Arq Bras Cardiol
2003; 80: 289-94.
Mancilha-Carvalho
& Souza
e Silva
Artigo
Original
Os Yanomami no Intersalt
Os Yanomami no INTERSALT
Jairo de Jesus Mancilha-Carvalho, Nelson Albuquerque de Souza e Silva
Rio de Janeiro, RJ
Objetivo - Estudar a distribuição e inter-relação de
variáveis constitucionais e bioquímicas com a pressão
arterial (PA) em uma população isolada de índios Yanomami. Comparar estes achados com os de outras populações.
Métodos - Os índios Yanomami foram parte do INTERSALT, estudo com 10.079 homens e mulheres, de 20 a
59 anos de idade, pertencentes a 52 populações em 32 países da África, Américas, Ásia e Europa. Os 52 centros deveriam a recrutar 200 indivíduos, 25 por grupo etário. As
variáveis obtidas foram: idade, sexo, PA, excreção urinária
de sódio e potássio (urina de 24h), índice de massa corporal e ingestão de álcool.
Resultados - Os índios Yanomami apresentam: excreção urinária de sódio muito baixa (0,9mmol/24h), média
de PA sistólica de 95,4mmHg e diastólica de 61,4mmHg,
nenhum caso de hipertensão arterial ou de obesidade e
desconhecem bebidas alcoólicas. A PA não se eleva com o
envelhecimento. A excreção urinária de sódio relacionouse positivamente e a excreção de potássio negativamente
com a PA sistólica, mesmo quando controlada para a
idade e para o índice de massa corporal.
Conclusão - Existe relação positiva entre ingestão
de sal e pressão arterial, analisando-se um conjunto de
populações díspares participantes do INTERSALT,
incluindo populações como a dos Yanomami. A observação qualitativa de seu estilo de vida trouxe informações
adicionais.
Palavras-chave:
pressão arterial e sal na dieta, hipertensão
arterial, epidemiologia, fatores de risco
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (FM/UFRJ) - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/MCT e Ministério da Saúde.
Correspondência: Nelson Albuquerque de Souza e Silva – Condomínio Vale de
Itaipu, c/502 – 24340-140 – Niterói, RJ – E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 9/1/02
Aceito em 8/4/02
O INTERSALT é um estudo epidemiológico colaborativo internacional, realizado sob os auspícios do Conselho de Epidemiologia e Prevenção da Sociedade e Federação Internacional de Cardiologia (IFSC), que procura entender a relação entre a ingestão de sódio (Na+) e de potássio
(K+) com a pressão arterial, estudando também a relação da
pressão arterial com outras variáveis, como o peso, o índice
de massa corporal e a ingestão de álcool. Foi planejado para
explorar as relações intrapopulacionais e interpopulacionais das variáveis, isto é, as relações das variáveis com a
pressão arterial dentro de cada população e a comparação
entre as diferentes populações estudadas.
O objetivo do presente trabalho é estudar a relação de
diversas variáveis constitucionais, dietéticas e ambientais
com a pressão arterial entre os índios Yanomami, por nós
estudados, com os achados globais do INTERSALT já
publicados e com outras amostras estudadas por outros
pesquisadores.
Métodos
O INTERSALT estudou 10.079 homens e mulheres de
20 a 59 anos de 52 populações diferentes em 32 países da
África, América do Sul e do Norte, Ásia e Europa.
Cada um dos 52 centros foi solicitado a recrutar 200
homens e mulheres de 25 a 59 anos, com 25 participantes por
grupo etário. Com exceção de algumas populações isoladas, os participantes foram selecionados de forma aleatória
e randomizada. Todos os investigadores receberam o manual de operações do INTERSALT e foram treinados e
avaliados na metodologia e no protocolo do estudo, exatamente os mesmos para os 52 centros 1-5.
A pressão arterial foi medida duas vezes, em posição
sentada, com esfigmomanômetro do tipo “Zero randômico”, após esvaziamento da bexiga e repouso sentado por
5min. A pressão sistólica foi assinalada na 1ª fase de Korotkoff (aparecimento dos sons auscultatórios), e a diastólica
na 5ª fase (desaparecimento dos sons auscultatórios). As
leituras foram feitas em intervalo de 2mmHg. Foi coletada, de
todos os participantes, amostra de urina casual e de 24h
para a medida dos eletrólitos. As alíquotas de urina foram
congeladas e enviadas para o laboratório central do INTER-
Arq Bras Cardiol, volume 80 (nº 3), 289-94, 2003
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Mancilha-Carvalho & Souza e Silva
Os Yanomami no Intersalt
SALT na Universidade de St. Raphael em Lovaina, Bélgica,
onde foram feitos as análises com rígido controle de qualidade. Foi realizada uma repetição da coleta de urina e da
medida da pressão arterial em uma amostra aleatória de 8%
dos participantes para estimar a variabilidade intraindividual. Todos os dados foram enviados para o Centro de
Coordenação em Londres para revisão e análise.
