A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO O TERRITÓRIO NA NORMATIVA JURÍDICA QUE INSTITUI A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL LUCAS TAVARES HONORATO1 Resumo: O presente trabalho propõe analisar o discurso do texto da Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011, que “Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”, no que tange o conceito de território. Busca refletir sobre as possíveis implicações, no âmbito das políticas de saúde mental no Brasil, da emergência do conceito. Em torno disso, discute os limites e possibilidades da sua mobilização na normativa, no sentido da melhoria na assistência e cuidado à população em condições de sofrimento psíquico e dependência. Palavras-chave: território, Rede de Atenção Psicossocial, políticas de saúde mental. Abstract: This study aims to analyze the text of the speech of the Ministry of Health Ordinance No. 3088, of December 23, 2011, which "establishes the Psychosocial Care Network for people with mental distress or disorder and needs arising from the use of crack, alcohol and other drugs under the Unified Health System (SUS) ", regarding the concept of territory. Seeks to reflect on the possible implications in the context of mental health policies in Brazil, the concept of emergency. Around that discusses the limits and possibilities of their mobilization in the rules, in order to improve the assistance and care to people in psychological distress and dependence conditions. Key-words: territory, Psychosocial Care Network, mental health policies. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (PPGEO/UFF) – Bolsista CAPES. E-mail de contato: [email protected] 460 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 1 – Introdução A importância do trabalho aqui proposto, está situado no âmbito de minha pesquisa no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (PPGEO/UFF). Fundamentalmente, aqui buscaremos explorar, de forma inicial, reflexões que possibilitem o avanço na discussão sobre as implicações da adoção do conceito de território nos discursos oficiais das políticas de saúde mental, tomando como base a normativa que regulamenta e institui as diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial – a Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. A escolha deste “ato administrativo normativo” em particular, justifica-se por dois motivos: pela sua importância como símbolo do progresso no processo de Reforma Psiquiátrica, do avanço de um modelo de cuidado em Saúde Mental, de “base comunitária e territorial”, substitutivo ao modelo manicomial; e como marco jurídico-político, ao definir e prever os equipamentos de cuidado, e orientar suas devidas competências e formas de articulação entre si e com a atenção primária em Saúde. Desse modo, a análise do texto da normativa, que apresenta o território como perspectiva norteadora das diretrizes, objetivos e ações na Rede, é crucial para a reflexão sobre a melhoria na assistência e cuidado à população em condições de sofrimento psíquico e dependência toxicológica. Metodologicamente, o artigo se divide em três momentos: primeiro, um breve debate sobre a relação entre norma e espaço, buscando pensar a relevância da aproximação entre os campos da Geografia e do Direito, e orientando a discussão para o debate da territorialização de políticas públicas; segundo, apresentaremos a normativa, sua estrutura e posicionaremos as abordagens de território presentes em seu discurso; terceiro, como considerações finais, esboçaremos algumas reflexões, no intuito de direcionar questões no âmbito da relação entre território e políticas de saúde mental, avaliando até que ponto realmente são propostas inovações que possibilitem avanços, no sentido da melhoria na assistência e cuidado à população. 