do diagnóstico de louca furiosa que o seu então comportamento alterado lhe rendeu. No ano seguinte, no mês de agosto, Grace é levada de volta à Penitenciária Kingston, na condição de presa altamente perigosa, susceptível a fases de grande rebeldia e extrema resistência à autoridade. Entretanto, como quase tudo que envolve a Grace Marks histórica, mais um fenômeno inusitado se consubstancia na sua trajetória, na medida em que Grace logra conseguir o perdão do seu crime, mercê das pressões e atuação do grupo de amigos influentes que ela acaba atraindo para si e que acreditam na sua inocência. Desse modo, em 7 de agosto de 1872, Grace Marks deixa a prisão, após vinte e nove anos de encarceramento. Estava a nossa protagonista então com quarenta e cinco anos de idade e, de acordo com registros da época, ela teria se mudado 112 para o Estado de Nova Iorque e lá se casado; a partir de então, cessam todas as referências sobre Grace Marks. A despeito disto, torna-se sintomático já estabelecer uma teia comparativa embrionária entre Jasmine e Grace Marks: a) as duas protagonistas provêm de países estrangeiros de “status” comprovadamente subalternos (Índia e Irlanda) com relação às suas “metrópoles”, e/ou “ex-metrópoles” (Inglaterra e Canadá – destacando-se aqui que o Canadá do século XIX enquanto colônia inglesa funciona para o imigrante irlandês como se fosse a própria Inglaterra opressora da Irlanda, denotando uma clara função esquizofrênica do Canadá, com relação à sua identidade nacional), ou até mesmo potência “neocolonizadora” (neste caso, os Estados Unidos, que acabam por ser o país de destino das duas imigrantes); b) como se verá mais adiante com relação a Grace Marks, ela também passou por uma diáspora marítima tão ou mais traumática, desconfortável, desumana e humilhante quanto a de Jasmine, na qual inclusive perdera a mãe e presenciara o lançamento do seu corpo ao mar. Além disso, as condições de transporte do navio que a trouxera da Irlanda com a família reportam-nos, respeitados os limites, às condições de transporte inimaginavelmente desumanas dos antigos navios negreiros que transportavam populações africanas para a servidão nas Américas; c) no histórico de ambas as protagonistas constam homicídios (enquanto Jasmine foi obrigada a matar “Half-Face” após ser por ele estuprada, Grace Marks é de fato acusada do homicídio de Kinnear e Nancy) e histórico de insanidade (a de Grace Marks parece de fato “mais comprovável” pelas internações, relatos e registros da época, ao passo que a de Jasmine é insinuada algumas vezes no 113 romance, conforme já fartamente aludido no início deste capítulo). Ou seja, crimes e insanidade (mesmo que fingidas e com fins de sobrevivência) parecem situações inevitáveis e impostas aos imigrantes, como produto das pressões a que se vêem expostos; d) a questão da fragmentação identitária a que os sujeitos pós-coloniais são comumente expostos também é digna de destaque aqui – nomes patentemente falsos e “vulgos”, comprovadamente requerentes de comportamentos adequados para formarem uma identidade diferente da original, para fins de sobrevivência, fuga/disfarce ou adaptação às novas culturas por que transitam. No caso de Jasmine, reportamo-nos à profusão de nomes e alteridades que a protagonista vai adotando pela sua trajetória; com Grace Marks, o mesmo processo se dá, embora menos contundente e profuso, quando ela assume e/ou se identifica fortemente com as características da personalidade de Mary Whitney ou até mesmo de Nancy Montgomery; e) a questão do misticismo, com a referência recorrente a aspectos da religiosidade hindu em Jasmine (deuses, reencarnação etc) e a emblemática cena de “possessão” espiritual de que Grace Marks é vítima, conforme se relatará mais pormenorizadamente ainda neste capítulo, são indícios de problematização da identidade das protagonistas; f) por fim – e para finalizarmos esta pequena digressão e retornarmos à questão do tipo de fragmentação narrativo que ocorre em Alias Grace - , devemos levar em consideração que tanto Bharati Mukherjee quanto Margaret Atwood copiosamente lançam mão de estratégias de desconstrução da narrativa que vão refletir a multiplicidade de representações identitárias das protagonistas dos seus respectivos romances. 114 Retornando, assim, às considerações acerca do tipo de fragmentação da narrativa em Alias Grace, podemos afirmar que esse processo se dá de forma bem distinta da forma como ele ocorre em Jasmine. Numa primeira palavra a esse respeito, podemos afirmar que enquanto Bharati Mukherjee subverte totalmente a ordem linear e cronológica de apresentação dos eventos em seu livro (já desconstruindo o princípio aristotélico de início, meio e fim), as estratégias de Margaret Atwood vão se concentrar menos na “desarrumação” da ordem de apresentação dos eventos na narrativa do que na desconstrução do gênero narrativo “romance”. Ou seja, Atwood vai proceder à fragmentação do que se entende por “romance”, enquanto gênero literário, mesclando isso com as várias “versões” de quem seria a sua protagonista Grace Marks, através de diversos pontos de vista divergentes. Em suma, a mistura dessas duas formas de fragmentação indubitavelmente se constituirá um elemento de enriquecimento e problematização identitária da personalidade de Grace Marks. Para começarmos então as nossas apreciações acerca da fragmentação e da desconstrução de que Atwood reveste o seu romance, citamos as palavras de Peonia Viana Guedes, tão esclarecedoras dessa peculiar condição de Alias Grace: Em Alias Grace (traduzido como Vulgo, Grace), publicado em 1996, Margaret Atwood recorre a copiosos elementos paratextuais, entre eles epígrafes poéticas significativas; trechos de entrevistas e artigos de jornal; excertos das confissões de Grace e de James; arquivos do tribunal, da penitenciária e do hospício; baladas populares da época; retratos dos assassinos, publicados no Toronto Star; desenhos, extraídos de moldes para a confecção de colcha de retalhos, antepostos a cada capítulo da obra; correspondências de médicos e reverendos; fontes diversas de materiais de interesse, ou incorporados ao folclore canadense, ou referidos em histórias e memórias destinadas a futuras gerações de aficionados e pesquisadores de relatos de crimes, da história e da literatura (GUEDES, 2002, p. 71). Deve-se frisar que, conforme salientado na última parte da citação de Peonia Guedes acima, o crime ocorrido na Toronto do século XIX de fato atraiu a atenção não somente da imprensa sensacionalista nacional e internacional da época, mas também de escritores e 115 pesquisadores como a escritora canadense Susanna Moodie, contemporânea de Grace Marks, que, ao saber do bombástico crime no qual Grace estava envolvida através do advogado que a defendera, resolveu procurá-la na prisão e depois no hospício. O resultado dessas visitas Moodie transportou para o seu segundo livro de memórias, Life in the Clearings, publicado na Inglaterra em 1853. Todavia, antes de examinarmos os desdobramentos desses escritos de Moodie e a sua influência em Atwood para conceber a Grace Marks de Alias Grace, devemos recuar um pouco mais no passado e avaliar, mesmo que superficialmente, os tipos de ideologia carreados pela literatura dessa escritora canadense do século XIX. Em uma publicação anterior a Life in the Clearings, a autora parece escrever quase que exclusivamente para o público britânico, concentrando-se na “outridade” (“otherness”) e na “estrangeirice” (“foreigness”) das maneiras canadenses, em oposição aos refinados modos europeus, dessa forma enfatizando as vantagens e os privilégios não só de “estar” (na) como de “ser” a metrópole, em oposição ao conceito de “ser nativo” (da colônia) e ter uma vida “provinciana”, conforme nos informa Leon Litvak (1996, p. 120). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Moodie publica posteriormente Life in the Clearings, em que ela pretende descrever o lado ocidental do Canadá como o mais civilizado. É neste livro que Moodie inclui as suas impressões sobre uma visita que ela fez a Grace Marks em um hospício de Toronto. Nessa passagem, Moodie descreve Marks como uma mulher louca, incontinente, saltitante e gritona, concluindo o seu escrito sobre ela com o voto pio de que essa “louca delirante venha algum dia a encontrar paz aos pés de Jesus na vida espiritual”, conforme registra Litvak.55 Curiosamente, Margaret Atwood demonstra primeiro interesse no drama e na história de Grace Marks nos anos de 1970, quando escreve um seriado para televisão que se baseia fortemente nas versões do caso de Marks contidos nos escritos de Susanna Moodie. 55 No original em inglês: “(...) This raving maniac would find some peace at the feet of Jesus in the next world” (LITVAK, 1996, p. 120). 116 Entretanto, retornando ao assunto cerca de vinte anos depois, Atwood assume uma postura mais crítica, oferecendo ao público, com Alias Grace, uma versão muito mais complexa, sofisticada e instigante do caso do que a versão seca e reducionista perpassada pelo título dado ao registro do caso por Moodie em Life in the Clearings – “Mulher fatal induz obscuro peão de fazenda a cometer um homicídio” -, versão que coloca praticamente toda a culpa dos lamentáveis crimes sobre os ombros de Grace Marks, criando uma aura de vítima de aliciamento para James McDermott. Em suma, Margaret Atwood passa a subverter todas essas versões peremptórias acerca da culpa irrecorrível de Grace Marks, assim como reexamina a identidade canadense, enquanto reescreve suas versões da vida pública e privada da Toronto do século XIX, partindo principalmente das versões de Susanna Moodie (mas não se reduzindo a elas), e efetivando, na prática, o que Linda Hutcheon classifica como sendo o uso da ironia como uma regra subversiva poderosa para repensar e revisitar a história tanto pelo artista pós-moderno quanto pelo artista pós-colonial (HUTCHEON, 1997, p.131). Em Alias Grace, Margaret Atwood reconstitui a história de Grace Marks lançando mão de fontes e personagens históricos e ficcionais simultaneamente, num entrelaçamento que gera situações inusitadas e indicadoras de estratégias narrativas altamente sofisticadas por parte da autora. Tudo isso Atwood explica no final do livro, numa seção curiosamente denominada “Posfácio da Autora” (o que em si já é incomum, pois o que é corriqueiro, linear e esperado pelo leitor é que qualquer elucidação sobre o livro seja dada no início, no “prefácio”). Nesse “posfácio”, Atwood começa explicando que “Alias Grace é um livro de ficção, embora baseado na realidade” 56 . A seguir, a ironia a que Linda Hutcheon se refere, citada no parágrafo anterior, encontra expressão nas afirmações que Atwood faz nessas elucidações tardias, o que revela a plena consciência da autora da ambigüidade subjacente aos eventos históricos, como quando ela afirma: 56 No original em inglês: “Alias Grace is a book of fiction, although it is based on reality” (ATWOOD, 1996, p. 461). 117 Eu naturalmente ficcionalizei eventos históricos (do mesmo jeito que o fizeram outros pesquisadores do caso que alegaram estar escrevendo história). Eu não modifiquei nenhum fato conhecido, embora os registros escritos sejam tão contraditórios que poucos deles possam de fato ser tidos como inequivocamente “verdadeiros” (...) Quando tive dúvidas, tentei escolher a alternativa mais provável e, sempre que possível conciliei todas as hipóteses. Onde nos registros havia meras insinuações e evidentes lacunas, eu me senti livre para inventar. 57 A propósito dessas estratégias narrativas de Atwood, Peonia Guedes (2002, p. 71) informa que a distinção entre os discursos da história e da literatura é hoje, de acordo com a crítica canadense Linda Hutcheon, totalmente desafiada pela teoria e arte pós-modernas, uma vez que as leituras críticas mais recentes, tanto da história quanto da ficção, sintonizam-se muito mais com o que os dois gêneros têm em comum do que com as suas diferenças, conforme a própria Linda Hutcheon ressalta em “...vimos que também existe uma concepção bastante diferente de história na arte pós-moderna, mas desta vez trata-se da história como intertexto” e que se completa quando ela afirma “A história torna-se um texto, um construto discursivo do qual a ficção se serve com a mesma intimidade com que se serve de outros textos da literatura” 58 . Já em outro artigo também muito esclarecedor da metaficção historiográfica, Hutcheon assevera que a metaficção historiográfica está presente nos romances pós-modernos que são “intensamente auto-reflexivos, mas que também tanto reintroduzem o contexto histórico na metaficção como também problematizam toda a questão do conhecimento histórico.”59 Confirmando a argumentação de Hutcheon, Francis Sparshott afirma que a metaficção historiográfica tem como um dos seus princípios a garantia de que o seu mundo seja ao mesmo tempo decididamente fictício e inegavelmente histórico, de modo 57 No original em inglês; “I have of course ficcionalized historical events (as did many commentators on this case who claimed to be writing history). I have not changed any known facts, although the written accounts are so contradictory that few emerge as unequivocally ‘known’. (...) When in doubt, I have tried to choose the most likely possibility, while accomodating all possibilities wherever feasible. Where mere hints and outright gaps exist in the records, I have felt free to invent” (Ibid, p. 465). 58 No original em inglês: “History becomes a text, a discursive construct upon which fiction draws as easily as it does upon other texts of literature” (HUTCHEON, 1992, p.142). 59 No original em inglês: “(...) intensely self-reflexive but that also both re-introduce historical ccontext into metafiction and problematize the entire question of historical knowledge” (Ibid, 1989, p. 54). 118 que as duas esferas tenham em comum a sua constituição no discurso e como discurso (SPARSHOTT, 1986, p. 154-5), o que é complementado pela afirmação de Hutcheon de que “a história, enquanto relato narrativo, é, pois, irrecorrivelmente figurativa, alegórica, fictícia; sempre já textualizada, sempre já interpretada” 60. Em vista de todas essas elucidações sobre a metaficção historiográfica, concluímos que Margaret Atwood lança mão de informações factuais retiradas de fontes oficiais, de relatos históricos, de notícias de jornais do século XIX e de partes de Life in the Clearings para conceber um dos mais lídimos e representativos exemplos de metaficção historiográfica nas literaturas de língua inglesa. Nessa medida, em Alias Grace, Peonia Guedes afirma que Margaret Atwood: (...) não somente cria uma história de assassinato, loucura e obsessão, como ainda pinta um quadro estarrecedor da vida e dos costumes da sociedade provinciana canadense do século XIX. A narrativa configura a pressão pela reforma social que dividia os cidadãos canadenses quanto ao tratamento diferenciado e preconceituoso dispensado aos imigrantes, empregados e mulheres; mostra a disseminação do espiritualismo, do mesmerismo, e das novas teorias sobre a doença mental, bem como do tratamento de fenômenos como amnésia, sonambulismo, histeria, dupla personalidade e de toda sorte de doenças nervosas (GUEDES, 2002, p. 72). A divisão dos capítulos de Alias Grace também se insere em uma situação não convencional, pois os seus cinqüenta e três capítulos estão distribuídos em quinze partes denominadas a partir dos padrões de uma colcha de retalhos. A cada uma dessas quinze partes, com seus respectivos nomes relacionados a esse artefato notadamente feminino, corresponde um desenho que representa o padrão de bordado da colcha de retalhos a que o título da parte se refere. Devem-se ressaltar de início os potenciais irônicos e metafóricos desse tipo de recurso usado por Atwood, na medida em que a colcha de retalhos liga-se a profundas questões de opressão da sociedade patriarcal ocidental que serão atacadas pela 60 No original em inglês: “Histoy as a narrative account, then is unavoidably figurative, allegorical, fictive; it is always textualized, always already interpreted” (Ibid, 1992, p. 143). 119 autora no romance. A colcha de retalhos tem comumente constituído um símbolo das prendas domésticas e do zelo e do cuidado feminino com a casa, os filhos, o marido e com a sua memória enquanto perpetuadora dos valores patriarcais que oprimem as próprias mulheres. Todavia, a questão não é tão simples quanto parece, pois se os aspectos da desconstrução e da subversão forem levados em consideração, veremos que a colcha de retalhos tem sido comumente reinterpretada e reinventada no universo metafórico da literatura da contemporaneidade, principalmente quando produzida por mulheres escritoras.61 Este é o caso dos novos sentidos que Margaret Atwood parece querer atribuir à utilização desse recurso, uma vez que Grace Marks não pode ser tida como uma lídima representante do comportamento exemplar que a sociedade vitoriana da Toronto do século XIX requeria da mulher. Então, em vista disso, conclui-se que no mínimo as intenções da autora são altamente irônicas, assim como reveladoras de outra função para essa mesma colcha de retalhos: a de metáfora da construção de uma identidade feminina bastante fluida e fragmentada, por razões políticas, de gênero, emocionais, psicológicas, sociais e de saúde (desequilíbrio mental). Feito este preâmbulo, focalizaremos prioritariamente algumas partes e capítulos mais significativos do romance, cuja análise possa representar os outros não mencionados com tanta minúcia, para efeito prático e de não nos desviarmos da finalidade precípua desta Tese. Temos, então, a primeira parte do romance, “Jagged Edge” (“Arestas”) 62 , que neste caso também corresponde ao capítulo 1. A estrutura de apresentação é a seguinte: primeiro, aparece uma página de abertura com a numeração romana marcando a seqüência das partes, 61 Um exemplo que de imediato nos ocorre é o do conto “Everyday Use”, da escritora contemporânea afroamericana Alice Walker, autora do famoso romance A Cor Púrpura. No conto em questão, uma colcha de retalhos da família (“quilting”) é disputada por uma filha, que se emancipara da situação sufocante e opressora da casa materna, e por sua mãe (mulher mais velha e já irremediavelmente acomodada à situação de opressão em que fora criada). Curiosamente, a mãe toma a colcha de retalhos da filha visitante, não para si própria, mas para defender o “legado” da filha mais nova, que se acomodara ao tipo de vida de opressão que a mãe lhe transmitira. A colcha de retalhos viraria uma tapeçaria, caso a filha emancipada conseguisse levá-la consigo; um símbolo de preservação da identidade anterior e daquilo em que ela jamais quereria se transformar. 62 As traduções dos títulos dos padrões da colcha de retalhos que nomeiam as partes I, II, III, IV, V, VI, IX, XIII, XIV e XV do livro são de Peonia Viana Guedes (ver GUEDES, 2002, p. 69-82). As demais (VII, VIII, X, XI e XII) são livres traduções do autor desta Tese, em vista da falta de acesso à versão em português do livro de Atwood. 120 com o título da parte em questão (o nome do padrão da colcha de retalhos e um desenho posicionado logo abaixo, ilustrando o modelo daquele padrão na colcha); pula-se, em seguida, uma página e registram-se as epígrafes atinentes àquela parte na página seguinte; pula-se novamente uma página e então se inicia o capítulo, com numeração arábica. Logo em seguida a essa questão estrutural, fica claro de início que a história de Grace Marks não vai começar do marco zero, por assim dizer, ou seja, a partir de algum ponto distante e remoto da infância de Grace Marks, o que já é um indício da quebra da linearidade da narrativa (além do rompimento com a forma estrutural de se apresentar um romance, como vimos no parágrafo anterior). Desse modo, a protagonista é apresentada em 1851, oito anos após a sua prisão, porém usufruindo de um privilégio por trabalhar como doméstica e costureira na casa do diretor da penitenciária, prática que na época era comum tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá, em se tratando de presos amistosos e tidos como confiáveis. A voz de Grace domina o capítulo, que tem características de sonho e pesadelo simultaneamente, uma vez que a protagonista fixa-se em uma série de reminiscências que invocam Kinnear, Nancy, McDermott e Jamie Walsh de uma forma vaga e nebulosa. Numa espécie de devaneio, Grace lembra-se de Nancy Montgomery colhendo peônias brancas no jardim da casa de Kinnear no dia em que ela chegara lá para se empregar. Essas flores que habitam a memória de Grace começam a ser “sentidas” nos cantos dos olhos da protagonista, até que finalmente “se transformam” em peônias de cor escarlate que passam a irromper do chão da prisão de forma “miraculosa”, tanto por essa condição inusitada, quanto pelo fato informado por Grace de que “as peônias não florescem em abril” (mês no qual Grace alega estar). De uma aura mais onírica ainda se reveste a narrativa quando Grace relata que, ao tentar pegar uma dessas flores irrompidas do chão da prisão, constata que elas são feitas de pano, o que nos remete indiretamente para a metáfora da costura e da colcha de retalhos, de que o leitor ainda nem desconfia nesse passo incipiente da narrativa. Se não fosse pelo 121 pretexto da suposta insanidade da protagonista, poderíamos pensar em realismo mágico; mas isto também seria prematuro concluir logo no primeiro capítulo. Logo após, a mudança de cor das flores de branco para escarlate parece se associar à lembrança do sangue na roupa de Nancy Montgomery, com Grace acrescentando que daquela vez ela ajudará Nancy e vai limpar o sangue das suas roupas, como se estivesse anulando o crime que supostamente cometera (embora o leitor ainda não tenha notícia de que haverá um crime e sobre quem são as vítimas e os acusados). Da mesma forma, Grace devaneia que Kinnear vai chegar e ela lhe preparará um café que será servido a ele por Nancy. A essa altura, o leitor encontra-se bastante perdido, pois ainda não foi apresentado a nenhum desses personagens, assim como a noção do crime afirmado acima ainda não lhe foi sugerida claramente. Todavia, o que mais se torna enigmático é que no último parágrafo, graficamente separado do resto do pequeno capítulo, Grace Marks afirma: “Isto é o que eu contei ao Dr. Jordan, quando nós chegamos àquela parte da história” 63 , o que desestabiliza qualquer tentativa de se chegar a uma conclusão acerca de tudo o que sucede com a protagonista. Na verdade, a partir desse momento Grace vai inaugurar o rol de falas das personagens que emitem pontos de vista contraditórios sobre o mesmo assunto. Enfim, chega-se ao final do capítulo praticamente tão em devaneio quanto Grace Marks e sem se saber exatamente em que terreno se pisa. Todavia, antes de se passar para alguns dos capítulos seguintes, vale a pena ressaltar que antes do capítulo 1 e da primeira parte (“Arestas”) começarem, a autora insere três epigrafes, - como será comum pelo livro afora - , para marcar o início de cada parte. A diferença é que o romance começa com as epígrafes, que parecem não pertencer nem ao capítulo 1 nem à primeira parte, com o “status” de autônoma. Assim, como no caso das outras epígrafes estas carreiam mensagens que direta ou indiretamente têm a ver com o drama de Grace Marks, com a atmosfera por vezes pesada e misteriosa do universo mental da 63 No original em inglês: “That is what I told Dr. Jordan, when we came to that part of the story” (ATWOOD, 1996, p. 6). 122 personagem e com a própria forma de modelar e conduzir a narrativa. Essas propaladas epígrafes são as seguintes: “O que quer que tenha acontecido todos estes anos,/Deus sabe que eu digo a verdade, afirmando que vocês mentem”, fala atribuída a William Norris em “The Defence of Guenevere”; “Eu não tenho nenhum tribunal”, de Emily Dickinson, em Letters; e “Eu não posso lhes afirmar o que seja a luz, porém eu posso definir o que ela não é... Qual é o motivo da luz? O que é a luz?”, de Eugene Marais, em The Soul of the White Ant. Todas estas epígrafes estão posicionadas antes do índice dos capítulos do livro, de forma que nem é possível fazer a referência bibliográfica delas de uma forma apropriada. Entretanto, percebese que a “costura” intertextual pretendida por Atwood visa a compor uma colcha de retalhos com significados muito mais abrangentes do que aqueles que a própria colcha de retalhos que Grace Marks vai tecendo pelo romance afora quer transmitir. O segundo capítulo também corresponde à segunda parte do livro e o padrão colocado na página de abertura da parte II (com o seu respectivo desenho) é intitulado “Estrada Pedregosa” (“Rocky Road”). Se pairasse ainda alguma dúvida quanto a se Margaret Atwood de fato está desafiando as normas e convenções estabelecidas para a escrita de um romance, a partir da visualização e leitura dessa parte e desse capítulo quaisquer dessas possíveis dúvidas se dirimiriam, pois eles contêm o relato jornalístico do Toronto Mirror acerca do enforcamento de James McDermott, e uma passagem do Livro de Punições da Penitenciária Kingston, detalhando vários tipos de castigos diferentes a serem infligidos aos presos de acordo com a infração cometida. Também figuram ali os retratos de James McDermott e de Grace Marks, que foram publicados no Jornal Toronto Star, e um longo poema composto de trinta e quatro estrofes de quatro versos cada uma, bem ao modo de quadrinhas folclóricas, contendo uma versão do crime e das punições de Grace e McDermott. Um detalhe importante que deve ser notado atentamente é a inscrição que aparece sob o retrato de Grace Marks: “alias Mary Whitney” (vulgo Mary Whitney), fazendo referência a uma personagem que 123 ainda não fora mencionada até aquele momento. Esse capítulo é altamente emblemático das estratégias de desconstrução usadas por Atwood em Alias Grace, pois, além de afirmar a base histórica da trama (pelas supostamente inquestionáveis notícias jornalísticas), também promove a mistura de gêneros narrativos, usando simultaneamente um trecho de reportagem jornalística, a transcrição de parte do já referido Livro de Punições da Penitenciária Kingston e uma outra mistura do gênero “poesia” com o gênero “quadrinha folclórica”, por assim dizer. Toda essa reengenharia narrativa se afigura como necessária para montar um capítulo do livro, que acaba por se constituir absoluta e radicalmente não convencional em termos dos parâmetros tradicionais de escrita e concepção de um capítulo do gênero “romance”, que se espera ser composto somente de parágrafos e mais parágrafos organizando os eventos referidos em ordem geralmente seqüencial lógica, cronológica e coerente. Em suma, esse capítulo revoluciona a própria noção tradicional de “capítulo de romance” e dirige a nossa atenção para o fato de que Grace Marks usa pseudônimos ou vulgos, o que já auxilia o leitor no entendimento gradativo da complexidade identitária da protagonista. A partir da parte III, “Gatinha Encurralada” (“Puss in the Corner”), as partes em que o livro está dividido vão se tornar mais complexas, ou por arregimentarem muitos capítulos, ou por conterem um capítulo bastante extenso e complexo. É o caso da parte XIV, “A Letra X” (ou “A Carta X”), que incluirá várias cartas trocadas entre o psiquiatra ficcional, Dr. Jordan, e os outros médicos reais que cuidaram de Grace Marks ao longo dos anos. Os capítulos seguintes, a partir do terceiro, também vão se caracterizar por introduzir uma grande quantidade de personagens novas que não somente trarão mais vigor e dinamismo à trama, como também possibilitarão o aparecimento de diversas vozes que nos reportarão aos conceitos bakhtinianos da polifonia e da heteroglossia. Uma verdadeira Babel se instalará no romance, em virtude das contradições e posicionamentos ideológicos distintos que se chocarão o tempo todo (mormente no que concerne à culpa ou à inocência de Grace Marks). 124 Enfim, a parte III, que abarca os capítulos 3, 4 e 5, tem a voz de Grace Marks como a voz prevalente, transmitindo-nos as suas visões críticas e impressões gerais acerca do seu papel de doméstica na casa do diretor da penitenciária, das suas visões da família que a abriga, e do enforcamento de McDermott. Nessa parte, a história já deu um salto para o ano de 1859. Relata-se então que Grace Marks foi acometida de um surto histérico e que, por conta disso, foi levada de volta à penitenciária. Mas é exatamente este episódio aparentemente negativo que vai colocá-la em contato com um novo e jovem médico ficcional (Dr. Simon Jordan), que proporá a Grace o fim das terapias agressivas e traumatizantes e passará a implantar os princípios psicanalíticos no novo tratamento que passa a utilizar com ela. A quarta parte, “Paixonite de Rapaz” (“Young Man’s Fancy”), além das já esperadas epígrafes, abrangerá os capítulos de 6 a 11. Trata-se de uma parte bastante longa em que o eixo central do romance será introduzido por Margaret Atwood: a nova forma de tratamento a que Grace será submetida, graças à contratação do jovem médico americano Simon Jordan feita pelo Reverendo metodista Verringer (um dos simpatizantes da causa de que Grace é inocente). Dr. Jordan revolucionará a terapia de Grace Marks através da adoção das mais recentes teorias da Psiquiatria e da Psicologia. Para melhor elucidação de um episódio que ocorrerá posteriormente, deve-se ressaltar que o Reverendo Verringer faz parte de um grupo de reformistas espirituais que defendem a sanidade e a inocência de Grace através da utilização de uma sessão hipnótica que se transformará numa espécie de “seance”, ou seja, uma sessão de invocação e possessão espiritual, de ricos significados para a questão da fragmentação da personalidade da protagonista. Dr. Jordan, que encetará a complexa tarefa de tentar desbloquear as lembranças de Grace Marks com o auxílio de objetos físicos e referências alegóricas capazes de levá-la a estabelecer conexões significativas com as lembranças do crime, também será um dos personagens a participar dessa sessão espiritualista. Por toda essa parte, as passagens são narradas em terceira pessoa e nos revelam 125 muito da vida de Grace Marks, por sua própria voz, assim como o conteúdo e as impressões das suas entrevistas com o jovem terapeuta Jordan, que parece ficar fascinado pelos mistérios e enigmas que envolvem Grace Marks, conforme sugere o título dessa parte, “Paixonite de Rapaz”. A quinta parte do livro “Pratos Quebrados” (“Broken Dishes”) se estende do capítulo 12 até o 16. A idéia de destruição, quebra e ruptura carreada pelo título dessa quinta parte parece de fato antecipar os trágicos acontecimentos que serão rememorados por Grace Marks nessa seqüência de capítulos: a miséria, as humilhações, as agruras e a brutalidade da vida na Irlanda; o embarque num navio não apropriado para transportar pessoas adequadamente, mas sim para o transporte de carga bruta e madeira; o hiper-traumático falecimento da mãe de Grace durante a viagem e o lançamento do seu corpo ao mar; e, finalmente, a incapacidade de seu pai de prover o sustento da família, suas bebedeiras e a falta de recursos para criar adequadamente os nove filhos. Essa parte do livro também é vital por mencionar explicitamente e consagrar a importância da metáfora da costura e da feitura da colcha de retalhos, pois Grace recebe a incumbência de começar a preparar as partes que futuramente comporão uma colcha de retalhos que fará parte do enxoval de casamento de uma das filhas do governador. Uma passagem digna de nota a esse respeito acontece quando Jordan pergunta a sua paciente qual seria o padrão que ela gostaria de usar caso a colcha de retalhos não fosse uma encomenda para outra pessoa, ou seja, fosse para ela mesma. Embora fique claro em outro momento que a sua preferência seja o padrão “Árvore do Paraíso”, ela mente para Jordan, alegando que poderia ser este ou aquele indistintamente. Essa cena prova a manipulação do discurso e da terapia pela paciente, em vez de pelo terapeuta. Pois, caso revelasse a Jordan o verdadeiro padrão de sua preferência, talvez passasse para ele informações que o auxiliassem a ter acesso muito fácil à sua intimidade. Alem disso, na décima-quinta parte do livro, “Árvore do Paraíso”, Grace fará revelações que serão vitais para 126 um entendimento mais profundo da sua identidade, como abordaremos no último capítulo desta Tese com mais pormenores. Vale frisar que na quinta parte do livro, Marks faz várias referências ao seu alter-ego Mary Whitney, o que tornará ainda mais complexa a problematização da sua identidade, tal é o grau de identificação que se estabelece entre as duas. Essas associações se espraiarão para as partes e capítulos seguintes e serão mais detalhadas no capítulo sobre a construção identitária das protagonistas. A sexta parte do romance recebe o nome sugestivo de “Gaveta Secreta” (“Secrete Drawer”) e inclui os capítulos de 17 a 20. Nesta série, Grace Marks vai desvelando mais dados e informações sobre a sua vida, como o relato do seu primeiro emprego como lavadeira, e a sua relação de amizade com outra empregada da casa, a já tão referida Mary Whitney, mocinha petulante que aos dezesseis anos morre em virtude de um aborto mal conduzido, resultado de um caso amoroso com um dos filhos da família para a qual trabalhava. O leitor começa a entender então por que Mary Whitney assume uma estatura tão grandiosa no imaginário de Grace Marks, chegando a influenciar tão fragorosamente a formação da sua identidade. O episódio da morte de Whitney fornece mais uma pista para o Dr. Jordan sobre a constituição emocional e nervosa da alma de Grace, quando ela relata que, ao saber da morte da amiga, sofreu um desmaio que teve a duração inusitada de dez horas. Porém, mais bizarra do que a duração do desmaio foi a revelação de que quando “retornara” à consciência, no dia seguinte ao enterro, acreditava e dizia ser a própria Mary Whitney, constituindo tal fato a primeira sugestão forte de um caso de dissociação de personalidade, que voltará à baila nos últimos capítulos do romance, principalmente nos agrupados na parte “Árvore do Paraíso”. Em vista de tudo isto, tornam-se sintomáticas as últimas palavras de Grace Marks no final do capítulo 20, quando ela compreende de fato que sua querida amiga Mary Whitney está morta: “E então a época mais feliz da minha vida estava finalizada e perdida” 64. 64 No original em inglês: “And the happiest time of my life was over and gone” (ATWOOD, 1996, p. 180). 127 As outras partes seguintes recebem os títulos: “Cerca de Cobras” (“Snake Fence”), sétima parte; “Raposa e Gansos” (“Fox and Geese”), oitava parte; “Corações e Miúdos” (“Hearts and Gizzards”), nona parte; “Dama do Lago (“Lady of the Lake”), décima parte ; “Escoras Caídas” (“Falling Timbers”). Décima-primeira parte; “Templo de Salomão” (“Solomon’s Temple”), décima-segunda parte; “Caixa de Pandora” (“Pandora’s Box”), décima-terceira parte; “A Letra X” ou “A Carta X” (“The Letter X”), décima-quarta parte; e “Árvore do Paraíso” (“The Tree of Paradise”), décima-quinta e última parte. Da parte sétima até a décima-quarta, vários episódios se entrelaçam e adicionam complexidade à história, ao drama e à identidade de Grace Marks: o seu primeiro encontro com Nancy Montgomery, que é quem, por mais irônico que possa parecer, a convence a também vir a trabalhar para Thomas Kinnear; a ansiosa e complicada vida na fazenda de Kinnear, também em virtude do caso amoroso entre Nancy e o patrão, que desperta logo ciúmes e inveja em Grace Marks; a paixão que o jovem Jamie Walsh passa a devotar a Grace; as peripécias que Grace tem que fazer para se desviar do assédio sexual de James McDermott; todos os eventos e episódios dolorosos que culminam no assassinato de Thomas Kinnear e de Nancy Montgomery; e, finalmente, a tentativa de fuga de Grace Marks e James McDermott para os Estados Unidos. Grande parte dessas revelações vem a lume através das entrevistas entre Grace e o Dr. Jordan, de forma que não é difícil perceber que todos os habitantes da fazenda de Kinnear viviam divididos entre sentimentos de amor, ódio, inveja, desejo sexual reprimido, cobiça e rivalidade, tudo isso originando uma espécie de campo minado em que, como afirma Peonia Guedes “lealdades estabelecidas de modo aparentemente aleatório e fugaz atiçam perigosos sentimentos de ira e vingança” (GUEDES, 2002, p. 76). Todavia, como o que o Dr. Jordan almeja não se mostra fácil de conseguir – fazer com que Grace Marks se recorde de fatos mais intimamente associados aos homicídios em si - , ele concorda em submetê-la a uma sessão de hipnotismo como recurso extremo para inverter esse quadro amnésico. 128 Uma característica que deve ser registrada com destaque aqui, inclusive por constituir indício do empoderamento de Grace Marks, é a aura de conflito de que se revestem todas as comunicações entre o Dr. Jordan e a sua paciente. Se de um lado fica evidente que Atwood faz de Jordan o arauto de discursos tais como o da Medicina e o do patriarcado, ou seja, discursos que lhe conferem poder e precedência não somente sobre Grace Marks, mas também sobre a sociedade como um todo, de outro lado, apesar de gozar de um “status” tremendamente desfavorável, Grace Marks expõe uma sagacidade inusitada para saber separar o que deve ou não dizer para o seu terapeuta, quase sempre interpretando as mensagens dele de uma forma altamente idiossincrática e oposta ao que ele gostaria de ouvir. E o mais notável desse processo é que Grace Marks distorce deliberadamente tudo o que Jordan diz para ela, o que origina um fosso lingüístico consciente forjado por Grace, denotador de uma forma de resistência que tem reflexos muito além da terapia, ou seja tem implicações patriarcais. Essa verdadeira brincadeira de gato e rato praticamente sem fim em que o médico (inconscientemente) e a paciente (deliberadamente) se engajam faz com que as suas entrevistas sejam longas e tortuosas, com voltas e rodeios que parecem infinitos. No entanto, esses fatos narrativos têm uma importância aparentemente insuspeitada, mas que em última análise se desnudam em toda a sua relevância, conforme as palavras de Patrícia Yaeger que afirma a esse respeito que o romance constitui uma forma multivocal, que possibilita para as mulheres escritoras uma chance singular de obstruir as práticas discursivas e os pressupostos patriarcais do cotidiano (YAEGER, 1988, p. 31). Não resta dúvida de que Margaret Atwood soube usar e abusar dessa prerrogativa aventada por Patrícia Yaeger. Uma passagem bastante ilustrativa desse desencontro lingüístico guiado e comandado por Grace Marks ocorre um pouco antes do final do capítulo 11, na parte intitulada “Paixonite de Rapaz” (“Young Man’s Fancy”), quando o Dr. Jordan, seguro da sua posição, implanta uma nova forma de terapia que, acredita, ajudará a trazer do fundo do inconsciente de Grace as respostas que tanto o 129 ajudariam a desvendar a decifrar a verdadeira esfinge que a personagem representa para ele. Tal situação é relatada pela voz narradora do romance (que neste caso claramente se diferencia da de Grace): Todo dia ele tem colocado pequenos objetos na frente dela e lhe tem pedido que relate que tipos de fatos eles a levam a imaginar. Esta semana ele tentou várias espécies de legumes de raiz, ansiando por uma conexão que conduzisse aos recessos mais profundos da mente de Grace Marks, como “beterraba-porão-cadáveres”, ou, até mesmo, “nabo-subsolo-túmulo”. De acordo com as suas teorias, o objeto certo haveria de evocar uma corrente de associações perturbadoras em Grace, muito embora até agora ela só tenha oferecido respostas à simples luz da literalidade, de forma que ele somente conseguiu arrancar dela nada mais que uma série de considerações culinárias. 65 A despeito do fato da própria história de Grace Marks e do seu tratamento ocuparem quase 80% dos capítulos do romance, não se pode negar a força dos enredos paralelos que se desdobram nestes e nos capítulos restantes, tais como: o flerte do Dr. Jordan com Lydia, a jovem moça casadoira da cidade; a sugestão do envolvimento sexual do Dr. Jordan com a sua senhoria, a Sra. Humphrey, e o seu envolvimento emocional com a própria Grace Marks; as invectivas da mãe controladora do Dr. Jordan, através de cartas dramáticas e emocionadas, que expressam toda a habilidade de manipulação de uma “mãe enferma”; a peleja na sociedade local entre conservadores e liberais; e os pontos de vista absolutamente díspares acerca do tratamento da insanidade mental de Grace, emitidos tanto pelos grupos locais quanto pelos profissionais e estudiosos do assunto com quem o Dr. Jordan mantém freqüente correspondência. Porém, muito além de tudo isso, os capítulos de Alias Grace trazem para o leitor a recriação ficcional impressionante do contexto histórico e social de uma pequena cidade provinciana e colonial canadense, repleta de preconceitos arraigados, hipocrisia, medo, 65 No original em inglês: “Every day he has set some small object in front of her, and has asked her to tell him what it causes her to imagine. This week he has attempted various root vegetables, hoping for a connection that will lead downwards: Beet – Root Cellar – Corpses, for instance; or even Turnip – Underground – Grave. According to his theories, the right object ought to evoke a chain of disturbing associations in her: although so far she’s treated his offerings simply at their face value, and all he’s got out of her has been a series of cookery methods” (ATWOOD, 1996, p. 90). 