O peso e a altura foram medidos duas vezes usando
um estadiômetro e uma balança padronizada. O sódio e o
potássio foram medidos por fotômetro de chama. Foi também avaliada a ingestão de álcool de cada participante.
A pressão arterial utilizada na análise foi a média das
duas medidas registradas. A excreção urinária de sódio e de
potássio foi o produto das concentrações na urina e o volume urinário de 24h. O índice de massa corporal foi calculado
dividindo-se o peso em Kg pelo quadrado da altura (kg/m2).
A mediana das variáveis foi analisada e a regressão
linear múltipla foi aplicada para estudar a relação entre as
variáveis.
Resultados
Para investigar a relação entre a excreção urinária de
24h de Na+ e a pressão arterial dos participantes, foi usada a
regressão linear múltipla, controlando por idade, sexo,
peso, excreção de K+ e ingestão de álcool. Os coeficientes
dessas análises (diferença em mmHg de pressão arterial
para cada unidade de diferença no Na+) foram computados
para cada um dos 52 centros, separadamente.
Em 39 dos centros estudados, os coeficientes foram
positivos, controlando por sexo e idade, e em 33 foram positivos controlando também por índice de massa corporal,
excreção de K+ e ingestão de álcool. Desses 33, em oito, os
coeficientes foram estatisticamente significativos.
Quando os 52 centros foram combinados, houve uma
relação estatística altamente significativa, entre excreção de
Na+ e pressão arterial sistólica para os 10.079 participantes
(fig. 1). Quanto mais alta a excreção urinária de Na+ (e portanto, ingestão de Na+) mais alta a pressão arterial.
Essa relação existe em homens e mulheres e é mais
Fig. 1 – Pressão arterial sistólica e excreção urinária de sódio.
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acentuada nos participantes mais velhos. Esta relação significativa entre Na+ e pressão arterial sistólica persistiu
quando os hipertensos foram excluídos da análise. A associação positiva entre Na+ e pressão arterial sistólica nos
indivíduos foi observada em todas as faixas de níveis de
pressão arterial, não ficando restrita apenas à minoria de
pessoas “sal sensitivas” (da faixa mais alta da distribuição
da pressão arterial).
A relação entre excreção urinária de Na+ e a pressão
arterial diastólica foi também positiva, porém mais fraca que
a relação excreção urinária de Na+ e a pressão arterial
sistólica.
A excreção de K+ foi inversamente associada com pressão arterial sistólica e diastólica dos indivíduos, e estatisticamente significativa, mesmo controlando por sexo, idade,
índice de massa corporal e ingestão de Na+ e de álcool.
Houve uma forte associação entre a razão excreção de
Na+ / K+ e a pressão arterial sistólica e diastólica dos indivíduos.
O INTERSALT encontrou uma forte, positiva e significativa associação entre peso corporal (índice de massa corporal) dos indivíduos e pressão arterial sistólica e diastólica.
Houve também uma forte associação entre grande ingestão
de álcool (mais de 300ml de álcool por semana) e a pressão
arterial sistólica e diastólica.
A análise dos dados em quatro populações isoladas
(índios Yanomami, índios do Xingu, população rural de
Kenia e população rural de Papua Nova Guiné) demonstrou
que a elevação da pressão arterial com idade não é inevitável, nem a alta prevalência de hipertensão. Com uma excreção urinária de Na+ variando, de 0,9mmol/d a 51mmol/dia
(comparado com a média de 165mmol/dia dos outros 48 centros), as médias de pressão arterial foram notavelmente
mais baixas nesses quatro centros que nos 48 restantes, a
elevação da pressão arterial com a idade foi mínima ou mesmo negativa e a hipertensão virtualmente inexistente (tab. I).
Mesmo nesses centros de baixa ingestão de Na +
existe uma relação positiva entre ingestão de Na+ e pressão
arterial (fig. 2).
Visto que as populações diferem entre si de muitas
outras maneiras, além das variáveis que puderam ser analisadas no INTERSALT, as análises interpopulacionais têm
maiores problemas metodológicos que as intrapopulacionais com uma amostra grande e usando métodos estandardizados. Apesar disso, houve uma associação positiva e
significativa entre pressão arterial sistólica e excreção de
Na+ nos 52 centros. Quando os quatro centros com baixa
ingestão de Na+ foram excluídos, a associação continuou
positiva, mas não significativa.