461 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 2 – No princípio era substantivo, e o substantivo se fez verbo e o verbo se fez carne... Desde a década de 1980, os estudos sobre a relação entre a Geografia e o Direito vêm sofrendo uma inflexão decorrente das críticas à abordagem positivista saturada em seus campos científicos. Tanto o espaço geográfico quanto a norma jurídica, vistos como entes em si, vão gradualmente sendo compreendidos enquanto produtos sociais. Surge o olhar sobre a norma e o espaço enquanto processos sociais. As disciplinas, que até então só se aproximavam de forma técnica (SOUZA, 2013), vêm se aproximando, ao rearticular conceitos e teorias na busca do entendimento da sociedade: no campo do Direito, assistimos desdobramentos no que tange o pluralismo jurídico, por exemplo, absorvendo e articulando diferentes estruturas normativas a partir das diferenças nos/dos espaços; no campo da Geografia, poderíamos citar, os avanços na busca de uma teoria geográfica crítica que considere a sobredeterminação entre espaço e sociedade – como no caso da abordagem da produção do espaço. Cabe ressaltar, para uma interface profícua entre os campos, a preocupação esboçada por Antas Jr. (2005, p. 79) é fundamental, quando afirma que “o Direito deve ser entendido como instância social e não somente como ciência”, sendo constituído por normas jurídicas e normas não-jurídicas, não devendo “ser confundido com a prática do Advogado” (Ibid., p. 54). A norma aqui é entendida como o nexo estruturante das relações entre os campos citados, enquanto parte constituinte do espaço geográfico, a partir do momento em que: As normas jurídicas e as formas geográficas guardam a propriedade comum de produzir condicionamentos sobre a sociedade, funcionalizando-a para diversos fins e direções distintas. Indivíduos, grupos e/ou populações têm seus comportamentos constantemente submetidos a enquadramentos [normas] geradores de resultados “socialmente desejáveis”. Essa coação produzida externamente aos sujeitos pode ter sua fonte numa materialidade [formas geográficas] apenas aparentemente inerte, uma vez que os conjuntos de objetos artificiais e humanizados que a constituem arranjam-se intencionalmente, de modo a obstaculizar dadas ações ou, ao contrário, a promover-lhes a fluência. (Ibid., p. 61) Há, ainda, as formas de solidariedade social que, reguladas pelas normas morais, tal como as normas jurídicas, territorializam-se, sendo estruturadoras de territórios. Apesar dos costumes apresentarem solidariedades distintas das normas 462 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO jurídicas, muitos deles tendem a transformarem-se em normas jurídicas, na medida em que se configuram essenciais à sustentação de uma comunidade. Por tanto, os limites entre a norma jurídica e norma moral acabam por se diluírem. Geografia e Direito se encontram, uma vez que a interação difusa dessas diferentes concepções normativas transforma a “materialidade condicionadora da vida social” (Ibid., p. 59), ao mesmo tempo em que direciona usos e comportamentos (em vista aos “resultados socialmente desejados”), influi no reordenamento dos espaços, podendo acarretar rearranjos espaciais, transformando paisagens, re-configurando territórios e re-estruturando lugares. Porém, o autor (Ibid., p. 70) nos alerta que A regulação social e territorial, quer nos parecer, é efetivamente exercida pelas instâncias que detêm poder de fato e não apenas um poder declarado. Advém daí a proposta de um entendimento de que a regulação do território nacional atravessa hoje [com a globalização] uma transição para uma evidente divisão entre poderes: 1. o poder monolítico e extensivo da hegemonia soberana; 2. o poder fragmentado, especializado por setores econômicos (não necessariamente produtivos), formado por redes técnicas e organizacionais − a hegemonia corporativa; e 3. a constituição de novas 2 formas de poder fundada no multiculturalismo. À essa complexidade, o autor designa de forma híbrida de regulação. E, desta forma, afirma que “a crise de regulação que o Estado atravessa neste período não se dá em função de uma obsolescência de sua forma e de seu ente; reside, antes, na crença de que ele é o único a regular o território em que está circunscrito. (Ibid., p. 51) Nossa reflexão se situa neste contexto, mas do ponto de vista do movimento de retomada do planejamento nacional e de produção de políticas públicas nacionais, a partir dos anos 2000, onde o enfoque no território tem se tornado estratégico para a absorção das demandas territoriais no modelo institucional, em vistas à transformação do espaço social. O programa de governo de redução das desigualdades, apoiado na pauta do crescimento econômico com desconcentração social e regional de renda, vem buscando reafirmar o papel da participação social (articulação de conselhos, 2 “Organizações sociais bem estruturadas, com ação local, regional, nacional e supranacional, de um lado, e corporações transnacionais, de outro, são exemplos claros de uma nova