130 sexismo e ignorância, em uma Toronto que é uma verdadeira Babel, habitada por europeus de todas as nacionalidades, vitimizados, ironicamente, por toda a exploração e a miséria de que tentaram escapar quando emigraram da Europa. Na Toronto de Alias Grace, como afirmado por Peonia Guedes, somos defrontados com “a cultura vitoriana em versão canadense” (2002, p. 78), o que reforça a idéia de que o Canadá inglês colonial do século XIX era uma extensão da própria Inglaterra para os imigrantes. Volvendo agora o nosso foco para as três últimas partes do romance “A Caixa de Pandora” (“Pandora’s Box”), “A Carta X” ou “A Letra X” (“The Letter X”), perceberemos como a questão identitária de Grace vai consolidar a sua relação estrita com as formas da narrativa descontínua e fornecer horizontes de interpretação que, se enriquecem as alteridades da protagonista, não tornam menos espinhosa a apreensão da sua identidade. Especificamente no capítulo 48, da parte “A Caixa de Pandora”, Simon Jordan finalmente concorda em submeter Grace Marks a uma sessão de hipnotismo sob o comando do Dr. Jerome DuPont, na tentativa de desvendar o grande enigma que é a sua paciente. Mas, o problema que poderia desabonar a cena é que o Dr. Jerome DuPont é, na verdade, Jeremiah, uma figura do passado de Grace Marks, que tentara adverti-la sobre os perigos de trabalhar na fazenda de Thomas Kinnear (entretanto, tudo isso somente é do conhecimento do leitor e não das personagens envolvidas na sessão de hipnotismo/espiritismo). Embora fosse natural esperar que tal fato desabonador levasse ao descrédito imediato a cena a seguir, tem-se de pronto a estarrecedora revelação pela boca de Grace de que ela teria de fato ajudado a pôr fim na vida de Nancy Montgomery. Perante a evidente desilusão da mulher do diretor da penitenciária a respeito dessa revelação bombástica, “a voz que sai da boca de Grace Marks” replica dizendo que ela é Mary Whitney e não Grace Marks. Isto surpreende mais ainda a todos, especialmente ao cético e algo positivista Dr. Jordan. Porém, todo o ambiente da sessão está o tempo inteiro envolto em uma aura de misticismo e acontecimentos meio sobrenaturais, como a queda de 131 temperatura e uma série de batidas (“raps”) na mesa, supostamente ocasionadas por uma mão fantasmagórica, como era tão comum se relatar em sessões do gênero, tanto na Europa quanto na América do Norte, principalmente na segunda metade do século XIX. Em suma, a sessão de hipnotismo/espiritismo acaba por conferir mais complexidade ao enigma de Grace Marks, em vez de oferecer soluções para o crime e um desfecho para a questão identitária da protagonista. A riqueza dessa cena é superior ao aqui relatado e a ela voltaremos no último capítulo desta Tese. A décima-quarta parte do livro, “A Carta X”, ou “A Letra X”, compõe-se não de uma, mas de oito correspondências epistolares trocadas entre diversas personagens, relatando os últimos eventos ocorridos, sem a preocupação de dar um fecho à narrativa, mas deixando a questão da sanidade e da inocência de Grace Marks em aberto. Informa-se ali que o Dr. Jordan participou da Guerra Civil norte-americana, feriu-se, retornou à casa da sua mãe e deve casar-se com a jovem Faith Cartwright. O dado curioso sobre o novo casal é que Jordan insiste em confundir a noiva com Grace Marks. Resultado da perturbação mental causada pela guerra, ou não, tal fato denota a inegável influência que Grace exerceu sobre o jovem médico, de modo que fica sugerida a extensão da ligação emocional que o mantinha preso a ela, algo que ia além dos limites da relação médico-paciente (o que também endossa o inquestionável poder de fascínio que Grace sempre exerce sobre Jordan). No entanto, a despeito da incontestável riqueza da contribuição que essas últimas partes trazem para a história, a última parte (“Árvore do Paraíso”) é carreadora de episódios e situações que mais ainda nos intrigam: tomamos conhecimento de que Grace Marks é perdoada do seu crime em 1872 e que então se casa com Jamie Walsh (o outro empregado da fazenda de Kinnear que supostamente se arrependera de testemunhar contra ela no passado), muda-se para uma pequena fazenda no Estado de Nova Iorque, e está provavelmente grávida 132 (ou entrou na menopausa). Desses fatos todos, constam dos registros históricos somente o seu perdão e a sua mudança para Nova Iorque; o seu casamento com Walsh é criação ficcional. A passagem mais significativa dessa parte é a que Grace Marks relata mentalmente ao Dr. Jordan (ela passa a partir de então a manter diálogos mentais com ele) que está bordando a sua “árvore do paraíso” na sua própria colcha de retalhos, e que nessa colcha ela, Mary Whitney e Nancy Montgomery “estarão todas juntas” (ATWOOD, 1996, p. 460), o que mais complica do que esclarece o enigma da personalidade de Grace Marks. Essa tal árvore do paraíso sairia de um pedaço de anágua de Mary Whitney (que ela haveria guardado por todos aqueles anos), de um pedaço de uma camisola que usara na prisão (que ela teria implorado para que a deixassem levar da prisão, quando liberta) e de um retalho estampadinho floral pálido, cor-de-rosa e branco, de um pedaço do vestido usado por Nancy no primeiro dia de trabalho de Grace na fazenda de Kinnear. Note-se que Grace Marks expressa a idéia de que guardar um pedaço da roupa de uma outra personagem a faz sentir-se identificada com a sua personalidade, como em outras passagens anteriores em que ao usar peças do vestuário de Nancy Montgomery ou de Mary Whitney a fazia sentir-se como se fosse uma das duas. Deixando de lado prováveis explicações patológicas para essa circunstância, o que importa aqui é que definitivamente o enigma Grace Marks não é resolvido ao final do romance. Ademais, quando Grace afirma “E assim estaremos todas juntas.” (ATWOOD, 1996, p. 460), nas últimas linhas do romance, numa referência à integração da sua personalidade às das outras duas personagens já mencionadas com o término do bordado na colcha de retalhos, as únicas soluções que parecem vingar são as que conferem certezas para a própria Grace Marks, mas não para nós leitores, pois como afirma Peonia Guedes: Com essa alusão a uma ligação entre as três mulheres a narrativa chega ao fim sem que se possa chegar a qualquer conclusão ou certeza. Jamais se chegará à conclusão de se Grace Marks participou do plano para assassinar Thomas Kinnear; se, de fato, foi co-participante do assassinato de Nancy Montgomery; se a Grace que ajudou McDermott nos assassinatos era, não a Grace de verdade, mas um alter ego surgido 133 após a perda da sua querida amiga e mentora, Mary Whitney; se Grace efetivamente sucumbiu à loucura ou apenas fingiu-se louca para justificar os seus atos e garantir melhores condições de vida; se Grace está realmente grávida, apenas na menopausa, ou se um tumor cresce no seu útero. Os relatos históricos que se referem a Grace Marks são enganosos e abrem múltiplas interpretações possíveis. A Grace Marks ficcional que emerge das páginas de Alias Grace também é um enigma (GUEDES, 2002, p. 81). Assim, a Grace Marks histórica e a Grace Marks ficcional não se distinguem tanto, pois, se os eventos registrados e as informações documentadas nas quais Atwood se baseou se tornam enganosos e imprecisos, abre-se espaço para o brilhante exercício da metaficção historiográfica, conforme Linda Hutcheon entende, ao dizer: “A metaficção historiográfica joga com as verdades e as mentiras do registro histórico” 66. Concluindo, então, estas longas considerações acerca da relevância do papel da fragmentação e das estratégias de desconstrução empregadas pelas duas autoras na concepção das narrativas dos dois romances, percebemos por esse caminho uma consistente série de fatores em comum que vão se conjugar com as formas de fragmentação da(s) identidade(s) das duas protagonistas, formando uma teia de intercomplementaridade entre narrativa e representação das múltiplas identidades/alteridades de Jasmine e Grace Marks. Isso aponta para a construção de um tipo de identidade híbrida, não monolítica, aberta e que se configura como muito mais rica do que as identidades dos seus opressores. Na verdade, os opressores somente têm acesso ao nível de realidade que eles querem enxergar em relação aos colonizados, enquanto acalentam a ilusão de que esses sujeitos pós-coloniais são irremediavelmente subalternos. Ousaríamos acrescentar aqui que, parodiando a fala de Grace Marks nas duas últimas linhas de Alias Grace, “elas estão realmente juntas”, mas nesse “elas” poderíamos incluir também a Jasmine do romance de Mukherjee, dadas as semelhanças das suas situações e as agruras experimentadas em suas trajetórias. 66 No original em inglês: “(...) historiographic metafiction plays upon the truth and lies of historical record.” HUTCHEON, 1989, p. 63). 134 CAPÍTULO 3 A CONTRIBUIÇÃO DOS JOGOS DE SENTIDOS FICCIONAIS PARA O PROCESSO DE FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DAS PROTAGONISTAS JASMINE E GRACE MARKS A exploração dos sentidos ficcionais em Jasmine e Alias Grace torna-se uma tarefa sobremaneira instigante por se tratar de duas obras pós-modernas em que as autoras lidam contundentemente com questões de alteridade, identidade, colonialismo, pós-colonialismo, desconstrução, feminismos, assim como, em decorrência dessas abordagens, acabam por urdir uma enorme gama de jogos e técnicas narrativas que dotam as duas obras de características absolutamente singulares. Em conseqüência de tudo isso, os sentidos ficcionais ganham nuances inusitadas que apontam para novos horizontes interpretativos, corroboradores da questão do empoderamento e do processo de subjetificação das protagonistas em questão. Como era de se esperar, a maioria das análises de Alias Grace e Jasmine privilegiam visões contemporâneas da estética do pós-modernismo, conforme se tem demonstrado até este ponto e mais detidamente se perceberá neste e nos próximos capítulos desta Tese. Contudo, dada a riqueza de interpretações e sentidos possíveis propiciados por uma forma desconstrutiva de se encararem os tipos de ficções que os dois romances apresentam, tanto podemos usar idéias e postulados de estudiosos que lidam com as questões cruciais do campo dos Estudos Culturais e das estéticas da pós-modernidade, como Linda Hutcheon, Stuart Hall, Gayatri Chakravorty Spivak, Ania Loomba, Edward Said, Homi Bhabha e Thomas Bonnici (somente para citar alguns dos teóricos cujas idéias utilizaremos aqui), como igualmente usar as idéias e posições defendidas por estudiosos que lidam mais diretamente com as noções do 135 estético em literatura e as variações do fictício e do imaginário não tão (ou nada) ligadas às estéticas da pós-modernidade, tais como Wolfgang Iser, Cornelius Castoriadis, August Wilhelm von Schlegel e Henry James. Ou seja, o texto literário, enquanto obra de arte, se transforma em um campo praticamente infindável de estudos acerca dos sentidos possíveis do fictício e do imaginário, independentemente de receber o rótulo de pós-moderno ou não. Naturalmente, as posições dos vários estudiosos acerca desses tópicos variam bastante; porém, é exatamente essa inesgotável discussão que torna mais fascinantes as tentativas de apreensão do que sejam o fictício, a(s) ficção (ões) e o imaginário. Tendo em mente, então, que o pós-modernismo é altamente inclusivo, os dois romances se tornam interessantes arenas não somente para a apreciação dos conceitos do fictício e do imaginário, como também dos interespaços e brechas de significação que o leitor pode preencher, de acordo com Iser e outros teóricos contemporâneos, como veremos adiante. E, sem sombra de dúvida, dadas as peculiaridades de fragmentação, indeterminação e desconstrução de sentidos fixos e monolíticos de todos os temas abordados, o romance pós-moderno acaba por ser um campo mais fecundo ainda para o estudo dos seus ricos aspectos ficcionais. Enfim, tenta-se aqui provar que, apesar da predominância dos parâmetros de análise saídos das premissas dos Estudos Culturais, a constituição do “fictício” , como se apresenta no romance pós-moderno em língua inglesa, também pode ser objeto de análise e interpretação de acordo com outras vertentes teóricas. Deve-se deixar claro aqui que uma das diversas razões para esta empreitada é a constatação de que a resistência a novas idéias sempre foi recorrente no campo da interpretação e da crítica artística e literária. Ou seja, o estigma que ainda pesa sobre os escritos pós-modernos que se alinham no âmbito dos objetos de interesse e temáticas dos Estudos Culturais não pode, necessariamente, negar a sua característica de “boa literatura”. Que haja obras pós-modernas que não passam de veículos panfletários das questões pós-coloniais, de raça e de gênero, por exemplo, é absolutamente 136 inegável; contudo, é igualmente inegável que um grande número de autores e autoras contemporâneas produzem “boa literatura”. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde os Estudos Culturais e a adoção das abordagens desconstrutivas francesas floresceram enormemente, existem muitos autores e autoras em cujas obras é recorrente a temática das questões que afligem as comunidades de gays e lésbicas, o que originou a “Queer Theory”. Dentre eles, alguns produzem “literatura” meramente panfletária, como, por exemplo, exaustivas e enfadonhas descrições minuciosas das relações sexuais das suas personagens; entretanto, outros existem que também abordam as questões que afligem as suas comunidades em obras que já se acham ao lado das ditas obras “canônicas” nas estantes das livrarias, tendo saído das seções “queer” dessas mesmas livrarias. Em suma, o que pretendemos com este capítulo é desestabilizar posições extremistas, essencialistas e maniqueístas de se encarar a obra de arte literária. Assim, se voltarmos o foco da nossa discussão para o passado, poderemos detectar essas mesmas distinções nas opiniões de Virginia Woolf, quando, por exemplo, em seu ensaio crítico “Modern Fiction” (In ABRAMS, ed, 1993), ela comenta obras literárias e classifica seus autores como “escritores materialistas” (sinônimo de maus escritores) e “escritores espiritualistas” (sinônimo de bons escritores). Dessa maneira, ela alinha Wells, Bennett e Galsworthy no primeiro grupo, e Thomas Hardy e Joseph Conrad no segundo, conforme se verifica abaixo: (...) Mas, também é verdadeiro que, enquanto nós lhes agradecemos pelos seus muitos dons e talentos, nós igualmente reservamos a nossa imensa gratidão ao Sr. Hardy e ao Sr. Conrad, assim como, num grau menos superlativo, ao Sr. Hudson, pelos seus romances The Purple Land, Green Mansions e Far Away and Long Ago. O Sr. Wells, o Sr. Bennett e o Sr. Galsworthy têm-nos acalentado tantas esperanças para imediatamente frustrá-las tão contumazmente que a nossa gratidão, com relação a eles, se justifica por nos mostrarem claramente tudo aquilo que eles deveriam ter feito, mas acabam deixando por fazer. (...) Se nós tentássemos expressar o que queremos dizer através de uma simples palavra, talvez devêssemos afirmar que esses três autores que acabamos de citar são materialistas. 67 67 No original em inglês: “But it is also true, that, while we thank them for a thousand gifts, we reserve our unconditional gratitude for Mr. Hardy, for Mr. Conrad, and in much lesser degree for the Mr. Hudson of The Purple Land, Green Mansions, and Far Away and long Ago. Mr. Wells, Mr. Bennett, and Mr. Galsworthy have excited so many hopes and disappointed them so persistently that our gratitude largely takes the form of thanking 137 Essa classificação distintiva entre “bons” e “maus” autores, ou “boas” ou “más” obras literárias é e sempre foi recorrente, e a podemos encontrar também em Schlegel, como se exemplifica no seguinte trecho: Freqüentemente tenho visto, com espanto e raiva interior, o criado trazer-lhe pilhas daqueles livros. Como pode tocar os volumes imundos com suas mãos? E como pode permitir, através de seus olhos, a entrada do palavrório confuso e inculto no templo da alma? Abandonar durante horas a sua fantasia a homens de quem se envergonharia por ter trocado algumas palavras frente a frente? Isto não leva a nada, exceto a matar o tempo e corromper a imaginação! Você leu quase todos os maus livros, de Fielding 68a La Fountaine. Pergunte a si mesma o que tirou daí. Seu pensamento mesmo desdenha a matéria vil, pois o que lhe transforma em necessidade um hábito fatal de juventude, devendo ser tão assiduamente arranjado, é logo a seguir totalmente esquecido (SCHLEGEL, 1988, p. 62). Henry James também é responsável por conceitos semelhantes aos de Virginia Woolf e Schlegel quando, ao tecer considerações sobre pintura, realidade, romance e história, de repente cita Anthony Trollope de uma forma nada elogiosa: A única razão para a existência de um romance é que ele tenta de fato representar a vida. Quando ele desdenha essa tentativa, a mesma tentativa que se vê na tela do pintor, terá chegado a uma situação muito estranha. Não se espera de uma pintura que seja tão humilde que possa ser esquecida; e a analogia entre a pintura e a arte do romancista é, até onde posso ver, completa. Sua inspiração é a mesma, sua técnica (a despeito da qualidade diferente dos meios) é a mesma, elas podem explicar e sustentar uma à outra. (...) se a pintura é realidade, o romance é história. Essa é a única descrição genérica (que lhe faça justiça) que se pode dar do romance. Mas a história também se permite representar a vida; não se espera dela, não mais do que da pintura, que faça apologias. O tema da ficção está arquivado, como em documentos e registros, e para que seja explorado é preciso falar dele com segurança, com a tonalidade do historiador. Alguns romancistas de renome têm um costume de entregar-se que deve com freqüência levar às lágrimas pessoas que tomam sua ficção a sério. Recentemente, me espantei ao ler muitas páginas de Anthony Trollope, com sua falta de discrição quanto a isso. Numa digressão, num them for having shown us what they might have done but have not done; what we certainly could not do, but as certainly, perhaps, do not wish to do. (…) If we tried to formulate our meaning in one word we should say that these three writers are materialists” (WOOLF, 1993, p. 1922). 68 Curiosamente, Henry Fielding e Jane Austen são classificados por Virginia Woolf como “bons escritores”, no seu ensaio citado anteriormente (ver WOOLF, 1993, p. 1921). Ela alega que Fielding e, mais ainda, Jane Austen, deram uma contribuição positiva para a construção do romance inglês, embora contassem somente com “ferramentas simples” e “material temático ainda primitivo”. Isso corrobora a relatividade das opiniões pessoais, por mais abalizadas que sejam, uma vez que não se pode desautorizar nem Schlegel nem Woolf (muito embora se possa considerá-los com as devidas ressalvas, em nome das novas perspectivas teóricas e críticas da contemporaneidade). 138 parêntese ou aposto, ele concede ao leitor que ele e esse amigo confiante estão apenas “simulando acreditar” (JAMES, 1995, p. 22). Enfim, a principal intenção aqui é tornar patente que, apesar do grande número de dissensões dos vários teóricos sobre o que seja “boa” ou “má” literatura, essa polêmica não é nova; portanto, não é privilégio das discussões contemporâneas, pois sempre esteve na ordem do dia para teóricos renomados de épocas diferentes, de acordo com o que pudemos observar nas citações recém-utilizadas. Conseqüentemente, da mesma forma como não podemos assumir essas opiniões críticas do passado como possuidoras da última palavra acerca das obras e autores que criticaram acidamente, também não podemos acolher inexoravelmente a premissa conservadora de que exista um fosso tão intransponível entre os textos literários pósmodernos e as teorias mais tradicionalistas. Em última análise, - e ainda nos referindo às palavras de Henry James recém-citadas -, acreditamos ser possível encontrar vários pontos de interseção entre essas teorias e as produções literárias contemporâneas, mesmo a despeito de algumas “incompatibilidades” que se percebem em certas noções defendidas por Henry James, tais como a idéia de que a ficção literária deva representar a vida de uma maneira tão pictórica como a própria pintura o faz (atitude plenamente compreensível, se consideradas as concepções estéticas realistas então experimentadas por James), ou que o discurso histórico seja tão altamente inquestionável e confiável que tenha necessariamente o “status” de “provar” a veracidade das versões que apresenta. Mas esses “afastamentos” serão mais convenientemente tratados adiante, quando do entrelaçamento interseccional entre as obras de ficção de Bharati Mukherjee e Margaret Atwood e as idéias de Iser, Castoriadis, James e Schlegel, acerca do fictício e do imaginário. Mesmo propondo um tipo de leitura de Jasmine baseada em correntes críticas outras que não sejam as atreladas aos Estudos Culturais e às Teorias Feministas e Pós-Coloniais, não podemos perder de vista que esse romance de Bharati Mukherjee é uma das mais bem 139 elaboradas obras representativas das inevitáveis diásporas geográficas, transnacionais a que o sujeito pós-colonial feminino vê-se obrigado a enfrentar nesse processo doloroso de crescimento e conquista de maturidade, voz e identidade, caminho esse permeado pela dor e tragédias pessoais. Não obstante, procederemos também à tentativa de aproximar as especificidades e particularidades dessas abordagens que compõem a complexa rede de jogos narrativos dos dois romances estudados com as noções sobre “ficção”, “imaginário”, e “jogos narrativos”, em consonância com as idéias de Wolfgang Iser, Cornelius Castoriadis e Henry James, por exemplo. Tal tarefa talvez seja, de certa forma, espinhosa. Porém, nosso ponto de apoio principal é a elasticidade e a ampla capacidade de inclusão das abordagens pós-modernas. Na verdade, achamos que se pode mesmo afirmar que as possíveis tensões entre visões recuadas no tempo, como as de Henry James e Schlegel, e as posições e visões contemporâneas (no mais das vezes altamente desconstrutivas) podem propiciar interespaços de significação que permitam que se vislumbrem outras nuances do ficcional e do imaginário em literatura. Conforme já afirmara no início deste capítulo, tentaremos fazer uma leitura de Jasmine e Alias Grace que permita a avaliação dos jogos narrativos que existem nas duas obras, à luz de algumas idéias defendidas por Henry James, Schlegel, Castoriadis e Iser. Decerto, em determinadas situações necessariamente teremos que lidar com “afastamentos” e “incompatibilidades” entre o que se apresenta nos romances e o defendido pelas idéias dos escritores acima, muito por conta da condição pós-moderna das referidas obras. A primeira idéia que nos acorre é a de relacionar o conto de Henry James “O Desenho do Tapete” aos dois romances em questão. O referido conto trata de um imenso “jogo de esconde-esconde” que as personagens fazem umas com as outras, motivadas pela suposta posse de um “segredo” capital que uma sempre diz à outra possuir. Tal segredo seria supostamente constituído dos “significados últimos” que um determinado e famoso escritor, 140 senhor Hugh Vereker, teria querido transmitir através de um de seus livros. O próprio escritor é uma das personagens do conto, em que muito se fala e se elucubra acerca do que o autor “de fato teria querido dizer” nas páginas do seu livro. São construídos verdadeiros jogos de palavras e labirintos, a partir do pedido que George Corvick faz a um jornalista amigo seu para que escreva um artigo para o periódico O Meio, tarefa que Corvik mal tivera tempo de pensar em executar. Quem se torna então o protagonista desse conto em que Henry James especula sobre os sentidos da criação literária, da crítica e das “intenções secretas” dos autores é o jovem jornalista a quem Corvik pede tal favor. Desde então, o jovem jornalista, jamais nomeado nesse conto narrado em primeira pessoa, lê as obras de Verek, escreve artigos sobre elas e obtém o seguinte comentário do autor sobre um dos artigos, quando conversam em casa de uma amiga comum: “Ah, nada mau... a mesma bobagem de sempre” (JAMES, 1993, p. 148). Em seguida, a senhorita Poyle pergunta ao escritor se o jornalista não lhe havia feito justiça. Verek retruca que o artigo é de fato de excelente escritura, mas o problema é que, segundo afirmação da senhorita Poyle, Verek é impenetrável. Após ainda afirmar que o artigo é encantador, Verek se diz tão impenetrável quanto o Saara69, e que não se trata da obtusidade do escritor do artigo; trata-se de fato de que “Ninguém percebe nada” (1993, p.149). A partir desse ponto, o jogo passa a ser cada vez mais instigante, ocorrendo as mortes de personagens (inclusive a de Corvik e sua mulher, também muito interessada em “desvendar” o mistério em questão) que antes haviam afirmado ao jovem jornalista haverem descoberto o tal segredo de Verek, de forma que o protagonista fica cada vez mais perturbado com as suas frustradas tentativas. A certa altura, a impenetrabilidade da obra de arte parece 69 A frase de Verek, afirmando que ele é tão impenetrável quanto o Saara, pode, contemporaneamente, ser encarada como uma afirmação de ordem intertextual com o conto de Paul Bowles, “Baptism of Solitude” (1963, p.128-144), em que questões de alteridade e pós-coloniais são discutidas a partir do ponto de vista das interpretações do que é o Deserto do Saara e toda a diversidade de fauna, flora, populações e climas que nele abundam. A impenetrabilidade do Saara de Bowles reside no fato de que a sua narrativa parece estar mostrando qualquer área do globo, menos o Saara, dada a quantidade de informações novas que Bowles nos passa. Vale ainda ressaltar que “Baptism of Solitude” inspirou o filme O Céu que nos Protege. 141 consubstanciar-se na metáfora do “tapete”, se consideradas as palavras de Verek em certa parte do conto, em conversa com o protagonista: Estava claro que não me considerava intelectualmente à altura da façanha. Fiquei com Verek meia-hora, e ele foi muito simpático; mas não pude deixar de julgá-lo um homem de humor instável. Havia se aberto comigo num momento; e agora se tornava indiferente. Esta sua inconstância ajudou a convencer-me de que a tal deixa não levaria a nada de muito importante. Não obstante, consegui fazê-lo responder a mais algumas perguntas referentes à questão, ainda que com uma impaciência indisfarçável. Para ele, sem dúvida alguma, a coisa que nos parecia tão obscura era evidente. A meu ver, devia estar em primeiro plano, como o desenho complexo de um tapete persa. Ele aprovou enfaticamente esta imagem quando eu a usei, e propôs outra: “É o fio onde estão enfiadas minhas pérolas!” (JAMES, 1993, p. 158). É curioso ressaltar que no conto de Paul Bowles, a que nos referimos na nota de rodapé abaixo, a imagem do “desenho no tapete persa” é substituída por várias fotografias de paisagens e pessoas que ele entremeia no conto, o que aumenta a perplexidade do leitor, que do Saara somente espera ter imagens e notícias de calor, pobreza, condições inóspitas e ausência de vida e de água. Voltando ao conto de James, em seu final, o protagonista acalenta a esperança de finalmente arrancar o tal segredo do Sr. Drayton Deane, viúvo de Gwendolen, que também fora mulher de Corvik, então falecido. Na verdade, o protagonista acreditava que Gwendolen havia revelado o “segredo” para o segundo marido, de forma que essa era a grande e última esperança que o protagonista tinha de atingir os seus objetivos. Todavia, Dreaton fica estupefato com a notícia de que a sua esposa sabia de algo tão importante e não tinha partilhado com ele tal segredo. Em suma, o protagonista e Dreaton acabam vitimados pelo grande jogo-armadilha urdido por Henry James para transmitir a idéia de que, talvez, a busca incessante pelos sentidos últimos de uma obra ficcional é que são o próprio “sentido último” da obra de ficção, conforme se verifica na passagem final do conto: 142 Hoje, como vítimas de desejo insatisfeito, ele e eu somos exatamente iguais. O estado do pobre homem é quase um consolo para mim; há mesmo momentos em que isso parece ser minha justa vingança. (JAMES, 1993, p. 179.). Desviando, agora, o foco de atenção para o outro texto de Henry James, “A Arte da Ficção”, nele encontramos pontos de interseção e de afastamento se tentarmos interpretações de Jasmine e Alias Grace, de acordo com as idéias sobre o ficcional e o romance desenvolvidas pelo autor nesse texto teórico. Aproveitamos a oportunidade para fazer uma pequena digressão e nos referirmos à citação de um trecho do artigo acima, feita no começo deste capítulo, em que James parece tentar estabelecer uma analogia pictórica demais da ficção literária, e chega, em outro trecho, a compará-la a uma das “belas artes” (p.23). Por outro lado, endossa também a idéia de que o discurso da História é inquestionável, da mesma forma que “se existem ciências exatas, também existem artes exatas, e a gramática da pintura é tão mais definida que isso faz diferença” (JAMES, 1993, p. 27). Como tais idéias são anteriores ao relativismo einsteiniano, percebe-se que ainda estão muito imbuídas do cientificismo newtoniano/cartesiano, que prevalecera até o século XIX, e constituem “afastamentos” das idéias e princípios teóricos e filosóficos pós-estruturalistas. Podem, até mesmo, carrear um “nó” a mais nas complicações estabelecidas em “O Desenho do Tapete”, na medida em que James passa, no conto, a idéia de que “as mensagens” do autor (e, por extensão, os sentidos da ficção) são inapreensíveis – e somente se pode especular sobre eles. Porém, se existem “artes” e ficções exatas, como algo em sua essência pode ser inapreensível, não mensurável, não quantificável e indefinível? Entretanto, apesar dessas aparentes incompatibilidades entre as idéias de Henry James e as mais comuns vertentes de interpretação dos romances de Mukherjee e Atwood, figuram também algumas interseções. Se, por exemplo, a propalada “exatidão” das obras de arte e da ficção não encontra eco nem em Jasmine nem em Alias Grace, a busca incessante pelos sentidos últimos da obra ficcional, como retratada em “O Desenho do Tapete”, combina 143 perfeitamente com o alto grau de fragmentação da identidade de Jasmine e as cambiantes formas de alteridade de Grace Marks, para não falar nas peculiaridades fragmentárias e de multiplicidade de sentidos das narrativas em que as duas personagens se movimentam, de maneira que os tais sentidos últimos nunca sejam atingidos (na verdade, segundo o princípio do “deferral”, para Derrida esses sentidos são sempre “adiados” – por isso inapreensíveis em uma forma “essencial” monolítica e fechada). Pode-se até mesmo afirmar que o cerne dessas interseções encontra subsídio tanto nas idéias da Desconstrução e da Disseminação defendidas por Jacques Derrida, quanto em certas afirmações do próprio James, como veremos adiante. Relembrando brevemente idéias já aludidas no Capítulo 2, para Derrida, um conceito fundamental que deve estar acoplado ao conceito de desconstrução é o da “disseminação”. Partindo-se da origem latina do termo (“semen”), tem-se a clara interpretação de que a linguagem é amplamente, ao mesmo tempo, “espalhada”, “semeada”, “sinalizada”, “(não) sinalizada”, o que implica as idéias de “propagar” e “difundir”. J.A. Cuddon (1992), então, observa que “disseminação”, do modo como Derrida entende o termo, é deliberadamente dotada de um sentido sexual e procriativo, o que sugere, segundo ele, o jogo textual livre (o que já nos remete aos jogos textuais de Iser), que é divertido, instável e “excessivo”. A possível correlação de todas essas idéias pós-estruturalistas com algumas idéias de Henry James pode ser vislumbrada na primeira parte do seguinte trecho do conto deste autor: A arte vive de discussão, de experimentação, de curiosidades, de variedade de tentativas, de troca de visões e de comparação de pontos de vista; e presume-se que os tempos em que ninguém tem nada de especial a dizer sobre ela e em que ninguém oferece motivos para o que pratica ou prefere, embora possam ser tempos honrados, não sejam tempos de evolução – talvez sejam tempos, até mesmo, de uma certa monotonia (JAMES, 1995, p. 20). 144 Todavia, fatores outros há que, mais uma vez, afastam as idéias de James tanto da estrutura das obras ficcionais pós-modernas quanto das suas temáticas e personagens, como se depreende no seguinte trecho: Que seus personagens “devem ter contornos claros”, como diz o Sr. Besant – ele sabe disso em seu âmago; mas como deve fazer isso é um segredo entre seu anjo da guarda e ele mesmo. Seria absurdamente simples se a ele fosse ensinado que uma grande quantidade de “descrição” os faria assim, ou que, ao contrário, a ausência de descrição e o cultivo do diálogo, ou a ausência de diálogo e a multiplicação dos “incidentes”, o salvaguardariam das dificuldades (JAMES, 1995, p. 20). Os referidos afastamentos no presente caso ficam por conta de que no romance pósmoderno, a exemplo de Jasmine e de Alias Grace, os contornos não só dos personagens quanto da estrutura da narrativa não são necessariamente “claros”. Na verdade, muitas vezes, o “desenho do tapete” nos romances pós-modernos é muito menos aparente ainda. Conforme fartamente ilustrado em capítulos anteriores, as questões da identidade das protagonistas, da fragmentação das suas alteridades e das narrativas, assim como o uso da metaficção historiográfica (especificamente em Alias Grace) adicionam ingredientes especiais à certa impenetrabilidade dos romances. Ainda aqui, merecem destaque mais alguns outros pontos de dissensão: James afirma que “o crítico que, diante da textura fechada de um trabalho acabado, pretenda traçar uma geografia dos itens marcará algumas fronteiras tão artificiais quanto, acredito, qualquer uma das conhecidas pela história” (JAMES, 1995, p. 32-33). As ditas dissensões se revelam na medida em que a “textura fechada de um trabalho acabado” não se coaduna com a idéia contemporânea de que o romance pós-moderno é uma obra aberta, sem um fechamento nos moldes tradicionais. Por outro lado, se em outro momento James tanto enaltece a inquestionabilidade da história, nesse passo, parece-nos que ele relativiza essa questão. Se assim o for, pelo menos aqui, encontraremos um ponto em comum com as idéias contemporâneas – existem vertentes em que a história é vista hoje não como uma ciência 145 social cujos princípios sejam absolutamente inquestionáveis, mas antes como mais uma fonte de narrativas de fatos e versões de fatos que podem oscilar em sentido ao sabor das diferentes possíveis interpretações e ideologias (premissa que notoriamente desagrada a muitos historiadores, de modo geral). De certo modo, podemos lembrar aqui do largo uso do recurso da metaficção historiográfica (já considerado um novo gênero literário), por parte de Margaret Atwood, quando ela reflete, num “pós-escrito” do romance, sobre as “lacunas” que teve que preencher ao escrever Alias Grace, dadas as reticências da história oficial. Ao proceder a esse “preenchimento”, ela relativiza o discurso histórico, uma vez que o mescla ao discurso ficcional, tornando impossível a sua distinção (ATWOOD, 1996, p. 464-465), conforme já citado em capítulo anterior. Curiosamente, torna-se oportuno mencionar que não somente a questão da metaficção historiográfica, mas também a mistura de poesia, prosa, notícias jornalísticas, a presença de personagens históricas ao lado de outras ficcionais, e a estrutura do imenso romance de cinqüenta e três capítulos, ordenados de acordo com os padrões da confecção de uma colcha de retalhos, formam uma mistura tão variada para cuja plausibilidade poderíamos encontrar respaldo nas seguintes palavras de Schlegel: É verdade, você afirmou que o romance seria aparentado, acima de tudo, com o gênero narrativo e até mesmo com o épico. Mas devo lembrar-lhe, primeiramente, que uma canção pode ser tão romântica quanto uma história. Pois, afinal, quase não posso conceber um romance que não seja uma mistura de narrativa, canção e outras formas. (SCHLEGEL, 1988, p. 68). Concentrando-nos, agora, em alguns dos conceitos que Cornelius Castoriadis defende acerca da imaginação, do imaginário e da reflexão, para se verificar que tipo de contribuição se pode deles extrair para a interpretação de obras pós-modernas, tais quais as que ora se analisam, é necessário frisar que Castoriadis faz uma abordagem bastante profunda dos 146 conceitos. Assim sendo, ele se reporta à História, à Filosofia e à Psicanálise, por exemplo. Em função dessa característica, a abordagem dos conceitos de Castoriadis efetivada aqui visará a pinçar os principais tipos de informação que privilegiem a condição do que venha a ser o “fictício”. Logo na abertura do seu artigo intitulado “Imaginação, Imaginário e Reflexão”, Castoriadis diz que se constitui um fato espantoso que a imaginação radical do ser humano, da psique ou da alma, mesmo descoberta há vinte séculos, por Aristóteles, jamais tenha adquirido o lugar central que lhe é de direito na filosofia da subjetividade. Tal observação permite-nos fazer uma imediata associação com as questões de alteridade, identidade e subjetividade que constituem temas centrais tanto em Jasmine quanto em Alias Grace, uma vez que leituras e interpretações de ordem psicanalítica podem ser usadas para as protagonistas dos dois romances, sendo que o fato de Grace Marks passar a maior parte da sua vida num manicômio penitenciário já revela as dobras da complicação de ordem psiquiátrica da sua subjetividade, abrindo mais ainda as possibilidades de interpretações psicanalíticas de Alias Grace. Porém, a isto retornaremos adiante, pois ainda é necessário explicar certos conceitos que Castoriadis postula. Para ele, o termo “imaginação” há de ser considerado duplamente, na medida em que não se pode excluir de seu entendimento nem a sua conexão com “imagem” num sentido bem amplo (muito além do restritivo conceito de “visual”), nem tampouco a sua conexão com a idéia de “invenção” e de “criação”. Castoriadis utiliza também os termos “imaginação radical” e “imaginário social instituinte”. Para melhor entendê-los, deve-se explicar que, para Castoriadis, a “imaginação radical” (que precede o próprio pensamento) opõe-se à “imaginação segunda”, pois a radical vem antes da segunda. Na verdade, a imaginação segunda é meramente reprodutiva e combinatória; é a de que se fala no dia-a-dia, ao passo que a “imaginação radical” vem antes mesmo da distinção entre o “real” e o “imaginário”, ou 147 “fictício”. Assim, se existe o que chamamos de “realidade” é porque há imaginação radical e imaginário instituinte; e, como se pode perceber, o termo “imaginário”, aqui, é um substantivo. A partir desse ponto, Castoriadis vai estabelecendo uma rede de conceitos que nos vai aclarando as suas idéias. Ele diz, por exemplo, que, para Kant, a imaginação constitui o poder de representar um objeto na intuição, mesmo sem a sua presença; enquanto que Sócrates, através de Platão, vai mais além quando afirma que a imaginação é a capacidade de (se) representar o que não é. Retornando a Kant, Castoriadis diz que ele também afirma que já que todas as nossas instituições são sensíveis, a imaginação pertence à sensibilidade. Nesse ponto, porém, Castoriadis permite-se inverter o raciocínio kantiano, ao dizer que a sensibilidade é que pertence à imaginação, uma vez que a imaginação a que Kant se refere é a “imaginação segunda”, conforme se reproduz abaixo: De fato, não há nenhuma “receptividade” ou “passividade” das “impressões”. Para começar, não há “impressões. As “impressões” são um artefato filosófico ou psicológico. Há, em alguns casos, percepções – a saber, representações correlativas a objetos “externos” e mais ou menos “independentes”. (Em alguns casos somente: para toda a filosofia herdada há um privilégio exorbitante da percepção, ainda mais exacerbado em Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty). Essas percepções comportam, sem dúvida, um “componente sensorial”. Mas esse componente é, ele próprio, uma criação da imaginação. Os “sentidos” fazem emergir a partir de um X algo que “fisicamente” ou “realmente” não existe – se entendermos por “realidade” a “realidade” da física: eles fazem emergir as cores, os sons, os odores etc. Na natureza “física” não há cores, sons e odores: há somente ondas eletromagnéticas, vibrações do ar, espécies de moléculas etc. O quale sensível, as famosas “qualidades secundárias” são uma pura criação da sensibilidade, isto é, da imaginação em sua manifestação mais elementar, dando uma forma, e uma forma específica, a algo que, “em si”, não tem nenhuma relação com essa forma (CASTORIADIS, 1999, p. 247). Assim sendo, no objeto não há distinções entre “qualidades primárias” (que se referem ao “categorial”, ao “lógico” e às formas universais) e “qualidades secundárias” (a concretude do objeto conforme apreendido pela “sensibilidade” humana), o que ocasiona a reiteração de que as ondas luminosas não são coloridas e não causam a cor como cor. Elas induzem, sob 148 certas condições, a criação, pelo sujeito, de uma “imagem”, que, na maioria dos casos – e, de certa forma, por definição, em todos os casos de que podemos falar – é participada genérica e socialmente. Por outro lado, todas essas inferências de Castoriadis levam à idéia de que a atitude “na primeira pessoa” ou “intencional” dá ao sujeito “as coisas tais como são”, o que constitui a estranha ilusão realista da fenomenologia, a qual coexiste, paradoxalmente, com as conseqüências fatalmente solipsistas, conforme posto por Castoriadis, nas seguintes palavras: Como posso saber que alguma coisa existe para o outro ou, na verdade, simplesmente que o outro existe, se estou confinado à minha atitude na primeira pessoa? Do ponto de vista fenomenológico estrito, não tenho qualquer acesso à experiência dos “outros”: esses e suas “experiências” não existem como fenômenos para mim. A simples desginação do problema nas Meditações Cartesianas, de Husserl (ou na Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty), não é suficiente para exorcizá-lo (CASTORIADIS, 1999, p. 249). Como não poderia deixar de ser, a discussão é profícua e praticamente infindável. Todavia, para efeito de simplificação e de se desviar o foco das discussões para o que tratam os romances em questão, podemos, ainda, evocar de novo Castoriadis quando ele diz que tal dificuldade de se acreditar na existência do Outro, ou até mesmo de ter a experiência dele, parece uma barreira fenomenológica intransponível. Um conceito que parece dar a solução para esse problema seria a noção de que o sujeito “sabe” em primeira mão não só ao que corresponde “ver” a cor vermelha, mas também “sabe” ao que corresponde viver em uma sociedade onde as coisas mais importantes são as significações imaginárias sociais. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos, então, aquilatar como essas propaladas “filosofias da subjetividade” desempenham um papel preponderante tanto em Jasmine quanto em Alias Grace. Para, então, destacarmos alguns pontos dos romances em que as ficções neles representadas se douram desses contornos filosóficos, mesclados a outras noções mais 149 atinentes às interpretações filosóficas da Desconstrução, torna-se oportuno citar uma definição teórica do que seja alteridade: Alteridade deriva-se da forma latina alteritas, que significa “o estado de ser outro ou diferente; diversidade, outridade”. Os outros termos que daí se derivam são “alternado (a)”, “alternativo (a)”, “alteração” e “alter-ego”. O termo alterité é mais comum no francês, e é antônimo de identité (Johnson and Smith 1990, xviii). O termo foi adotado pelos filósofos como uma alternativa para outridade 70, para registrar a mudança nas percepções ocidentais das relações entre a consciência e o mundo. Desde Descartes, a consciência individual tinha sido encarada como o ponto de partida privilegiado para a consciência, e, nesse caso, “o outro” aparece nessas filosofias (pós-iluministas) como um “outro” reduzido, como uma questão epistemológica. Ou seja, em um conceito de humano em que todas as coisas florescem da noção de que “Penso; logo, existo”. O ponto crucial em relação ao outro é o “eu” ser capaz de responder a questões tais como “Como eu posso conhecer os outros?” e “Como podem as outras mentes ser conhecidas?” (...) Esta é uma das questões-chave das mudanças no conceito de subjetividade, porque, não importa se vista no contexto da ideologia, da psicanálise ou do discurso, a “construção” do sujeito há de ser encarada como absolutamente inseparável da construção dos seus outros (ASHCROFT, 2002, p. 11). 71 Como se vê, partindo-se, então, dessa noção de que a construção do sujeito é amalgamada à construção dos seus outros, a relativização da identidade e da alteridade das personagens em romances pós-modernos fornece a possibilidade de uma certa comunhão com o Outro. Isto, aos nossos olhos, não equivale a dizer que todos os problemas entre o “eu” e o “Outro” achem solução perpétua que possibilite cessarem-se as especulações teóricas, psicológicas e filosóficas acerca da questão. Entretanto, a noção de relatividade das alteridades do “eu” e do “Outro” possibilita o tal descentramento social, psicológico e 70 71 “Otherness”, em inglês. No original em inglês: “Alterity is derived from the Latin alteritas, meaning “the state of being different; diversity, otherness”. Its English derivates are alternate, alternative, alternation, and alter ego. The term alterité is more common in French, and has the antonym identité (Johnson and Smith 1990: xviii). The term was adopted by philosophers as an alternative to “otherness” to register a change in the Western perceptions of the relationship between consciousness and the world. Since Descartes, individual consciousness had been taken as the privileged starting point for consciousness, and “the other” appears in these (post-Enlightenment) philosophies as a reduced “other”, as an epistemological question. That is, in a concept of the human in which everything stems from the notion that “I think, therefore I am”. The chief concern with the other is to be able to answer questions such as “How can I know the other?” “How can other minds be known?” (…) This is a key feature of changes in the concept of subjectivity, because, whether seen in the context of ideology, psychoanalysis or discourse, the “construction” of the subject itself can be seen to be inseparable from the construction of its others” (ASHCROFT, 2002, p. 11). 150 filosófico da noção de sujeito, conforme defendido por Linda Hutcheon e referido aqui anteriormente. De fato, o “descentramento” a que Linda Hutcheon se refere está totalmente imbuído das características da Desconstrução de Jacques Derrida, na medida em que não só com relação ao sujeito e ao Outro, mas também com relação a todos os temas ficcionais pósmodernos, deixa-se de privilegiar uma visão monolítica, única e fechada acerca de tais termos e temas. Para Linda Hutcheon, ainda, o termo “descentramento” equivale a “ex-cêntrico” e origina a (aparente) separação radical entre o que se convencionou rotular como “centro” (geralmente representado pelas forças hegemônicas de poder e pelas suas conseqüentes idéias e conceitos tidos como fixos e imutáveis em épocas anteriores ao pós-estruturalismo) e “periferia” (geralmente representado pelas “margens” – situações, conceitos e “sujeitos” normalmente tidos como “outros” ou “diferentes” do paradigma hegemônico típico do “centro”). De qualquer forma, as especulações teóricas e filosófico-desconstrucionistas encaram as relações entre “centro” e “periferia” (que podem ser reduplicadas na relação entre o “eu” e o “Outro”) como absolutamente indissociáveis, conforme já afirmado anteriormente, quando definimos “alteridade” teoricamente. Como conseqüência, em Jasmine e em Alias Grace hão de se misturar esses esboços de conceitos filosóficos vistos até então para se especular um pouco mais profundamente sobre a natureza do fictício e do imaginário e as peculiaridades das suas narrativas com todos os seus vieses pós-modernos. Em Jasmine, além da questão da ex-centricidade da sua condição de sujeito pós-colonial feminino subalterno, há as questões lacanianas como tão bem exemplificado no episódio do espelho, em que Jyoti-Jasmine se transmuta na Deusa Kali. A questão do descentramento e da desconstrução é levada a um grau tão extremo pela autora que a linearidade da narrativa é totalmente “fraturada”. Por exemplo, para se ter uma idéia aproximadamente completa sobre quem “é” a protagonista, o leitor tem que se debater por entre o espinhoso caminho traçado pela autora ou, por outro modo, pelos aparentemente 151 diversos narradores da história, reordenando mentalmente as seguintes exposições (já anteriormente mais detalhadas no capítulo 2): quando se trata de eventos envolvendo as vidas da protagonista sob o nome de Jyoti (desde os seus sete anos até os treze, em Hasnapur, em que aparecem as cenas familiares, religiosas e políticas da sua vida na Índia), os dados a eles referentes estão expostos nos capítulos 1, 6, 7, 8, 9, 10 e 11; quando o foco é a sua “metamorfose” de “Jyoti” para “Jasmine”, as informações vitais encontram-se no capítulo 12; quando a questão resume-se somente aos episódios exclusivos de sua “existência” como “Jasmine” (quando ela se torna viúva), estaremos no capítulo 13; se o foco for, então, a sua existência praticamente tríade em que a alteridade oscila entre “Jasmine”, “Jyoti” (quando fica viúva e “volta” a uma encarnação anterior) e “Jasmine” de novo (quando então rechaça o papel fatal de viúva na sociedade indiana e retorna à identidade de Jasmine, saindo de Hasnapur e emigrando para a América), o capítulo a ser lido é o 14; quando o que está na berlinda é “a morte” de Jasmine (em que se descrevem as terríveis condições do seu deslocamento diaspórico para a América e seu contato com as alegadas “boas” intenções de Half-Face), tais episódios se narram nos capítulos 15 e 16; os eventos que ilustram as suas existências como “Jane Ripplemeyer” e “Jase” estão no capítulo 18, da página 109 até o último parágrafo da página 114 (onde o narrador é claramente Jane Ripplemeyer). A partir daí, Jane narra que Jasmine “incorpora” Kali, mata Half-Face, e foge do motel, à noite, encontrando uma senhora Quaker (Lilian Gordon) que bondosamente a acolhe e protege, encaminhando-a para ser a “baby-sitter” da filha do casal Taylor e Willie Hayes, em Nova Iorque, que lhe renomeiam “Jase”; já nos capítulos 18 e 19, focaliza-se a sua existência temporária como “Jazzy”, o nome que Lílian lhe dá, ao não entender a forma como a protagonista pronuncia “Jasmine”; por fim, os eventos que diretamente se referem à última alteridade aparente da protagonista – Jane Ripplemeyer - , aparecem nos capítulos 2, 3, 4, 5, 17, 20, 24, 25 e 26. 152 Dessa maneira, se fosse tentada uma “reordenação” dos capítulos, mantendo-se uma linha cronológica de abordagem dos eventos na vida da protagonista, estes teriam que ser remanejados e, provavelmente, se poderiam reduzir de 26 para 24, numa especulação nesse sentido, em virtude de algumas sobreposições de abordagens se acomodarem e se fundirem, como conseqüência da rearrumação. Todavia, isso, ao invés de adicionar mais complicação à forma desconstrutora de exposição da narrativa, simplesmente “destruiria” o romance, privando-o das inumeráveis lacunas que se exige que o leitor preencha para se começarem a entender alguns sentidos ficcionais da obra. Isso nos reporta, de imediato à Estética da Recepção e outras teorias de Wolfgang Iser, principalmente quando ele enfoca a necessária “assimetria” que deve existir entre o leitor e o texto ficcional (o que inegavelmente Bharati Mukherjee propicia em Jasmine), conforme, se verifica na seguinte fala de Iser: Em minha primeira exposição, farei algumas observações acerca do reader-response criticism como reação a uma circunstância histórica. Numa segunda exposição, gostaria de enfocar a assimetria entre texto e leitor. Tal assimetria produz espaços vazios ou lacunas que precisam ser negociados. Por essa razão, destacarei certos tipos de interação que ocorrem durante o processo de leitura (ISER, 1999, p. 19). Mais adiante, Iser diz que o que veio a ser chamado de Estética da Recepção não é de modo algum um empreendimento tão simples quanto parece, pois comporta uma distinção básica entre um estudo da recepção propriamente dita e uma análise do chamado efeito ou impacto que um texto pode provocar. Tratamos, então, de aspectos diferentes de um mesmo problema. Nessa medida, as perspectivas da recepção visam, portanto, a identificar claramente as condições históricas que forjaram a atitude do receptor num dado momento e numa dada circunstância à qual se transmitiram juízos sobre a literatura. Como afirma Iser, “nesse sentido, o estudo da literatura se torna um instrumento para recriar ou reconstruir o passado” (ISER, 1999, p. 20). Assim, podemos inferir que, se a Literatura pode recriar o passado, fica ainda mais justificada a associação da Literatura com a metaficção historiográfica para se 153 recriar tanto a história privada da personagem histórica Grace Marks, quanto a história pública da Toronto do século XIX, em Alias Grace. Iser continua suas considerações fazendo um punhado de afirmativas sobre as formas de interpretação do objeto estético, desde o século XIX, realçando os diversos conflitos existentes entre as correntes, passando pela ortodoxia do “New Criticism”, até chegar à contemporaneidade, quando afirma: Todavia, quando a estética clássica foi substituída pela desconstrução, o jogo pôde simplesmente continuar, o que de certa forma explica o êxito da perspectiva desconstrucionista nas universidades americanas. (…) A literatura moderna se mostrou inacessível a estudos segundo critérios já mencionados da intenção, do valor e da mensagem72. As questões sobre literatura que, no passado, seriam formuladas com naturalidade começaram então a ser percebidas como decorrência de uma abordagem historicamente condicionada da arte. É indiscutível, porém, o seguinte traço fundamental na história da interpretação: as questões formuladas anteriormente não deixam de exercer certa influência quando novas questões estão sendo concebidas. Não sumiram pura e simplesmente de vista. Ao contrário, tornaram-se signos de uma via de interpretação naquele momento bloqueada. Desse modo, as velhas questões servem para apontar novas direções. A velha busca semântica da mensagem deu origem à análise dos meios de construir, de articular o objeto estético. O critério de conciliação de opostos, sempre vinculado ao valor estético da obra, levou à questão de como as faculdades humanas eram estimuladas e afetadas pelo texto literário durante o processo de leitura (ISER, 1999, p. 24). Um complemento altamente significativo para as palavras recém-citadas de Iser e crucial para esta análise seria a afirmação peremptória do autor de que as perguntas anteriores não estão mortas e enterradas, mas continuam sobrevivendo como “fontes negativas” para que novas perguntas sejam feitas. Desse modo, as intenções dos autores e as mensagens da obra constituem o pano de fundo para a teoria do efeito estético. Fica, então, estabelecida a atmosfera propícia para a explanação do que se constitui (em) o(s) jogo(s) ficcional (ais) para Iser, e desse modo podemos observar com relação aos romances estudados que as teias proporcionadas por esses jogos estão estritamente 72 Isto nos faz lembrar que certas idéias de Henry James, nesse campo, constituem as tais “incompatibilidades” ou “afastamentos” a que anteriormente nos referimos, porém não intransponíveis, conforme se relata na própria citação acima. 154 relacionadas com o processo de aquisição de agenciamento e voz por parte das protagonistas Grace Marks e Jasmine. De início, Iser afirma que a intencionalidade subjacente à ficcionalização é comparativamente determinada em relação ao que foi excedido ou transgredido, o que nos remete a certos conceitos sobre “excesso” e “disseminação”, ligados à Desconstrução de Derrida, já mencionados anteriormente no Capítulo 2, tornando-se fundamental a apreensão do seguinte conceito inicial sobre a ficcionalização: No entanto, ela tem em mira um alvo ainda indeterminado, pois não pode ser controlado cognitivamente. Noutras palavras, a ficcionalização equivale a um jogo livre, pois tal jogo ultrapassa o que é e se volta para o que não é. (...) O ato de fingir, contudo, mantém em jogo o que se transgrediu, de modo que o transgredido possa tornar-se algo diferente de si mesmo. (...) A ficcionalização instaura uma diferença que não pode mais ser erradicada pela consciência, pois não se conhece aquilo a que visava a intencionalidade. A diferença se revela então por meio de um movimento compensatório entre aquele jogo livre, no qual se vai além do que é, e um jogo instrumental cujo propósito implícito tem caráter pragmático. Esse movimento oscilatório impede não apenas que o jogo livre se desligue inteiramente daquilo que deixou para trás, mas também que o jogo instrumental realize o seu propósito no sentido aqui assinalado ontem, isto é, no sentido de produzir um fechamento (closure) (ISER, 1999, p. 26). O raciocínio de Iser se desdobra ainda no sentido de afirmar que sempre que o movimento do jogo está prestes a atingir o seu fechamento, o jogo livre demonstra mais uma vez a sua pujança, pois a sua função precípua é evitar todo tipo de finalização. Já o jogo instrumental combate o próprio “adiamento” da sua conclusão. Trata-se, sem dúvida, de uma relação bastante tensa, em que esse movimento assaz conflituoso resulta num jogo com a diferença (a play of difference), para utilizar um termo do âmbito da Desconstrução, apesar de Iser afirmar que os teóricos da Desconstrução silenciam quanto ao dinamismo que se processa nesse jogo. Extremamente crucial se torna afirmar que, embora desencadeado pela ficcionalização, o jogo com a diferença foge ao seu controle, podendo apenas ser encenado. O significado de tudo isso é que a ficcionalização estará sempre sujeita a mudanças, em decorrência da sua inabilidade para controlar o alvo a que visava. 155 Os desdobramentos dessa tensa relação entre jogo livre e jogo instrumental se especificam ainda mais na medida em que Iser subclassifica os jogos em quatro tipos: ágon, jogo de conflitos; alea, jogo baseado na sorte e no imprevisível; mimicry, jogo de imitação; e, por fim, ilinx, fundamentalmente um jogo de carnavalização que resulta numa subversão contínua. Praticamente, fica um pouco difícil de se afirmar com precisão absoluta se todos esses tipos são encontrados em Jasmine e Alias Grace. À primeira vista e numa análise a grosso modo, parece-nos que sim. Uma vez que o agon configura uma disputa, uma luta, uma divisão, em que “realidades referenciais são dispostas antagonicamente, e posições intertextuais, organizadas antiteticamente” (ISER, 1999, p. 111), de modo que configura também tanto a consolidação quanto o solapamento do que se consolidou, achamos que se trata de um subtipo de jogo que está fartamente presente nos dois romances: tanto em Jasmine quanto em Alias Grace, existe esse jogo de inclusão e exclusão de conceitos e valores de várias naturezas. Com relação específica à condição de inferioridade do sujeito pós-colonial feminino, tanto são expostas as agruras de tal situação, na terra hostil do colonizador, quanto é exposta a lenta (em Alias Grace) e a meteórica (em Jasmine) condição de superação desse dado de inferioridade. Ademais, todas as citações poéticas em Alias Grace visam a expor um paradigma de comportamento feminino que se revela antitético se comparado aos comportamentos atribuídos à suposta criminosa e imigrante irlandesa Grace Marks. Em Jasmine, podemos ainda detectar o agon em passagens tais como as em que a narradora principal, Jane Ripplemeyer, faz menções intertextuais a Jane Eyre, de Charlotte Brontë, a Alice in Wonderland, de Lewis Carroll, e a Great Expectations, de Charles Dickens, criando situações conflituosas, na medida em que são referências negativas, uma vez que a narradora diz se tratarem de livros cuja leitura lhe causara náusea e desprazer, numa clara rejeição do inglês e da literatura inglesa canônica como ícones de dominação. 156 Quanto à alea, podemos afirmar que a sua função é dotar o texto de um certo grau de imprevisibilidade, tornando imprescindível se contar com o desenvolvimento dos elementos de surpresa e aventura, fundamentais para a manutenção do dinamismo desse jogo. Desse modo, a alea torna aberta a rede semântica formada tanto pelos campos referenciais do texto, quanto pela recorrência de outros textos, interferindo, incessantemente, nas posições organizadas de forma antagônica para produzir alterações inesperadas. Na verdade, pode-se afirmar, sem medo de exagero, que a alea, de fato, explode o texto, ocasionando uma estruturação imprevisível da sua semântica. De certo modo, então, podemos afirmar que em graus diferentes a alea também está presente nas duas obras: dado o ritmo vertiginoso da narração e da sucessão dos eventos das “vidas” de Jasmine, principalmente os de ordem trágica, a alea é presença confirmada nos jogos ficcionais do romance de Bharati Mukherjee; já relativamente a Alias Grace, é também possível afirmar que os elementos imprevisíveis também sobejam nessa narrativa, embora em ritmo bem menos frenético do que o verificado em Jasmine. Um bom exemplo seria a repentina inclusão do seguinte elemento: o Dr. Jordan (psiquiatra ficcional) de Grace Marks concorda em submetê-la a uma sessão de hipnose, cedendo à onda de hipnotismo, neuro-hipnotismo e mesmerismo que se popularizara na Europa, convencido por outro “pesquisador” visitante (Dr. Jerome DuPont, na verdade um charlatão). O resultado do experimento passa a refletir também a onda de espiritualismo que por volta de 1840 varreu os Estados Unidos, com os “rappings” 73 das irmãs Fox: o que deveria simplesmente ter a configuração de uma sessão de hipnose provoca ruídos e batidas estranhas na sala onde se encontram Grace Marks, Dr. Jordan e algumas outras personagens. Narra-se, então, que o espírito de Mary Whitney se “incorpora” em Grace e revela que tinha feito o mesmo no dia dos assassinatos, de forma que Grace seria inocente, pois não teria cometido os crimes em pleno domínio da sua consciência. Tudo isso é inesperado e adiciona 73 Batidas em madeira, supostamente provocadas pela alma de um morto, com uma codificação previamente estabelecida, que fizesse corresponder as quantidades de batidas produzidas aos números e às letras do alfabeto, para que o diálogo entre os vivos e os mortos se estabelecesse. 157 mais complicação à alteridade e à condição de Grace Marks, de uma forma mais contundente, na medida em que o suposto espírito, para se fazer acreditado, revela, em voz baixa, intimidades da vida do antes tão cético Dr. Jordan, que não eram do conhecimento de pessoa nenhuma, por serem muitíssimo pessoais. Desviando, agora, o foco da nossa atenção para a mimicry, temos a seguinte definição postulada por Iser: Enquanto o agon se desenvolve mediante a superação da diferença, e a alea, mediante o esforço de torná-la absoluta; a mimicry visa a fazê-la desaparecer (um exemplo de mimicry residiria no realismo socialista). Mas como o que se busca eliminar é exatamente o que constitui a mimicry, ou seja, a diferença entre o texto e o que se quer imitar, o próprio processo de eliminação se torna um jogo, fundamentalmente um jogo em que se imita ampliando (transfiguration), mas também em que se produz ilusão. A mimicry corresponde, portanto, ao oposto da alea: esta não mostra o texto como realidade fingida nem como imagem especular de algo dado, mas como um cenário para o imprevisível, algo que a mimicry tende a abolir, e com isso, o jogo livre fica suspenso (ISER, 1999, p.112). Quanto à mimicry, ousamos dizer que talvez não seja detectável nos dois romances em questão, ou, se o for, isso acontece num grau tão mínimo que nos escapa à percepção no momento, em face do vigor da presença dos outros sutbtipos de jogos. O quarto subtipo se denomina ilinx, possuidor de um elemento “vertiginoso” que consiste na carnavalização de todas as posições reunidas no texto. Isso se dá desse modo porque existe uma clara tendência anárquica no ilinx. Tal anarquia não apenas libera o que foi reprimido, mas também tem a capacidade de reintegrar o que fora excluído. Em vista disso, o ilinx permite ao ausente jogar com o presente e, em tudo quanto está presente, instala uma diferença que faz qualquer elemento que tenha sofrido exclusão reagir contra aquilo que o excluiu. O que quer que esteja presente aparece como se algo o espelhasse de trás. Podemos, dessa forma, considerar o ilinx como um jogo no qual o jogo livre atinge seu mais alto grau de expansão e de realização. Não obstante, em todos os seus esforços para ir além do que existe, o jogo livre continua ligado ao que ele pretende ultrapassar, em virtude de jamais conseguir 158 extinguir totalmente as tendências subjacentes e as implicações do jogo instrumental. “Afinal, até mesmo a subversão tem um alvo e, nesse sentido, é instrumental, embora ative o elemento livre muito mais intensamente para esse fim específico” (ISER, 1999, p. 112). Quanto à presença do ilinx, em Jasmine e Alias Grace, acho que ele se torna mensurável através – principalmente – das identidades multifacetadas no primeiro romance, assim como nas cambiantes formas de representação das alteridades de Grace Marks, no segundo. Na verdade, as duas autoras verdadeiramente brincam com os conceitos de identidade fixa e alteridade mutante – e, nesse sentido, carnavalizam os temas “identidade fixa” e “alteridade cambiante”. Importante se torna destacar que Bharati Mukherjee leva isso a um grau extremo, enquanto que Margaret Atwood é um pouco mais comedida na dose de desconstrução, mas nem por isso se poderia dizer que o ilinx não está contemplado em Alias Grace. Uma outra evidência da presença do ilinx nos dois romances se consubstancia no fato de que por mais que a alteridade do colonizado esteja multifacetada e carnavalizada, ela não consegue se construir de uma forma totalmente independente da alteridade do dominador. Assim, foi possível constatar que, independentemente de quaisquer motivações ou caracterizações, os jogos textuais de Iser são perceptíveis nessas duas obras, lídimas representantes da escrita pós-moderna contemporânea, porque, ainda segundo o que Iser nos ensina: No texto literário, esses diferentes jogos raramente ocorrem de forma isolada. Geralmente se mesclam, e as respectivas combinações podem ser entendidas como um jogo textual. Assim, no que concerne à literatura, agon, alea, mimicry e ilinx, por si mesmos, não são jogos, mas elementos constitutivos do jogo do texto (ISER, 1999, p. 112). Embora possa parecer que chegar a uma “conclusão” sobre a qualidade e a natureza dos jogos textuais em Jasmine e Alias Grace de alguma forma soe contraditório, mercê da condição pós-moderna dos romances, que flagrantemente não “concluem” coisas no sentido 159 de fechar questões como o New Criticism entendia, por uma questão de ordem prática tem-se que suspender a discussão. Entretanto, toda vez que se discute acerca da natureza do que sejam o fictício e o imaginário, de um modo geral, e, na seara da literatura, de modo particular, certamente essas elucubrações e especulações que exercitaram nosso pensamento nos deixam mais “íntimos” do fictício e do imaginário. Mas, por outro lado, como sabemos que a natureza desses conceitos ligados à ficção literária não é totalmente apreensível cognitivamente, como nos ensinam Castoriadis e Iser, quanto mais aumenta o nosso grau de “intimidade” com eles, maior se torna a quantidade de perguntas e especulações sobre os mesmos. Na verdade, ao se discutir, teorizar e especular sobre esses conceitos, nos vemos de fato enredados nas malhas de um jogo (ou de muitos jogos) em que se entrelaçam os pensamentos e conceitos dos estudiosos com as estruturas textuais dos romances estudados. Naturalmente, como os estudiosos que enfocamos não são todos contemporâneos entre si (por exemplo, Schlegel teve sua fase mais produtiva na primeira metade do século XIX; e Henry James também foi testemunha das mudanças e do cientificismo do século XIX, porém mais familiarizado com a sua segunda metade e o começo do século XX, uma vez que morreu em 1916), temos um apanhado bem diversificado de opiniões teóricas, ou seja, de dois escritores e teóricos que viveram o século no qual o romance, enquanto gênero literário novo, passou por grande amadurecimento, e de dois outros (Castoriadis e Iser) que vivenciaram as vertiginosas modificações do século XX. Dessa forma, efetivar tentativas de interpretação e de análise dos tipos de ficção contidos em Jasmine e Alias Grace, à luz das contribuições desses pensadores, mais do que enriquecer a discussão acerca do fictício e do imaginário, também reitera uma das mais marcantes características dos dois romances estudados – o seu potencial desconstrutivo. 160 Se Schlegel e Henry James esposam algumas idéias e conceitos que são fruto das instituições sociais e conceitos científicos, filosóficos e estéticos do século XIX, e muitas vezes parecem um tanto quanto “fora de lugar” ou anacrônicos, isso não significa que as suas idéias sejam totalmente superadas e nada se possa aproveitar delas na análise e discussão de obras literárias contemporâneas. Bem o provam as posições mediadoras de Wolfgang Iser, que mantém a sua linha crítica especulando sobre a estética da obra literária, mas não desconsidera as contribuições do passado, nem tampouco as correntes de pensamento atuais. Em vista dessa exposição, nada nos parece mais adequado do que a dinâmica dos jogos textuais que Iser desenvolve em suas teorias para explicar essa interação entre obras literárias e opiniões críticas de autores que vivenciaram experiências estéticas diferentes. Mais uma vez enfatizando o romance como gênero literário bastante novo, não se pode supor que um romancista da primeira hora escreva do mesmo modo como o romancista da contemporaneidade. Provavelmente, daí se originam também as opiniões dos diversos críticos sobre os “bons” e “maus” escritores, assim como sobre “boa” e “má” literatura. Mais precisamente abordando o romance pós-moderno, constatamos que ele reúne características tão peculiares que podem mesmo afastá-lo demais das concepções estéticas mais tradicionais. É o caso dos romances que têm uma relação direta ou indireta com os Estudos Culturais, pois alguns deles podem simplesmente ser vistos como obras panfletárias de ideologias que supostamente nada têm a ver com a obra literária enquanto obra de arte. Não obstante, conforme já afirmáramos anteriormente, existem muitos exemplos de produções literárias contemporâneas que nada ficam a dever às obras tidas como “canônicas”. Certamente, este é caso dos dois romances cuja “ficcionalidade” ora avaliamos à luz das idéias de Iser, Castoriadis, James e Schlegel. Desse modo, não somente as peculiaridades das narrativas não lineares de Jasmine e Alias Grace, mas também as características do pós-modernismo em si e das suas temáticas 161 inquietantes compõem a matéria-prima constituinte dos diversos jogos que figuram nos romances e que os dotam de nuances ficcionais tão especiais e esteticamente diferentes de quase tudo que já foi escrito antes. Para finalizar esta discussão, então, não voltaremos a tentar exemplificar os jogos textuais de Iser nos dois romances, nem tampouco retornaremos ao cotejamento de mais alguns aspectos dos pensamentos de James, Schlegel e Castoriadis com outras passagens dos romances. Optaremos simplesmente por expor alguns trechos das passagens finais de Jasmine e Alias Grace, com todo o seu potencial ficcional de desconstrução de sentidos fechados e sua capacidade de incluir, abarcar e “costurar” novos sentidos aos que já existiam, num movimento dinâmico (de jogo) que permite ao leitor preencher as lacunas semeadas pelo caminho. No último capítulo de Alias Grace, após enfrentar uma longa e penosa saga, Grace Marks finalmente se livra da prisão ao obter o perdão para o seu crime (após vinte e nove anos entre a cadeia e o manicômio penitenciário). Grace é ajudada pelos vários amigos que fez graças ao bom comportamento e acaba aceitando a oferta de casamento que Walsh lhe faz (Walsh é um homem que testemunhara contra ela no passado e que vê na oferta de casamento a reparação para uma possível injustiça que tenha cometido). Os dois casam e viram pequenos fazendeiros nos Estados Unidos (onde ninguém os conhece e assim Grace não será lembrada como ex-presidiária). Enfim, Grace Marks parece feliz com a nova vida e descobre que está grávida. Porém, a questão da alteridade multifacetada continua a pairar sobre a sua subjetividade. Na seguinte passagem (dois últimos parágrafos do livro), Grace Marks está prestes a concluir a colcha de retalhos (com a história da sua vida) que de longa data vinha costurando e bordando. Ela então descreve o padrão de bordado chamado “árvore do paraíso”, e a questão problemática da alteridade se reitera uma vez que a protagonista alegará que estará plasmando nesse bordado três triângulos representativos dela, de Mary Whitney e de Nancy 162 Montgomery, para que elas “fiquem sempre juntas”. A este episódio, retornaremos no último capítulo. Da mesma forma, em Jasmine, a questão da alteridade, associada à continuação dos deslocamentos diaspóricos, deixará o romance aberto. Na verdade, a protagonista, então na pele de Jane Ripplemeyer, está prestes a abandonar seu segundo marido, Budd (que ficara numa cadeira-de-rodas em função de um tiro, fato que Jane atribuíra à possível má sorte que ela acredita trazer a seus homens – o que parece sugerir uma influência de Shiva74) e seguir com Taylor (seu ex-patrão em Nova Iorque, por quem ela se apaixonara na época) e sua filha (de quem ela fora babá): Então não há nada que eu possa fazer. O tempo dirá se eu sou um tornado, que reduz a escombros tudo o que encontra, aparecendo não-se-sabe-de-onde e evanescendo numa nuvem. Eu estou fora da casa, no caminho esburacado e ferido pelas rodas dos carros, intrepidamente seguindo na frente de Taylor, ávida de desejos e repleta de esperanças. 75 É altamente emblemático notar também como a narradora retoma o episódio do astrólogo e da predição da sua viuvez, descrita no primeiro capítulo, para desconstuir a noção de predestinação, sublinhando, em contrapartida, a idéia de aquisição de poder (pelo menos para “escrever nas estrelas” o seu destino), ao mesmo tempo em que parece retornar para a sua identidade de Jase (provavelmente a época em que fora mais feliz). Em outras palavras, a protagonista fecha o romance deixando indeterminadas as suas próximas existências e uma possível identidade menos cambiante, porém não sem antes sugerir a condição de empoderamento retratada no seu desafio ao astrólogo, de quem ela tem uma “visão” em seu devaneio identitário. A este episódio também retornaremos com mais vagar no último capítulo. 74 Tal influência de Shiva sugeriria, de fato, um intercâmbio de alteridade da personagem com a do deus hindu, através de causar acontecimentos que revelem o comportamento ou função da divindade. No livro, existe essa sugestão velada, não só com relação a Jane e a Shiva, mas também com relação a outros personagens e outros deuses. 75 No original em inglês: “Then there is nothing I can do. Time will tell if I am a tornado, rubble-maker, arising from nowhere and disappearing into a cloud. I am out the door and in the potholed and rutted driveway, scrambling ahead of Taylor, greedily, with wants and reckless from hope” (MUKHERJEE, 1991, p. 214). 163 CAPÍTULO 4 A LITERATURA COLONIAL E PÓS-COLONIAL EM LÍNGUA INGLESA COMO INSTÂNCIAS DE ENUNCIAÇÃO E RESISTÊNCIA DO SUBALTERNO: DE CALIBAN A JASMINE E GRACE MARKS Com referência à premissa de que a representação literária da aquisição de poder por parte do colonizado está direta ou indiretamente relacionada ao aprendizado da língua do colonizador, optamos por proceder a breves considerações sobre algumas obras emblemáticas das literaturas em língua inglesa em que essa questão de alguma forma se destaca, para a melhor compreensão de como esse processo se dá em Jasmine e Alias Grace. Desse modo, serão enfocadas a aquisição de voz e agenciamento por parte do colonizado; a capacidade de expressão/elocução do subalterno na linguagem do dominador, para dizer impropérios (como no caso emblemático do Caliban em A Tempestade), utilizando a língua adquirida em processos de resistência; e a ruptura do silêncio imposto pelas forças hegemônicas, que não raro equivale ao processo de negação da subjetividade do subalterno no âmbito das relações coloniais. Assim, optamos por pontilhar esse caminho começando por A Tempestade, e, depois, Robinson Crusoé, Foe, Heart of Darkness, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr Hyde, “Lispeth”, Jasmine e Alias Grace. O foco da abordagem privilegiará a dicotomia entre enunciação e silêncio, com ênfase na problemática da voz da mulher. Nessa medida, a seguinte citação de Trinh T. Minh-ha acerca do silêncio e da enunciação parece uma credencial perfeita para abrir a série de considerações que faremos sobre a questão: 164 Dentro do contexto do discurso feminino, o silêncio tem muitas faces. Como o uso do véu, o silêncio somente será subversivo quando liberto do contexto masculino de ausência, falta e medo como territórios femininos. Por um lado, corremos o risco de inscrever a feminilidade como ausência, falta e vazio, ao negar a importância do ato de enunciação. Por outro lado, entendemos a necessidade de situar a mulher no espaço da negatividade e das ações em meio-tom, por exemplo, em nossas tentativas de minar os sistemas de valores patriarcais. O silêncio é muito comumente colocado em contraste com o discurso: o silêncio como um desejo de nada dizer, ou como um desejo de desdizer, e como uma linguagem própria tem raramente sido explorado. 76 Como se pode perceber, utilizando uma postura bastante desconstrucionista, Trinh T. Minh-ha chama a atenção para nuances do silêncio anteriormente impensadas: o silêncio imposto, mesmo quando usado pelo opressor como instrumento da negação da subjetividade, acaba se tornando um arauto retumbante da própria ausência da voz ou referência do subalterno, enquanto mulher ou não. Desse modo, adotaremos, de início, essa postura defendida por Minh-ha para a avaliação de como se representam dentro das literaturas em língua inglesa os processos de enunciação dos sujeitos colonizados e o quanto tais processos contribuem para o seu empoderamento. Muito embora já se tenha afirmado que A Tempestade (encenada pela primeira vez provavelmente em 1611 e publicada no Primeiro Fólio em 1623, de acordo com OUSBY, 1996, p.929) tenha sido escrita alguns anos após o franco início da Inglaterra nas aventuras da colonização, assim como que a publicação de Robinson Crusoé (1719) ocorreu quando a Inglaterra já acumulava pelo menos um século de experiência como metrópole colonizadora, optamos aqui por não seguir uma ordem cronológica linear na abordagem de cada uma das obras destacadas neste capítulo. 76 No original em inglês: “Within the context of women’s speech, silence has many faces. Like the veiling of women, silence can only be subversive when it frees itself from the male-defined context of absence, lack, and fear as feminine territories. On the one hand, we face the danger of inscribing femininity as absence, as lack, and as blank in rejecting the importance of the act of enunciation. On the other hand, we understand the necessity of placing women on the side of negativity and of working in undertones, for example, in our attempts at undermining patriarchal systems of values. Silence is so commonly set in opposition with speech. Silence as a will not to say or a will to unsay and as a language of its own has barely been explored” (MINH-HA, 1997, p. 416). 