A análise da curva de elevação da pressão arterial com
a idade, foi forte e significativamente associada à excreção
de Na+ (fig. 1). Quanto maior a ingestão de Na+ maior a elevação de pressão arterial com a idade, encontrada na análise
dos 52 centros e, também, quando os quatro centros com
baixa ingestão de Na+ não foram incluídos.
O grupo dos Yanomami diferenciou-se dos outros grupos estudados no INTERSALT por apresentar a menor
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Mancilha-Carvalho & Souza e Silva
Os Yanomami no Intersalt
Tabela I - Comparação dos quatro centros com baixa ingestão de sódio com os outros 48 centros do INTERSALT
Variáveis
Yanomami
Fatores relacionados ao estilo de vida
Sódio de 24h (mmol-mediana)
Sódio/potássio
Razão (mediana)
IMC
Ingestão de álcool (%)
Pressão arterial
PA sistólica (mediana)
PA diastólica (mediana)
Hipertensos (%)*
Relação da PA Sistólica com a idade
(mmHg/10 anos)
<1
<0,01
Xingu
6
0,08
Papua
Nova Guiné
Kênia
Os outros
48 centros
27
0,48
51
1,8
160
3,4
21,2
0
23,4
0
21,7
8,7
20,8
30,7
25,2
53
95,4
61,4
0
-1,1
98,9
61,7
1
+0,6
107,7
62,9
0,8
-1,4
109,9
67,9
5
+2,4
118,7
74
17,4
+5
* Pressão sistólica (PA) de 140mmHg ou mais, PA diastólica de 90mmHg ou mais, ou tomando medicação anti-hipertensiva; IMC- índice de massa corporal.
Fig. 2 – Pressão arterial e excreção urinária de sódio em quatro populações isoladas.
ingestão de Na+ (0,9mmol/24h), os menores níveis de pressão arterial (média de pressão arterial de 95,4 de sistólica e de
61,4mmHg de diastólica), sem ingestão de álcool, ausência
de aumento de pressão arterial com a idade, e ausência de
hipertensão (tab. I e fig. 3).
ausência de aumento da pressão arterial com a idade 11-24.
Alguns poucos estudos documentaram uma diminuição da
pressão arterial com a idade 7,20. Em geral, essas populações
são caracterizadas por uma dieta pobre em Na+ e rica em K+.
Foi sugerido que a inexistência do aumento da pressão arterial com a idade, seria devido à presença de doenças crônicas e má nutrição 25,26. Os autores não observaram
sinais de má nutrição ou deficiência protéica nos participantes da amostra Yanomami estudada no INTERSALT: pelo
contrário, ficaram impressionados com a resistência física
dos participantes que carregam grandes pesos durante horas, caminhando na mata. Truswell e cols. 20 e Page e cols. 21
também observaram bom estado nutricional nas populações
isoladas da África e das Ilhas Solomon, onde não foi encontrado aumento da pressão arterial com a idade.
Os índios Yanomami são uma evidência de que é possível se levar uma vida ativa com muito pequena ingestão de
sal. Oliver e cols. 6 documentaram níveis semelhantes de
excreção de Na+ em grupos Yanomami da Venezuela e detectaram a associação com elevados níveis plasmáticos de
renina e aldosterona. Essas adaptações hormonais à uma
muito baixa ingestão de Na+ pode desempenhar um papel
importante na conservação e reabsorção do Na+ filtrado pelos
rins e pode indicar a capacidade do homem de se adaptar a
uma alimentação deficiente de sais de Na+, adaptação essa
Discussão
A amostra dos Yanomami, estudada no INTERSALT,
apresentou o menor nível de excreção de Na+ até hoje relatado na literatura, em população adulta. Dados semelhantes
foram encontrados em outras amostras da população
Yanomami 6-8. A excreção de K+, na amostra Yanomami, foi
maior que em 35 das 52 amostras do INTERSALT. Em adultos de populações industrializadas existe um aumento de
peso com a idade 9,10. Os Yanomami não apresentaram esse
aumento de peso com a idade.
Muitos estudos de populações isoladas que ingerem
pouco sal, em diferentes partes do mundo, têm mostrado
Fig. 3 – Pressão arterial e idade (índios Yanomami).