tipologia de agentes hegemônicos.” (Antas Jr., 2005, p. 65) 463 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO orçamento participativo, consultas populares etc.) nos processos de decisão (STEINBERGUER, 2013). Destarte, segundo Rodrigues (2004), as inflexões na relação sociedadeEstado têm apontado para a territorialização das políticas públicas. Perspectiva que se distingue da abordagem clássica das políticas públicas setoriais, onde o território vem emergindo como uma possibilidade e uma promessa, para a construção e reorganização do planejamento e das próprias políticas públicas. Tal concepção se soma e se particulariza, no âmbito das políticas de saúde mental, às outras políticas públicas do e integradas ao campo da saúde, formuladas e reformuladas neste ínterim – como a NOAS-SUS 01/2001, que define o processo de regionalização da assistência à saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), dando protagonismo ao conceito de território. Deve ficar claro que esta nova perspectiva, ao mesmo tempo em que particular ao contexto brasileiro, está inserida no bojo de um conjunto de debates no mundo, seguindo o que podemos chamar de “tendência” ou, nos dizeres de STEINBERGUER (2013), um “modismo”. Aqui se situa nossa preocupação: apesar das apostas nos avanços que a emergência do território tende à apontar no campo das políticas públicas, compreendemos que ainda precisamos amadurecer o entendimento da dimensão real de suas possibilidades e limitações. Este processo, urge, primariamente, análises críticas das normativas que têm absorvido esta concepção. Porém, deve-se ficar claro que esta forma de abordagem proposta neste artigo, apesar de basilar, é apenas o passo inicial, visto que, para o estabelecimento de análises e críticas que realmente apontem para um progresso teórico-epistemológico do debate, a dimensão empírica, através dos estudos de caso, é fundamental. 2 – Encruzilhadas em Rede, território em evidência. A orientação de uma Rede de Atenção Psicossocial, conforme proposta pela Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011, adequada às diretrizes da Lei Federal Nº 10.216/2001 (“Lei da Reforma Psiquiátrica”, que redireciona o modelo de assistencial em Saúde Mental), pressupõe “a atenção integral articulada aos diferentes níveis de cuidado no Sistema Único de Saúde – 464 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO SUS, oferecendo suporte às ações desenvolvidas no território, na busca da autonomia dos indivíduos, da integralidade da atenção e da inserção social” (MATEUS, 2013, p. 16) Segundo o discurso do texto, a referida Portaria “Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Para compreendermos o sentido e a amplitude da medida instituída, é imperativo a definição de alguns conceitos. A normativa compõe o corpo das políticas de saúde mental, enquanto políticas de saúde concernentes às orientações e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Entenderemos políticas de saúde como “o conjunto de formas de intervenção concretas na sociedade que o Estado aciona para equacionar o problema das condições sociais de existência de grandes camadas populacionais; (...) Em termos mais claros: a maneira como o Estado conduz o problema das condições de vida das classes trabalhadoras.” (LUZ, 1994, p. 86). Políticas estas, articuladas do ponto de vista da rede, que, no caso do setor saúde, “supõe certa ligação ou integração entre os serviços, evitando que fiquem dispostos de forma isolada, autarquizada, ou seja, sem comunicação entre si. (...) A forma de rede regionalizada possibilita a distribuição dos estabelecimentos de saúde em um dado território, de modo que os serviços básicos estejam mais disseminados e descentralizados enquanto os serviços especializados se apresentam mais concentrados e centralizados (...) de forma a garantir o atendimento integral à população e evitar a fragmentação das ações em saúde.” (PAIM, 2009, p. 48). Os princípios que dão coerência lógico-estrutural a esta organização em rede, se referem à descentralização3 e a integralidade4. “Busca adequar o SUS à diversidade regional de um país continental como o Brasil, com realidades econômicas, sociais e sanitárias muito distintas. (...) Neste sentido, as decisões não devem estar centralizadas em Brasília, sede do governo federal. As decisões do SUS seriam tomadas em cada município, estado e Distrito Federal, por meio das respectivas secretarias de saúde, cabendo ao Ministério da Saúde coordenar a atuação do sistema no âmbito federal” (PAIM, 2009, p. 49). 