165 Dessa forma, considerados os primeiros movimentos de emancipação nas colônias inglesas já datados de fins do século XIX (ABDALA, 1998, p.1502), é possível detectar a presença e o aparecimento das primeiras rachaduras do império colonial europeu em obras literárias como Heart of Darkness de Joseph Conrad (escrito em 1899 e publicado pela primeira vez em 1902) e The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, (publicado em 1886) de Robert Louis Stevenson, se adotarmos formas de releituras desconstrutivas, nos moldes esposados pelo filósofo francês Jacques Derrida, conforme já referidos nos Capítulos 1 e 2, e a exemplo do que se depreende da citação de Minh-ha com relação à dicotomia da enunciação e do silêncio. Para se subsidiar a presente argumentação, brevemente rememoramos o que Cuddon diz (1992, p. 222), com relação à Desconstrução, desvinculando-a da idéia de “destruição”, conforme já citado em capítulo anterior, e associando o termo a “análise”. Assim, a adoção de uma postura de análise constante abre campo para o desdobramento e conseqüente atrelamento a outros sentidos de argumentação, na medida em que “desfazer” se refere a sentidos únicos, fechados e monolíticos, o que passa a privilegiar o sentido da análise constante, com o conseqüente adiamento de uma forma de significação única e fechada. Assim, seguindo uma linha desconstrucionista de argumentação, podemos considerar que a “eloqüência” dos silêncios e das brechas da novela de Stevenson retumba o drama de Jekyll/Hyde enquanto metáfora de horror, de decadência e de ambigüidade de caráter que sai da esfera do drama individual e se amplia, para simbolizar a decadência não só do pacato e ordeiro cidadão londrino vitoriano, Dr. Jekyll, mas também a decadência da Inglaterra, na sua condição de nação colonizadora e poderosa, que começa a perder o controle sobre as suas colônias, da mesma forma que Jekyll começa a perder o controle sobre o trânsito entre as suas antagônicas personalidades de Jekyll (o seu lado bom) e de Hyde (o seu lado maléfico). Em suma, se levarmos em consideração no discurso do colonialismo a idealização mítica e recorrente do homem branco, colonizador, tido como salvador e civilizador, aquele 166 que assumiu para si toda a carga de incivilidade do colonizado, assim como a responsabilidade pela transformação da sua indolência em força produtiva, através da sua cristianização e adesão aos padrões culturais ditos civilizados, a corrupção de um membro respeitável e exemplar da sociedade londrina vitoriana conservadora dá um golpe de misericórdia nessa visão mítica. Na verdade, uma das mais contundentes exemplificações dessa atribuição do homem europeu já era defendida em período anterior por Rudyard Kipling, como se observa no trecho seguinte do seu poema “The White Man’s Burden” (“O Fardo do Homem Branco”), que dispensa maiores considerações, tal a clareza das construções ideológicas que evidencia: Take up the White Man’s burden – Send forth the best ye breed – Go, bind your sons to exile To serve your captive’s need; To wait, in her heavy hearness, On fluttered folk and wild – Your new-caught sullen peoples, Half devil and half child. Take up the White Man’s burden – In patience to abide, To veil the threat of terror And check the show of pride; By open speech and simple, A hundred times made plain, to seek another’s profit And work another’s again. Rudyard Kipling (KIPLING, 1962, p. 136-137) Entretanto, a constatação na novela de Stevenson de que o cidadão exemplar Jekyll não combina com a descrição missionária, messiânica e impoluta do homem branco citado no poema de Kipling se associa ao fato de que o aparecimento do romance inglês propriamente dito tem estreita relação com questões coloniais. Muito embora se possa argumentar que a produção literária inglesa do século XIX tem como tema principal os problemas da sociedade burguesa inglesa dentro da metrópole, o que se pode facilmente verificar nas obras de 167 Fielding, Richardson, Smollet e Sterne, por exemplo, é absolutamente inegável que aquele que é considerado o primeiro romance da literatura inglesa - Robinson Crusoe, de Daniel Defoe - já estivesse totalmente imbuído das características da colonização, assim como da subjugação do Outro, do nativo. Conseqüentemente, torna-se sintomático que a fórmula estrutural da narrativa e da exploração das temáticas do romance de Defoe acabará por se tornar o modelo para o romance inglês do século XIX. É como se o fato de o gênero “romance” ter-se originado de uma obra literária que explorava o ambiente do “Outro, de uma ilha, de uma região exótica e tropical”, tivesse definitivamente marcado as características do “romance” enquanto novíssimo gênero literário. Voltando momentaneamente o foco da atenção para Caliban, poderíamos ir muito mais além se levássemos em consideração as tradicionais caracterizações desse personagem shakespeariano bastante incomum, uma vez que poderíamos identificar nele a metáfora para todos os seres colonizados e colonizáveis de áreas e ilhas tropicais e exóticas, bem distantes do centro de comando europeu, como é o nosso propósito principal aqui. Acresça-se a isso o fato de que a Caliban, enquanto representante do outro, do subjugado, do inferior, é negada até mesmo a condição de humanidade, uma vez que ele é considerado meio-homem, meiopeixe, ou meio-monstro, conforme ainda exploraremos mais detidamente. Todavia, mais uma vez voltando os nossos olhos para a novela de Stevenson, mesmo na tentativa de detectar indícios dos efeitos da colonização européia na obra literária, é possível afirmar, por mais paradoxal que pareça, que não há nela referências diretas à questão do imperialismo inglês ou europeu, de um modo geral. Além disso, um outro grande silêncio que permeia a novela é a parca existência de personagens femininas – há as criadas da casa do Dr. Jekyll, a quem não é dado o direito de expressão marcante. Ou seja, a novela de Stevenson é uma obra literária eminentemente masculina. Não obstante, tomando como ponto de partida esse grande silêncio sobre a questão das mulheres e da colonização é que se abre o campo 168 para a efetivação de uma leitura desconstrutiva em que podemos vislumbrar exatamente o esboço de uma reflexão acerca do típico cidadão londrino exemplar, característico do período vitoriano. Enfim, trata-se do modelo de cavalheiro, homem civilizado e educado, que daria base à nação inglesa para ser exemplo de austeridade, civilização, e superioridade moral, social e religiosa para os subalternos súditos de Sua Majestade nos mais recônditos rincões do Império Britânico. Porém, o que se percebe é que Dr. Jekyll, publicado em 1886, traz à baila a história de um respeitável médico londrino que resolve se engajar em experiências científicas a fim de pesquisar se é possível separar-se a natureza boa do homem da sua tendência ao mal e à monstruosidade de caráter. Ele desenvolve, então, uma droga que o faz transitar entre a personalidade de Jekyll (seu suposto lado bom) e de Hyde (seu lado mais torpe e insidioso). Ele consegue ter sucesso por algum tempo, controlando o processo até o ponto em que seu “lado Hyde” passa a dominá-lo. Fica, então, cada vez mais difícil retornar para o seu “lado Jekyll”. Suas reservas da droga transformadora escasseiam, de modo que o suicídio é a única forma que ele encontra para se livrar do mal, das mortes, da violência e do horror generalizado, que são associados às manifestações de Mr. Hyde. Por todo o desenrolar da trama, são muitas e recorrentes as doses de mistério usadas por Stevenson, principalmente quando as referências a Hyde são feitas (e antes do leitor tomar conhecimento de que Hyde é um alter-ego de Jekyll). As referências a Hyde sempre descambam para a seara de uma interpretação maléfica irrecorrível, como a seguinte, que chega a aproximá-lo das caracterizações subalternizantes comuns do Outro enquanto colonizado, pela via da demonização, ou enquanto um Outro de mesma etnia, porém possuidor de marcas de diferenças inferiorizantes (anão, “anormal”) em relação ao tipo padrão de homem londrino (de estatura comum, “normal”): 169 Mr Hyde era pálido e com aparência de anão; ele aparenta possuir deformidade sem apresentar nenhum sinal evidente disso; tinha um sorriso incômodo. Ele tinha sido concebido pelo advogado como uma mistura criminosa de timidez e seriedade (...) Deus me perdoe, mas o tal homem não parece humano! Era algo troglodítico. Ou poderia esta ser a história de Dr. Fell? (...) Oh, meu pobre Harry Jekyll, se acaso eu já vira a marca de Satã em algum rosto, foi no rosto do seu novo amigo. 77 Daí em diante, o drama de Jekyll passa a dominá-lo, irremediavelmente, até o seu suicídio – a única forma que vê para se livrar do seu alter-ego (Hyde), que já tinha até mesmo cometido um homicídio. Todavia, a aura de mistérios envolvendo totalmente a relação de Jekyll e Hyde e o predomínio de personagens masculinos, além da quase absoluta ausência de mulheres (o outro grande silêncio da novela), permite brechas na narrativa que o leitor fica à vontade para preencher. Tais lacunas têm captado a atenção de críticos como Vladimir Nabokov, por exemplo, que chegam a aventar hipóteses bastante audazes sobre a natureza da relação Jekyll/Hyde, como se expõe a seguir: Já foi sugerido que Stevenson, trabalhando sob extremas restrições vitorianas, e não querendo trazer cores para a história estranhas à atmosfera monástica por ele criada, conscientemente evitou a colocação de personagens de natureza feminina nos supostos prazeres secretos com que Jekyll se deliciava.78 Mais além, Nabokov, impressionado com as reticências e silêncios da novela, especula ainda sobre outras intenções que talvez nunca tenham acorrido a Stevenson: Primeiramente, a reticência vitoriana permite ao leitor especular sobre conclusões e idéias que talvez nunca tenham passado pela cabeça de Stevenson. Por exemplo, Hyde é chamado de “protegido” de Jekyll e seu benfeitor, porém, mais intrigante 77 No original em inglês: “Mr. Hyde was pale and dwarfish; he gave an impression of deformity without any namable malformation, he had a displeasing smile, he had borne himself to the lawyer with a sort of murderous mixture of timidity and boldness, (...). God bless me, the man seems hardly human! Something troglodytic, shall we say? or can it be the old story of Dr. Fell? (...) O my poor old Harry Jekyll, if ever I read Satan’s signature upon a face, it is on that of your new friend” (STEVENSON, 1994, p. 12). 78 No original em ingês: “It has been suggested that Stevenson, working as he did under Victorian restrictions, and not wishing to bring colours into the story alien to its monkish pattern, consciously refrained from placing a painted feminine mask upon the secret pleasures in which Jekyll indulged” (NABOKOV, 1980, p. 194). 170 ainda se torna outro epíteto atribuído a Hyde, o de “favorito” de Jekyll. (...) O padrão eminentemente masculino predominante no romance pode sugerir, por um desvio de pensamento, de acordo com Gwynn, que as aventuras secretas de Jekyll poderiam ser práticas homossexuais, tão comuns, “por baixo do pano”, na Inglaterra Vitoriana.79 Seja como for, e dada a predominância de termos tais como “silêncio” e “horror” pelo romance afora, podemos ter como certo o desmantelamento da imagem do cidadão londrino modelar, representante da nação igualmente modelar e portadora de todas as qualidades morais que supostamente “faltam” aos povos incivilizados das colônias. Dessa forma, o drama, a falência, a hipocrisia e o descontrole de Jekyll assumem um “status” metafórico. Assim, a história de falência, em pequena escala, de Jekyll/ Hyde pode ser vista como metáfora para as situações de falência e dificuldade que a grande nação britânica colonizadora irá enfrentar dentro de algum tempo (ABDALA, 1998, p. 1502). Por outro lado, poderíamos, ainda, arriscar ilações ousadas que funcionariam em mão dupla: a primeira diria respeito ao fato de que, se o colonizado não mais pudesse contar com os dotes civilizados do colonizador, já que a corrupção de Jekyll o desvinculara das tais obrigações nobres, altruísticas e missionárias para com o “incivilizado”, conforme a ideologia do poema de Kipling (“White Man’s Burden”, citado anteriormente neste capítulo), esse mesmo colonizado teria a chance de construir a sua subjetividade sem a anulação quase que absoluta dos valores da sua cultura. Quanto à segunda ilação, poderíamos aventar que a corrupção de Jekyll pelo seu lado maléfico (Hyde) encerraria um paralelo metafórico com a relação tradicional do colonizador com o colonizado (que, tal como Hyde, é repositório de todo tipo de possíveis idealizações negativas). Tal análise hiperdescontrutivista ganha plausibilidade quando Dr. Jekyll é comparado com a obra de Conrad, Heart of Darkness. Ali, a corrupção, a loucura e a doença 79 No original em inglês: “First of all, this Victorian reticence prompts the modern reader to grope for conclusions that perhaps Stevenson never intended to be groped for. For instance, Hyde is called Jekyll’s protegé and his benefactor, but one may be puzzled by the implication of another epithet attached to Hyde, that of Henry Jekyll’s favorite (...). The all-male pattern that Gwynn has mentioned may suggest by a twist of thought that Jekyll’s secret adventures were homosexual practices so common in London behind the Victorian veil” (Ibid, p. 194). 171 do personagem Kurtz também têm sido vistas como resultantes do contato com os nativos e as tenebrosas florestas africanas, como discutiremos mais adiante, mas já evocando um exemplo contundente e explícito da representação literária dos horrores da colonização. Além da novela de Stevenson e do romance de Joseph Conrad, poderíamos ainda nos referir a uma infinidade de romances e escritos ficcionais de outros gêneros na literatura em língua inglesa do final do século XIX e do início do século XX, para se verificar como as questões coloniais e pós-coloniais, inclusive as referentes ao silêncio e à enunciação, fazem-se representadas nessas obras, conforme nos afirma Said (1973, p.1971). Contudo, para não nos determos demasiadamente nesta preparação para voltarmos a Caliban e começarmos a explorar Jasmine e Alias Grace, rememoraremos, brevemente alguns dados importantes do romance Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Nessa obra, a exposição dos efeitos altamente deletérios e desumanizantes das ações imperialistas no coração das selvas africanas do Congo, a falência e a corrupção de Kurtz, em decorrência do contato com as selvas e os nativos, são estabelecidas de uma forma muito mais contundente do que no romance de Stevenson em que a questão é tratada de modo mais sutil e vincula-se a uma questão metafórica. Marlow, o capitão de um navio ancorado no Rio Tâmisa, esperando pela mudança da maré, começa a narrar para a tripulação a sua experiência na África, quando então liderava uma expedição para o impenetrável e misterioso coração das selvas africanas, através do Rio Congo. É digno de nota, logo de início, que Marlow vai contar uma história cheia dos horrores dos efeitos do colonialismo selvagem e canibal tanto nos nativos africanos quanto nos europeus colonizadores, que são ironicamente chamados de “emissários da luz”, numa clara alusão à suposta superioridade do colonizador branco, em detrimento da suposta inferioridade dos povos africanos. Marlow era contratado de uma companhia de navegação para a difícil tarefa de resgatar Kurtz, um dos seus agentes, que se encontrava doente nos confins da selva. Durante a viagem, Marlow vai se impressionando com a selvageria dos 172 nativos, e com a escuridão da selva e dos corações humanos (nativos e colonizadores) que vai encontrando pelo caminho. À medida que a viagem prossegue, ele vai ouvindo mais algumas histórias meio-míticas sobre Kurtz, que se teria desumanizado totalmente e se tornado louco. Todo esse processo se desencadeia com a ganância de Kurtz com o comércio de marfim para a empresa de que era contratado, e do qual ele desviara grande parte, enriquecendo ilicitamente. Alguns nativos tinham Kurtz como um deus, dono de uma autoridade inquestionável, e tendo poder de vida e morte sobre todos. O destino de Kurtz é então a doença e a conseqüente morte, quando de volta no navio de Marlow. As experiências de Marlow permitem que ele vá tecendo comentários críticos sobre as situações de injustiça que vê, tais como na seguinte passagem, em que ele aborda um dos mecanismos básicos do colonialismo: “A conquista da terra, que mais comumente significa a espoliação daqueles que têm uma cor de pele diferente, ou narizes ligeiramente mais chatos do que os nossos, não é uma coisa prazerosa quando se olha para ela mais detidamente”.80 Nesse ponto, torna-se claro que Conrad está expondo mais a escuridão e as trevas do coração humano do que a escuridão das selvas propriamente dita. À medida que Marlow penetra na escuridão das selvas, mais ele passa a conhecer o coração e a natureza humana, pelo seu lado mais torpe e corrupto. Nessa medida, Kurtz, então, se torna a metáfora de “toda a Europa subjugando a África”, uma vez que, curiosamente, ele apresenta uma identidade totalmente híbrida e fragmentada: ele fora educado na Inglaterra; sua mãe era meio-inglesa; seu pai era meio-francês; infere-se que ele se tenha influenciado pelos hábitos e culturas dos nativos, de alguma forma; e ele trabalhava para uma empresa comercial belga, sendo reputado como o melhor comerciante de marfim da companhia. Mais curioso e irônico ainda é que ele começara a sua carreira como repórter para uma organização chamada “Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens”, mas acabou se tornando alguma 80 No original em inglês: “The conquest of the earth, which mostly means the taking it away from those who have a different complexion or slightly flatter noses than ourselves is not a pretty thing when you look into it too much” (CONRAD, 1994, p.10). 173 coisa que se classificaria num possível interespaço semântico entre “selvagem” e “monstro”, estabelecendo uma referência direta às questões ideológicas concernentes a poder e dominação, por trás das aparentes relações binárias opositivas e “meramente lingüísticas” entre os signos (de acordo com as concepções de Saussure, sobre a questão, já abordadas no Capítulo 1). Nos comentários de Marlow, depreendem-se idéias relativas ao capitalismo desumano e selvagem, assim como a da associação do canibalismo com as piores práticas capitalistas predatórias. As palavras que Kurtz pronuncia no momento da morte fazem-nos lembrar daquelas que também figuram em Dr. Jekyll – “horror, the horror. (...)”. Curiosamente, tem-se a mesma idéia que se defende em Dr. Jekyll: a de que a decadência, o horror e a calamidade individuais ampliam-se em metáforas abrangentes para o declínio do poderio das nações colonialistas européias, principalmente a Inglaterra. Tal hipótese se fortalece mais ainda nas últimas passagens de Heart of Darkness, quando Marlow interrompe as histórias sobre a selva africana, e o curso d'água em questão não é mais o Rio Congo, mas sim o Rio Tâmisa. Nesse momento, estão todos em silêncio, sob o efeito dos horrores da narrativa. Os arredores também não são mais as escuras selvas africanas, mas a também sombria Londres de muitos senhores “Hyde”, por assim dizer, como se depreende do último parágrafo do livro, que sela as considerações sobre as mazelas do colonialismo e, sub-repticiamente, acaba por incluir Londres nessas considerações. Agora, a capital do poderoso império britânico está totalmente envolta em escuridão: Marlow calou-se e sentou-se separado dos outros, indistinta e silenciosamente, assumindo a pose de um Buda. Ninguém se moveu por algum tempo. “Nós perdemos a primeira maré vazante”, disse o diretor, repentinamente. Eu levantei minha cabeça. Um pedaço de mar no horizonte estava ofuscado por um grupo de nuvens negras, e o tranqüilo curso d’água que leva aos mais recônditos locais da terra deslizava sobriamente sob um céu turvo – o rio, parecia, de fato, levar para o coração de trevas imensas. 81 81 No original em inglês” “Marlow ceased, and sat apart, indistinct and silent, in the pose of a meditating Buddha. Nobody moved for a time. ‘We have lost the first of the ebb’, said the Director, suddenly. I raised my 174 Retornando às já aludidas idéias de Fernández Retamar, para começarmos a desviar o foco da discussão para as caracterizações de Caliban, é oportuno destacar o seguinte fragmento do artigo do pensador cubano: Neste ensaio, eu falarei sobre Caliban, e freqüentemente através dele. Anos atrás, eu propus que o filho mítico de Sycorax fosse encarado como um símbolo cultural referente ao que José Marti chamava de “Nossa América” (...) Mas essa poderosa “metáfora conceitual” (para usar as palavras de Gayatri Chakravorty Spivak) – e eu insisto que essa metáfora conceitual é um poderoso instrumento de entendimento, e não um simples nome numa peça – se referirá, nessas páginas, não somente à América Latina ou ao Caribe, (...) mas a todos os miseráveis e subjugados da terra, de um modo geral, cuja existência atingiu uma dimensão absolutamente singular desde 1492. 82 Trilhando os caminhos críticos da Desconstrução e da reinterpretação de idéias monolíticas e cristalizadas, Roberto Fernández Retamar vai tecendo suas considerações, enquanto reavalia algumas das histórias dos vários processos de colonização de que se tem notícia. Ele afirma, por exemplo, que, se a data de 1492 for tomada como um marco, tendo em vista a “invasão da América” (em vez de “descoberta, como Fernández Retamar prefere renomear esse evento histórico), podemos ser mais audaciosos e recuar no tempo por um milênio (considerado o ano de 1992, que é a época de onde ele fala). Isto posto, nos encontraremos na Europa de 992. Fernández Retamar, então, diz que a Europa abrigava uma “civilização” bastante precária, mas que, a despeito disso, já estava a praticar a mesma atitude “egiptocêntrica” de desdém que os antigos egípcios adotavam quando se referiam “aos infantis e impuros gregos” (FERNÁNDEZ, 1997, p.163). Da mesma forma, ele afirma que os head. The offing was barred by a black bank of clouds, and the tranquil waterway leading to the uttermost ends of the earth flowed somber under an overcast sky – seemed to lead into the heart of an immense darkness” (CONRAD, 1994, p. 111). 82 No original em inglês: “In this essay, I will speak about Caliban, and frequently through him. Years ago I proposed mythical Sycorax’s son as an image of the culture pertaining to what Jose Marti called “our America”, which has worldwide roots. But the powerful ‘concept-metaphor’ (to use Gayatri Chakravorty Spivak’s words) of Caliban, a concept-metaphor, I insist, an instrument for understanding, by no means just a name in a play) will refer in these pages not only to Latin America and the Caribbean but, as has so frequently been the case, to the wretched of the earth as a whole, whose existence has reached a unique dimension since 1492” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 163). 175 europeus não tinham a mínima condição de ser “refinados” como os árabes ou os bizantinos. Por essa época, possivelmente, nem mesmo os verdadeiramente refinados chineses e os maias sequer suspeitassem que os rudimentares europeus existissem. Bastante interessante e inovadora é a visão de Fernández Retamar, que chega a propor a implantação de um processo de humanização imediato (reconhecimento de subjetividade) das relações dos povos abastados e desenvolvidos com os povos miseráveis e subjugados, como única forma de se impedir um colapso inexorável entre tais nações, com prejuízos para todos. Enfim, Fernández Retamar propõe que finalmente se faça justiça a “Caliban”, para que ele não invada e destrua “os domínios de Próspero”, definitivamente. Unindo as concepções acerca de Caliban que Fernández Retamar desenvolve, podemos ligeiramente evocar mais uma vez uma outra obra literária inglesa que ecoa a situação do Caliban de Shakespeare. Trata-se do romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Nessa obra, a clara relação de dominação estabelecida entre Crusoé (o náufrago inglês) e “Sexta-Feira”, o nativo da ilha, era aceita como um processo normal, e o elemento europeu naturalmente encarado como superior a qualquer “nativo” ou povo colonizado. De certa forma, pode-se afirmar que Sexta-Feira é imediatamente submetido a um processo de “calibanização”, somente para lembrarmos a representação Shakesperiana do “monstro” da “ilha de Próspero”. Entretanto, não se quer afirmar aqui que Shakespeare tenha definitivamente determinado a condição anti-humana de Caliban como fórmula monolítica inexorável. Muito pelo contrário, exatamente a indeterminação do caráter e da alteridade de Caliban, quiçá intuitiva e sabiamente representados por Shakespeare, seja o fator que tem contribuído para se enxergar em Caliban não apenas o seu aspecto de “meio-monstro” ou “meio-demônio”, mas também o seu caráter de “metáfora conceitual”, para usar a expressão (de Spivak), para todos os povos e indivíduos deserdados e estropiados do nosso planeta, conforme defendido por Fernández Retamar e já mencionado anteriormente. 176 Em vista de todo o exposto, e enfatizando a questão da enunciação, cabe-nos, agora, pinçar alguns exemplos tirados das produções ficcionais inglesas para se verificar até que ponto tanto o deslumbramento da descoberta do inglês (BHABHA, 1997, p. 29), quanto o seu uso para minar as forças da dominação estão contemplados nesses escritos literários. Optamos por começar pelas idealizações de Caliban e como ele já representa uma primeira tentativa de resistência à dominação imposta através do uso da língua igualmente imposta. Desde a publicação de A Tempestade, Caliban acabou por se tornar uma das personagens mais comentadas, analisadas e reavaliadas em escritos literários ou reescrituras e reinterpretações do seu papel. Porém, antes de abordar algumas dessas situações, as seguintes palavras de Margaret Drabble figuram como perfeita credencial para efetivarmos essa incursão no universo dos Calibans que acabarão por se desdobrar neste processo: Caliban, em A Tempestade, de Shakespeare, é descrito no Fólio “nomes dos atores” como um escravo selvagem e deformado. O seu nome provavelmente pode se derivar tanto de “Caribe”, quanto de “canibal”. Filho da Feiticeira Sycorax e do dono original da ilha de Próspero, Caliban é um ser semi-humano, porém tem sido descrito e representado de forma positiva e atrativa em produções artísticas e literárias contemporâneas, fato que acabou sendo facilitado pelas inegáveis qualidades poéticas dos seus discursos na peça. 83 Como se pode perceber, apesar da aparente condição irremediavelmente subalterna e semi-humana que Shakespeare reservou para essa peculiar personagem, o dramaturgo elisabetano também o dotou de condições de expressão, mesmo que sob a pressão irresistível da magia de Próspero, de forma que um olhar pós-moderno e desconstrutor contemporâneo pode descobrir nuances que libertam Caliban do seu ergástulo de servidão e subalternidade, anteriormente irrevogáveis. Torna-se digno de nota, inclusive, que mesmo no século XIX, 83 No original em inglês: “Caliban, in Shakespeare’s The Tempest, is described in the Folio ‘names of actors’ as a savage and deformed slave’. His name probably derives either from ‘Carib’ or ‘Cannibal’. Son of the witch Sycorax and the original possessor of Prospero’s island, he is only semi-human, but has often been portrayed attractively in modern production: the poetic qualities of his speeches have facilitated this” (DRABBLE, 1985, p. 159). 177 Robert Browning já tenha atentado para essas características de Caliban e tenha escrito o seu poema “Caliban upon Setebos” ou “Natural Theology in the Island”, em 1864, inspirando-se na religiosidade do personagem para fazer alusão a alguns tópicos altamente prioritários então, conforme nos informa Ian Ousby: Browning pegou emprestado o Caliban de A Temspestade, de Shakespeare. A sua “teologia natural” – ou seja, a especulação primitiva acerca de Setebos, o deus de Caliban - , permite ao poeta olhar de uma forma oblíqua para as diversas ramificações do pensamento religioso do seu tempo, tais como o calvinismo austero, as visões críticas agudas e o acalorado debate de então sobre a questão do evolucionismo. 84 Somente para dar um exemplo da reduplicação do Caliban shakesperiano em um texto contemporâneo não teórico, seria, provavelmente, muito difícil achar um exemplo de reescritura literária de A Tempestade que tenha ousado ir tão longe quanto o romance Índigo, da escritora inglesa Marina Warner. Nesse romance, a autora consegue redesenhar os contornos da ilha de Próspero e inseri-la em um universo expandido que engloba tanto ilhas do Caribe, quanto a cidade de Londres, num enredo que atravessa 350 anos, indo do século XVII até o século XX. Muitas das personagens de Warner têm o mesmo nome que as personagens de Shakespeare, como Sycorax, Ariel e Miranda, muito embora uma correspondência direta entre os seus papéis não possa coincidir integralmente. O Caliban de Marina Warner, por exemplo, pode ser identificado com Dulé, filho adotivo de Sycorax, porém, também pode ser identificado com o ator que se casa com Miranda. Todavia, quando se desvia a atenção para a critica literária sobre A Tempestade, encontramos uma outra variedade de Calibans altamente negativa e geralmente associada às 84 No original em inglês:“Browning borrowed the character of Caliban from Shakespeare’s The Tempest. His ‘ natural theology’ – primitive speculation about the character of his god, Setebos – allows the poet to glance obliquely at several strands of religious thought: stern Calvinism, the higher criticism and the contemporary debate about evolution” (OUSBY, 1996, p. 145). 178 populações nativas das colônias, em que se exaltam os seus supostos piores vícios e defeitos, como nos diz L.J. Leininger: Assim, em A Tempestade, escrita mais ou menos cinqüenta anos depois da participação franca da Inglaterra no comércio de escravos, o nativo da ilha (Caliban) se torna a própria encarnação da concupiscência, da luxúria, da desobediência, e do mal inexorável, enquanto o seu escravizador é apresentado como uma figura divina. Isso causa uma enorme diferença na expectativa criada, ou seja, cria-se um determinado sentido se alguém enfocar as obrigações morais do Próspero, na condição de dono de escravos, para com o Caliban, na condição de seu escravo; assim como se cria outra perspectiva se o enfoque se centrar nas obrigações morais do Próspero, enquanto figura divinizada, para com o Caliban concupiscente e vicioso. 85 No rastro dessa gama de reinterpretações de Caliban também é digno de nota lembrar do que nos diz Reuben Brower, quando ele se refere ao fato de que a ilha de Próspero é um lugar de estados fluidos, transitórios e ambíguos, com o poder de afetar as formas de vida nela inseridas. Tal característica da ilha onde se desenrolam os eventos de A Tempestade determina uma ausência natural de barreira entre estados. Por essa razão, um relevante dado referente à alteridade é trazido à baila quando, na peça, Miranda vê Ferdinando pela primeira vez. Ela tem dificuldades para defini-lo de acordo com os limitados padrões de que dispõe. Assim, a sua primeira reação é dizer: “Uma coisa divina, pois coisa alguma tão nobre há na natureza que eu já tenho visto” (“A thing divine; for nothing natural I ever saw so noble” – I.2.420, em Bullen, 1965, p. 1141). Essa mesma situação de estranheza com relação ao Outro desdobra-se nas reações envolvendo Ferdinando, Trínculo e Caliban, este último sendo objeto de uma confusão que se constitui em contrapartida jocosa, se comparada às reações tidas pelas demais personagens 85 No original em inglês: “Thus, in The Tempest, written some fifty years after England’s open participation in the slave trade, the island’s native is made the embodiment of lust, disobedience, and irremediable evil, while his enslaver is presented as a God-like figure. It makes an enormous difference in the expectation raised, whether one speaks of the moral obligations of Prospero-the-slave-owner toward Caliban-his-slave, or speaks of the moral obligations of Prospero-the-God-figure toward Caliban-the-lustful-Vice-figure” (LEININGER, 1983, p. 61). 179 envolvidas na série de erros de interpretação e leitura do uns dos outros, quando simultaneamente defrontados pela primeira vez, conforme nos expõe Brower: Ferdinando não está certo se Miranda é uma deusa ou uma virgem, e Caliban pensa que Trínculo é um deus bravo e guerreiro. Ocorre uma subseqüente variação cômica na situação, na medida em que Trínculo tem dificuldades em definir Caliban como peixe, homem, monstro ou demônio. 86 Em vista do exposto até este ponto, se efetivarmos uma leitura desconstrutiva dessa peça shakespeariana, focalizando em primeiro plano a personagem Caliban, teremos uma das mais primitivas representações do colonizado, em que as idealizações deste que o colonizador produz atingem níveis de bizarrice estratosféricos. Caliban é tratado sistematicamente com humilhação e desrespeito. Primeiramente, Próspero se refere a ele como “escravo abominável”; depois, no decorrer da peça, aparecem os seguintes epítetos: “peixe estranho”, “quadrúpede da ilha”, “meio-diabo”, “esse pedaço de escuridão”, “escravo venenoso”. Além disso, as palavras “monstro” e “escravo” aparecem trinta e sete vezes na peça para fazer referência a Caliban. Mas em meio a essa profusão de referências, nota-se que Shakespeare magistralmente empresta a Caliban palavras de revolta contra Próspero, o seu dominador, o que já demonstra uma tímida, mas consistente manifestação de revolta contra a tirania colonial. Na verdade, Caliban incorpora a imagem radicalizada do Outro do homem europeu, filho de um demônio e de Sycorax, uma bruxa da ilha, incapaz de falar antes da chegada de Próspero. Miranda, a filha de Próspero, é quem ensina Caliban a falar inglês. Assim, depois de aprender a língua do colonizador, Caliban lentamente se engaja em um processo de empoderamento, aquisição de agenciamento e voz, assim como de conscientização de sua 86 No original em inglês: “Ferdinand can not be sure whether she is a goddess or a maid, and Caliban takes Trinculo for a “brave god”. There is a further comic variation on this theme in Trinculo’s difficulty in deciding whether to classify Caliban as fish or man, monster or devil” (BROWER, 1967, p. 42). 180 situação política, como se pode perceber em suas falas: “Você me ensinou a linguagem, e a minha grande vantagem com isso é que eu aprendi a xingar” 87 e “Esta ilha é minha, herdada da minha mãe Sycorax, mas você a roubou de mim” 88 . Além das estratégias discursivas, Caliban também demonstra outras formas de resistência e rebelião contra a dominação quando, por exemplo, ele não obedece a Próspero, recusando a vir quando este o chama, ou simplesmente quando ignora as ofensas e xingamentos de Próspero, dando continuidade ao que está falando simultaneamente ao discurso desairoso do seu “mestre”. Sem dúvida, Caliban é um ícone de resistência singular e muito à frente da natureza pacata e submissa de Sexta-feira, o segundo ícone do colonizado representado na literatura inglesa vários anos depois no Robinson Crusoé, de Defoe. Não é de se admirar que Caliban tenha sido fonte de inspiração para tantas obras de arte posteriores e para pensadores e intelectuais. Numa interessantíssima reinterpretação da personagem Caliban, por exemplo, o crítico e pensador cubano Roberto Fernández Retamar, conforme afirmações, vê Caliban em todos os miseráveis da terra, que estão sobremaneira aumentando em número: (...) a pior situação é de fato aquela dos domínios de Caliban, aquela região situada no hemisfério sul. Enquanto eu escrevo este ensaio a população de Calibans constitui mais de dois-terços dos seres humanos vivos neste instante; antes do início do século XXI (o que equivale a dizer, amanhã), eles constituirão três-quartos do mundo, e, no meio do século XXI, constituirão nove-décimos da humanidade. 89 Fernández Retamar também diz que Caliban está indo para o Norte, o que também equivale a dizer que o Oriente agora está vindo para o Ocidente, exigindo a sua parte no quinhão das riquezas conquistadas pelo Ocidente através da exploração colonial do Oriente. 87 No original em inglês: “You taught me language; and my profit on’t/ Is, I know how to curse” (SHAKESPEARE, 1961, 1:2: 365-6, p. 33). 88 No original em inglês: “This island’s mine, by Sycorax my mother,/ Which thou tak’st from me” (Ibid, 1:2:334-35, p. 31). 89 No original em inglês: “(…) the worst situation is of course that of Caliban’s realm, that of those who are in the South. As I write this essay they constitute more than two-thirds of the human beings now living; by the beginning of the twenty-first century (which is to say, tomorrow), they will be three-fourths of the world, and by the middle of that century, nine-tenths” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 169). 181 A propósito de nos estarmos reportando a questões referentes ao Oriente e ao orientalismo, torna-se conveniente fazer uma referência inicial neste capítulo ao romance Jasmine. Trata-se de uma obra tipicamente pós-moderna que expõe de uma forma dramática e contundente a saga de um sujeito pós-colonial feminino em suas diásporas pelo mundo, desde a Índia até os Estados Unidos, onde, por fatores vários, o seu deslocamento geográfico não cessa. Em Jasmine, Mukherjee também expõe a fragmentação da identidade da protagonista que troca de nome explicitamente seis vezes (Jyoti, Jasmine, Kali, Jazzy, Jase e Jane Ripplemeyer), à medida que é exposta a situações penosas, assumindo não necessariamente os nomes, mas as alteridades dos deuses da Trindade Trimúrti Hindu, Brahma, Shiva e Vishnu, assim como as alteridades da famosa “cowgirl” norte-americana “Calamity Jane” e da personagem Jane Eyre, do romance homônimo de Charlotte Brontë. Nesse processo dinâmico de fragmentação da narrativa, - em que todos os eventos são expostos de forma confusa e nãolinear, formando um verdadeiro quebra-cabeças para o leitor - bem como de comunhão de alteridades e identidades fragmentadas, destaca-se a questão da tentativa do sujeito póscolonial feminino de se livrar das imposições patriarcais tanto da milenar Índia, quanto da condição de exótica que a sua etnia e cultura diferentes lhe conferem. Todavia, o que deve mesmo ser ressaltado aqui é que a protagonista se torna forte e vitoriosa no território da superpotência mundial (EUA), graças ao seu domínio crescente tanto da língua inglesa, quanto do urdu (no romance uma língua em que aparecem vários textos que são objeto de estudos universitários, mas que ninguém domina). Assim, ela consegue se empregar como tradutora e sobreviver algum tempo nessa função. Torna-se patente que a aquisição do inglês e o domínio de uma língua que os americanos não sabiam contribuem muitíssimo para o sucesso crescente de Jasmine, em sua trajetória de construção de subjetividade, escapando do estigma que o “exotismo” da sua condição quase a fixa em perpétua condição de diferença desvantajosa. 