291
Mancilha-Carvalho & Souza e Silva
Os Yanomami no Intersalt
Fig. 4 – Modelo causal de doenças.
originada da dieta predominantemente vegetariana dos ancestrais primatas do homem 27. Esse tipo de dieta prevaleceu
durante milhares de anos de evolução do homem, de nômade
coletor de alimentos a caçador, antes do desenvolvimento da
agricultura e da domesticação e criação de animais 27,28.
Como o sistema de controle da pressão arterial é um
sistema redundante, isto é, vários sistemas controlam a
pressão arterial além do sistema renina-angiotensinaaldosterona, a estimulação acentuada deste sistema, pela
baixa ingestão de sal, não é capaz de elevar a pressão arterial,
talvez por que outros mecanismos fisiológicos, por exemplo,
vasodilatadores, devem compensar a estimulação deste
sistema vasoconstritor e preservador de sal. Num sistema
redundante, a alteração de um de seus componentes afeta
ou interfere nos demais, fazendo com que todo o sistema se
reajuste, seja mantendo o resultado (no caso o nível inalterado da pressão arterial), seja reajustando o sistema em um
novo patamar. Outro exemplo de estímulo do sistema reninaangiotensina-aldosterona é o da estenose da artéria renal.
Estudos anatomoclínicos já mostravam de longa data que a
estenose da artéria renal, não necessariamente, eleva a pressão arterial 29. Em 17% dos normotensos neste estudo, existia estenose de mais de 50% da artéria renal. Por outro lado,
o conceito clássico de que a ativação do sistema reninaangiotensina-aldosterona é o único responsável pelo
desenvolvimento e manutenção da hipertensão renovascular tem sido revisto e as evidências experimentais indicam
que outros sistemas, como a via das lipoxigenases, parecem
ter um papel mais crítico na manutenção da elevação da
pressão arterial após estenose da artéria renal 30.
Além da baixa ingestão de Na+ e da alta ingestão de K+,
outros fatores que podem contribuir com a idade para a
ausência de hipertensão e inexistência de aumento de pressão arterial entre os Yanomami são: baixo índice de massa
corporal e a quase inexistência de obesidade, não ingestão
de álcool, a pequena ingestão de gorduras saturadas, a alta
ingestão de fibras, a relativamente alta atividade física e as
várias conseqüências culturais de viver em uma comunidade isolada sem o estresse psicossocial da civilização e
sem um sistema monetário ou de dependência de emprego.
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Um dos coordenadores do INTERSALT, Dr. Jeremiah
Stamler, discutindo as implicações do estudo 3,31,32, afirma
que dos achados pode-se estimar que uma diminuição da
ingestão média de Na+ para 100mmol/dia (uma colher de chá
de sal), uma redução da média do índice de massa corporal
para 22Kg/m2, um aumento da ingestão de K+ para aumentar
a razão Na+/K+ para 1 e se a excessiva ingestão de álcool
fosse eliminada, a média da pressão arterial sistólica seria
6mmHg mais baixa. Um clínico pode notar, num paciente
individual, que a pressão arterial muitas vezes varia mais do
que isso em minutos. Mas uma diferença de 6mmHg tem
outro significado quando aplicada a uma população. Estimado de outros estudos epidemiológicos (Framingham,
Western Electric, MRFIT), o impacto da diminuição de
6mmHg na pressão arterial sistólica daria uma redução de
10% na mortalidade por doença coronariana e de 16% na
mortalidade por acidente vascular encefálico.
O estudo dos índios Yanomami, por nós iniciado em
1982, e apresentado originalmente como tese de doutorado
do Programa de Pós-graduação em Cardiologia da Faculdade de Medicina da UFRJ por um dos autores 7, orientado
pelo outro do presente estudo, trouxe uma grande contribuição para o entendimento da complexa interação homem/
meio ambiente na determinação de doenças, no caso, fatores de risco para as doenças cardiovasculares. Essa população isolada, só foi contatada pelo mundo dito “civilizado”
em meados do século vinte. Hipertensão arterial é inexistente nos Yanomami, enquanto que 38% de uma população
urbana do Rio de Janeiro 33, também por nós examinada,
apresenta níveis de pressão arterial acima de 140/90mmHg
ou faz uso de drogas anti-hipertensivas. Os Yanomami
também não apresentam obesidade, sua pressão arterial não
eleva com o envelhecimento, seus níveis de colesterol
sérico total com média de 122mg% para o homem e de
142mg% para a mulher e de colesterol LDL de 68mg% para
o homem e de 78mg% para a mulher, são quase a metade
dos níveis descritos em populações brasileiras de grandes
cidades ou de outros países 34-36. Além disto, a baixa ingestão de sal dessa população foi fundamental para comprovar,
no INTERSALT, a relação positiva entre ingestão de sal e
níveis de pressão arterial, dúvida antiga no conhecimento
da fisiopatologia da elevação da pressão arterial. Os achados nos índios Yanomami indicam que a alta prevalência
dos fatores de risco cardiovascular em nosso meio, principalmente nas populações de nível sócio-econômico mais
baixo, estão significativamente associados com as condições de vida e, portanto, podem ser controlados, independentemente, do que se venha a descobrir sobre a base genética destes fatores de risco cardiovascular.