4 “Envolve a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. Mas, além de ser integral, o atendimento no SUS deve priorizar as atividades preventivas. (...) Esta diretriz do SUS, que busca compatibilizar ações preventivas e curativas, individuais e coletivas, (...) representa uma inovação nos modos de cuidar das pessoas e de buscar soluções adequadas para os problemas e necessidades de saúde da população de um bairro ou de uma cidade” (Ibid., p. 50) 3 465 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Esse todo, organizado a partir do paradigma da Atenção Psicossocial, que, segundo COSTA-ROSA (2013, p. 22), “se caracteriza por um conjunto de práticas cujo arcabouço teórico-técnico e ético-político caminha na direção da superação paradigmática da psiquiatria asilar”. Este modelo de produção de cuidado, se firmou como política pública oficial do Ministério da Saúde ao longo do processo da Reforma Psiquiátrica, orientado, principalmente, pelos seguintes pressupostos: assume ética e tecnicamente a indissociabilidade entre a saúde psíquica e a subjetividade; inclui a implicação protagonista do indivíduo nos conflitos e contradições em que está imerso; exige uma concepção de saúde em termos de processos complexos de produção social da vida material em sociedade; parte de um fazer-saber diretamente dependente do trabalho vivo, ou seja, onde o trabalho é entendido fora do princípio que caracteriza as disciplinas e se inclua na transdisciplinaridade; recupera os modos cooperados de gestão dos dispositivos institucionais e dos processos de produção da Atenção, onde os processos micropolíticos são considerados fundamentais. (Ibid.) Em síntese, compreenderemos aqui a normativa como uma orientação do Estado que busca a resolubilidade, ou seja, a eficácia e eficiência nas ações em Saúde Mental, através da definição, promoção, orientação e articulação descentralizada de serviços e equipamentos dispostos à população alvo, em vistas à um atendimento integral, absorvendo as demandas individuais, ao direcionar o protagonismo da Atenção aos sujeitos, na complexidade de sua reprodução social – daí a “sensibilidade espacial”. Para isso, o documento define uma série de serviços e equipamentos5 que deverão constituir a Rede (Art. 5), no que diz respeito à: atenção básica em saúde; atenção psicossocial especializada; atenção de urgência e emergência; atenção 5 São equipamentos e serviços previstos (Art. 5): Unidade Básica de Saúde; Núcleo de Apoio a Saúde da Família; Consultório de Rua; Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório; Centros de Convivência e Cultura; Centros de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades; SAMU 192; Sala de Estabilização; UPA 24 horas e portas hospitalares de atenção à urgência /pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde; Unidade de Acolhimento; Serviço de Atenção em Regime Residencial; Enfermaria especializada em hospital geral; Serviço Hospitalar de Referência (SHR) para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas; Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); Programa de Volta para Casa (PVC); Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda; Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais. 466 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO residencial de caráter transitório; atenção hospitalar; estratégias de desinstitucionalização; estratégias de reabilitação psicossocial. Equipamentos e serviços que deverão obedecer à 12 “diretrizes para o funcionamento da rede” (Art. 2), visando 3 “objetivos gerais” (Art. 3), através de 9 “objetivos específicos” (Art. 4). No que diz respeito ao termo “território”, é citado num total de 10 vezes, aparecendo no texto de 2 “diretrizes para o funcionamento da rede” 6; em 1 dos objetivos gerais7; e 7 vezes, ao caracterizar os componentes da Rede e suas ações e competências8. Buscamos compreender e sistematizar as diferentes concepções do termo adotadas em cada uma das citações, chegando à 3 “categorias principais de sentido atribuídos ao conceito”: a) território como orientador das atividades terapêuticas; b) território como unidade de gestão e planejamento em saúde; e, c) território como aquilo que dá coerência à unidade político-administrativa do Estado. 