182 Um outro exemplo em que a figura do colonizado é de imediato fixada em perpétua condição do “Outro exótico” transparece e fica patente no romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, em que o náufrago inglês nomeia de “Sexta-Feira” o nativo que ele encontra na ilha, além de ensinar-lhe inglês e os primeiros rudimentos de uma educação “civilizada”. Porém, tudo o que Crusoé ensina a Sexta-Feira é na exata proporção para fixá-lo na sua condição inferior. Se fizermos uma leitura comparativa dos romances Robinson Crusoé, obra “canônica” de Daniel Defoe e Foe, do escritor sul-africano contemporâneo E.M. Coetzee, perceberemos neste último a clara intenção de reescrever o romance oitocentista de Defoe, destacando fatores de alto interesse para a crítica contemporânea e os Estudos Culturais. Neste ponto, torna-se elucidativo evocar as palavras de Thomas Bonnici a esse respeito: O romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, é, até onde se tem notícia, o primeiro romance da literatura inglesa. Sempre foi, erroneamente, considerado um livro infanto-juvenil. Entretanto, esse romance é, na verdade, a representação dos esforços de invasão e colonização de outras terras, levados a efeito pelos ingleses, que já contavam mais ou menos um século, por volta da sua publicação. Segundo afirma Kermode (1990, p. xxv-xliii), desde a publicação de A Tempestade (1611), que constitui a primeira representação literária em língua inglesa da dicotomia entre os europeus e os nativos, invasão e resistência, linguagem e submissão (com uma única interrupção na demolidora confissão de Jonathan Swift {1971, p. 268} no final de As Viagens de Gulliver, publicado em 1726), há, na produção literária inglesa, muitos traços sub-reptícios da ideologia colonial que se perpetuaram por toda a Era Vitoriana até a década de 1950. De fato, o tema do imperialismo infesta a literatura inglesa por mais de três séculos (SAID, 1993, p. 68). Por outro lado, o romance Foe, de Coetzee, publicado no antigo Protetorado Britânico da África do Sul, um país (à época da publicação) que ainda lutava para banir o regime do apartheid, se destaca por dar voz a uma personagem feminina que não existia no romance de Daniel Defoe (mas que existe em Foe, a reescritura de Robinson Crusoé), assim como também evidencia um processo de tentativa de recuperação da voz do colonizado Sexta-Feira, que, no romance original de Defoe, tinha a sua língua interditada. Da mesma forma que Rhys cria em “madwoman in the attic” uma voz que insere em Wide Sargasso Sea, também podemos afirmar que Coetzee se engaja definitivamente no rol dos escritores e escritoras que desenvolvem a sua teoria sobre a escrita e a literatura como meios efetivos da subjetificação dos povos nativos oprimidos (BONNICI, 1996, p. 171-172). Como se pode verificar, as palavras iniciais de Bonnici acerca do enredo de Robinson Crusoé e Foe imediatamente nos reportam a questões de capital importância para as teorias 183 pós-coloniais, tais como o fato (que nos interessa muito neste capítulo) de que a linguagem pode ser usada como meio de opressão ou de silenciamento do colonizado ou de outro tipo de sujeito subalterno; a inexistência de participação feminina significativa no romance de Daniel Defoe (que, mais do que simplesmente silenciar a mulher, promove quase um completo apagamento feminino de toda a estrutura da narrativa); e a tentativa subversiva de Coetzee de reescrever uma obra canônica inserindo nela tanto a voz quanto a firme atitude feminina. Em suma, tais características abordadas por Thomas Bonnici permitem-nos visualizar as possíveis correspondências intertextuais entre Robinson Crusoe, Foe e Jasmine. Bonnici (1996, p. 172) ressalta que um dos primeiros aspectos relevantes nas análises dos romances de Defoe e Coetzee é o que concerne à natureza do narrador. Em Robinson Crusoe, o leitor encontra um texto eminentemente masculino em que inexistem personagens femininas e no qual os atributos masculinos de trabalho, pensamento, invasão, dominação, planejamento, superioridade e triunfo são realçados. Contrariamente a tudo isso, a “resposta” de Coetzee em Foe é imbuída de um tom de desconstrução e de subversão, na medida em que o autor insere na narrativa uma narradora feminina na primeira parte do romance, que leva a sua versão da história de Cruso para um editor inglês cujo nome é Foe, para que ele providencie a sua publicação. Depois que essa protagonista, Susan Barton, - representativa da imagem de mulher independente no romance de Coetzee-, em vão procura por sua filha nas terras da Bahia colonial, no Brasil, ela embarca em um navio em direção a Lisboa. Os marinheiros promovem um motim e fazem Susan Barton desembarcar numa ilha deserta onde ela encontra Cruso, um homem extremamente taciturno, e o seu escravo Sexta-Feira, um nativo sem língua própria. Praticamente feita prisoneira por Cruso, ela se interessa pelo registro das histórias dele e de Sexta-feira na ilha, até que aparece um navio inglês que os resgata e os leva para a Inglaterra. Cruso morre durante a viagem, de modo que Susan Barton se vê compelida a adotar Sexta-Feira. A partir desse ponto, ela viaja por vários lugares com 184 Sexta-Feira, disseminando a fantástica história que ela registrou. Sobre esse ponto, Bonnici afirma que: A Segunda e a terceira partes ainda se constituem das narrativas de Barton. Essa segunda parte é constituída de cartas e textos similares a entradas de diário dirigidas a um ilusório Sr. Foe, a quem Barton tenta convencer a escrever a históra dela e a publicá-la. As entradas dos textos discorrem principalmente sobre a mudez de Sexta-Feira e as suas possíveis causas, a sua falta de história presente e a impossibilidade do registro da sua história passada. Na terceira parte, Susan Barton registra o seu encontro com o Sr. Foe, que tenta manipulá-la para ela escreva a história privilegiando um ponto de vista masculino. Por outro lado, há uma tentativa de Sexta-Feira de expressar a sua própria história de forma escrita. Na enigmática quarta parte, o narrador parece ser Sexta-Feira, explorando sua própria garganta e a sua boca. Ele descobre a imagem de um mundo perdido dominado pelo colonizador, mas que o faz vislumbrar a sua subjetividade, a sua história e a sua autonomia (BONNICI, 1996, p. 172). Levando-se em conta aqui a irrefutável importância dos fatos enfocados por Bonnici, principalmente aqueles referentes à participação direta de uma mulher na narração de uma história, nós ousaríamos chegar a dizer que Foe é uma “invasão” ou “apropriação”, de um texto canônico (Robinson Crusoe) que não apresenta nenhuma mulher, exatamente por uma narradora mulher, através da reescrita desse mesmo romance “invadido”. Sem dúvida alguma, esse fato em si próprio nos faz recordar a natureza peculiar da narrativa de Jasmine, assim como também nos traz à mente as palavras de Fredric Jameson, quando ele afirma que escrever constitui o ponto de vista libertário onde o texto literário pode ele mesmo ser visto como uma reescritura ou re-estruturação de um texto histórico anterior ou de um subtexto ideológico (JAMESON, 1981, p. 82). Para finalizar esta abordagem comparativa dos romances de Daniel Defoe e de E.M. Coetzee, resolvemos selecionar a seguinte passagem de Foe para ilustrar a força da mulher enquanto narradora. No romance, ela é obrigada a enfrentar situações de opressão e desconforto, dentre as quais se destaca a insinuação de Foe para modificar a história de Cruso. Bonnici (1996, p. 172) frisa que a reação de Susan Barton a uma versão diferente da história, 185 eivada de toques e características masculinas, é evidente, como se observa no trecho do romance de Coetzee que se segue: Esta é uma narrativa com início, meio e fim, e cheia de deliciosas digressões também, faltando nela somente uma parte intermediária – exatamente no trecho em que Cruso perdeu muito tempo arando o terreno e eu perambulando pelas praias. Certa vez, você me propôs uma parte intermediária para a história, recheada de canibais e de piratas. Tais interpolações eu não poderia aceitar, visto que não são verdadeiras. Agora, você me propõe reduzir a ilha a um mero episódio na história de uma mulher em busca da sua filha perdida. Isto eu também rejeito. 90 Como conseqüência, podemos resumir a situação conflituosa e tensa entre as forças hegemônicas de dominação e as tentativas dos vitimados pelo estigma da subalternidade de superar essa dominação, conforme se expuseram nas obras ficcionais presentemente abordadas: a) Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, pode ser interpretado como uma clara alegoria do colonialismo britânico já em seu centenário de existência. Crusoé, visto como legítimo representante do colonizador europeu, forja a subjetividade de Sexta-Feira, o nativo da ilha em que ele aporta após o terrível naufrágio. Pode-se, até mesmo, dizer que Crusoé é uma variante do Próspero de Shakespeare, ao passo que Sexta-Feira pode também ser visto como o Caliban de A Tempestade (nesse caso, hão de ser respeitadas as diferenças entre um e outro, uma vez que o temperamento beligerante de Caliban se distingue do dócil e submisso comportamento de Sexta-Feira). Entretanto, até mesmo em A Tempestade a presença e a importância da mulher são contempladas pela figura de Miranda, a bela filha de Próspero, ao passo que no romance de Defoe a mulher é totalmente inexistente; b) em Foe, podemos detectar a desafiante reescritura da história de Daniel Defoe, efetivada por Coetzee, um escritor sul-africano da contemporaneidade, que tenta compensar o completo banimento da 90 No original em inglês: “It is a narrative with a beginning and an end, and with pleasing digressions too, lacking only a substantial and varied middle, in the place where Cruso spent too much time tilling the terraces and I too much time tramping the shores. Once you proposed to supply a middle by inventing cannibals and pirates. These I would not accept because they were not the truth. Now you propose to reduce the island to an episode in the history of a woman in search of a lost daughter. This too I reject” (COETZEE, 1987, p. 121). 186 mulher na história de Defoe através da inserção de uma narradora feminina engajada na reescritura das histórias de Cruso e de Sexta-Feira; c) em Jasmine, Bharati Mukherjee oferece-nos uma narrativa revolucionária da versão de um possível processo ficcional de formação de subjetividade pós-colonial feminina. A história, além de ter a autoria de uma importante escritora que tem na sua biografia a marca dos deslocamentos diaspóricos e a lembrança das discriminações coloniais, é conduzida por uma narradora extremamente experiente, Jane Ripplemeyer, que a cada capítulo realça evidências do empoderamento gradativo da protagonista do romance, graças, principalmente ao domínio do inglês. Agora, se voltarmos mais uma vez a nossa atenção para um outro trabalho de Rudyard Kipling, encontraremos nele farto material para enxergar não só a repetição da alteridade negativa do colonizado, como também momentos em que as brechas do texto permitem interpretações desconstrutivas que chegam a trair ironicamente as intenções originais do autor. De fato, a sua obra é repleta de escritos ficcionais de gêneros variados nos quais ele registra a sua visão das colônias e das suas populações subalternas, com todas as idealizações negativas a pesarem sobre as alteridades dos colonizados. Todavia, apesar de tal característica constituir um lugar-comum na vasta produção de Kipling, quando ele publicou um poema intitulado “White Man’s Burden” (“O Fardo do Homem Branco”), na Revista McCLURE, em 12 de fevereiro de 1899, esse fato imediatamente provocou uma onda de protestos de críticos europeus e americanos, entre eles, Mark Twain. Embora parte do poema já tenha sido referida e citada neste capítulo, resolvemos repetir a sua primeira estrofe (KIPLING, 1962, p.138), já que ela dá conta das razões para tanta resistência: Take up the White Man’s burden – Send forth the best ye breed – Go, bind your sons to exile To serve your captives’ need; To wait, in heavy harness, On fluttered folk and wild – Your new-caught sullen peoples, Half devil and half child. 187 Como se vê, no discurso de Kipling se reproduzem aqueles sistemas binários de significação monolítica abordados no Capítulo 1, em que o colonizado é como uma tabularasa onde o colonizador pode escrever a sua história ou a que ele escolher para o colonizado. Entretanto, parece que às vezes até mesmo na obra de Kipling podemos enxergar algumas brechas de significação para outras interpretações das suas próprias idéias cristalizadas sobre o colonizado. Refirimo-nos, especificamente, a um conto de Kipling intitulado “Lispeth”, em que o autor narra a história de Lispeth, uma jovem do Himalaia batizada com o nome inglês “Elizabeth”. Lispeth é uma belíssima garota nativa, criada e batizada por um capelão inglês e sua mulher. Apesar de o conto não apresentar outras passagens em que o capelão e a sua mulher desaprovem a conduta de Lispeth, essa situação muda, quando um determinado episódio acontece: um certo dia, a protagonista vem de uma das suas costumeiras caminhadas pelas montanhas em direção à casa do capelão, onde mora. Entretanto, a caminhada desse dia reserva-lhe uma surpresa, pois acha nas montanhas um homem branco ferido e desacordado. Lispeth então retorna para casa trazendo em seus fortes braços um “fardo’ (nas palavras do próprio narrador), ou seja, o homem branco ferido. Assim, podemos especular um pouco sobre os aspectos irônicos de tal passagem, se lembrarmos que o “fardo” no poema de Kipling acima referido era uma designação dos colonizados demonizados e/ou infantilizados pelos povos colonizadores, conforme já mencionado. Lispeth pede aos pais adotivos que cuidem do tal homem, pois ela se apaixonou e quer se casar com ele quando ele se recuperar. A reação de Lispeth reproduz a atração amplamente debatida e irrecorrível que o colonizado tem pelo colonizador e este pelo colonizado (ver Leela Ghandi, 1998, p. 11). Fica patente que Lispeth é suficientemente incapaz de perceber as barreiras étnicas e sociais que a separavam desse inglês que trouxera nos braços, por não haver entendido ainda as sutilezas ideológicas da dominação e das diferenças étnicas e políticas existentes entre o seu povo e os seus “pais” 188 adotivos, sutilezas essas escamoteadas nas estratégias aparentemente democráticas e igualitárias do discurso religioso do capelão. Após algum tempo, o homem se recupera e, dada a insistência de Lispeth, promete casar-se com ela. Mas, na verdade, ele está noivo de uma mulher na Inglaterra, e a esposa do capelão, que sabia do fato, pede que ele sustente a mentira de que se casaria com Lispeth. Ele volta para a Inglaterra, mas promete à Lispeth retornar para se casar com ela. Como passa um longo tempo sem que ele retorne, Lispeth beira o desespero, até que a mulher do capelão lhe revela que o homem era noivo e que jamais voltará. Em virtude da descoberta de que o casal de religiosos ingleses que a criou e o homem branco (também inglês) cuja vida ela salvara mentiram para ela, Lispeth decide deixar a casa do capelão, passa a se vestir como as mulheres nativas e começa a rejeitar a religião cristã. Na verdade, por toda a história, Lispeth encontra-se deslocada, ocupando um entrelugar, mercê da caracterização binária que Kipling faz. Lispeth é tirada das tradições do seu povo e criada pelo casal. Porém, ela é bonita demais para ser uma doméstica, de forma que vira uma espécie de babá dos filhos do capelão, gozando de um “status” inferior ao dos brancos ingleses. Depois desses infortúnios, Lispeth casa-se com um homem da sua aldeia, que lhe espanca habitualmente. No fim do conto, relata-se que Lispeth morreu bem idosa, conforme se registra, a seguir: “Era difícil perceber que aquela criatura perturbada e enrugada, exatamente como um pedaço de molambo esfarrapado, pudesse algum dia ter sido a ‘Lispeth da Missão Kotgarh’”.91 Além de tudo de negativo que é atribuído ao caráter, à etnia e aos hábitos de Lispeth, podemos especular que Kipling ardilosamente tenha querido asseverar mais ainda a noção de subalternidade, falha, erro e pecado, já tão comumente associados aos colonizados pelo discurso do colonialismo. Na verdade, especulamos aqui acerca da possível correlação do nome da protagonista, “Lispeth”, com o verbo inglês “to lisp”, que significa 91 No original em inglês: “It was hard then to realise that the bleared, wrinkled creature, exactly like a wisp of charred rag, could ever have been ‘Lispeth of the Kotgarh Mission’ ” (KIPLING, 1994, p. 8). 189 cometer erros no uso dos sons da fala, utilizando um fonema no lugar do outro (ver HORNBY, 1974, p. 495). Ora, bastante provavelmente “Lispeth” seria o nome “Elizabeth”, mal pronunciado pelos nativos e pela própria Lispeth. Então, se nos basearmos na associação de “to lisp” com a protagonista, resulta disso que há algo de “errado” não apenas com o nome, mas com ela, com a sua etnia e com a sua condição de subalterna. As cenas finais do conto revestem-se de aspectos especiais, na medida em que vemos aí as idéias de Spivak com relação às idealizações negativas do colonizado enquanto mulher: o único destino de Lispeth no seio do seu povo seria o casamento com um homem que a oprimiria. Entretanto, tendo contado com a “sorte” de vir a ser “quase” parte da família de um casal britânico, tal fato não muda muito o seu destino final, na medida em que, como uma agregada “quase filha” do capelão e sua mulher, a sua subjetividade estava fixa num entrelugar de (ir)realização pessoal circunscrita numa atmosfera subalternizante. Ou seja, a velha fórmula cruel elaborada por Spivak se corporifica plenamente no drama da vida de Lispeth: a mulher colonizada é duplamente excluída. No caso de Lispeth, casada com um homem da sua comunidade, a razão da opressão seria a de gênero, ao passo que solteira e agregada na casa do capelão, a razão para a opressão seria a política (por ser uma mulher da colônia). De qualquer forma, e ainda como Spivak e Ashcroft destacam, fica difícil definir qual dos dois fatores é o mais relevante na opressão sofrida por Lispeth. Em vista de tudo isso, há uma passagem emblemática no conto que ilustra o caráter supostamente “pérfido” e “vicioso”, “intrínseco” ao colonizado. Trata-se da passagem em que a mulher do capelão se ressente da “ingratidão” que Lispeth demonstra ao abandonar a sua casa depois de “tantos benefícios” que recebera: “Eu acredito que Lispeth sempre tenha sido, no fundo do seu coração, uma infiel” 92 . Ora, tendo como certo que ao colocar na boca da mulher do capelão a palavra “infiel” Kipling reverberava a então difundida e supostamente 92 No original em inglês: “I believe that Lispeth was always at heart an infidel” (KIPLING, 1994, p. 7). 190 insidiosa natureza do colonizado, uma interpretação mais atenta da passagem vai-nos desvendar uma outra lacuna de significação deixada pelo autor. Assim, se Lispeth foi cristianizada e iniciada em verdades cristãs do tipo “todos os seres humanos são iguais perante Deus” e que “a mentira é pecado e desagrada a Deus”, que pecado ou infidelidade poderiam existir na espontaneidade de Lispeth em declarar seu desejo genuíno, verdadeiro e real de se casar com o inglês? Ou até mesmo em rechaçar a cultura, a língua e a religião impostas, uma vez que ela detectara insinceridade dos ingleses com relação aos valores que eles mesmos lhe haviam ensinado? Por fim, mesmo abominando a língua do colonizador, há a triste passagem final do conto em que a atitude de Lispeth prova que o colonizado pode resistir ao encantamento da língua inglesa (embora a domine muito bem), passando, porém, a utilizá-la para a expressão mais dolorosa dos relatos das suas desditas (o que já é uma forma de revide). No caso de Lispeth, trata-se do uso do inglês para a expressão da sua maior decepção amorosa oriunda do contato desastroso com os colonizadores ingleses, que selaram o seu destino amargo: “Lispeth era muito idosa quando morreu. Ela sempre teve perfeito domínio da língua inglesa, e, quando estava suficientemente bêbada, ela podia ser induzida a contar a história do seu primeiro envolvimento amoroso” 93. Em suma, Lispeth afigura-se aqui como mais uma versão feminina de Caliban, cujo uso do inglês para xingar e desautorizar o colonizador despótico consitui uma trincheira de resistência. Retornando a nossa atenção de novo para Jasmine, podemos ainda afirmar que, além da importância de saber bem o inglês e dominar o urdu, Mukherjee também direciona o foco da questão para a influência do livro inglês na vida da sua personagem, e isso nos reporta ao artigo de Homi Bhabha (1997, p. 29), já referido, sobre o encantamento que o livro inglês geralmente causa no colonizado. Para Jane Ripplemeyer, o livro inglês, longe de causar o 93 No original em inglês: “Lispeth was a very old woman when she died. She had always a perfect command of English, and when she was sufficiently drunk could sometimes be induced to tell the story of her first loveaffair” (Ibid, 1994, p. 8). 191 alumbramento de adoração defendido por Bhabha, pode causar “pesadelos” (Alice in Wonderland) e “desgosto” (Great Expectations e Jane Eyre), como a personagem categoricamente afirma no capítulo 5 da obra. Pode-se interpretar tal passagem como altamente subversiva na medida em que desconstrói a visão de supremacia e de dominação tão comumente associada à literatura inglesa e seu conseqüente “status” de elemento mesmerizador e subjugador do subalterno iletrado. De outro modo, também podemos encarar essa passagem como um ataque à hegemonia das obras ditas canônicas, principalmente se levarmos em conta as críticas que enaltecem e colocam num pedestal toda obra merecedora desse rótulo e desmerece toda tentativa nova de expressão literária que questionar esses aspectos. Agora, antes de abordar brevemente alguns pontos de Alias Grace que dizem respeito à questão de aquisição da linguagem do dominador para subverter o sistema de dominação, torna-se oportuno enfatizar algumas informações sobre o Canadá enquanto país de características pós-coloniais, assim como sobre a Irlanda do Norte como parte do Reino Unido (e, por conseguinte, sujeita à dominação colonial da Inglaterra). Essas breves considerações sobre a situação desses dois países, Canadá e Irlanda, tornam-se indispensáveis, porque elas revelam outras nuances do colonialismo e do pós-colonialismo que não são freqüentemente discutidas. Linda Hutcheon afirma que tratar o Canadá como um país póscolonial requer algumas explicações elucidativas, por causa da peculiaridade da história do Canadá e das especificidades dos efeitos psicológicos de um passado colonial de ordem fragmentada. Ela então nos diz que algumas partes do Canadá, especialmente o Oeste, ainda se sentem colonizadas. Como resultado disso, afirma que o Canadá nunca se sentiu em posição “central”, tanto cultural quanto politicamente. Ao invés disso, sempre sentiu o que, segundo Hutcheon, é muito bem expresso nas palavras de Bharati Mukherjee –“uma profunda sensação de marginalidade”: 192 Os escritores e escritoras de origem indiana, jamaicana, nigeriana, canadense e australiana sabem exatamente o que é se sentir um ser humano da periferia cujo grito se dissipa no ar sem sequer ser ouvido. Eles sabem exatamente o que significa sofrer a mais absoluta desvalorização emocional e intelectual, morrer incompleto e ainda isolado do centro do mundo. 94 Quanto à maneira como essas questões aparecem no romance de Margaret Atwood, nos limitaremos à abordagem de alguns aspectos, por medida prática, uma vez que eles são tratados de forma descontínua. Porém, para começar devemos relembrar alguns dados sobre as idealizações acerca do Caliban Shakesperiano. Se, como Lorrie J. Leininger afirma, a suposta “monstruosidade” de Caliban (também uma idealização negativa recorrente lançada sobre o sujeito subalterno colonial) for também retratada na sua condição de “Caliban enquanto figura concupiscente e viciosa”, conforme já citado anteriormente (LEININGER, 1983, p. 61), é possível estabelecer comparações entre Grace Marks e a faceta monstruosa atribuída ao personagem, pelas seguintes razões: primeiramente, porque Grace Marks supostamente (pelo menos) foi a mentora do assassinato de Nancy Montgomery e do fazendeiro Thomas Kinnear, patrão das duas, que era amante da governanta Nancy e era cobiçado por ela mesma, Grace Marks; segundo, porque os dois homicídios foram cometidos em nome da luxúria e da paixão (a paixão de Grace por Thomas e a paixão de McDermott por Grace, uma vez que este último, também empregado da fazenda, concordara em matar Nancy, a pedido de Grace, em função dos favores sexuais que esta lhe concederia). Um outro fator altamente relevante aqui é que a situação é sintomaticamente agravada porque Grace Marks é uma alienígena, uma subalterna imigrante de origem irlandesa (“desprezível”), na sociedade canadense do século XIX. Em suma, apesar de ser européia, Grace Marks é pobre e vem da 94 É sempre bom lembrar que Mukherjee fala com autoridade sobre a identidade do Canadá, uma vez que é casada com o escritor canadense Clark Blaise e morou naquele país de 1966 a 1980 (ver FABRUL, 1996, p. xiii). Segue o original em inglês da passagem em referência: “The Indian writer, the Jamaican, the Nigerian, the Canadian and the Australian, each one knows what it is like to be a peripheral man whose howl dissipates unheard. He knows what it is to suffer absolute emotional and intellectual devaluation, to die unfulfilled and still isolated from the world's center” (MUKHERJEE, in HUTCHEON, 1997, p. 133). 193 Irlanda, um país europeu que tem sido vítima dos devastadores interesses de dominação política do Império Britânico, do qual o Canadá também faz parte. Porém, essa pecha de monstruosidade (supostamente) “calibanesca” é lentamente deixada para trás por Grace Marks, que, apesar de amargar vinte e nove anos entre a prisão e o manicômio penitenciário (em função de uma alegada loucura, que, no decorrer do romance, não se conclui se procedente ou não), consegue a simpatia de uma legião de amigos, graças ao comportamento dócil e ameno que mantém, o que lhe rende empregos como o de doméstica na casa do chefe da penitenciária, por exemplo. No capítulo 13, existe uma passagem altamente emblemática da situação de Grace Marks que se refere a sua confissão do crime. Essa passagem traz à baila questões relevantes a respeito de (trans)nacionalidade e hibridismo: O que se lê no começo da minha confissão é de fato verdadeiro. Eu sou mesmo da Irlanda, embora eu tenha achado bastante injusto quando escreveram nela que ambos os acusados admitem por livre e espontânea vontade que são irlandeses. Isso fez com que o fato de ser irlandês soasse como se fosse crime, muito embora eu sempre tenha visto essa condição ser tratada como tal. Mas, é claro, a nossa família era protestante, e isso nos fazia diferentes. 95 As condições de ser branco ou de outra etnia não têm nenhuma importância aqui (o que já não é o caso de Jasmine, no romance de Mukherjee). Nessa passagem, a questão da alteridade e da diferença se verificam em outro nível. Grace Marks usa o fato de ter vindo de uma família protestante para justificar que isso a torna um tipo de imigrante menos indesejável aos olhos dos canadenses e dos ingleses. Além do mais, como protestante, ela acredita que pertence à parte da Irlanda que é menos diferente da Inglaterra. Nesse caso, de acordo com a visão de Grace Marks, o reconhecimento da subjetividade do colonizado por 95 No original em inglês: “What it says at the beginning of my Confession is true enough. I did indeed come from the North of Ireland; though I thought it very unjust when they wrote down that both of the accused were from Ireland by their own admission. That made it sound like a crime, and I don’t know that being from Ireland is a crime; although I have often seen it treated as such. But of course our family were Protestants, and that is different” (ATWOOD, 1996, 103). 194 parte do colonizador, com relação a ela, se processaria nas seguintes bases: “Você é protestante, você é diferente, você é uma de nós”. Naturalmente, não se pode negligenciar aqui a ambigüidade corporificada tanto pela repulsa quanto pela atração mutuamente existentes entre colonizado e colonizador. Isso transparece na citação acima, assim como corrobora teses nesse sentido defendidas por Homi Bhabha e Leela Gandhi, dentre outros. Ou seja, ao mesmo tempo em que Grace se queixa de uma sociedade que deixa que se registre oficialmente em um auto judiciário o fato de que pessoas “confessaram ser irlandesas”, como se isso fosse crime, ela também sobrepõe a isso um desejo de ser “igual” a quem a oprime. A esse ponto voltaremos no último capítulo, quando então será mais bem explorado. Enfim, Grace Marks vai fazendo uma série de afirmações pelo livro afora que endossa a sua lenta, mas segura aquisição de identidade, mercê das alteridades que apresenta: acaba-se por não se saber se ela é realmente assassina ou não (há várias confissões e desmentidos dessas acusações); se Mary Whitney (uma suposta amiga sua, então morta, cujo nome e as roupas Grace Marks alega usar, de vez em quando) de fato existiu ou é uma criação da mente supostamente insana de Grace; e se Grace é de fato louca ou não. Seja como for, Alias Grace oferece-nos a exposição do amadurecimento de um tipo de sujeito pós-colonial que se torna tão sagaz que chega a manipular intensamente o seu próprio psiquiatra, “mapeando” as suas ações para “prever” o que ele vai lhe perguntar, assim como premeditar as frases para responder ao que ele quer ouvir. Dessa forma, é essa protagonista subalterna que chega ao final do livro livre, pois, depois de quase trinta anos reclusa, obtém o perdão para o suposto crime cometido, casa-se e muda para a América, onde ela e o marido se tornam fazendeiros. É também no último capítulo do livro que as seguintes afirmações de Grace Marks acerca da Bíblia de certo modo desconstroem “os sinais de encantamento” do colonizado quando entra em contato com o livro inglês: 195 Eu tenho pensado bastante sobre você e a sua maçã, senhor, e do enigma que você lançou certa vez, bem na primeira vez em que nos encontramos. Eu não o havia compreendido naquela época, mas acho que você estava querendo me ensinar alguma coisa, e talvez agora eu tenha entendido tudo. De acordo com o modo que eu vejo as coisas, é bem possível que as lições bíblicas tenham saído do pensamento de Deus, porém elas foram escritas por homens. Dessa forma, como acontece com tudo aquilo que os homens escrevem, como os jornais, por exemplo, eles apreendem a essência da história de forma correta, porém se equivocam em alguns detalhes (ATWOOD,1996, p. 459).96 Chegando ao final deste capítulo, em que tratamos de enfatizar as reações dos sujeitos ditos “subalternos pós-coloniais” à sanha desenfreada de humilhações e opressão que as forças imperialistas hegemônicas sempre efetivaram contra eles, cumpre que se lance um olhar retrospectivo para os conceitos teóricos e exemplos de obras de ficção aqui usados para avaliar a efetividade da premissa de que o aprendizado do inglês, pelo subalterno, para posteriormente subverter a língua e os efeitos da dominação, acaba por se transformar num mote que se reduplica e se metaforiza em qualquer outro tipo de ação subversiva empreendida por ele para esse mesmo fim. Assim, as idéias de Bill Ashcroft, Homi Bhabha, Gayatri Spivak, Edward Said e Leela Ghandi, citados no Capítulo 1, por exemplo, servem como pano de fundo e base de sustentação para a compreensão das ações emancipatórias das personagens das várias obras mencionadas. Se, em Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, Sexta-Feira aprende inglês somente para se comunicar na exata e necessária proporção para continuar em posição de inferioridade em relação a Crusoé, em Foe, a reescritura pós-moderna do romance de Defoe, Coetzee dá voz a 96 É digno de nota que essa fala de Grace Marks desconstrói a idéia de que o colonizado fica hipnotizado quando aprende o inglês, conforme se verifica no artigo de Bhabha (1997, p. 29) a este respeito, uma vez que o deslumbramento que a descoberta do inglês causa se corporifica na utilização prática da língua imposta para ler os textos bíblicos. Porém é exatamente a relativização do estatuto de verdade inexorável da Biblia que Grace Marks propõe na citação em destaque. Segue o original em inglês da citação em referência: “I’ve thought a good deal about you and your apple, Sir, and the riddle you once made, the very first time that we met. I didn’t understand you then, but it must have been that you were trying to teach me something, and perhaps by now I have guessed it. The way I understand things, the Bible may have been thought out by God, but it was written down by men. And like everything men write down, such as the newspapers, they got the main story right but some of the details wrong” (ATWOOD, 1996, p. 459). 196 Sexta-Feira, reconstrói para ele uma história e insere a figura da mulher, que inexistia na versão de Daniel Defoe. Quanto a Caliban, apesar de receber uma grande carga de cognomes pejorativos em A Tempestade, - fruto das idealizações que infantilizam ou demonizam o Outro enquanto subjugado (basta lembrar o conteúdo do poema de Rudyard Kipling, mencionado neste capítulo), ele há de ser visto como um admirável símbolo de resistência, uma vez que lhe foi também ensinada a língua de Próspero, mas ele também já a utiliza para xingar e dizer impropérios àquele, o que somente aumenta a sua ira. Além disso, a linguagem e o pensamento de Caliban são dotados de certa sofisticação, a ponto de ele ter até mesmo um deus – Setebos. Vale ainda frisar que Caliban desde longa data inspira outros autores, tais como Robert Browning, que, no século XIX, escreveu um poema baseado na sua religiosidade – “Caliban Upon Setebos”. O caso dos escritos de Rudyard Kipling também é emblemático, uma vez que, como vimos, em “The White Man’s Burden” ele descreve os povos colonizados como verdadeiros fardos para o homem branco, o qual, por seu turno, detém a nobre missão de salvá-los, educálos, cristianizá-los e civilizá-los, patenteando um claro processo de demonização e infantilização do Outro, num mais que claro processo de desumanização. Todavia, em “Lispeth”, mesmo criando uma personagem feminina cercada do exotismo típico da mulher não-branca da colônia, Kipling acaba mostrando de forma não intencional que o colonizado não é necessariamente uma tabula-rasa onde o colonizador pode “escrever” o que quer. No caso de Lispeth, ao ser enganada pelo capelão inglês e sua mulher, assim como pelo homem inglês que ela salvara nas montanhas, ela decide abandonar de vez a língua, os costumes e a educação que recebera deles. Como não poderia deixar de ser, a atitude de Lispeth foi tomada à conta de “ingratidão” e “infidelidade” pela mulher do capelão. De qualquer modo, quando 197 velha e embebedada, Lispeth recontava a sua história de amor frustrada num inglês perfeito, assim como dizia impropérios também. Um fator digno de destaque nessa história é que o repúdio de Lispeth à língua inglesa e aos hábitos “civilizados” dos missionários/colonizadores ingleses reporta-nos ao valor não expresso e comumente não reconhecido do silêncio e da não enunciação voluntária como formas de resistência efetivas, conforme defendido por Trinh T. Minh-ha (1997, pp. 415-19). Já em Jasmine e Alias Grace, há as histórias de duas protagonistas femininas, ambas imigrantes, que travam verdadeiras batalhas contra um mar de provações para sobreviver e construir as suas próprias histórias e identidades. Nos dois casos, existe claramente a questão da aquisição e/ou do uso do inglês como elemento de subversão do quadro de dominação em que se encontram. Como já se abordou, a forma como isso se efetiva em Jasmine (que inclui o domínio não só do inglês, mas também do urdu, pela protagonista, o que lhe confere vantagens em relação aos americanos), resta dizer que, em Alias Grace, isso se dá na medida em que Grace Marks, apesar da origem humilde, manipula o seu próprio psiquiatra com histórias truncadas, meias-verdades e referências enigmáticas ao seu passado, manifestando, desse modo, arguta capacidade de utilização do discurso para a obtenção de fins particulares. Ademais, tais comportamentos de Grace Marks configuram formas de aquisição de poder por pelo menos três frentes: a frente da língua, já que o domínio do inglês lhe dá acesso a outras formas de poder; a frente do ataque sutil ao poder patriarcal, uma vez que, com respeito à sua relação com Dr. Jordan, quem está no comando é sempre Grace Marks, uma mulher colonizada e de pouca instrução, mas que é sagaz e possuidora de uma sabedoria não acadêmica, mas de vida; e, por fim, a frente que diz respeito ao ataque ao discurso (também masculino) da Medicina e da incipiente Psiquiatria, principalmente em uma época de definições confusas em que, como afirma Wisker, “as mulheres eram vistas como virgens ou 198 prostitutas, inocentes ou bruxas, ou seres demoníacos” 97. Porém, não se poderia finalizar esta referência a Grace Marks sem deixar registrado que ela soube como ninguém achar o equilíbrio entre aquilo que devia ser enunciado e aquilo que devia ser (convenientemente) silenciado; em suma, Grace Marks nos chama a atenção para o exercício de uma forma de “silêncio emancipador”, o que mais uma vez nos reporta às idéias de Trinh T. Minh-ha a esse respeito já anteriormente citadas neste capítulo. Assim, e já que estamos abordando o silenciamento das mulheres, não se poderia deixar sem nova citação a novela de Robert Louis Stevenson The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr Hyde, em que as mulheres aparecem pouquíssimo e em situações totalmente irrelevantes. Porém, há silêncios maiores nessa obra, verdadeiros silêncios “retumbantes”, para se estabelecer um paradoxo de efeito: trata-se do fato de que exatamente no final do século XIX, em que a Inglaterra enfrentava sérios problemas de levantes e insurreições em suas colônias, graças aos primeiros movimentos de emancipação colonial (ou seja, os povos colonizados não estavam mais somente usando o inglês aprendido para subverter; já estavam partindo para ações concretas), Stevenson escreve uma novela que absolutamente silencia sobre as crises externas. Ou seja, inexistem no romance referências diretas ao papel da Inglaterra como grande centro metropolitano colonizador. No entanto, em contrapartida, o drama de Jekyll/Hyde acaba por constituir uma metáfora de horror, de decadência e de ambigüidade de caráter, que extrapola a esfera do drama individual e se amplia, para representar a decadência não só do pacato e ordeiro cidadão londrino, Dr. Jekyll, mas também da nação colonizadora e poderosa, que começa a perder o controle sobre as suas colônias, do mesmo modo como Jekyll começa a perder o controle sobre o trânsito entre as antagônicas personalidades de Jekyll e de Hyde. Nesse caso, Jekyll seria uma representação da própria Inglaterra, ao passo que Hyde (é interessante ver a relação desse nome com o verbo “hide” – 97 (...) “the confusions of a period which saw women as either virgins or whores, guiltless and pure, or demonic” (WISKER, 2002, p. 66). 199 “esconder”) representaria a grande horda de povos colonizados que no momento tentavam desferir um golpe sobre o antes ferrenho dominador, que então já não detinha todo o controle sobre o mecanismo de dominação colonial. Embora tal releitura possa parecer ousada demais, ela acaba se tornando plausível se relembrarmos as idéias de Edward Said (1991, p.1971), já citadas no início deste capítulo, em que ele discorre sobre o fato de que o imperialismo e o romance se inter-relacionaram tão fortemente que praticamente se tornou impossível se referir a um sem que de algum modo não se esteja lidando com o outro. Em suma, podemos concluir que as releituras e reinterpretações de textos canônicos assim como as leituras e as análises de textos pós-coloniais contemporâneos, além de celebrar o abandono de formas interpretativas binárias e reducionistas, também abrem ensejo para que o sujeito pós-colonial possa fazer uso da língua do colonizador sem aquela tradicional marca da inferioridade intelectual irrecorrível, minando, assim, as forças opressoras e construindo a sua própria voz. Conforme o exposto, todas as personagens ficcionais “subalternas” referidas neste capítulo dão conta – num estrato metafórico – da gradual representação da aquisição de voz de Caliban, aqui o ícone primário do nativo que ousa se rebelar contra as injustiças do colonizador. 200 CAPÍTULO 5 A REPRESENTAÇÃO DA SUPERAÇÃO DA SULBALTERNIDADE DE JASMINE E GRACE MARKS ENQUANTO SUJEITOS PÓS-COLONIAIS: A REINVENÇÃO DO POTENCIAL DE CALIBAN NA TRAJETÓRIA DE SUBJETIFICAÇÃO Na tentativa de compilar vários dos mais significativos pontos comuns entre os processos de construção identitária de Jasmine e Grace Marks, elegemos como a primeira interseção perceptível nos dois romances a que estabelece o cruzamento entre feminismo e pós-colonialismo, o que nos traz à lembrança as palavras de Bill Ashcroft a esse respeito e nos dá conta da importância da análise da representação literária dos problemas enfrentados pelo sujeito pós-colonial feminino, uma vez que a mulher, nesse aspecto, tem sido vítima de dupla exclusão, conforme já fartamente ilustrado anteriormente. Em vista disso, Ashcroft afirma que: O feminismo é de crucial interesse para o discurso pós-colonialista por duas razões principais. Primeiro, tanto a sociedade patriarcal quanto o Imperialismo podem ser encarados como duas forças que exercem dominação análoga sobre os seus objetos de dominação. Assim sendo, as experiências femininas no mundo patriarcal e aquelas dos sujeitos colonizados apresentam diversos paralelos. Em função disso, tanto as políticas feministas quanto as políticas pós-coloniais oferecem oposição a esse estado de coisas. Segundo, tem havido um considerável número de debates em várias sociedades colonizadas, na tentativa de se definir qual o fator político mais relevante na vida das mulheres – a opressão colonial ou a opressão por razões de gênero. Isto tem levado a uma separação entre as feministas ocidentais e ativistas políticos de países pobres e oprimidos; ou, alternativamente, as duas formas de dominação estão tão intimamente ligadas que a dominação daí advinda afeta materialmente a posição das mulheres nessas sociedades. Todos esses fatos têm levado a uma consideração mais profunda da construção e do emprego do gênero nas práticas do Imperialismo e do Colonialismo. 