A complexa relação indivíduo (conjunto de genes
inter-relacionados), sociedade (conjunto de indivíduos
inter-relacionados) e meio ambiente (ecossistema no qual o
indivíduo se insere) na determinação de doenças, precisa
ser entendida dentro de novos paradigmas do pensamento, como o de sistemas complexos 37,38 e não mais dentro do
paradigma determinístico de causa e efeito ou mesmo multideterminístico, para que possamos melhor entender o com-
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plexo saúde-doença dentro de uma evolução temporal, ou
seja, ao longo da história de vida do indivíduo. A análise
multivariada, utilizada no presente estudo, é um dos instrumentos estatísticos quantitativos, usados para entender
esta complexa interação. Outros métodos de observar e descrever a realidade, sejam quantitativos sejam qualitativos, e
de tentar reproduzir ou prever o que ocorrerá, tendo por
base a observação inicial (modelos preditivos matemáticos
ou estatísticos como as redes neurais ou as cadeias de
Markov), devem se somar na busca da verdade científica.
A figura 4 procura avançar um modelo causal simplificado. Neste modelo vemos que uma determinada doença
(D1) tem a probabilidade (PD1) de resultar da combinação de
diferentes variáveis ou fatores de risco ambientais (FR1,
FR2, FR3, FRn - sistema complexo ambiental-ecossistema)
atuando por períodos de tempo variáveis, sobre dois indivíduos (I2 e I3) que vivem em sociedade (I1 + I2 + I3 + In - sistema
complexo genético-ântropo-social) dentro deste sistema
ambiental. Por outro lado, os mesmos fatores ambientais
(FR1 - FRn) combinados podem causar ausência de doença
ou diferentes doenças (D0, Dn) em indivíduos diferentes (I1,
In). Esta complexa interação é ainda dependente do fator
tempo (t), seja o momento inicial da ação dentro da evolução
do sistema (estágio inicial), seja o período de duração da
ação. Ressalte-se que cada indivíduo pode ser exposto ao
fator ambiental em momentos diferentes de sua história
evolutiva e por períodos de tempo diversos, e que esse indivíduo possui, para controlar uma variável fisiológica como
a pressão arterial, sistemas redundantes, sob controle de
diversos genes, e que pode afetar o desfecho. Pequenas
mudanças no estágio inicial podem acarretar grandes
mudanças do sistema em outro momento do tempo 39. Lembremos ainda que os fatores de risco podem ser facilitadores ou inibidores, isto é, atuar positiva ou negativamente
dentro do sistema, para um determinado desfecho em um
determinado indivíduo, dependente da organização do
sistema (como as variáveis ambientais, genéticas e sociais
interagem).
Como uma mesma doença pode ser o resultado de diferentes combinações em indivíduos diferentes e em sociedades diferentes, os resultados (R1, Rn) de uma mesma terapêutica podem ser díspares. Portanto, não é surpresa verificar que as drogas anti-hipertensivas, por exemplo, reduzem
o risco relativo dos eventos cardiovasculares em <45%.
Entender estas complexas relações no indivíduo e saber
escolher ou julgar a melhor terapêutica para cada um é o
fundamento da clínica.
O estudo dos Yanomami, mesmo sem o conhecimento
do genoma humano, ao mostrar a ausência de alguns dos
fatores de risco coronarianos conhecidos em uma população que se organiza em sociedade e vive em um ecossistema
inteiramente diferente do nosso (habitantes de grandes
cidades), evidenciar que a pressão arterial nesse ambientesociedade não se eleva necessariamente com o envelhecimento ou mesmo com o sistema renina-angiotensinaaldosterona grandemente estimulado, possibilitar provar
que existe uma clara relação entre ingestão de sal e pressão
arterial, aponta para a necessidade de mudança do paradigma do pensamento determinístico ou multideterminístico,
para um pensamento complexo 40, para entender melhor as
relações causais em medicina.
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Os Yanomami no INTERSALT