2.1 – Território como orientador das atividades terapêuticas. Esta forma de abordagem é a mais frequente ao longo do texto, sem, porém apresentar definições claras. É que o texto considera e incorpora todo o conjunto de outras normativas e Leis precedentes, transpondo seus conceitos e abordagens. Este fato, longe de empobrecer o debate, nos obriga a referenciar nossa leitura em alguns dos outros documentos considerados e incorpora-los no presente artigo. A abordagem está presente em 2 diretrizes, sendo: a) “desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania” (Art. 2, inciso VII); e, b) “ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares” (Art. 2, inciso IX). Também aparece em 1 dos 3 objetivos gerais – “garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências” (Art. 3, inciso III). 6 Art. 2, incisos VII e IX Art. 3, inciso III 8 Art. 6 § 3º; Art. 7, § 1º; Art. 10, § 4º; Art. 12, § 2º; e, Art. 14, incisos I, II e III. 7 467 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Por fim, no que diz respeito aos componentes da Rede, aparece 2 vezes: a) “no que se refere ao inciso II deste artigo, em nível local ou regional, compõe a rede hospitalar de retaguarda aos usuários de álcool e outras drogas, observando o território, a lógica da reduçã de danos e outras premissas e princípios do SUS” Art. 10, § 4º, acerca da “atenção hospitalar - serviço Hospitalar de Referência para Atenção”); e, b) “as iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas sociais de que trata o § 1º deste artigo devem articular sistematicamente as redes de saúde e de economia solidária com os recursos disponíveis no território para garantir a melhoria das condições concretas de vida, ampliação da autonomia, contratualidade e inclusão social de usuários da rede e seus familiares” (Art. 12, § 2º, no que tange às “estratégias de desinstitucionalização”). Este conjunto de referências apontam, principalmente, o direcionamento de um discurso de território que emerge como o meio e, ao mesmo tempo, como a condição para a Atenção, como base de organização das práticas de cuidado, fundamentada nas noções de desinstitucionalização e em vistas à assistência integral. A desinstitucionalização, perspectiva fundante da experiência basagliana da Psiquiatria Democrática, tem como preceito básico terapêutico a recolocação do louco em sua condição de sujeito, permitindo a esse a reapropriação de sua vida e abertura a outras possibilidades de ser, para além da doença – “a liberdade é terapêutica!” Nesta perspectiva, seria possível compreender o doente e agir em seu benefício, empreendendo uma luta em duas esferas: na esfera científica e na esfera política. Na luta contra a institucionalização do ambiente externo (luta política de transformação da relação sociedade-loucura) e contra a institucionalização nos manicômios, em busca de novos espaços e formas de lidar com a loucura. Trata-se de “colocar a doença entre parênteses”, que “diz respeito à individuação da pessoa doente (...) [de] realizar uma operação prático-teórica de afastar as (...) superestruturas, produzidas tanto no interior da instituição manicomial, em decorrência do estado de institucionalização, quanto no mundo externo” (AMARANTE, 1994, p. 68 e 70) 468 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Através da noção de desinstitucionalização é expressa uma perspectiva de cuidado territorial pela necessidade de “deslocamento das ações para o contexto social dos usuários, de sua existência concreta, para mudar, em última instância, a relação do corpo social com a loucura.” (ROTELLI, 1992 apud LEMEK E SILVA, 2013, p. 9). Já a assistência integral aponta um trato com o sujeito do cuidado de forma ampliada, descentrando o olhar técnico de análise das demandas em saúde do ponto de vista puramente fisiológico, o que imputa ao agente de saúde o “cuidado no território”, na complexidade dos contextos de vida dos usuários, na “complexidade movente do território, seus contextos e interações” (LEMEK E SILVA, 2013, p. 10). 