98 98 No original em inglês: “Feminism is of crucial interest to post-colonial discourse for two major reasons. Firstly, both patriarchy and imperialism can be seen to exert analogous forms of domination over those they render subordinate. Hence the experiences of women in patriarchy and those of colonized subjects can be paralleled in a number of respects, and both feminist and post-colonial politics oppose such dominance. Secondly, there have been vigorous debates in a number of colonized societies over whether gender or colonial oppression is the more important political factor in women’s lives. This has sometimes led to division between 201 Conforme já amplamente referido, o questionamento levantado por Ashcroft na citação acima ecoa a posição bem firme tomada por Gayatri Spivak e Wanda Balzano, nesse sentido, pois além de reconhecer publicamente a problemática das subjugações múltiplas a que a mulher tem sido exposta, ela também tenta conscientizar o mundo acadêmico sobre a questão mais ampla que abarca a problemática do sujeito subalterno, numa macrovisão, e o aspecto mais específico da mulher nas sociedades coloniais e pós-coloniais. Desse modo, parece que as afirmações peremptórias de Ashcroft (2002), Spivak (1997) e Balzano (1996) emitem uma sentença irrevogável para a situação do sujeito póscolonial feminino, ao constatar as condições discriminatórias e de subalternidade a que a mulher sempre se viu relegada nas mais diferentes sociedades e nas mais variadas épocas. Entretanto, é exatamente neste ponto que posicionaremos a argumentação sobre Jasmine e Alias Grace, porque os dois romances oferecem inúmeras oportunidades de se vislumbrarem novas possibilidades de construção da subjetividade feminina que superam tais condições de subalternidade no âmbito das relações pós-coloniais. Não queremos com isso dizer que as palavras de Spivak, Ashcroft, ou de qualquer outro teórico ou teórica dos Estudos Culturais se desautorizam aqui. Trata-se, exatamente, da situação oposta: através da conscientização de que tais assertivas contêm argumentações plausíveis, válidas e constatáveis, partimos para o seu cotejamento com as histórias de resistência à dominação do poder hegemônico que permeiam as sagas das protagonistas dos dois romances em causa. Para dar início a essa questão, vale dizer que é possível constatar em Jasmine e Alias Grace a construção de um tipo de “Bildungsroman” extremamente peculiar, que cria novas nuances para as trajetórias das protagonistas Jasmine e Grace Marks, se tomarmos como base Western feminists and political activists from impoverished and oppressed countries; or, alternatively, the two are inextricably entwined, in which case the dominance affects, in material ways, the position of women within their societies. This has led to calls for a greater consideration of the construction and employment of gender in the practices of imperialism and colonialism” (ASHCROFT, 2002, p. 103). 202 as noções sobre o “Bildungsroman” feminino desenvolvidas por Peonia Viana Guedes no livro Em Busca da Identidade Feminina: Os Romances de Margaret Drabble. Numa passagem muito esclarecedora, Peonia Guedes afirma o seguinte: A busca da identidade é o elemento central do Bildungsroman ou romance de formação da personalidade, que surgiu na Alemanha, no século XVIII, com O Aprendizado de Wilhelm Meister. No Bildungsroman tradicional, o herói é obrigado a abandonar o lar – um ambiente tipicamente rural – e fortes laços familiares, saindo pelo mundo afora. No caminho das provações, ele corre riscos, enfrenta perigos, luta e mata dragões. O herói também se envolve em relações amorosas, que funcionam como etapas do seu processo educacional; escolhe uma companheira e profissão; reexamina seus valores, e, por fim, integra-se na estrutura social. Esse padrão narrativo de busca de identidade e integração na sociedade constitui o centro do enredo do Bildungsroman, que se desenvolveu com maiores ou menores variações nos últimos 200 anos99. O tema da busca, fundamental no Bildungsroman, corresponde não só à jornada arquetípica descrita por Joseph Campbell e outros críticos que adotam o enfoque mítico, como também à visão de C.G. Jung sobre o desenvolvimento interior do ser humano, rumo à maturidade e à integridade psicológica. (GUEDES, 1997, pp. 17-18). Entretanto, muitas das características do tradicional “Bildungsroman” do sujeito masculino, conforme descritas por Peonia Guedes acima e tão bem delineadas por Joseph Campbell, em O Herói de Mil Faces, não mantêm uma correspondência completa e fiel com as características do “Bildungsroman” para as mulheres. Embora Peonia Guedes inicialmente aborde o “Bildungsroman” a propósito dos processos identitários das protagonistas dos romances de Drabble, as suas idéias aplicam-se de modo geral a processos identitários femininos representados cultural e literariamente. Assim, essas idéias se coadunam totalmente com os dramas e percalços experimentados por Grace Marks e Jasmine, bem como denunciam as necessárias diferenças de que devem ser dotadas quaisquer tentativas de se representar e conceber a formação dos processos de identidade/subjetificação feminina. Peonia Guedes afirma o seguinte sobre essa palpitante questão: 99 Peonia Guedes recomenda que os interessados em um estudo mais profundo da tradição do Bildungsroman na Literatura Inglesa devem consultar os seguintes trabalhos: Jerome Hamilton Buckley’s Season of Youth: The Bildungsroman from Dickens to Golding (Cambridge: Harvard UP, 1974); e Laura Sue Furderer’s The Female Bildungsroman in English (New York: MLA, 1990),que oferece uma bibliografia crítica bastante vasta sobre o assunto, contendo notas muito úteis. 203 Críticas feministas têm mostrado que a estrutura do Bildungsroman pressupõe uma gama de opções que só se oferecem aos homens 100, e que a sociedade patriarcal dificilmente encontra as mulheres a enveredarem por um caminho de autodescoberta. Na verdade a heroína do Bildungsroman dos séculos XVIII e XIX geralmente se vê obrigada a aceitar o papel social que lhe é adequado – casamento e maternidade -, ou a se esquivar a esses papéis e pagar o preço da sua rebeldia – a morte física ou espiritual .101 As escritoras do século XX têm tentado modificar os finais dos romances – habitualmente episódios de casamento ou morte – criando narrativas que oferecem uma série diferente de opções à heroína, questionando assim as imagens tradicionais da socialização da mulher.102 Recentes pesquisas feministas multidisciplinares também sugerem que a vida das mulheres não segue os paradigmas 103 masculinos de identidade, experiência e desenvolvimento e, portanto, precisa ser reexaminada separadamente da vida dos homens (GUEDES, 1997, p.18). As observações sobre o “Bildungsroman” levadas a efeito por Peônia Guedes acima se aplicam perfeitamente às estratégias usadas tanto por Atwood quanto por Mukherjee, na caracterização dos enredos de construção identitária de Grace Marks e Jasmine, respectivamente, conforme se evidenciará neste último capítulo, um pouco mais à frente, quando analisarmos os traços da promoção da subjetividade das protagonistas. Bharati Mukherjee e Margaret Atwood constroem as suas protagonistas, dotando-as de condições especiais de resistência. Daí uma das razões para a escolha do título da nossa Dissertação de Mestrado – “From Shadow to Self: Resistance, Survival, and Empowerment of The PostColonial Female Subject in Bharati Mukherjee’s Jasmine”- , cuja expansão propomos com esta Tese, e onde se percebe a noção de superação das “sombras” a que Spivak se refere na 100 Peonia Guedes comenta que as críticas Elizabeth Abel, Marianne Hirsch e Elizabeth Langland argumentam que “as heroínas do século XIX raramente recebem uma educação formal. Até mesmo aquelas diretamente envolvidas com a educação formal, como Jane Eyre e Lucy Stowe, não logram conseguir expandir os seus horizontes culturais de uma forma de fato significativa…” (no original em ingles: “nineteenth-century heroines rarely receive a formal education. Even those directly involved in formal education, such as Jane Eyre and Lucy Snowe, do not manage to significantly expand their possibilities …”) (Ver The Voyage In: Fiction of Female Development (Hanover: UP of New England, 1983). 101 A esse respeito, Peonia Guedes também recomenda a leitura The Heroine’s Text: Readings in the French and English Novel, 1722-1782 (New York: Columbia UP, 1980) e The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination (New Haven: Yale UP, 1979). 102 Peonia Guedes comenta que o herói, na sua opnião, é o agente ativo no enredo tradicional da busca: a busca da identidade e da auto-realização são o centro da narrativa. Por outro lado, a heroína pode ser tanto o objeto da atenção ou de resgate do enredo masculino da busca. Entre os enredos femininos da busca do século XX, os contidos na obra seriada de Doris Lessing intitulada Children of Violence (de 1952 a 1969) atingiram uma posição de destaque como os mais genuínos exemplos do “Bildungsroman” feminino da contemporaneidade. 103 Para uma compreensão mais ampla dos paradigmas que distinguem as vidas dos homens das vidas das mulheres, Peonia Guedes recomenda a leitura do livro The Reproduction of Mothering:Psychoanalisis and the Sociology of Gender (Berkely: U of California P, 1978), da socióloga Nancy Chodorow, e o livro In a Different Voice: Psychological Theory and Woman’s Development, da psicóloga Carol Gilligan (Harvard UP, 1982). 204 citação feita em momento anterior, assim como a conquista de agenciamento e voz, que dá acesso à construção da subjetividade peculiar e vitoriosa do sujeito pós-colonial por via de um “Bildungsroman” tipicamente feminino. Da mesma forma, o título proposto desta Tese que principia com “Subvertendo o Legado de Caliban...” visa a utilizar o Caliban shakespeariano ao mesmo tempo como ícone dos indivíduos oprimidos pela dominação imperialista e como símbolo da resistência a essa mesma dominação, por meio de um discurso deliberadamente subversivo e desestabilizador daquela posição hegemônica. Nessa linha de raciocínio, o desdobramento seguinte constitui-se na tarefa de constatar como as protagonistas femininas dos livros de Mukherjee e Atwood modulam ou modificam o discurso e as ações de Caliban para subverterem as forças opressivas, sobreviverem e engendrarem uma rede de estratégias para conceber as suas identidades híbridas, ricas e multifacetadas. Chegamos então a uma fase em que se faz necessária um pouco mais de acuidade na definição de alguns termos, antes de levarmos à frente a avaliação do processo de subjetificação das personagens em questão. Referimo-nos a termos como “subalterno”, “subalternidade” e “discurso”, entre outros de inegável relevância para as nossas argumentações. “Subalterno”, por exemplo, é um adjetivo que significa, grosso modo, “de ou pertencente a um nível mais baixo” (CHILDERS, 1995, p. 289). Dentre outros sentidos, a acepção que nos interessa mais de perto tem a ver com os “Estudos Subalternos”, com os quais um grupo de intelectuais e teóricos envolvidos com o assunto no âmbito das discussões coloniais e intelectuais tem grande afinidade (ressalte-se que um dos membros mais renomados desse grupo é Gayatri Chakravorty Spivak). De volta ao vocábulo “subalterno”, Childers (1995, p. 289-290) complementa que se trata de um termo bastante inclusivo, pois engloba as designações gerais para os membros de populações subordinadas a outros indivíduos ou grupos. Dentre eles, destacam-se os colonizados, as mulheres, os negros, as classes trabalhadoras etc. Também é interessante destacar que a palavra “subalterno”, ainda 205 segundo Childers, tem sido comumente usada para descrever aqueles indivíduos e povos submetidos especificamente à opressão do colonialismo britânico. Voltando o enfoque agora para os Estudos Subalternos, o termo pode designar o próprio nome de um círculo de intelectuais e o jornal que eles publicam em Nova Déli, na Índia. Porém, quando a expressão é usada num sentido mais amplo (e sem destaque), pode também se referir aos estudos acadêmicos das vidas e dos escritos dos indivíduos ditos subalternos. Com claros contornos marxistas, semióticos, feministas e desconstrucionistas, o objetivo principal desse círculo de intelectuais é a politização do colonizado, conforme Spivak afirma direta e indiretamente em In Other Worlds, um grande número de vezes. Em vista do que se expôs sobre as conotações de “subalterno” e de “Estudos Subalternos”, não resta dúvida acerca da importância desses sentidos para designar a posição e os problemas vivenciados pelas protagonistas Jasmine e Grace Marks. O mesmo também podemos verificar quando rememoramos uma definição de “diáspora”, como a de Ashcroft no trecho seguinte: Derivada da palavra grega que significa “dispersar”, “diáspora”, o movimento voluntário ou forçado de povos dos seus países de origem para novas regiões, constitui um fato histórico central do Colonialismo. O próprio Colonialismo na verdade foi um movimento diaspórico envolvendo a dispersão temporária ou permanente e o reassentamento de milhões de europeus pelo mundo inteiro.104 A despeito de a definição acima carrear um teor exageradamente eurocêntrico, um pouco mais à frente Ashcroft desdobra o seu sentido para então abarcar os deslocamentos diaspóricos de vários indivíduos subalternos de diversas sociedades colonizadas, principalmente no período áureo do Colonialismo europeu. Nos cenários coloniais e póscoloniais tivemos os deslocamentos dos europeus movidos pelo ímpeto de colonizar, sujeitar 104 No original em inglês: “From the Greek meaning ‘to disperse’. Diasporas, the voluntary or forcible movement of peoples from their homelands into new regions, is a central historical fact of colonization. Colonialism itself was a radically diasporic movement, involving the temporary or permanent dispersion and settlement of millions of Europeans over the entire world” (ASHCROFT, 2000, p. 68-69). 206 e “civilizar” outros povos em outros continentes, mas também no mesmo continente, como foi o caso da Inglaterra e suas investidas colonizadoras na Irlanda, Escócia e País de Gales. Assim, a citação acima se aplica diretamente à situação da personagem Grace Marks - uma européia subalterna que também se engajou numa diáspora da Irlanda para o Canadá, em busca de melhores condições de vida. E as práticas coloniais são tão variadas que, no caso da Irlanda, do País de Gales e da Escócia, embora se possa pensar o contrário (pelo fato de os colonizados serem brancos), os imperativos de diferença étnica também foram decisivos para a sujeição daquelas nações ao Imperialismo Britânico. Tal confusão se justifica, contudo, se o entendimento de “etnia” for confundido com “raça”, que é um conceito ultrapassado (dada a sua limitação a caracteres genéticos). Dessa forma, Ascroft (2000, p. 80) e Schermerhon (1974, p. 2) defendem a idéia de que “etnia” é um termo que passou a ser usado crescentemente a partir da década de 1960 em diante para definir uma variação em termos de cultura, tradição, linguagem, padrões sociais e ancestralidade. O termo “etnia” então passou a substituir e a transcender as desacreditadas generalizações que o termo “raça” fixava genética e biologicamente, em períodos anteriores. Enfim, “etnia” refere-se à fusão dos muitos traços que se inserem na natureza de qualquer grupo; é um conjunto de valores em comum, crenças, normas, gostos, comportamentos, experiências, memórias, consciência de tipo e de lealdades. A preocupação com as questões pós-coloniais, os indícios de superação da subalternidade e os movimentos diaspóricos - que lentamente levam o sujeito pós-colonial a se engajar num processo de construção da subjetividade -, ou até mesmo a análise da situação da mulher em contextos pós-coloniais, não estão presentes somente em Jasmine e Alias Grace. Tanto Bharati Mukherjee quanto Margaret Atwood têm contemplado estes e diversos outros aspectos na literatura que produzem. A razão da presente opção por Jasmine e Alias Grace deve-se ao fato de ter-nos parecido que existe um número maior de condições comuns aos dois romances, que permitem uma comparação mais detalhada e efetiva para a 207 representação dos aspectos de superação da subalternidade do sujeito pós-colonial feminino, deixando para trás os legados negativos de certa forma herdados de Caliban. Além disso, as duas obras mantêm e sofisticam as estratégias discursivas de subversão das forças hegemônicas de opressão, inauguradas emblematicamente por Caliban no campo da literatura e hoje analisadas à luz do cruzamento interdisciplinar da literatura com as Teorias PósColoniais e Pós-Estruturalistas. Já que o nosso mote inicial aqui foi problematizar a fala irreverente, o discurso desestabilizador e o comportamento subversivo de Caliban enquanto ícone ficcional fundador das estratégias de resistência do sujeito colonial/pós-colonial oprimido, também procederemos a uma breve consideração teórica acerca do termo “discurso”, para mais uma vez compararmos o que fazem e falam Jasmine e Grace Marks e a efetividade dos seus discursos de resistência, assim como para apreciarmos o processo de subjetificação que resulta das autoconstruções discursivas das duas protagonistas. A esse respeito, Ashcroft defende idéias e princípios que também encontramos em outros teóricos como Rajan e Mohanram, Carter e Thompson. Ashcroft pondera que, para além da simples definição básica e meramente lingüística de “discurso” - tecnicamente, qualquer unidade da fala maior que um período -, o termo tem um sentido mais complexo, como o que aparece em Foucault: Para Foucault, um discurso é uma área bastante significativa do conhecimento social, um sistema de afirmações através das quais o mundo pode ser conhecido. O ponto-chave desse arrazoado é que o mundo não está simplesmente “lá” para ser discutido; antes, é exatamente através do discurso que o mundo é trazido à existência. É também através desse discurso que os falantes e os ouvintes e os escritores e os leitores atingem a compreensão sobre eles mesmos, as suas relações uns com os outros e o seu lugar no mundo (a construção da subjetividade) 105. Enfim, o discurso é o complexo de signos e práticas que organizam a existência e a reprodução social (ASHCROFT, 2000, p. 71).106 105 O destaque em negrito consta no original em inglês. No original em inglês: “For Foucault, a discourse is a strongly bounded area of social knowledge, a system of statements within which the world can be known. The key feature of this is that the world is not simply ‘there’ to be talked about, rather, it is through discourse itself that the world is brought into being. It is also in such a discourse that speakers and hearers, writers and readers come to an understanding about themselves, their relationship to each other and their place in the world (the construction of subjectivity). It is the complex of signs and practices which organizes social existence and social reproduction” (ASHCROFT, 2000, p.71). 106 208 Ashcroft ainda afirma que existem certas regras não verbalizadas determinando que tipos de afirmações podem ser feitas e quais as que não podem, dentro de certos discursos. Dessa maneira, surgem os seguintes questionamentos: Quais são as regras que permitem que certas afirmações sejam feitas e outras não? Que regras comandam essas afirmações? Que regras permitem o desenvolvimento de um sistema classificatório? Que regras nos permitem identificar certos indivíduos como autores? Sejam quais forem, essas tais regras referem-se todas a coisas como classificação, arrumação e distribuição daquele conhecimento de mundo que o discurso tanto possibilita quanto delimita ou proíbe, conforme exemplificado na passagem que se segue: Um bom exemplo de discurso é a Medicina. Em termos simples, nós simplesmente pensamos a Medicina como curadora de corpos doentes, porém a Medicina representa um sistema que se pode constituir sobre os corpos, sobre as doenças e sobre o mundo. A regras desse sistema determinam como nós vemos o processo de cura, a identidade do doente e, de fato, abrangem a organização da nossa relação física com o homem.107 Certos princípios de inclusão e exclusão operam de dentro desse sistema, pois algumas afirmações e coisas podem ser ditas ou feitas e outras, não. Ainda recorrendo ao exemplo do discurso médico, não se pode referir a ele sem se fazer uma distinção básica entre a “Medicina Ocidental” e a “Medicina Chinesa” (ou “Oriental”) (ASHCROFT, 2000, p. 71), uma vez que muitos métodos de cura da segunda não se coadunam com as idéias e os princípios positivistas sobre o corpo que a modalidade do discurso médico ocidental considera válidos, efetivos e “verdadeiros”. Ou seja, antes de muitos dos princípios médicos orientais passarem pelo crivo “científico” da Medicina Ocidental, práticas orientais como a acupuntura, por 107 No original em inglês: “A good example of discourse is medicine. In mundane terms we simply think of medicine as healing sick bodies. But medicine represents a system of statements that can be made about bodies, about sickness and about the world. The rules of this system determine how we view the the process of f healing, the identity of the sick and, in fact, encompass the ordering or our physical relation to the world” (ASHCROFT, 2000, p. 71). 209 exemplo, eram tidas à conta de charlatanismo ou superstição e situadas fora do âmbito do que era entendido como “verdade”, no Ocidente. Segue-se que um dos dados principais para as teorias coloniais é que a “inclinação para a verdade” está ligada à “inclinação para o poder”, da mesma forma como o poder e o conhecimento estão ligados, pois, como lembra Ashcroft: A inclinação das nações européias para o exercício do controle dominante sobre o mundo, que levou ao crescimento dos impérios, foi acompanhada de uma necessidade de confirmar as noções européias de utilidade, racionalidade e disciplina como “verdades.” 108 Ainda a respeito das noções a que “discurso” nos leva, Sarah Mills (1997) tece considerações dignas de nota baseadas nas idéias de Foucault. Dentre esses comentários e conclusões notáveis, destacamos a seguinte passagem: Para Foucault, a nossa percepção dos objetos é formada dentro dos estritos limites discursivos: o discurso é caracterizado por uma delimitação de uma categoria de objetos, pela definição de uma perspectiva legítima para o agente do saber e pela fixação de normas para a elaboração de conceitos e teorias. (...) A primeira coisa a se notar é que para Foucault o discurso causa o estreitamento do campo de visão de um indivíduo, o que exclui a consideração de um largo espectro de fenômenos do âmbito da realidade, considera-os indignos de atenção, ou até mesmo lhes nega a possibilidade de existência. Assim, a delimitação de um campo é o primeiro passo para se estabelecer um conjunto de práticas discursivas. Então, para que um discurso ou um objeto seja ativado e chamado à existência, o sujeito do saber tem que estabelecer um direito de fala para si próprio. Assim, a posse do discurso é vista como inexoravelmente ligada a questões de autoridade e legitimidade.109 108 No orginal me ingles: “The will of European nations to exercise dominant control over the world, which led to the growth of empires, was accompanied by the capacity to confirm European notions of utility, rationality, discipline as truth” (Ibid, p. 73). 109 No original em inglês: “For Foucault, our perception of objects is formed within the limits of discursive constraints: discourse is characterised by a delimitation of a field of objects, the definition of a legitimate perspective for the agent of knowledge, and the fixing of norms for the elaboration of concepts and theories. (...) The first thing to notice is that, for Foucault, discourse causes a narrowing of one’s field of vision, to exclude a wide range of phenomena from being considered as real or as worthy of attention, or as even existing; thus, delimiting a field is the first stage in establishing a set of discursive practices. Then, in order for a discourse or an object to be activated, to be called into existence, the knower has to establish a right for him/herself to speak. Thus, entry into discourse is seen to be inextricably linked to questions of authority and legitimacy” (MILLS, 1997, p. 51). 210 Sarah Mills prossegue com suas ponderações sobre o discurso enfatizando aspectos aparentemente “menores” dentro das idealizações coloniais até tocar questões mais complexas e profundas, como as das construções ideológico-discursivas sobre as vidas, as culturas, os costumes e os cotidianos dos povos colonizados pelos europeus. Uma dessas notáveis e aparentemente “inocentes” idealizações européias se fez sentir nos limites tênues que sempre dividiram os seres vivos entre as categorias “animal” e vegetal”, de acordo com períodos históricos diferentes. Por exemplo, Sarah Mills cita que no século XIX as bactérias eram enquadradas na categoria “animal”, ao passo que atualmente elas se situam numa nova categoria específica criada especialmente para elas (MILLS, 1997, p. 52). Ou seja, estamos lidando com fronteiras discursivas fluidas. Desvelando então um viés ideológico mais apropriado da questão da Biologia e do Colonialismo, Mills ainda cita que os botânicos europeus do século XIX costumavam viajar para países distantes com a finalidade de investigar espécies de plantas não-européias, levando em seu cabedal as categorias classificatórias anteriormente elaboradas por Lineu e naturalmente originadas na flora tipicamente européia. Neste ponto, recordamos também alguns pensamentos de Mary Louise Pratt (1999), que vêm ao encontro do raciocínio de Sarah Mills (1997), quando ela chama a atenção para o fato de que, assim procedendo, esses botânicos europeus alegavam “descobrir” novas plantas (como se elas e suas propriedades já não fossem conhecidas das populações nativas das áreas em que ocorriam) na Índia e na África, por exemplo, passando então a categorizá-las taxonomicamente de acordo com o sistema classificatório europeu de Lineu, que esses botânicos advogavam ser um sistema com capacidade global de definir e classificar todos os seres vivos pertencentes ao reino vegetal. Desse modo, essas plantas eram alijadas dos sistemas de classificação que as populações nativas já haviam desenvolvido para elas (de acordo com as suas propriedades, usos e “habitats”) e, com isso, os europeus “as tornavam parte de um projeto colonial mais amplo que tinha por fim último a exibição da força 211 civilizatória do Colonialismo” 110 . A planta mudava de nome, com a sofisticação conferida por uma nova denominação em latim e o discurso do colonizado para definir as suas plantas era então apagado e conseqüentemente tido como “falso”, em vista da preponderância do discurso científico europeu tido como o “verdadeiro”, nas palavras de Mills: Assim, esse conhecimento europeu globalizante não renomeava simplesmente algumas espécies de plantas, mas também aniquilava os conhecimentos nativos sobre elas. Ou seja, o colonizador passava a “colonizar” o saber nativo sobre as suas próprias plantas, impondo como válidas as visões discursivas européias. 111 Em suma, dada essa visão de alguns dos sentidos importantes de “discurso” para a teoria contemporâna, trataremos agora da relevância que o discurso desempenha nas formações identitárias das nossas protagonistas femininas. Voltando a atenção para o discurso de resistência de Caliban, percebemos que, além dos impropérios e xingamentos, percebemos que ele apresenta características queixosas e nostálgicas do tempo em que sua mãe, Sycorax, dominava toda a ilha, antes da chegada de Próspero. De certa forma, esse discurso constrói uma identidade problematizadora para o “monstro” da ilha de Próspero, porque situa Caliban fora do alcance do estereótipo do nativo visto como tabula-rasa, como é o caso de SextaFeira, o nativo da ilha de Robinson Crusoe, ou seja, como o subalterno sem voz, sem direitos, sem civilização, sem identidade, sem agenciamento etc. Não obstante já termos desenvolvido algumas considerações acerca de Caliban e do seu papel subversivo no Capítulo 4, quando abordamos alguns exemplos das teias intertextuais envolvendo algumas obras literárias coloniais/pós-coloniais das literaturas de língua inglesa, bem como Jasmine e Alias Grace, retornamos aqui, por mais algum tempo, ao discurso iconográfico de Caliban, antes de avaliarmos o quanto os discursos de Jasmine e 110 No original em inglês: “(...) and they became part of a wider colonial project which aimed to demonstrate the ‘civilising’ force of colonialism” (MILLS, 1997, p. 53). 111 No original em inglês: “Thus, this global Eurocentric knowledge did not simply rename a few plants species, but annihilated indigenous knowledge and transformed the knowledge about plants in non-European countries into colonial knowledge” (Ibid, p. 53). 212 Grace Marks ecoam mais sofisticadamente o legado discursivo e subversivo de Caliban enquanto ferramenta efetiva nos seus processos de formação identitária. Desse modo, desviamos o foco agora para uma versão instigante de Caliban introduzida por Annabel Patterson. Ela começa as suas especulações sobre a figura de Caliban através de uma estratégia intertextual, pois vai aludir a um episódio do romance Felix Holt, The Radical, de George Eliot, em que a autora “elabora as suas teorias sobre as estruturas das classes sociais, as políticas eleitorais e as profundas ligações entre o conservadorismo cultural e político” 112. Nesse romance, o herói e o narrador citam Shakespeare, e, além disso, dois dos personagens do livro, o próprio Felix Holt e o Senhor Lyon, têm uma entrevista em que passam a debater política e ideologia. Patterson, então, comenta a respeito das idéias de Holt, avaliando a sua opinião acerca da solução revolucionária que ele propõe para os estigmas de Caliban: Do jeito que Felix vê a questão, nenhuma proporção de liberação política ou de aumento de conscientização produzirá o mínimo efeito emancipatório enquanto o homem comum continuar na posição de homem comum... ‘Enquanto Caliban for Caliban, mesmo o multiplicando por um milhão, ele continuará venerando qualquer Trínculo que esteja carregando consigo uma garrafa. Eu me esqueço, entretanto, que o senhor não lê Shakespeare, Senhor Lyon”.113 Os comentários de Felix Holt são de importância crucial porque trazem à tona a visão preconceituosa das classes mais abastadas que visa a circunscrever “Caliban” a uma esfera determinista, evidenciadora das suas “más” inclinações, tidas como “naturais” por fazerem parte do seu caráter subalterno. Porém, nesse ponto, relembramos as idéias de Fernández Retamar, privilegiando aqui uma visão inversa: aquela que reconhece nesse Caliban referido por Félix Holt os indivíduos subalternos e feitos “irrecuperavelmente” inferiores pela 112 No original em inglês: “(...) elaborates her theories of class structure, electoral politics and the deep connections between cultural and political conservatism” (PATTERSON, 1989, p. 154). 113 No original em inglês: “As Felix sees it, no amount of political liberation or consciousness-raising will have any melioristic effect while the common man remains the common man:...’While Caliban is Caliban, though you multiply him by a millio, he’ll worship every Trínculo that carries a bottle. I forget, though – you don’t read Shakespeare, Mr. Lyon” (PATTERSON, 1989, p. 154). 213 consideração opressora das classes que Holt representa, enfim toda aquela massa de excluídos, pelas mais diferentes razões de dominação, constituída pelos deserdados do planeta (FERNÁNDEZ, 1997). Segundo as próprias palavras de Holt, a solução para que eles se livrem desse estigma passa pelo fato de que têm que deixar de “ser” Calibans. Isto equivale ao engajamento em um processo de empoderamento, aquisição de voz e de conscientização política (conforme o fazem as protagonistas Jasmine e Grace Marks, embora em graus diferentes). Patterson ainda nos adverte que a questão não é tão simples e clara quanto querem alguns, quando afirma que: “Seguindo o foco, embora não as opiniões de George Eliot, eu acredito que Caliban tenha sempre representado, tanto quanto o Outro elemento racial, aquelas subclasses sobre cuja baixa inclinação e natureza Felix Holt está certo” 114. Fica então patente a opinião preconceituosa e desabonadora que Felix Holt emite sobre esses seres humanos ditos subalternos. O comentário de Felix é de importância crucial porque explicita o fato de que, se todos os indivíduos ao redor do mundo que amargam os efeitos do colonialismo ou do póscolonialismo forem vistos como os Calibans contemporâneos, uma possível solução para eles alcançarem a liberação dos estigmas calibanescos é justamente “deixarem de ser Calibans”, fato que nós interpretamos aqui como a conquista de agenciamento e voz para a construção de uma subjetividade positiva e emancipada. Naturalmente, Felix Holt (mesmo falando de dentro de um texto ficcional) emite opiniões que se aplicam à situação real e trágica das legiões de pobres e miseráveis existentes pelo mundo afora, da mesma forma que Fernández Retamar usa Caliban (personagem ficcional shakespeariana, iconográfica do indivíduo colonizado subalterno) como metáfora dos indivíduos excluídos e miseráveis da terra. Assim, percebemos que Annabel Patterson nos mostra, mesmo que através da fala de Felix Holt, personagem ficcional conservador e preconceituoso, uma visão limítrofe e exaustiva de Caliban, ou seja, 114 No original em inglês: “Following the focus, though not the opinions of George Eliot, I assume that Caliban has always represented, as well as the racial Other, those underclasses of whose low nature and inclination Felix Holt is certain” (Ibid, 156-157). 214 sugere que, se Caliban não partir para a ação efetiva (agenciamento), ele continuará amargando as desvantagens de continuar sendo Caliban. O mesmo é fartamente ilustrado por Fernández Retamar, que também aborda o crescimento em progressão geométrica do efetivo de Calibans no mundo contemporâneo, o que torna a situação mais tensa e conflitante. Tanto as idéias de Annabel Patterson quanto as de Fernández Retamar podem ser complementadas ainda pelas de Ania Loomba, que serão enfocadas mais adiante neste Capítulo. Todavia, outra avaliação digna de registro sobre Caliban é ainda proposta por Fernández Retamar, quando ele usa a idéia de Spivak de "metáfora conceitual" para declarar que "Caliban" não é somente um nome em uma peça teatral, mas uma “metáfora conceitual” poderosa não exclusivamente aplicável aos excluídos do Caribe e da América Latina. De acordo com Fernández Retamar, Caliban se refere "aos miseráveis da terra como um todo, cuja existência alcançou uma dimensão sem igual desde 1492" 115 , a data da descoberta (ou invasão?) da América, o que claramente nos permite acomodar tanto Jasmine quanto Grace Marks nessa "metáfora conceitual". No seu famoso de que já tratamos, Fernández Retamar questiona e reexamina conceitos e idéias como “descobertas/invasões coloniais”, "terceiro mundo", "países desenvolvidos e subdesenvolvidos", "raça" e "etnia", por exemplo. Porém, uma das referências mais sintomáticas que ele faz tem a ver com as polarizações "Ocidente/Oriente" e "Norte/Sul" que correspondiam às noções de "rico/pobre", "desenvolvido/subdesenvolvido", "dominante/subalterno", respectivamente, enfatizando o crescimento desmedido que afeta os Calibans históricos, ao afirmar que: Enquanto eu escrevo este artigo, eles constituem mais de dois-terços dos seres humanos que vivem agora; no início do século XXI (ou seja, amanhã), eles serão três-quartos do mundo e, pelo meio daquele século, constituirão nove-décimos da população mundial.116 115 No original em inglês: “ (...) to the wretched of the earth as a whole, whose existence has reached a unique dimension since 1492” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 163). 116 No original em inglês: “As I write this essay they constitute more than two-thirds of the human beings now living; by the beginning of the twenty-first century (which is to say, tomorrow), they will be three-fourths of the world, and by the middle of that century, nine-tenths” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 169). 215 Fernández Retamar também diz que Caliban está indo para o Norte (e sentimo-nos livres para afirmar que ele está indo para o Ocidente, também) quando ele se refere às migrações volumosas das pessoas de países pobres para os países ricos da parte norte e ocidental do mundo. Isto é apresentado como um fato irrevogável e gerador de situações contraditórias e de difícil manejo para os países ricos. Mais uma vez, esses dados históricos refletem-se nas trajetórias ficcionais de Jasmine e Grace Marks, enquanto imigrantes de países pobres à procura de melhores condições de sobrevivência em países mais ricos do que as suas nações de origem. Ao término do artigo, Fernández Retamar elabora uma teoria de tolerância e de assimilação de “Caliban”, que idealmente deveria ser posta em prática por "Próspero" (os países ricos das partes setentrionais e ocidentais do globo) como a única possibilidade para a paz mundial nos próximos anos. Em vista de todo esse conjunto de conceitos positivos e negativos sobre os excluídos e miseráveis da terra, onde também identificamos o lugar do colonizado subalterno, podemos traçar vários paralelos com as situações envolvendo Jasmine e Grace Marks, inclusive também para detectar as possibilidades de superação das marcas calibanescas negativas. Assim, se a tentativa de analisar o legado de Caliban (tanto em sua conotação tradicional de “fardo” quanto em suas visões contemporâneas mais favoráveis do subalterno pós-colonial que luta para adquirir voz e poder) for uma das estratégias principais aqui para apreciar o processo de subjetificação e empoderamento de Jasmine e Grace Marks, teremos que abordar ao mesmo tempo as imposições ideológicas negativas sobre o colonizado e as tentativas de liberação desses estigmas de opressão. Em outras palavras, é possível achar em Jasmine e Grace Marks tanto as noções do colonizado visto como “fardo” (conforme ilustrado por Kipling no poema "O Fardo do Homem Branco”, em que o poeta verbaliza a idealização negativa do colonizado corrente e tida como “verdadeira” no século XIX), quanto vários 216 indícios de construção identitária mais positiva e problematizadora de uma subjetividade mais rica e complexa do que sempre concebeu o pensamento colonialista. Se nós levarmos em conta a monstruosidade alegada de Caliban, como também a sua condição de "figura luxuriosa, desvirtuada e pecadora", como Lorrie J. Leininger declara, e tentarmos aplicar isto a Jasmine e a Grace Marks, poderemos nos deparar com uma visão invertida de “Próspero” como “figura luxuriosa e transgressora”. Em Jasmine,por exemplo, nos capítulos 15 e 16, Bharati Mukherjee descreve as condições absolutamente terríveis sob as quais o deslocamento diaspórico de Jasmine aconteceu, como uma imigrante clandestina para a América, assim como relata a “ajuda” que Jasmine recebeu de “Half-Face”, o capitão do navio clandestino. Disfarçado de protetor, ele oferece ajuda a Jasmine em suas primeiras horas em terra americana, mas com intenções de roubá-la e estuprá-la, como é descrito sutilmente pela autora: Ele me encarou. As suas mãos estavam tremendo e então ele gritou, "Oh, Deus!" e tentou me beijar, mas ele estava descontrolado – mãos e rosto movimentando-se sem cessar. Eu me contorci, retardando somente um pouco o inevitável, fazendo a coisa ficar pior, mais forçada e mais violenta. Eu tentei manter meus olhos em Gampati e rezei para que Ele me desse forças para sobreviver àquilo, nem que fosse para eu mesma pôr fim à minha vida depois que tudo acabasse. 117 Na realidade, este é o primeiro contato traumático de Jasmine com o Outro. Em outras palavras, pode-se dizer que é "Prospero", sob o disfarce de Half-Face, ainda a figura luxuriosa querendo estuprar Caliban. Vale notar, embora não haja evidências no texto (é possível que não tenha sido intencional por parte de Bharati Mukherjee), como o prosaico nome "HalfFace" corresponde às “meias-condições” atribuídas a Caliban em A Tempestade: “meiohomem”, “meio-monstro”, “meio-peixe” etc. 117 No original em inglês: “He stared. His hands were trembling and then he whooped, ‘Oh, God!’ and tried to kiss me, but he was all hands and face in motion. I twisted, only delaying the inevitable, making it worse perhaps, more forced, more violent. I tried to keep my eyes on Gampati and prayed for the strength to survive, long enough to kill myself” (MUKHERJEE, 1991, p. 103-104). 