Entrevista de Boaventura Sousa Santos ao jornal “O Estado de S. Paulo”.
''É a queda do Muro de Berlim árabe''.
Boaventura Sousa Santos, sociólogo e organizador do Fórum Social Mundial
Andrei Netto - O Estado de S. Paulo. 13 de fevereiro de 2011.
Enquanto milhares de manifestantes se reuniam todos os dias na Praça Tahrir,
no Cairo, para mudar o destino do Egito, milhares de militantes
"altermondialistas" discutiam em Dacar o que fazer para viabilizar o slogan "um
outro mundo possível". A capital do Senegal foi na semana passada a sede do
11.º Fórum Social Mundial (FSM), evento criado em Porto Alegre para ser o
centro de discussões da esquerda no mundo.
Com o corpo no Senegal, mas os olhos atentos aos acontecimentos do Egito e
da Tunísia, o sociólogo português e espécie de porta-voz do FSM Boaventura
de Sousa Santos avaliou, em entrevista exclusiva ao Estado, as raízes da crise
no Oriente Médio e Norte da África árabe, e seus desdobramentos geopolíticos.
"A democracia pode destruir os inimigos do Ocidente, mas também pode
derrubar seus amigos", afirma. A seguir, trechos da entrevista.
O presidente Hosni Mubarak acaba de renunciar. Qual é a implicação
desse fato político para o Egito, o mundo árabe e para a comunidade
internacional?
É a queda do Muro de Berlim no mundo árabe. Vejo alguma semelhança com o
que aconteceu no meu país, Portugal, em 1974. O Exército, que esteve com o
regime, distanciou-se ocasionalmente de Mubarak, em especial durante os
protestos. Foi uma atitude digna. Durante algum tempo o Exército e o povo
foram um só. Em Portugal, as Forças Armadas conduziram o país até as
eleições. Creio que será essa a lógica no Egito. Foram cerca de oito milhões
nas ruas, 10% da população. Em toda a região, regimes semelhantes estão em
perigo. Na Palestina, Iêmen, na Líbia, Argélia, Marrocos e Jordânia. Os países
são diferentes, mas há um efeito dominó que pode se concretizar ou não. É
uma grande onda democrática, como na América Latina nos anos 80, o Muro
de Berlim, nos 90, e agora no mundo islâmico.
Qual é a sua leitura da crise política no Norte da África e no Oriente
Médio? O que causou as revoltas na Tunísia e no Egito?
É a mistura explosiva de uma crise econômica muito intensa, que vem desde a
década de 2000 e de governos autoritários. No momento em que a Europa
começa a desacelerar o crescimento, as economias do Magreb se ressentem.
A Europa tem duas periferias às margens do Mediterrâneo. A exterior vai do
Marrocos ao Egito, e a interior, da Irlanda à Grécia. A Europa funcionou
articulando essas duas periferias, mas com o neoliberalismo, o que se
pretendia que fosse crescimento virou estagnação econômica, com níveis de
desenvolvimento humilhantes no plano interno. Ora, as economias periféricas
estavam muito dependentes da Europa. Com isso, cresce o desemprego, que é
altíssimo no Egito e na Tunísia, mesmo entre jovens bem formados.
O sr. diz acreditar em uma reação em cadeia na África árabe e no Oriente
Médio? Que extensão ela pode ter?
Não é possível prever. As transformações políticas são sempre mais rápidas
que as econômicas. É mais fácil tirar Mubarak do poder do que resolver a crise
econômica que está em sua base. Vai exigir uma outra forma de organização
política e econômica que até agora eles não conseguiram realizar no mundo
árabe. É preciso articulação regional, mas o mundo árabe está muito dividido por causa dos EUA, aliás. As agendas comuns entre países árabes são
mínimas. Não se consegue coesão nem para defender a Palestina.
Não é possível prever se haverá contágio, mas é um efeito possível. Mas
depois esses países vão passar por um período de crise até reorganizarem
suas economias, suas sociedades e sua política. Espero que resulte na
emergência de novos partidos, com forte presença dos movimentos sociais. No
caso do Egito, a Irmandade Muçulmana, que não é um movimento
fundamentalista, deve ser respeitada como um partido que faz um grande
trabalho social.
Então o senhor não teme que se repita na região, em especial no Egito, o
que aconteceu no Irã no fim dos anos 70 e nos 80?
Não há nenhuma condição para isso. O Egito é uma sociedade muito
secularizada. A própria irmandade, que poderia organizar o movimento
(teocrático), foi evoluindo desde os anos 20, quando foi criada, para ingressar
dentro do sistema eleitoral, diferentemente da opção dos aiatolás no Irã. O que
é desejável é que o Ocidente compreenda de uma vez por todas que
democracia é para levar a sério. Porque se ganhar algum partido nas eleições
que não venha a ser reconhecido pelos EUA - que são fundamentalistas -, vai
acontecer uma tragédia. Foi assim em 1991, quando a Frente de Salvação
Islâmica venceu na Argélia, mas não foi reconhecida pelo Ocidente e não
assumiu. Foi assim em 2006, quando o Hamas venceu as eleições palestinas.
Espero que qualquer resultado em eleições livres e justas seja reconhecido
pelo Ocidente. Os sinais que estamos tendo é que os EUA a respeitarão. Mas
não sabemos.
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