2.2 – Território como unidade de gestão e planejamento em saúde. No que diz respeito à esta abordagem, podemos citar 2 momentos em que o conceito é acionado, sendo: a) “quando necessário, a Equipe de Consultório na Rua, de que trata a alínea "a" do inciso II deste artigo, poderá utilizar as instalações das Unidades Básicas de Saúde do território” (Art. 6 § 3º, acerca da “Equipe de atenção básica para populações específicas - Consultório de Rua”); e, b) “o Centro de Atenção Psicossocial de que trata o caput deste artigo é constituído por equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo” (Art. 7, § 1º, no que tange a “atenção psicossocial especializada – CAPS”). Aqui, apesar de em ambas as redações observarmos à filiação às normas de regionalização e territorialização pautadas pelo SUS (NOAS 01/2001), podemos notar dois sentidos distintos: por um lado, observamos a perspectiva da territorialidade dos serviços, adequados as Regiões de Saúde – e, neste sentido, território emerge como sinônimo de região; por outro, o território também aparece como continente, como possuidor de equipamentos – muito se aproximando da perspectiva de território como “receptáculo”, apontado por SOUZA (1995). 2.3 – Território como aquilo que dá coerência à unidade políticoadministrativa do Estado. 469 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Por fim, no que diz respeito à última forma de abordagem, podemos citar 3 momentos em que o conceito é acionado de forma idêntica, no que se refere ao Art. 14 (Competências para a operacionalização da Rede de Atenção Psicossocial) 9. Em ambos os casos, o conceito é acionado na concepção histórica dos juristas da relação Estado-território, do trato do território como espaço no qual vigora o poder soberano do Estado; como constitutivo deste, aquele que o liga ao “povo” e lhe dá coerência; como sinônimo de base física, recursos materiais e limite (STEINBERGUER, 2013). 3 – Considerações Finais Concordamos com a concepção de SOUZA (1995), que compreende o território como um “campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato material”. E ainda: “o território é sempre, e concomitantemente, apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente partilhado” (HAESBAERT E LIMONAD, 2007, p. 43). E, ainda, com LUZ (1994, p. 88) segundo o qual, compreender as políticas de saúde mental e, respectivamente, as diferentes abordagens de território prevista no corpo da normativa, é preciso ter claro que elas “mediatizam saberes e práticas institucionais distintos, com uma evolução histórica específica, e que tanto esses saberes, quanto as práticas de intervenção institucional que eles originam não são monolíticos e nem coerentes”. Daí resultam muitas das contradições entre discurso (normas, programas etc.) e prática institucional. Neste sentido, o conceito pouco avança no que diz respeito à adequação às diretrizes do SUS e/ou à abordagem clássica dos juristas – enquanto aquilo que dá “à União, por intermédio do Ministério da Saúde, o apoio à implementação, financiamento, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial em todo território nacional” (Inciso I); “ao Estado, por meio da Secretaria Estadual de Saúde, apoio à implementação, coordenação do Grupo Condutor Estadual da Rede de Atenção Psicossocial, financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial no território estadual de forma regionalizada” (Inciso II); e, “ao Município, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, implementação, coordenação do Grupo Condutor Municipal da Rede de Atenção Psicossocial, financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede De Atenção Psicossocial no território municipal” (Inciso III) 9 470 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO coerência às unidades político-administrativas do Estado. Porém, apresenta um grande potencial progressista, no que tange à Atenção Psicossocial. Contudo, cabe ressaltar que, quando compreendido conforme o Portal do SUS10, tende a se confundir com o próprio “espaço da vida” dos sujeitos, perdendo seu caráter analítico de exprimir as relações de poder atuantes nos fenômenos. Assim sendo, a possibilidade do cuidado territorial adquirir uma perspectiva de complexidade infinda, tende a levar o ato terapêutico ao esvaziamento da pauta da desinstitucionalização mais ampla (da relação sociedade-loucura), pela sobrecarregamento do trabalho individualizado-individualizante. Neste sentido, sem o acompanhamento de um estudo de caso mais aprofundado para compreensão da amplitude das possibilidades concretas de transformação no modo de cuidado pautado, os discursos acerca do território pautados no corpo da normativa podem acabar se tornando verdadeiros obstáculos epistemológicos. 4 – Referências Bibliográficas ANTAS Jr., Ricardo Mendes. 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