217 A despeito de todos os contornos trágicos da cena do estupro, a narradora do romance consegue achar espaço para um leve afastamento das questões diretamente envolvidas com o estupro em si e então abordar outros aspectos referentes à outridade (“otherness”), no que respeita às diferenças culturais entre a Índia e os Estados Unidos: mesmo traumatizada pelo estupro, Jasmine consegue incorporar aos seus pensamentos observações de diferenças entre o seu país de origem e a América, comparando, por exemplo, as condições sanitárias de um e de outro país. Tudo isso tem lugar quando ela está no banheiro do motel para se lavar, antes de Half-Face continuar a “segunda fase” do estupro, como se ilustra na seguinte passagem: Ele parecia achar tudo muito divertido. Eu liguei o chuveiro, procurando ajustar a ducha para a água quente. O ruído das gotas de água bombardeando a cortina do “box” levaram-me ao vômito. Então, eu me banhei. Eu nunca tinha usado um chuveiro ocidental, tendo que me banhar de pé, em vez de ficar de cócoras, com todo aquele jato d’água automático saindo do esguicho da ducha, em vez de ter que usar água fria tirada de um balde com um canecão. Aquilo tudo parecia milagroso, pois como poderia ser possível que num lugar tão deserto, assemelhado a um hospício ou prisão, onde um dos mais hediondos crimes acabara de ser cometido, a água pudesse ser quente, os ladrilhos e as porcelanas tão limpas, sem odores e sem manchas? Aquele era um lugar que tinha uma certa pureza no ar. 118 Outra interpretação importante do estupro de Jasmine por Half-Face é a que vê os corpos da estuprada e do estuprador como metáforas da colônia e da metrópole, respectivamente. Se nós pensarmos em termos da Índia como uma colônia/ex-colônia da Inglaterra como a grande nação colonizadora da Índia, e dos Estados Unidos como o representante contemporâneo principal das nações neocoloniais superpoderosas, é possível interpretar Jasmine e Half-Face como metáforas nesse sentido. Para tanto, bastaria que nos lembrássemos que existem vários registros acerca da época dos primeiros contatos entre os colonizadores e os colonizados que dão conta de que uma das reações dos colonizados era 118 No original em inglês: “He seemed to find it amusing. I turned on the shower, making it hot. With water pelting the shower curtain, I vomited. Then I showered. I had never used a Western shower, standing instead of squatting, with automatic hot water coming hard from a nozzle instead of cool water from a hand-dipped pitcher. It seemed like a miracle, that even here in a place that looked deserted, a place like a madhouse or a prison, where the most hideous crime took place, the water should be hot, the tiles and porcelain should be clean, without smells, without bugs. It was a place that permitted a kind of purity”(MUKHERJEE, 1991, p. 104). 218 ficar sob uma espécie de encantamento ante as diferenças étnicas e culturais e o poder “tecnológico” dos colonizadores, o que expressa uma certa pureza e inocência em relação aos reais propósitos destes últimos. De certa forma, essa relação de inocência se reduplica na inocência e naturalidade com que Jasmine aceita o oferecimento de “proteção” por parte de Half-Face, com a conseqüente aquiescência em repartir o mesmo quarto do motel com ele. Esse simples fato permite-nos interpretar a cena do estupro como metafórica da devastação e dos insidiosos ataques das metrópoles contra as colônias no passado e das potências neocolonizadoras contra as nações pobres da atualidade. As seguintes palavras de Bonnici corroboram essa idéia quando ele nos lembra como eram vistas as relações entre a Europa e o Novo Mundo logo após a “descoberta” (ou “invasão”, segundo Fernández Retamar{1997, p. 164}) das Américas: A insistência em descrever o Novo Mundo utopicamente não se explica apenas pelo fascínio de algo não imaginado na Idade Média, mas também pelo descortinamento da “virgem” (a gravura de Stradanus é emblemática), que necessita ser “deflorada” pelo europeu para que a possua e dela usufrua para o capitalismo mercantil ora iniciado (BONNICI, 2000, p. 53). Naturalmente, poderíamos ter muitas outras interpretações dessa memorável passagem do livro de Mukherjee sobre o trágico encontro da mulher de cor indiana com o norteamericano branco, metaforizando respectivamente um sujeito pós-colonial feminino e o representante de uma nação superpoderosa da contemporaneidade, porém nenhuma outra pode ser mais impactante do que a que eleva o significado do estupro para um nível histórico de exploração colonial e pós-colonial desmedida. No entanto, não podemos nos esquecer de que a cena também nos remete mais denotativamente à “representação de uma das mais esquecidas e suprimidas narrativas do colonialismo: a dos estupros das mulheres colonizadas 219 pelos colonizadores brancos” 119 . A esse respeito, também podemos citar Jenny Sharpe ao rememorar o Motim Indiano de 1857, em Allegories of Empire, quando ela cita que os corpos estuprados e mutilados das mulheres inglesas funcionaram como evidências da violação do colonialismo (SHARPE, 1993, p.4) e eram mencionados veementemente na reconstituição do poder colonial depois do fim do motim. Todavia, a situação contrária não era digna da mesma publicidade, ou seja, os corpos violados das inúmeras mulheres que enxamearam o caminho da Inglaterra para a reconquista do seu poderio e o restabelecimento da sua autoridade colonial pós-motim jamais figuraram em registros oficiais das ações coloniais inglesas, o que confirma de certa forma a noção evidenciada por Bonnici de que os territórios coloniais – assim como os corpos das colonizadas - estão lá para serem “deflorados” pelos colonizadores brancos. O estupro de Jasmine, porém, parece apontar para um caminho bem diferente, uma vez que ela tem uma súbita reação de vingança que inverte totalmente as coisas em seu favor e passa a determinar seus próximos passos em solo americano, rumo às novas identidades que se formarão a partir desse episódio. Num momento seguinte à cena do chuveiro, Jasmine acha uma faca escondida entre os seus pertences. Primeiramente, pensa em então cometer suicídio, mas como ela não reconhece a sua própria imagem no espelho (o que será retomado aqui mais à frente), essa idéia desaparece da sua mente. Na verdade, mesmo não vendo a própria imagem no espelho, ela passa a enxergar um vulto embrionário de uma criatura que não parece ser ela mesma, mas uma “sombra”, como se relata a seguir: Eu não conseguia me ver no espelho, todo tomado de vapor d’água, – mas somente uma sombra negra bem no centro da superfície úmida. Da mesma forma, eu não conseguia ver, como eu tinha desejado, um braço se elevando até o pescoço, um corte suave e o fim da minha missão. 120 119 No original em inglês: “a figuration of one of the forgotten and suppressed narratives of colonialism: the rape of colonized women by white male colonizers” (WICKRAMAGAMAGE, 1996, p. 73). 120 No original em inglês: “I could not see myself in the steamed-up mirror - only a shadow in the center of the glass. I could not see, as I had wanted to, an arm reaching to the neck, the swift slice, the end of my mission” (MUKHERJEE, 1991, p. 104). 220 Na verdade, em vez de se matar, Jasmine estende a língua e a corta em forma de forquilha (o que provoca o aspecto de língua de cobra), como parte de um inesperado ritual de transformação em Kali, a deusa hindu da vingança e da morte. A descrição da morte de HalfFace é muito mais trágica do que a narração do estupro de Jasmine, o que é bastante sintomático em termos da potencial resistência do subordinado em relação ao seu opressor. Todavia, paira no ar um certo senso de justiça que não nos remete à “monstruosidade” potencial de Caliban. Na verdade, ocorre uma inversão, pois a alegada monstruosidade e a luxúria desmedida atribuídas a Caliban estão totalmente representadas no ato vil do estupro perpetrado por Half-Face contra uma mocinha inocente e “indefesa”. De acordo, com as novas possibilidades desconstrutivas de interpretação, Jasmine pode ser “lida” como Caliban, mas como “um Caliban diferente”: um sujeito pós-colonial em processo de aquisição identitária, que de alguma forma consegue achar o seu caminho seguindo as trilhas dos entrelugares a que ela sempre esteve sujeita. Em suma, mesmo sob condições extremamente dolorosas, ela consegue estabelecer um padrão de resistência e sobrevivência. Em conseqüência disso, reina no romance uma atmosfera positiva, possibilitada pela noção de que ela vai conseguir impor sua própria voz e minar as forças de dominação. É exatamente este tipo de comportamento de ruptura da parte da protagonista feminina que faz o romance de Mukherjee assumir posição de destaque, se comparado a uma série de outros que representam a construção da identidade de mulheres pós-coloniais do terceiromundo. Em grande parte deles, as personagens femininas têm um comportamento mais tíbio com relação à conquista de voz e agenciamento. Porém, como Carmen Wickramagamage afirma “Jasmine recusa-se a permanecer um corpo estuprado mudo. Ela ‘se salva’ porque 221 recusa aquela designação genérica e racista dela mesma que torna o estupro possível” 121 . Além disso, a inesperada mudança de ação – de suicídio para homicídio – corresponde a uma mudança radical de comportamento, na medida em que ela pára de se ver como um objeto de sacrifício passivo (“woman as sati”) para considerar-se numa posição mais privilegiada como mulher poderosa (“woman as shakti”), representada pela “incorporação” de Kali no momento da morte de Half-Face. Tal fato é de extrema importância para a caracterização do empoderamento de Jasmine, sua aquisição de voz e seu agenciamento, porque ele situa a mulher numa posição singular, tanto na cultura indiana quanto na cultural ocidental, se o papel de Kali for levado em consideração, conforme afirma Veena Das: É significante que tanto em nível local e todo o nível da Índia em geral a deusa-mãe na sua forma “shakti” normalmente aparece sozinha e não é abarcada por um princípio masculino superior (...) A forma “shakti” da deusa aparece em contraste com o princípio “sati’, no qual a mulher é apresentada como subordinada ao seu marido. 122 Vale a pena ressaltar que a argumentação de Veena Das sublinha a aquisição de poder por parte de Jasmine, já que ela demonstra a sua falta de inclinação para confirmar o estereótipo normativo da mulher indiana autodestruidora e vítima de sacrifício123, assim como o da “mulher do terceiro mundo”, de acordo com os parâmetros do discurso dominante. Além disso, uma outra evidência do empoderamento de Jasmine é que ela inicialmente aceita a ajuda de Half-Face, porque esse oferecimento parece estar simplesmente imbuído de razões humanitárias, mas reage violentamente quando é afetada pelas conseqüências das suas reais 121 No original em inglês: “Jasmine refuses to remain a silent raped body. She ‘saves’ herself because she refuses that racialized and gendered designation of herself which makes the rape possible” (WICKRAMAGAMAGE, 1996, p. 75). 122 No original em inglês: “It is significant that both at the local and all the Indian level, the mother goddess in her shakti form usually stands alone, and is not encompassed in a higher male principle… The shakti form of the goddess stands in contrast with the sati principle wherein the woman is represented as subordinated to her husband” (VEENA DAS, 1998, p. 27). 123 Vale frisar que “sati” é também o nome do tradicional suicídio das viúvas na Índia, em que elas se atiram nas labaredas da fogueira onde o corpo do marido está sendo cremado. 222 intenções, o que destrói a idéia de “mulher oriental submissa”, conforme lembrado por Wickramagamage (1996, p. 74). A situação fica até mesmo irônica se recordarmos o fato de que Half-Face é um herói da Guerra do Vietnã, ou seja, ele esteve na Ásia e aprendeu que a vontade dos povos subordinados não tem importância. Assim, ele se sente no direito de possuir o corpo de Jasmine porque ele apenas a vê como um corpo que é produto de idealizações racistas e de gênero e que está ali para ser possuído. Entretanto, ele é forçado a experimentar uma realidade trágica, conforme se verifica nas palavras de Jasmine: “Eu desejei aquele momento quando ele me viu sobre ele no seu último instante de vida, nua, mas então com a minha boca cheia e depois despejando sangue, com a minha língua vermelha para fora”. 124 Aproveitando as referências pejorativas de Caliban e antes de partirmos para a tarefa de pontilhar as instâncias de empoderamento de Grace Marks e o seu conseqüente processo de formação identitária, decidimos enfocar rapidamente alguns exemplos históricos de, por assim dizer, duas “versões femininas” de Caliban, sobre as quais os discursos coloniais obliterantes lançaram tantas idealizações negativas. Referimo-nos aqui a Pocahontas e Malintzin Tenepal (ou La Malinche). Primeiramente, enfocaremos brevemente a referência a Pocahontas feita por Paul Brown em um artigo bastante instigante sobre A Tempestade e o discurso do Colonialismo (1997). Antes de analisar os discursos colonizadores sobre Caliban, Brown traça alguns paralelos dignos de nota. O primeiro deles dá conta do episódio ocorrido no início da colonização da América, quando em 1614 (sete anos após a chegada dos primeiros colonos ingleses em solo americano), o fazendeiro John Rolfe (cultivador do então “ouro verde” da colônia, o tabaco) escreveu uma carta ao Governador da Colônia, pedindo a sua bênção e o seu consentimento para que ele se casasse com Pocahontas, filha do Grande Chefe Powhatan, que comandava várias comunidades indígenas na região costeira da Virgínia. Essa 124 No original em inglês: “I wanted that moment when he saw me above him as he had last seen me, naked, but now with my mouth open, pouring blood, my red tongue out” (MUKHERJEE, 1991, p. 105-106). 223 carta é na verdade um documento de grande valor para o Colonialismo e as Teorias PósColoniais, pois situa John Rolfe como colonizador e Pocahontas como o “Outro” selvagem. É aqui que posicionamos a princesa indígena como uma versão feminina do Caliban, uma vez que ela é descrita como uma criatura “incrédula” e concupiscente, responsável pelo quase incontrolável desejo de Rolfe. Em virtude disso, pelo bem da Colônia, pela ordem e pela necessidade de conversão da alma da selvagem (e de todo o seu povo indígena), John Rolfe resistiu à “tentação” carnal oferecida pela índia até o casamento. Na verdade, o casamento com a filha do Grande Chefe Powhatan teve também motivações políticas (“o bem da Colônia”), pois, uma vez casado com Pocahontas, formar-se-ia uma espécie de aliança de paz com Powhatan. Note-se também que nos registros históricos consta o envolvimento sentimental de Pocahontas com o fundador da Colônia da Virgínia, John Smith (O’CALLAGHAN, 1990, p. 13). Vale ressaltar, igualmente, que na carta ao Governador da Virgínia, Rolfe teria enfatizado o poder do sujeito público (colonizador), representante da Coroa Inglesa (ele mesmo, no caso) para manter o autocontrole em face da extrema situação de tentação carnal a que Pocahontas o arrastava. Através desse alegado autocontrole, ele pôde trazer o “Outro” selvagem para o seu domínio, mesmo sob uma circunstância tão delicada em que o seu desejo poderia ameaçar a própria condição de mestre (BROWN, 1997, p. 50). O trecho que se segue dá conta do poder “civilizatório” que o contato com a metrópole pode proporcionar ao selvagem: Depois do seu ímpeto inicial de denunciar Rolfe como um traidor da Coroa, o Rei Jaime I permitiu que a “princesa”, então batizada de Lady Rebecca, fosse recebida na Corte, como um sinal evidente do poder civilizatório de transformar o Outro. Pocahontas morreria inesperadamente após nove dias na Inglaterra;125 Rolfe retornou para a sua plantação de tabaco, para acabar sendo morto no Grande Levante Indígena de 1622. O mito da Pocahontas estava apenas começando, entretanto. 126 125 O’Callaghan (1990, p. 15) registra que Pocahontas teve um filho com Rolfe e que o mesmo ficou na Inglaterra, somente retornando à Virgínia quando adulto, criando um mito recorrente entre os habitantes da Virgínia de que muitos deles seriam descendentes de Pocahontas. (Esta nota não consta no texto original de Brown (1997); foi inserida pelo autor desta Tese.) 126 No original em inglês: “After his initial calls for Rolfe to be denounced as a traitor, James I allowed the ‘princess’, newly christened ‘Lady Rebecca’, into court as a visible evidence of the power of civility to transform the other. Pocahontas was to die in England a nine day’s wonder; Rolfe returned to his tobacco plantation, to be 224 Não resta dúvida de que Pocahontas foi tratada como o Outro selvagem durante todo o tempo, tanto por Rolfe, como pelos ingleses, o que facilita sua interpretação como uma versão feminina histórica do Caliban ficcional de Shakespeare. A outra personagem histórica que também pode ser tida como mais uma versão feminina do “monstro” shakesperiano é Malintzin Tenepal, que se mitificou com o nome de La Malinche. Diz-nos Mônica Castello Branco de Oliveira (2005, p. 3) que Malintzin era uma menina indígena de uma família asteca nobre. Depois que o seu pai morreu, sua mãe casou-se de novo e teve outro filho. A partir daí, Malintzin foi rejeitada pela própria mãe, que a vendeu como escrava para a tribo Xicalango, a qual, por sua vez, a vendeu de novo para a tribo Tlaxalteca. Adveio daí que Malintzin teve contato com diferentes tribos e culturas, possibilitando-lhe o aprendizado de muitos dialetos. Quando os espanhóis invadiram o México, Malintzin foi oferecida para eles como um presente. Ela tinha então quatorze anos, quando se tornou a amante, a tradutora e a intérprete do conquistador Hernán Cortés. Naturalmente, assim como ocorreu com Pocahontas, ela foi batizada e recebeu o nome de Doña Marina. Os desdobramentos que se seguiram são apropriadamente expressos pelas palavras de Mônica Oliveira, abaixo: Fica claro que a estratégia usada para destruir o Império Asteca dependeu grandemente da habilidade de Cortés se comunicar com os seus oponentes. Esta é a razão pela qual Doña Marina, conhecida como ‘la lengua’ entre os soldados espanhóis, foi de vital importância para o sucesso da conquista espanhola. Doña Marina não foi simplesmente uma tradutora. Ela costumava dar a Cortés e às tribos indígenas valorosos conselhos, auxiliando a conquista espanhola e contribuindo para a formação de uma nova cultura, que era uma mistura das características indígenas e espanholas. 127 killed in the great uprising of the Indians in 1622. The Pocahontas myth was only beginning, however” (BROWN, 1997, p. 50) 127 No original em inglês: “It is clear that the strategy used to destroy the Aztec empire depended greatly on Cortés’s ability to communicate with his opponents. That is the reason why Doña Marina, known as ‘la lengua’ among the Spanish soldiers, was of utmost importance for the success of the Spanish conquest. Doña Marina was not only a translator. She used to give Cortés and the indigenous tribes pieces of advice, helping the Spanish conquest and contributing to the formation of a new culture, the one which was a blend of Indian and Spanish characteristics” (OLIVEIRA, 2005, p. 3). 225 Como já afirmamos, a Malintzin/Doña Marina histórica passou à condição de mito como La Malinche, considerada uma traidora pelo povo mexicano, de forma que normalmente a ela se referem como “La Chingada” (“the fucked one”, em inglês), ou como a mãe que vendeu seus filhos para um povo estrangeiro. Todavia, ela também tem outro papel relevante que não pode ser negligenciado – ela é considerada a mãe simbólica do povo mexicano, uma vez que o seu filho com Cortés foi o primeiro “mestizo” mexicano, de forma que se pode dizer que Malintzin originou uma nova raça – os mexicanos. Assim, criou-se um mito paradoxal, que acabou virando um importante ícone de resistência apropriado pelas feministas e escritoras chicanas, que vêem nela um símbolo de coragem e busca de identidade. A respeito de Malintzin, Donna Haraway afirma que “as mulheres de cor a transformaram da mãe maléfica dos medos masculinos na mãe alfabetizada que ensina a sobrevivência”. 128 Já Norma Alarcón (1994, p. 14) mostra como Octávio Paz em um dos seus ensaios torna-se o primeiro escritor a subverter o tradicional mito de La Malinche, não a considerando como traidora. Ademais, Alárcon explica também como os conceitos de “tradutora” e “traidora” se interpenetram na figura de La Malinche. Enfim, percebe-se tanto na figura de Malintzin quanto na de Pocahontas a situação do sujeito colonial feminino num entrelugar cultural, lingüístico, emocional e histórico, o que problematiza as suas identidades e reafirma a necessidade de o colonizador as enxergar como um Outro, selvagem e domesticável através da cristianização. Como não poderia deixar de ser, os indivíduos envolvidos nesse complexo emaranhado de relações, percalços e interpretações de versões históricas distorcidas sobre o colonizado e o colonizador acabam por não sair ilesos desse processo, como aconteceu com Pocahontas e Malintzin nos estratos históricos do Colonialismo. 128 No original em inglês: “Women of color have transformed her from the evil mother of masculinist fear into the originally literate mother who teaches survival” (HARAWAY, 1990, p. 218-219). 226 No nível ficcional, em Jasmine e Alias Grace, essas relações são apresentadas nas narrativas de uma forma dinâmica e multifacetada, também carregadas de percalços e dificuldades, mas caracterizando o que Linda Hutcheon chama de descentramento filosófico, arqueológico e psicanalítico do conceito de sujeito (HUTCHEON, 1992, p. 159), o que já reduz o indício de vitimização das personagens e aponta para possibilidades mais positivas de construção identitária. Em virtude da ênfase nas representações peculiares da subjetividade das protagonistas e na forma das narrativas, que não privilegiam visões e interpretações monolíticas e, portanto, definitivamente formatadas, o que se verifica, em conseqüência, é o efeito da reescritura, da reinterpretação de fatos históricos (da vida pública e privada) e a recriação de gêneros narrativos, em maior ou menor grau, num e noutro romance. Tendo, então, como premissas básicas para uma leitura comparativa de Jasmine e Alias Grace algumas das características pós-modernas citadas, percebem-se, de imediato, as brechas e as lacunas que se evidenciam quando da análise mais detida dos dois romances. Entretanto, apesar dessas brechas e lacunas, - e usando uma metáfora recorrente em Alias Grace e amplamente aludida no Capítulo 2 - é possível “costurar” alguns pontos das várias interseções entre os dois romances, fazendo com que eles se toquem naquilo que têm de mais comum: as questões relativas às diásporas e à construção/representação das identidades dos sujeitos pós-coloniais femininos que neles figuram. Ainda a propósito da metáfora da costura em Alias Grace, deve-se registrar que esse recurso narrativo pode ser visto por outro ângulo comparativo, pois também dá conta da ansiedade das protagonistas femininas dos dois romances de juntar os vários pedaços e fragmentos das suas vidas, emoções e sentimentos, assim como também pode representar as características pós-modernas de analisar, reinterpretar, reescrever e juntar fragmentos dispersos, incluindo as margens e corporificando um campo de interpretações extremamente abrangente. 227 Em Jasmine, por exemplo, o que mais marca a narrativa é o seu alto grau de fragmentação, uma vez que Bharati Mukherjee não adota uma abordagem linear na apresentação dos eventos e das várias personalidades da sua protagonista, expostas como se fossem reencarnações, ou outras vidas, da mesma mulher. Por todos os vinte e seis capítulos de que o romance é constituído, a protagonista é sucessivamente chamada de Jyoti, Jasmine, Kali (a deusa Hindu da morte e da vingança), Jazzy, Jase e Jane Ripplemeyer, de acordo com os seus deslocamentos diaspóricos e os homens que tem. Para efeito de simplificação, nos concentraremos, a partir de agora, nas interseções entre Jasmine e Alias Grace que enfocam os deslocamentos diaspóricos e a formação das identidades dos sujeitos pós-coloniais femininos. Em suma, esta linha de pensamento desconstrói as noções de identidade fixa e estável do sujeito pós-moderno retratado na literatura, assim como não lhe reserva um espaço físico contíguo e restrito de movimentação, delimitado por fronteiras nacionais, graças aos processos diaspóricos a que as condições colonial e pós-colonial têm submetido esses mesmos sujeitos pós-coloniais. Embora em Jasmine a questão diaspórica afete a trajetória da protagonista feminina de uma forma radical, tornando-se uma das forças motrizes a verdadeiramente lançá-la num turbilhão de deslocamentos geográficos transnacionais e rompimentos emocionais, em Alias Grace a questão diaspórica aparece minimizada, em função da pujança da metaficção historiográfica, o gênero narrativo predominante no romance. Contudo, as menções e caracterizações de Grace Marks a trazem para a mesma condição de subalternidade que atinge Jasmine, a protagonista do livro de Bharati Mukherjee. Em conseqüência, por mais paradoxal que possa parecer, as suas condições de sujeitos póscoloniais femininos subalternos vão se alternando e mesclando com os seus respectivos potenciais de superação dessa pecha, que as oprime e exclui duplamente, por serem sujeitos pós-coloniais e mulheres. 228 Rememorando o sumário retrospectivo dos dois romances, já efetivado no Capítulo 1, ressaltamos de início a importância dos deslocamentos diaspóricos nas vidas das duas protagonistas como fatores enfatizadores da fluidez das suas alteridades e de todos os eventos que têm relação com as suas vidas. Primeiramente, enfocaremos a situação de Jasmine, porque a diáspora parece exercer efeito mais contundente nela do que em Grace Marks. Na verdade, a certa altura, a personalidade e o psiquismo de Jasmine parecem estar tão fragmentados que se tem a impressão de que ela vai continuar a se desdobrar em outras personalidades indefinidamente, como se já estivesse tão inexoravelmente envolvida num processo de assimilação cultural e hibridização que a identidade fixa e a localização geográfica estável já não mais pudessem fazer parte da sua vida, como se ilustra na seguinte passagem do romance: Existem linhas aéreas nacionais voando pelo mundo que não figuram em qualquer lista ou catálogo oficial. Existem certos vôos fretados que perderam seus rumos e agora simplesmente voam, improvisando suas tripulações e destinos. Em tais vôos não se serve comida nem bebida, e sua tripulação parece ser explorada. Existe um mundo nas sombras aéreas que permanentemente divide as rotas e freqüências de rádio com a Pan Am, a British Air e a Air-India, embarcando pessoas que coexistem com turistas e homens de negócios. Mas nós somos refugiados, mercenários e trabalhadores convidados. Podemos ser vistos dormindo em saguões de aeroportos; desembrulhando o que sobrou das nossas comidas nativas; estendendo os nossos tapetes para ajoelharmos e rezarmos; lendo os nossos livros sagrados; abrindo, pela centésima vez, um telegrama prometendo um emprego ou simplesmente um canto para dormir; folheando um jornal em nossa língua; olhando uma foto de tempos mais felizes; segurando um passaporte, um visto (...). 129 A citação acima afigura-se como representativa de uma das passagens que mais fielmente retratam a condição “hifenada” e híbrida da protagonista, uma vez que descreve 129 No original em inglês: “There are national airlines flying the world that do not appear in any directory. There are charters who’ve lost their way and now just fly, improvising crews and destinations. They serve no food, no beverages. Their crews often look abused. There is a shadow world of permanently aloft that share air lines and radio frequencies with Pan Am and British Air and Air-India, portaging people who coexist with tourists and businessmen. But we are refugees and mercenaries and guest workers; you see us sleeping in airport lounges, you watch us unwrapping the last of our native foods, unrolling our prayer rugs, reading our holy books, taking out for the hundredth time an aerogram promising a job or a space to sleep, a newspaper in our language, a photo of happier times, a passport, a visa, a laissez-passer” (MUKHERJEE, 1991, p. 90). 229 claramente o fato de estar em um entrelugar (BHABHA, 2003). Ainda segundo Bhabha, essa condição tão comumente comungada por imigrantes reais e ficcionais gera ansiedades, confusões e um sentido de desorientação com relação ao que está por vir (aquilo que já está na esfera do “pós”). Como resultado desse processo, o autor afirma que a consciência das posições do sujeito (em termos de raça, gênero, lugar institucional, localidade geopolítica e orientação sexual) passou a se originar do afastamento das singularidades de “classe” e de “gênero” como categorias conceituais e organizacionais fixas e estáveis. Dessa nova forma de se encarar e teorizar o sujeito surgem os “entrelugares”, que fornecem o terreno adequado para a elaboração de estratégias de subjetificação – individual ou coletiva - , e dão início a novos paradigmas identitários, assim como postos inovadores de colaboração e de contestação no ato de definir a própria identidade (BHABHA, 2003, p.20). Um bom exemplo dessas brechas e desse sentido de desorientação, assim como de se estar nos “entrelugares” identitários e geográficos, é retratado na seguinte passagem de Jasmine: Eu nunca deveria ter sido Jane Riplemeyer de Baden, Iowa. Eu deveria ter nascido e morrido naquele vilarejo feudal, talvez fazendo um salto monumental para a moderna Julundar. O Lorde Yama a deveria ter levado – “Sim”, eu digo a ela, “Eu acredito mesmo no que você diz”. Nós de fato continuamos a revisitar o mundo. Eu mesma viajei no tempo e no espaço – isto é possível.” Jyoti de Hasnapur não era a Jasmine, nem a babazinha de Duff e Taylor, nem a au pair de Willie em Manhattan; aquela Jasmine não é esta Jane Ripplemeyer almoçando hoje com Mary Webber no Clube da Universidade. E qual de nós será a criminosa não detectada de um monstro de meia-face? Qual de nós teve um marido moribundo e agonizante? Qual de nós foi continuamente estuprada, estuprada e estuprada em barcos, carros e quartos de motéis? 130 130 No original em inglês: “I should never have been Jane Ripplemeyer of Baden, Iowa. I should have lived and died in that feudal village, perhaps making a monumental leap to modern Jullundhar. When Jyoti’s future was blocked after the death of Prakash, Lord Yama should have taken her. “Yes”, I say, “I do believe you. We do keep revisiting the world. I have also traveled in time and space. It is possible. “Jyoti of Hasnapur was not Jasmine, Duff’s day mummy and Taylor and Willie’s au pair in Manhattan; that Jasmine isn’t this Jane Ripplemeyer having lunch with Mary Webber at the University Club today. And which of us is the undetected murderer of a half-faced monster, which of us has held a dying husband, which of us was raped and raped and raped in boats and cars and motels rooms?”(MUKHERJEE, 1991, p. 113-114). 230 Como se pode constatar, a passagem acima é de grande importância para as nossas argumentações por uma série de razões: ela representa uma verdadeira celebração da alteridade, uma vez que a narradora Jane Ripplemeyer claramente reconhece que ela é várias mulheres numa só. Além do mais, fica igualmente claro como a autora utiliza o princípio cultural e religioso da reencarnação, tanto de uma forma factual (como se a protagonista de fato acreditasse nesse “lugar-comum” para os indianos, de um modo geral), quanto metafórica, pois se podem interpretar essas falas como altamente irônicas, uma vez que a Dra. Mary Webber, a interlocutora de Jane na cena, acredita em reencarnação e está falando disso, ao passo que Jane entende “reencarnação” aqui como as fragmentações identitárias a que ela está exposta, por conta da condição diaspórica a que é compulsoriamente submetida. A evidência da incorporação desses valores culturais religiosos também se verifica no desabafo que a protagonista faz ao lamentar o fato de que o “Lorde Yama” não a tenha levado da vida carnal, para que ela não tivesse que passar por tantas agruras. Enfim, a condição de estar em diversos entrelugares parece que simultaneamente abarca as alteridades, as identidades, a transnacionalidade, os valores culturais e religiosos e a situação geográfica e territorial que caracterizam e afetam a trajetória do sujeito pós-colonial feminino. Para finalizar esta série de considerações fragmentárias sobre Jasmine, citamos também a emblemática passagem: “Eu tive um marido para cada uma das mulheres que eu fui: Prakash para a Jasmine; Taylor para a Jase; Bud para a Jane; e Half-Face para a Kali”. 131 Essa mesma questão dos entrelugares também afeta a trajetória e o processo identitário de Grace Marks de variadas formas. Começando a abordagem pela questão da transnacionalidade, podemos afirmar que o forte preconceito contra os imigrantes irlandeses na Toronto do século XIX faz com que Grace se ressinta da falta de associações positivas com tudo o que é de origem irlandesa ou lembre aquela nacionalidade e aquele país. Na verdade, 131 No original em inglês: “I have had a husband for each of the women I have been. Prakash for Jasmine, Taylor for Jase, Bud for Jane. Half-Face for Kali” (MUKHERJEE, 1991, p. 175). 231 todas as lembranças e reminiscências do seu curto passado irlandês estão repletas de dores e traumas, a começar pela sua infância – época em que ela e a sua família proletária amargaram as mais extremas dificuldades, não somente em função da falta de solidariedade étnica que a família experimentou, mas sobretudo pela extrema pobreza, que no discurso de Grace parece mais atribuída à opressão inglesa do que às reais condições materiais do seu avô e do seu pai. A esses fatores desagregadores ainda se soma o fato de que, por se ter separado muito cedo de ligações familiares, Grace Marks não teve tempo de desenvolver fortes laços identitários com a Irlanda e a sua cultura, pois a mãe morreu na viagem de navio e ela se separou do pai e dos irmãos já em terras canadenses, uma vez que passou a trabalhar em casas de família como doméstica. Isso acaba tendo um efeito devastador para Grace Marks, conforme se revela pelo seu próprio relato, como por exemplo, quando afirma não se recordar muito bem do lugar de onde viera, expondo os efeitos disso sobre a sua consciência de lugar e de identidade nacional: Eu não me lembro muito bem do lugar, já que eu era uma criança quando saí de lá. Lembro-me somente de algumas coisas esparsas, como se fossem um prato que tivesse se quebrado. Há sempre alguns cacos que parecem pertencer a outros pratos, e há os espaços vazios nos quais não se pode colocar nenhum desses cacos, nem nenhuma outra coisa que possa preenchê-los. 132 No entanto, há a questão da divisão religiosa entre o catolicismo e o protestantismo na Irlanda – e isto é uma das poucas heranças culturais da sua terra que Grace Marks vai utilizar num sentido que pensa ser positivo: como ela veio do norte da Irlanda (a parte protestante do país) ela acredita que isso lhe dê algum prestígio aos olhos dos canadenses, porém esse dado tem de fato um efeito inócuo, pois Grace Marks é uma alienígena no seio da comunidade colonial da Toronto do século XIX. Na verdade o que poderia redimi-la não seria a religião 132 No original em inglês: “I don’t recall the place very well, as I was a child when I left it; only in scraps, like a plate that has been broken. There are always some pieces that would seem to belong to another plate altogether; and then there are the empty spaces, where you cannot fit anything in” (ATWOOD, 1996, p. 103). 232 católica ou a protestante do seu país de origem, mas sim a conversão ao ramo protestante do Metodismo, como abordaremos alguns parágrafos mais adiante. Mesmo sendo uma colonizada branca e protestante, Grace Marks representa um tipo de imigrante indesejável, o que expõe outra faceta das relações coloniais e pós-coloniais entre os povos, uma vez que as questões de raça e etnia “parecem” não ter um papel tão importante no romance de Margaret Atwood, já que Grace Marks é tão vitimizada e humilhada quanto um(a) imigrante de aparência não caucasiana e de pele escura, conforme veremos adiante. Ressalte-se, aqui, que o emaranhado das relações coloniais que vão determinar essas sutilezas de preconceito e segregação em Alias Grace envolvem a Inglaterra (país opressor da Irlanda até os dias atuais), a própria Irlanda, que sempre amargou os efeitos das ações colonizadoras britânicas, e o Canadá, país em si híbrido e dividido, dada a sua história de colonização levada a efeito tanto pela França, quanto pela Inglaterra, e tendo que lidar com a influência cultural dos vizinhos americanos até a atualidade, como tão bem se faz retratado em Surfacing, também de Atwood. De qualquer modo, o Canadá mostrado em Alias Grace aparece como uma extensão do Império Britânico de além-mar mais do que uma colônia propriamente dita. Abordando então as questões mais caracterizadoras dos aspectos pós-coloniais da saga de Grace Marks, enquanto sujeito pós-colonial feminino, destacamos alguns episódios dos Capítulos 13 e 14 do romance, pois eles não somente dão conta dos entrelugares que fragmentam as alteridades de Grace, como também evidenciam as agruras e os sofrimentos que marcam a sua condição de subalternidade. No capítulo 13, por exemplo, Grace Marks conta um pouco da sua história pregressa e da sua origem obscura, passando as impressões negativas que sua tia Pauline tinha do seu pai: Quanto ao meu pai, ele não era nem mesmo irlandês. Ele era do norte da Inglaterra, e a razão pela qual tinha vindo para a Irlanda nunca ficou clara, uma vez que a maioria dos que se dispunha a viajar optava pelo trajeto oposto. Marks pode não ter 233 sido o seu verdadeiro nome, ela disse; ele deve ter sido “marca” 133 , provavelmente a marca de Caim, já que ele possuía uma indefectível aparência de criminoso. Mas ela somente disse isso mais tarde, quando as coisas já tinham piorado. 134 No capítulo 14, Grace Marks, ainda menina, emigra com a família para o Canadá, e tem uma viagem cheia de transtornos, desconfortos e tristezas, em que, inclusive, perde a mãe, que adoece, morre e acaba tendo o mar por sepultura. As agruras narradas nesse capítulo são tão ou mais inomináveis do que as passadas por Jasmine na sua viagem de navio para os Estados Unidos. Uma certa passagem desse capítulo dá a exata dimensão do processo degradante de tratamento a que os passageiros do navio eram submetidos: O navio estava parado ao longo do cais, (...) mais tarde fiquei sabendo que ele trazia toras de madeira do Canadá para o Oriente, e levava imigrantes para o ocidente quando retornava para o Canadá, e tanto toras de madeira quanto pessoas eram vistas como a mesma coisa, ou seja, cargas a serem transportadas. 135 Porém, o drama de Grace Marks somente estava começando. Ao chegar em Toronto, ela transita por vários empregos como doméstica até se fixar na casa do fazendeiro Thomas Kinnear, por quem se apaixona. Nessa casa de fazenda vão se desenrolar os trágicos homicídios de Thomas Kinnear e da sua governanta/amante Nancy Montgomery, que levarão Grace Marks à prisão e James McDermott ao enforcamento, conforme já detalhado no Capítulo 2. 133 É interessante notar como a autora brinca com as palavras: “Marks” (o sobrenome da protagonista) e “Marks”(como em “a marca de Caim”, a marca do mal), para expressar as idealizações negativas que a sociedade canadense do século XIX projetava na imigrante irlandesa Grace Marks, de acordo com o que narra Margaret Atwood. 134 No original em inglês: “As for my father, he was not even Irish. He was an Englishman from the north of it, and why he had come to Ireland was never clear, as most who were inclined to travel went in the other direction. Aunt Pauline said he must have been in trouble in England, and had come across to get himself out of the way in a hurry. Marks may not even have been his real name, she said; it should have been Mark, for the Mark of Cain, as he had a murderous look about him. But she only said that later, when things had gone wrong” ( ATWOOD, 1997, p. 105)” 135 No original em inglês: “The ship was lying alongside the dock; (...) and later I was told that it brought logs of wood eastward from the Canadas, and emigrants westward the other way, and both were viewed in much the same light, as cargo to be ferried” (ATWOOD, 1991, p. 112). 234 Uma vez que as personagens mencionadas são históricas e o crime realmente ocorreu e chocou toda a sociedade canadense de então, a condição pós-colonial entra em cena, adicionando novas nuances à história. Grace Marks é um sujeito colonial/pós-colonial feminino diferente de Jasmine, porque ela também é branca como o colonizador, e, portanto, tem mais dificuldade de se conscientizar da sua condição de Outro. Entretanto, a seguinte passagem expõe magistralmente um dos momentos de maior conscientização da personagem acerca da sua condição subalterna, porém não sem evidenciar uma característica típica do seu país de origem no que diz respeito à religião, pois, já que não era católica, o fato de ser protestante a tornava “menos diferente” do colonizador britânico ou canadense, segundo ela acreditava: O que se lê no começo da minha confissão é de fato verdadeiro. Eu sou mesmo da Irlanda, embora eu tenha achado bastante injusto quando escreveram nela que ambos os acusados admitem por livre e espontânea vontade que são irlandeses. Isso fez com que o fato de ser irlandês soasse como se fosse crime, muito embora eu sempre tenha visto essa condição ser tratada como tal. Mas, é claro, a nossa família era protestante, e isso nos fazia diferentes. 136 Ora, observa-se aqui uma falsa idéia de identificação com o colonizador pela qual Grace Marks se deixa envolver, mas que na verdade denuncia ainda mais a sua situação de estar ocupando um “entrelugar” cultural, étnico e social. A esse respeito, as seguintes considerações de Ania Loomba dão conta da ansiedade meio esquizofrênica do subalterno quanto à necessidade de se identificar com o colonizador/opressor: Bhabha volta a Fanon para sugerir que liminalidade e hibridismo são atributos da condição colonial. Para Fanon, vocês se recordarão, o trauma emocional resulta de quando o colonizado entende que ele jamais vai atingir a brancura que lhe ensinaram a desejar, ou até mesmo apagar a cor escura que lhe ensinaram a 136 No original em inglês: “What it says at the beginning of my Confession is true enough. I did indeed come from the North of Ireland; though I thought it very unjust when they wrote down that both the accused are from Ireland by their own admission. That made it sound like a crime, and I don’t know that being from Ireland is a crime; although I have often seen it treated as such. But of course our family were Protestants, and that is different” (Ibid, p.103). 235 desvalorizar. Bhabha amplia a questão para sugerir que as identidades coloniais constituem sempre um caso de fluxo e agonia. “Ela é sempre”, escreve Bhabha sobre a importância de Fanon para o nosso tempo, “em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado”. A imagem fanônica das peles negras/máscaras brancas não é, explica Bhabha, uma “divisão limítrofe”, mas antes “uma imagem de divisão dupla de se estar em dois lugares ao mesmo tempo que torna possível para o subalterno, o `evolué` insaciável (um abandono neurótico, segundo Fanon), aceitar o convite para a identificação feito pelo colonizador: - `Você é um médico, um escritor, um aluno, você é diferente, você é um dos nossos`. Mas é exatamente por esse uso ambivalente de “diferente” – ser diferente daqueles que são diferentes fazem o indivíduo ser o mesmo que eles – que o inconsciente fala sobre a forma da outridade, da sombra subordinada ao adiamento e ao deslocamento (...)”. 137 Porém, Ania Loomba prossegue com seu arrazoado e acaba por lançar mais luz sobre essa palpitante questão que as argumentações de Grace Marks trazem à tona, esclarecendo que o que aos olhos de Grace parece constituir uma saída, uma solução para as diferenças entre ela e os canadenses, na verdade não passa de uma armadilha escondida. Vejamos então o complemento dessas idéias de Loomba: Mesmo quando as ideologias imperiais e racistas insistem na questão da diferença racial, elas catalisam cruzamentos, em parte porque nem tudo o que ocorre nas “áreas de contato” pode ser monitorado ou controlado, mas também como resultado de uma deliberada política colonial. Uma das mais impactantes contradições sobre o colonialismo é que ele tanto precisa “civilizar” os seus outros, como também fixálos em outridade perpétua. 138 A estratégia de Grace então se constitui em sobrepor a sua condição de protestante à de irlandesa. Vale lembrar que ela põe tal fato em evidência desde muito cedo, na verdade 136 No original em inglês: “Bhabha goes back to Fanon to suggest that liminality and hybridity are attributes of the colonial condition. For fanon, you will recall, psychic trauma results when the colonized subject realizes that he can never attain the whiteness he has been taught to desire, or shed the blackness he has learnt to devalue. Bhabha amplifies this to suggest that colonial identities are always a matter of flux and agony. “It is always”, writes Bhabha about Fanon`s importance to our time, “in relation to the place of the Other that colonial desire is articulated”. Fannon`s image of black skins/white masks is not, Bhabha explains, a “near division”, but “a doubling dissembling image of being in at least two places at once which makes it possible for the devalued, insatiable evolué (an abandonment neurotic, Fanon explains) to accept the colonizer`s invitation to identity: `You’re a doctor, a writer, a student, you’re different, you’re one of us`. It is precisely in that ambivalent use of `different` - to be different from those that are different makes you the same - that the Unconscious speaks of the form of the Otherness, the tethered shadow of deferral and displacement (…)” (LOOMBA, 1998, p. 174). 138 No original em inglês: “Even as imperial and racist ideologies insist on racial difference, they catalyze crossovers, partly because not all that takes place in the ‘contact zones’ can be monitored and controlled, but sometimes also as a result of deliberate colonial policy. One of the most striking contradictions about colonialism is that it needs to `civilize` its others, and to fix them in perpetual otherness” (LOOMBA, 1998, p. 173). 236 assim que chega em solo canadense. Um bom exemplo disso se dá na passagem em que ela tem doze anos de idade e se candidata a uma vaga de doméstica. Pelas próprias palavras de Grace Marks, percebe-se que a governanta vai agir preconceituosamente quando ela quer saber: “Se eu era católica, como todos os irlandeses geralmente eram; e, se eu fosse, ela não ia querer conversa comigo, já que os católicos são supersticiosos e papistas rebeldes que estavam arruinando o país”.139 Depois dessa passagem, Grace tenta a todo custo desvencilharse de qualquer possibilidade de ser confundida com uma católica, como quando enfatiza reiteradamente o seu protestantismo de origem, ou quando demonstra desgosto ao ver James McDermott se benzer e o considera muito “papista” (p. 332). Enfim, embora nunca chegue a fazer tanto quanto o seu pai – que esteve envolvido em ataques terroristas contra os católicos irlandeses -, Grace age sempre tão rapidamente quanto possível para livrar o seu nome de qualquer conexão com o mundo católico. No entanto, apesar de todo esse sacrifício, Grace é marcada como irlandesa de várias formas diferentes. Em certa passagem, o Dr. Simon “nota” um “traço do sotaque do norte da Irlanda” 140 na voz de Grace. Além disso, o seu cabelo ruivo é sempre alvo de comentários desairosos, como nas passagens em que Grace lê nos jornais descrições da sua própria pessoa como possuidora do mesmo “cabelo ruivo de um ogro” 141 , ou numa outra em que a governanta que a entrevistara para um outro emprego queria saber se Grace “é mal-humorada, já que todos os ruivos freqüentemente o eram”. Mais ainda, há outras duas passagens em que a cor do cabelo denunciava características proibitivas em Grace Marks: os guardas da prisão acreditavam que ela pudesse estar sexualmente disponível para eles já que “um pouco de fogo sempre advém da cor ruiva dos cabelos” 142 de uma mulher. Grace Marks não somente é marcada pela ascendência céltica, pela cor dos cabelos, mas 139 No original em inglês: “If I was Catholic, as those from Ireland generally were; and if so she would not have nothing to do with me, as the Catholics were superstitious and rebellious Papists who were ruining the country” (ATWOOD, 1996, p. 128). 140 No original em inglês: “a trace of the Northern Irish accent in her voice” (Ibid, p. 133). 141 No original em inglês: “The red hair of an Ogre” (Ibid, p. 33). 142 No original em inglês: “(...) a little fire comes with the redness of the hair” (ATWOOD, 1996, p. 240). 237 também é identificada como católica quando o seu próprio advogado, identificando-se com as dificuldades que Simon tinha de chegar ao fundo da história de Grace Marks, subitamente lhe dá o epíteto de “Nossa Senhora dos Silêncios” 143 . Enfim, Grace Marks nessa passagem é identificada com uma acepção nova da Virgem Maria, pois a marca “negativa” do catolicismo parece ser “naturalmente” associada à condição subalterna de irlandesa. De qualquer forma, essa identificação de Grace Marks com uma acepção da Virgem Maria especialmente criada para que Grace se “encaixasse” nela aponta para uma certa dose de empoderamento. Ora, se recordarmos as idéias de Trinh T. Minh-ha sobre o valor subversivo do silêncio das mulheres, conforme já abordado no Capítulo 4, perceberemos que os silêncios e as lacunas no discurso de Grace Marks na verdade problematizam e tornam mais complexa a identidade dela. Na medida em que “quem é Grace Marks” fica mais difícil de ser apreendido por Simon Jordan ou qualquer outro personagem no romance, mais ricos e problematizados se tornam os matizes identitários que circundam a protagonista do livro de Atwood. Voltando à questão do protestantismo de Grace Marks, no livro registra-se que ela era mesmo metodista e que o seu avô materno tinha sido um pastor que certo dia decidira “fazer algo inesperado com o dinheiro da igreja” 144 , perdendo então seu prestígio e deixando a família em situação de dificuldade. Contudo, Grace, quando adulta, mantém a religião do seu avô materno, talvez menos por devoção do que por uma estratégia de se tornar aceita naquela sociedade hostil, pois, de acordo com o que argumentam Cecil Houston e William Smyth, as igrejas protestantes de modo geral, mas especialmente as metodistas - que cresciam rapidamente -, serviam como fóruns de fusão étnica (1990, p. 169) e eram palcos de casamentos interétnicos de escoceses, ingleses, colonos norte-americanos e irlandeses. Dessa forma, a religião anglicana era imediatamente associada à etnia britânica e a presbiteriana à escocesa, ao passo que a etnia dos membros do Metodismo era difícil de se definir com 143 144 No original em inglês “Our Lady of the Silences” (Ibid, p. 373). No original em inglês: “had done something unexpected with the church money” (Ibid, p. 104). 238 precisão. De qualquer forma, Houston e Smyth ponderam que as igrejas protestantes (principalmente as metodistas) são parcialmente responsáveis pelo 'desaparecimento dos irlandeses’ no Canadá (1990, p. 3), mesmo numa época de grande imigração de irlandeses (entre 1815 e 1845), pois os casamentos interétnicos e a condição de membros daquela igreja eram fatores que “transformavam” a etnia irlandesa na canadense. Até mesmo um dos principais personagens que acreditava na inocência de Grace Marks, o Reverendo Verringer, era um ministro metodista. Passando agora para as questões que interligam a personalidade de Grace Marks às personalidades das outras moças irlandesas que são fundamentais para se entender o processo de formação da sua identidade, destacamos que as histórias que Grace Marks contava ao psiquiatra ficcional Simon Jordan envolviam basicamente três personagens femininas – ela mesma, Mary Whitney e Nancy Montgomery. A primeira interseção que une as três é o fato de terem sido “seduzidas” ou estarem de alguma forma envolvidas em relações libidinosas. De algum modo, esse fato precipitou o destino trágico de todas elas e expôs certas falhas “imperdoáveis” que cometeram – a falha de não conseguir conter a expressão dos seus impulsos sexuais dentro da esfera doméstica de uma vida de casada. A gravidez foi o resultado dessa “falha” nos casos de Mary Whitney e Nancy Montgomery, e embora a própria Grace não tenha engravidado (apesar das sugestões de possível concessão de favores sexuais a James McDermott, seu suposto cúmplice no assassinato de Kinnear), as gravidezes das outras moças (que são verdadeiros alter-egos de Grace) marcaram a vida desta para sempre. Note-se que há muito tempo sua tia Pauline fizera comentários sobre os riscos de gravidez indesejada, que parecia se ter tornado uma moda, já que “muitas moças novas caíam nessa armadilha” 145. Na verdade, se a gravidez for vista como uma armadilha em larga escala, pode-se dizer que a 145 No original em inglês: “(...) too many young women were caught in that fashion” (ATWOOD, 1996, p. 105). 239 própria mãe da protagonista foi “vítima do sistema de reprodução”, que gerou pobreza, dores, doença e morte para a família de Grace Marks. Um fato marcante na vida de Grace é que após a morte da sua mãe ela achou uma nova figura materna na mais madura Mary Whitney, com quem passou a trabalhar como lavadeira no seu primeiro emprego como doméstica. Mary também era órfã e era três anos mais velha do que Grace. Tornou-se de imediato mãe e amiga da pequena Grace, que conhecera tão pouco carinho de mãe e quase nenhuma amizade. Assim, é bastante sintomática a afirmação de Grace de que “Mary colocou-me logo debaixo das suas asas desde o primeiro momento” 146 e “confortou-me muito melhor do que minha própria mãe poderia ter feito, pois ela estava sempre muito doente ou muito cansada” 147. Enfim, Mary Whitney ensinou Grace a trabalhar e a ser uma pessoa respeitável e amada, cumprindo os papéis de mãe e amiga e orientando Grace na vida sexual – explicou para ela, por exemplo, que não havia nada errado com o seu corpo e a sua saúde quando teve os sintomas da primeira menstruação. Igualmente, Mary ensinou a ela que os papéis sociais reservados para as mulheres pobres e as imigrantes como elas eram os de criada, esposa respeitável, mulher louca (principalmente se houvesse a opção por um desregamento de conduta sexual) e de prostituta (se ocorresse gravidez fora do casamento e isso tornasse a mulher uma pessoa “não séria o suficiente” para merecer que um homem a pedisse em casamento). Enfim, os papéis sociais da mulher apresentados por Mary a Grace eram os de esposa, criada, louca e prostituta – e de certa forma Grace exerceu todos esses papéis durante a sua vida: começou como criada, depois ficou nacionalmente conhecida no Canadá como mulher assassina e de conduta sexual não recomendável, em seguida foi tida como louca e, por fim, casou-se com Jamie Walsh e acomodou-se a uma vida doméstica numa pequena propriedade rural nos Estados Unidos. 146 No original em inglês: “Mary took me under her wing from the very first” (Ibid, p. 151). No original em inglês: “(...) she put her arms around me, and comforted me, better than my own mother could have done, for she was always too busy or tired dor ill” (Ibid, p. 164). 147 240 Quanto à relação de Grace com Nancy, apesar dos supostos ciúmes que Grace tinha dela, havia sinais inequívocos de identificação desta com a amante de Kinnear. Até mesmo um indício de solidariedade entre elas aparece quando Grace desconfia dos primeiros sinais da gravidez de Nancy e imagina os maus momentos que Nancy enfrentará, inclusive com a perda da reputação de “moça honesta”, caso Kinnear não a ampare naquele momento tão delicado da vida de uma mulher. Todavia, as ligações entre as três mulheres se tornam mais caracterizadoras da problematização identitária de Grace Marks quando a questão da suposta insanidade dela entra em cena. A partir daí, os fenômenos polifônicos tornam as vozes narradoras do romance mais complexas, pois a própria voz de Grace se mistura com as de Nancy e Mary em várias passagens específicas. Numa delas, a voz de Grace Marks dá lugar à suposta voz do espírito de Mary Whitney, em uma sessão de hipnotismo em que Jeremiah (um falso hipnotizador e antigo conhecido de Grace), Dr. Jordan, o Reverendo Verringer e um círculo de simpatizantes e defensores da inocência da protagonista se reúnem para tentar ver se através daquele tipo de sessão descobrem a verdade sobre a participação ou não de Grace nos assassinatos de Kinnear e Nancy. O que sucede então é uma cena primorosa em que se meclam as ondas de espiritualismo que varriam a América do Norte no século XIX, as supostas novas técnicas de hipnotismo e a ligeira abertura que alguns psiquiatras tradicionais estavam se permitindo na tentativa de chegar a conclusões para os complexos efeitos e sintomas das doenças mentais. O resultado da sessão, no entanto, deixou os assistentes mais perplexos ainda, pois Grace foi “tomada” pelo espírito de Mary Whitney, que havia morrido em função de um aborto mal conduzido, e que alegou ter também “entrado” no corpo de Grace no dia dos assassinatos, de modo que, independemente do que tenha ocorrido, Grace não teria tido culpa nem participação nos eventos. 241 Além dessa passagem, há a descrição de várias outras em que Grace ouve ou assume as vozes das outras duas mulheres, tornando inequívoca a identificação de um processo favorável de construção identitária, apesar das interpretações negativas desse fenômenos polifônicos que se sugere serem atrelados à possível insanidade da protagonista (registre-se que a loucura de Grace Marks não é tida como absolutamente inquestionável no romance, podendo ser interpretada também como uma das estratégias de resistência sutis e inteligentes de que Grace possivelmente lançara mão para sobreviver às adversidades). No último capítulo de Alias Grace, após enfrentar uma longa e penosa saga, Grace Marks finalmente se livra da prisão ao obter o perdão para o seu crime, após ter cumprido uma pena de vinte e nove anos. Grace é ajudada pelos vários amigos que fez graças ao seu bom comportamento e acaba aceitando a oferta de casamento feita por Walsh, um homem que testemunhara contra ela no passado e vê na oferta de casamento a reparação para uma possível injustiça que tenha cometido. Os dois se casam e viram pequenos fazendeiros nos Estados Unidos (onde ninguém os conhece e assim Grace não será lembrada como ex-presidiária). Enfim, Grace Marks parece feliz com a nova vida e descobre que está grávida. Porém, a questão da alteridade multifacetada continua a pairar sobre a sua subjetividade. Na seguinte passagem (dos últimos parágrafos do livro), Grace Marks está prestes a concluir a colcha de retalhos (com a história da sua vida) que de longa data vinha costurando e bordando. Ela então descreve o padrão de bordado chamado “Árvore do Paraíso”, e a questão problemática da alteridade se reitera: Na minha árvore do paraíso, eu pretendo colocar uma borda de serpentes entrelaçadas; elas parecerão parreiras ou simplesmente um acessório de ligação com os outros padrões, já que eu farei os seus olhos bem pequenos; mas, para mim elas serão serpentes, já que sem uma serpente ou duas serpentes a parte central da história ficaria incompleta (...). A árvore será composta de triângulos (...). Mas três triângulos da minha árvore serão diferentes. Um será branco, feito de um pedaço do casaco de Mary Whitney que ainda guardo comigo; outro será amarelo desbotado, feito de uma camisola de dormir da prisão que eu implorei que me deixassem trazer como lembrança quando saí de lá. E o terceiro será de um tecido de algodão meio desbotado, estampadinho de rosa e branco, que era de um pedaço cortado do vestido 242 que Nancy estava usando no primeiro dia em que a vi na fazenda do Sr. Kinnear, e que eu usei quando estava em fuga na barca para Lewiston. Eu bordarei em volta de cada um dos triângulos com pontos vermelhos, para uni-los como uma parte do padrão. E assim nós todas ficaremos juntas. 148 Voltando o foco da atenção para aspectos marcantes e corroboradores da riqueza das alteridades de Jasmine, destacaremos brevemente pelo menos duas das várias sugestões de intercâmbio identitário da protagonista do livro de Mukherjee com outras personalidades e entidades. No capítulo 4, Bharati Mukherjee insere uma passagem bastante emblemática dessa questão, em que Jane diz o seguinte: Bud me chama de Jane. Mim, Tarzan, você Jane. Eu não tinha percebido isso de início. Ele brinca. Jane Calamidade. Jane como Jane Russell, Jane como “Plain Jane”. Brincar de Jane é o que eu quero fazer. Brincar de Jane é um papel como outro qualquer. A minha “estrangeirice” assusta Bud. Eu não fico chateada com ele por isso. Em Baden, eu sou Jane. Quase. 149 Nessa passagem, a narradora expõe questões muito relevantes por revelarem as diferenças étnicas e culturais entre Jane e Bud, seu marido Americano. Ao mesmo tempo em que ele se sente atraído pela beleza “exótica” de Jane, aspectos da “estangeirice” e da “outridade” dela o assombram. A referência também é rica em desvelar paralelos de alteridade da personagem com a personagem Jane dos memoráveis filmes do Tarzan, a famosa “vaqueira” (“cowgirl”) norte-americana do século XIX, Jane Calamidade, conhecida 148 No original em inglês: “On my Tree of Paradise, I intend to put a border of snakes entwined; they will look line vines or just a cable pattern to others, as I will make the eyes very small, but they will be snakes to me; as without a snake or two, the main part of the story would be missing. (...) The tree itself is of triangles, (...). But three of the triangles in my Tree will be different. One will be white, from the petitcoat I still have that was Mary Whitney’s: one will be faded yellowish, from the prison nightdress I begged as a keepsack when I left there. And the third will be a pale cotton, a pink and white floral, cut from the dress of Nancy’s that she had on the first day I was at Mr. Kinnear’s, and that I wore on the ferry to Lewiston, when I was running away. I will embroider around each one of them with red feather-stitching, to blend them in as a part of the pattern. And so we will all be together”(ATWOOD, 1997, p. 460). 149 No original em inglês: “Bud calls me Jane. Me Bud, you Jane. I didn’t get it at first. He kids. Calamity Jane. Jane as in Jane Russell, Jane as in Plain Jane. Plain Jane is all I want to be. Plain Jane is a role, like any other. My genuine foreigness frightens him. I don’t hold that against him. In Baden, I’m Jane. Almost” (MUKHERJEE, 1991, p. 22). 243 por ser muito valente, violenta e beberrona – ao mesmo tempo o “Diabo Branco de Yellowstone” e a caridosa enfermeira que cuidou da população do vilarejo de Deadwood num memorável surto de varíola. Além disso, também há a referência a Jane Russell, a atriz de Hollywood que em 1948 fez o papel de “Calamity Jane” no filme Paleface e depois se engajou num vasto programa de amparo a crianças órfãs por toda a América. Enfim, a protagonista afirma que “brincar de Jane” (“playing Jane”) é o que ela mais quer continuar fazendo, embora ela já não se sinta a “Jane de Bud” conforme prenuncia com “Em Baden, eu sou Jane. Quase” (1991, p. 22) 150. A outra relação identitária digna de nota não é entre Jane e outros seres humanos, mas sim com as divindades do panteão indiano. Em diversas passagens do romance, a protagonista alega estar sob a influência de Brahma, Shiva e Vishnu (que formam a Trilogia Trimurti) ou de Kali (conforme já mencionado na abordagem do assassinato de Half-Face). Com Brahma, não somente a protagonista, mas também um de seus maridos, Prakash, se identifica. Brahma representa o princípio criador da vida e de todas as coisas que existem, e a passagem que indica essa associação diz respeito à idealização da firma que Prakash tinha a intenção de abrir com a então Jasmine quando emigrassem para os Estados Unidos: Depois, eu pensei. Nós tínhamos criado vida. Prakash pegou Jyoti e criou Jasmine, e Jasmine completaria a missão de Prakash. Vijh & Wife. Uma visão tinha se formado. Havia milhares de rúpias na nossa conta. Ele tinha a sua carta de aceitação da Flórida e o seu “visa” americano. Eu entreguei tudo aos meus irmãos e lhes contei o meu plano. Eles ficaram estupefatos. Uma garota interiorana indo sozinha para a América, sem emprego e sem documentos? Eu devia estar louca! Certamente eu estava. Eu disse a eles que eu tinha prometido isso a Deus. Era uma questão de dever e de honra. Eu não ousei contar nada disso a minha mãe. 151 150 No original em inglês: “In Baden, I’m Jane. Almost” (MUKHERJEE, 1991, p. 22). No original em inglês: “Later, I thought, We had created life. Prakash has taken Jyoti and created Jasmine, and Jasmine would complete the mission of Prakash. Vijh & Wife. A vision had formed. There were thousands of rupees in our account. He had his Florida acceptance and his American visa. I turned everything over to my brothers, along with my plan. They were stupefied. A village girl, going alone to America, without job, husband, or papers? I must be mad! Certainly, I was. I told them I had sworn it before God. A matter of duty and honor. I dared not tell my mother” (Ibid, p. 88). 151 244 As outras associações identitárias são com Shiva, - a faceta da divindade responsável por todo tipo de mudança no universo e nas vidas das comunidades e dos indivíduos – mudanças essas boas ou ruins, que constituem a metafórica dança de Shiva, divindade representante do movimento e do dinamismo do universo. Na verdade, este parece o intercâmbio de alteridades mais presente na trajetória da protagonista, dadas as suas sucessivas existências como mulheres diferentes. Quando um de seus maridos, – Bud –, leva um tiro e se torna paralítico, Jane acha que essa mudança para pior na vida dele é um efeito negativo da influência de Shiva que ela acredita proporcionar. No entanto, de Shiva ela “se transforma” em Vishnu, a encarnação da misericórdia e do amor para com os seres humanos, quando passa a cuidar amorosa e devotadamente do marido paralítico, inclusive se submetendo a sacrifícios físicos para continuar mantendo relações sexuais com ele, sem externar nenhuma forma de queixa ou revolta. Assim, em Jasmine, a questão da alteridade, associada à continuação dos deslocamentos diaspóricos, deixará o romance aberto. Na verdade, Jane Ripplemeyer deixa de ser Vishnu e abre espaço para Shiva de novo, quando uma força a impele a abandonar Bud e seguir com Taylor (seu ex-patrão em Nova Iorque, por quem ela se apaixonara na época) e sua filha Duff (de quem ela fora babá): Então não há nada que eu possa fazer. O tempo dirá se eu sou um tornado, que reduz a escombros tudo o que encontra, aparecendo não-se-sabe-de-onde e desaparecendo numa nuvem. Eu estou fora da casa, no caminho esburacado e ferido pelas rodas dos carros, intrepidamente seguinte na frente de Taylor, ávida de desejos e repleta de esperanças. 152 É altamente emblemático notar também como a narradora retoma o episódio do astrólogo e da predição da sua viuvez, descrita no primeiro capítulo do romance, para 152 No original em inglês: “Then there is nothing I can do. Time will tell if I am a tornado, rubble-maker, arising from nowhere and disappearing into a cloud. I am out the door and in the potholed and rutted driveway, scrambling ahead of Taylor, greedy with wants and reckless from hope” (MUKHERJEE, 1991, p. 214). 245 desconstuir a noção de predestinação, sublinhando, em contrapartida, a idéia de aquisição de poder (pelo menos para “escrever nas estrelas” o seu destino), ao mesmo tempo em que parece retornar para a sua identidade de Jase (provavelmente a época em que fora mais feliz): Não é culpa o que eu sinto. É alívio. Eu começo a perceber que já parei de me ver como Jane. Aventura, risco, transformação; os limites das possibilidades estão do lado de fora, prestes a arrombar as janelas frágeis e não calafetadas. “Observe-me reposicionando as estrelas do meu destino”, eu sussurro para o astrólogo que vejo flutuar de pernas cruzadas acima do meu fogão. 153 Enfim, o que sobressai em Jasmine e Alias Grace – e transcende a problemática das relações pós-coloniais – é a estatura humana que adquirem tanto Jasmine quanto Grace Marks, endossando o amadurecimento das suas novas identidades e existências pós-coloniais, híbridas e transnacionais, caracterizando os dois romances como lídimos representantes da questão da formação das identidades não fixas e não estáveis, no cenário das relações póscoloniais da contemporaneidade, deixando a impressão nítida de que o legado ruim de Caliban ficou para trás, irremediavelmente, mercê de uma inexorável atmosfera de resistência à opressão patriarcal, de gênero e política, de que as ações das protagonistas sempre se revestiram. 153 No original em inglês: “It isn’t guilt that I feel. It’s relief. I realized I have already stopped thinking of myself as Jane. Adventure, risk, transformation: the frontier is pushing indoors through uncaulked windows. Watch me reposition the stars, I wisper to the astrologer who floats cross-legged above my kitchen stove” (MUKHERJEE, 1991, p. 214). 246 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sem sombra de dúvida, quando se interrompe a análise das questões referentes à construção identitária envolvendo personagens tão ricas e multifacetadas quanto as protagonistas de Jasmine e Alias Grace, pode soar irônico chamar a isso de “conclusão”, uma vez que se trata de dois romances da contemporaneidade com claros contornos pós-modernos e, conseqüentemente, sem o fechamento das questões que se discutiram. Daí a razão de haver optado pelo título alternativo “Considerações Finais”, para esta parte da Tese. Entretanto, podemos conciliar essa aparente inconsistência com a noção de que todo este trabalho configura uma grande reflexão sobre o tema das identidades dos sujeitos pós-coloniais femininos, que também atinge seu término sem, no entanto, definir posições radicais em torno das questões até aqui analisadas. Certamente, uma grande parcela das críticas tradicionalistas dirigidas às obras e às estéticas pós-modernas deriva da generalizada indeterminação e da fluidez características dessas obras e conceitos e do conseqüente retardamento do(s) seu(s) significado(s), conforme já discutido anteriormente e endossado pelas posições de vários teóricos, filósofos e pensadores cujos trabalhos contribuíram para corporificar o repertório das Teorias PósEstruturalistas, tais como Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Homi K. Bhabha, Edward Said, Stuart Hall, Gayatri Spivak, Linda Hutcheon, Patricia Waugh, Sarah Mills, Leela Gandhi e Ania Loomba, somente para citar alguns deles. Foi exatamente em função dessa indeterminação e dessa fluidez que os aspectos narrativos de Jasmine e Alias Grace fundiram-se em teor e natureza às representações das alteridades cambiantes das suas duas protagonistas, fazendo as narrativas se transformarem em um jogo instigante de idas e vindas, falsas pistas, meias-verdades e conclusões dúbias acerca dos ditos aspectos identitários. Tudo isso nos recordou como os jogos de sentidos 247 textuais de Iser (1999, p. 112), além de representarem esses movimentos das narrativas, coincidem com os jogos textuais livres da Disseminação e de Desconstrução de Derrida (ver Cuddon, 1992). E, já que nos referimos a Iser, não poderíamos esquecer de aludir à sua teoria de que a assimetria existente entre o texto e o leitor (1999, p. 19) produz espaços vazios e lacunas que precisam ser negociadas. Tal situação reporta-nos, por seu turno, às brechas de significação que uma leitura de desconstrução pós-estruturalista ocasiona, quando se as usa para a interpretação de obras literárias contemporâneas, ou para a releitura das obras ditas “canônicas” do passado. Mais uma vez, tal premissa nos reporta igualmente a outra estratégia desconstrutiva de que largamente lançamos mão no Capítulo 3: usar os conceitos de James e Schlegel, para também interpretar obras da contemporaneidade, como os romances-objeto desta Tese. Enfim, estamos aqui nos referindo a uma grande rede de relações não somente entre textos literários, mas igualmente entre textos e discursos teóricos do passado e do presente, também imbricados e envolvidos com as obras literárias. Porém, a rede de interrelações não cessa por aí, uma vez que podemos evocar também as idéias e conceitos desenvolvidos por teóricos como Coutinho (2003 p.14) acerca da transcendência das relações entre discursos da mesma área do saber entre si e entre discursos de áreas do saber distintas e, no passado, tidas até mesmo como incompatíveis. Em uma palavra, referimo-nos aos conceitos sobre a interdisciplinaridade, que tanto tem contribuído para o enriquecimento das áreas de abrangência da Literatura Comparada, estabelecendo um papel de destaque no cenário das teorias contemporâneas ao não somente derrubar fronteiras entre áreas como a Literatura, o Cinema, o Teatro, a Psicanálise, a Filosofia e a Política – somente para citar alguns desses domínios -, mas também por questionar e reexaminar noções reducionistas como a de “literaturas nacionais”. Enfim, toda a pujança desse cenário de mudanças que se estabeleceu após a metade do século XX fez com que se exaurissem gradativamente formas renitentes de pensar herdadas 248 do Iluminismo e ainda enraizadas nas estéticas da Modernidade (WAUGH, 1998, p. 177-178). Abriu-se caminho então para que se levantassem as vozes das minorias, em luta por agenciamento, voz, direitos e emancipação identitária. De forma similar, imbricaram-se muitas dessas lutas, como demonstrado pelo cruzamento das Teorias Feministas e das Teorias Pós-Coloniais, para tornar viável a luta pela emancipação das mulheres colonizadas – vítimas de opressão dupla, por razões políticas e de gênero. Chegamos, então, ao ponto que nos concerne mais diretamente: a apropriação das contribuições de várias correntes teóricas da contemporaneidade (e até de algumas do passado) para se proceder a uma leitura/releitura dos romances Jasmine e Alias Grace. As metas principais dessa releitura foram a avaliação da superação dos resquícios dos estigmas do Caliban shakesperiano na configuração das duas protagonistas femininas e o sub-reptício esquadrinhamento dos estatutos das obras literárias em questão, pertencentes ao gênero “romance”. Se bastante adequadamente as duas obras revolucionam o que entendíamos por romance até bem pouco tempo, nada mais natural que esperar que as representações literárias das subjetividades femininas através delas levadas a efeito também se situem nesse espaço de subversão, ruptura e de certa vanguarda de alguma forma abarcada por alguma definição encabeçada pelo prefixo “pós”. E aqui se consubstancia aquele afastamento de que falam Rita Felski (1989, p. 29) e Eduardo Coutinho (2003, p. 21) entre a obra literária e a sua antes onipresente e exclusiva aura de esteticidade, como condição necessária para que a obra de arte literária possa ser vista também “como um produto da cultura e a literatura como uma prática discursiva como muitas outras” (COUTINHO, 2003, p. 21), ou até mesmo, para nos lembrar de que a literatura não é um discurso isolado e fechado, unicamente voltado para si próprio e os processos metafóricos e metonímicos, mas está “profundamente imbricada com as relações sociais reais, reveladoras das maquinações da ideologia patriarcal” (FELSKI, 1989, p. 21).] 249 Em vista de tudo que até agora se expôs, afirmamos que foi nesses intervalos que tentamos posicionar as argumentações sobre as construções identitárias de Jasmine e Grace Marks. No entanto, devemos deixar claro que sentimos a necessidade da utilização de uma estratégia que reputamos em consonância com as argumentações desenvolvidas. De início, tínhamos pensado em concentrar as argumentações “mais fortes” em um capítulo específico que tratasse “exclusivamente” das questões identitárias, porém isso se provou de certa forma quase “quimérico”, dada a fluidez, a inter-relação constante e o imbricamento que as questões identitárias estabeleceram de imediato com todas as questões e as abordagens selecionadas. Por exemplo, ao escrever o Capítulo 1, sobre as considerações teóricas preliminares, percebemos que o referido capítulo não comportaria “toda” a base teórica que na Tese se utilizaria. Assim, a teoria também se “disseminou” – para usar um termo bem derrideano – por todos os outros capítulos, bem como as questões identitárias propriamente ditas, que já evocavam o seu imbricamento com muito do que as posições teóricas abordadas pregavam. Com relação ao Capítulo 2, que propõe explicitamente o imbricamento entre a estrutura e a “desarrumação” das narrativas e as questões da desconstrução e da fragmentação das identidades das protagonistas, além de ocorrer a combinação entre a teoria e a ficção, a pujança e o vigor das identidades pós-coloniais em formação já começou a construir respostas para as argumentações propostas, de forma que o capítulo não comportou somente especulações e tentativas de expor as inter-relações entre a estrutura descontínua das narrativas e o teor fragmentado das identidades femininas em questão, mas também se mostrou inclusivo e abarcador de argumentações teóricas mais amplas. Quanto ao Capítulo 3, ele se originou das nossas preocupações anteriores com as refutações e os conceitos de repúdio e demérito que posições ultraconservadoras comumente lançam contra obras literárias pós-modernas. Pensamos então que se conseguíssemos utilizar pelo menos um certo número de conceitos teóricos de críticos e escritores renomados do 250 passado como Henry James e A. W. Schlegel, assim como de outros da contemporaneidade que não lidassem com os Estudos Culturais de uma forma direta, como Castoriadis e Iser, para analisar com efetividade alguns aspectos de Jasmine e Alias Grace, estaríamos contribuindo para colocar por terra noções “engessadas” de que existem incompatibilidades ou fossos intransponíveis entre os escritos ficcionais e teóricos contemporâneos e aqueles mais recuados no tempo. O resultado dessa atitude que reputamos desconstrutiva foi altamente positivo: identificamos algumas brechas significativas nos discursos canônicos “válidos” de Henry James e de Schlegel onde pudemos explorar aspectos dos nossos dois romances pós-modernos, assim como prazerosamente achamos uma brecha nas especulações filosóficas de Castoriadis em que pudemos identificar um chão crítico comum entre as suas idéias e as teorias pós-estruturalistas, com relação à constatação da insuficiência das filosofias da subjetividade iluministas para abarcar a complexidade das identidades dos sujeitos póscoloniais, mormente enquanto mulheres. De forma semelhante, também identificamos muitos fatores em comum entre as concepções de Iser e os postulados da Desconstrução de Jacques Derrida. Com o Capítulo 4, a nossa preocupação principal foi verificar o tipo de contribuição que a rede intertextual de abordagem das questões identitárias em várias obras das literaturas de língua inglesa poderia conferir para iluminar essa mesma questão com relação a Jasmine e Alias Grace. Naturalmente, a ênfase recaiu na personagem Caliban de A Tempestade, para verificarmos que parcelas desse ícone do colonizado subalterno estão “superadas” ou ainda “presentes” nas idealizações e autoformulações identitárias desses personagens coloniais e em Jasmine e Grace Marks, naturalmente. Por fim, com o Capítulo 5, pretendemos unir aspectos relevantes tanto das Teorias Feministas quanto das Teorias Pós-Coloniais, enfatizando os seus vieses discursivos para chegarmos mais perto das possibilidades de superação da subalternidade imposta das nossas 251 personagens pós-coloniais femininas e da sua conseqüente aquisição de formas (fragmentadas que sejam) de identidades mais promissoras e liberadoras do antigo ergástulo da dominação colonial. Concorreram para esse fim, os interessantes posicionamentos teóricos de Sarah Mills (com relação aos discursos), Bill Aschroft (com relação aos cruzamentos entre os feminismos e o pós-colonialismo), Peônia Guedes (com os seus estudos sobre o Bildungsroman feminino), Fernández Retamar e Annabel Patterson (com relação às suas concepções teóricas sobre o colonizado utilizando a figura de Caliban). Enfim, chegamos ao final desta Tese - mas não ao final das especulações sobre as identidades dos sujeitos pós-coloniais femininos - , com a esperança de termos contribuído não para definir (nos moldes estruturalistas), mas para ajudar a problematizar mais ainda e entender um pouco melhor a complexidade que envolve as questões identitárias do sujeito pós-moderno como um todo. E, por mais paradoxal que possa parecer para alguns, o resultado parcial de todo esse processo (e, reforçamos, “parcial” porque está “em processo”) é um enriquecimento das concepções sobre a subjetividade, um enaltecimento da Literatura enquanto campo do saber com papéis cada vez mais múltiplos, complexos e desafiadores (estamos questionando também, de certa forma, a “identidade” da Literatura) e um convencimento cada vez maior de que fórmulas simplistas em vez de contribuírem acabam por diminuir o nosso entendimento e a nossa recepção dos fenômenos como um todo. 252 BIBLIOGRAFIA ABDALA, J.R., Benjamin et al, eds. 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