UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – Campus I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ALZIRA QUEIRÓZ GONDIM TUDE DE SÁ
DO PÉ AO CORPO DA PÁGINA:
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE GABRIELA, CRAVO E CANELA
SALVADOR– BA
2008
8
ALZIRA QUEIRÓZ GONDIM TUDE DE SÁ
DO PÉ AO CORPO DA PÁGINA:
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE GABRIELA, CRAVO E CANELA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade do
Estado da Bahia como parte dos
requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Dra. Márcia Rios
da Silva
SALVADOR- BA
2008
9
FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Nunes – CRB: 5/592
Sá, Alzira Queiróz Gondim Tude de
Do pé ao corpo da página: a recepção crítica de Gabriela, cravo e canela. / Alzira
Queiróz Gondim Tude de Sá. – Salvador, 2008.
101f.
Orientadora: Márcia Rios da Silva.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Colegiado de Letras. Campus I. 2008.
Contém referências.
1. Crítica literária. 2. Crítica de rodapé. 3. Crítica acadêmica. 4. Recepção crítica.
I.Silva, Márcia Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências
Humanas.
CDD: 801.95
10
ALZIRA QUEIRÓZ GONDIM TUDE DE SÁ
DO PÉ AO CORPO DA PÁGINA:
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE GABRIELA, CRAVO E CANELA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
COMISSÃO JULGADORA
Aprovada em
2008
Profª. Dra.Verbena Maria Rocha Cordeiro
Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, PUC
Profª. Dra. Márcia Rios da Silva
Doutorado em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr.Francisco Ferreira Lima
Universidade Estadual de Feira de Santana
11
Para meus filhos, meus amados companheiros.
Para Luana e Luísa, minhas netas, faróis que iluminam o meu futuro.
AGRADECIMENTOS
12
Quão difícil se torna agradecer a uma legião de “anjos” que sobrevoam as nossas vidas nos
momentos mais precisos...
À Profa. Márcia Rios, pela forma serena e firme com que conduziu a minha orientação.
À Profa.Verbena, pelo acato espontâneo a mim dedicado, pelo jeito ético, apaixonado e
responsável com que vive e trabalha, contagiando a todos. Um exemplo nobre a ser seguido.
Aos membros da Banca de Qualificação, pelas contribuições valiosas e produtivas que me
fizeram reavaliar e encontrar o rumo deste trabalho.
Aos professores do mestrado que me reabriram as portas para mundos esquecidos e desejados,
colaborando com a minha formação.
Aos colegas, pioneiros, pelos encontros e também desencontros nessa nossa viagem.
A Arizângela, pelo discreto, sutil e precioso apoio.
À colega Denise, pelas nossas afinidades e diferenças que tanto nos aproximam.
A Silvana e Fernando, meus amigos, pelas transgressões cometidas em nome da amizade.
A Mariana, pela paciência com que revisou e deu forma a essas páginas.
À minha amiga Lena, pelas nossas descobertas, afinidades e pelo reencontro que se faz
duradouro, pelo incentivo.
A Tereza, tão menina e tão distante na idade, mas tão próxima no pensar e no sentir.
A Izabel, minha amiga antiga, por ter me dado o alento necessário para seguir nessa
caminhada.
A Patrícia, minha inesquecível amiga com quem junto comecei a sonhar com essa viagem,
pelas nossas fantasias e desejos acalentados.
Às minhas noras queridas Fernanda, Carol e Andréa, minhas cúmplices, por apostarem nos
meus sonhos e atenderem sempre aos meus apelos logísticos.
A meu pai, que tudo celebrava e que me faz falta.
À minha mãe, minha amiga querida, pelo apoio incondicional a tudo que faço, pela sua
confiança em mim e exemplo de vida.
A Dodoro, pela capacidade de conviver com as minhas tempestades e por ser o meu porto
seguro.
13
RESUMO
Este estudo descreve e analisa a recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela, de
Jorge Amado, cotejada em textos produzidos pela crítica impressionista, denominada “crítica
de rodapé,” veiculados em jornais e revistas; pela crítica acadêmica produzida no âmbito das
universidades brasileiras, sob a forma de ensaios publicados em revistas especializadas,
dissertações de mestrado e teses de doutoramento e por histórias de literatura no período de
1958 a 1998. Busca também compreender, a partir de propostas da crítica literária e da crítica
cultural contemporânea, as condições históricas, políticas e culturais que interferem na
diversidade dos discursos e procedimentos interpretativos refletidos na leitura e avaliação
crítica do romance, considerado como um marco divisor na trajetória literária do escritor Jorge
Amado. Para tanto, discute os textos inventariados e traça um percurso da crítica literária,
destacando os eixos de continuidade e rupturas entre gerações de críticos, suas tendências e
movimentos de aceitação e rejeição da narrativa amadiana. No rastro do inventário crítico dos
anos de 1958 a 1969, a pesquisa procura demonstrar que os julgamentos do romance Gabriela,
cravo e canela, fundamentados nas idéias políticas, na estética vigente ou na tradição literária
da crítica impressionista, deslizam para novos conceitos e novas formas de abordar o
fenômeno literário no contexto da crítica acadêmica produzida entre 1970 e 1998.
Palavras-Chave: Crítica literária; Crítica de rodapé; Crítica acadêmica; Recepção crítica.
14
ABSTRACT
This study describes and analyzes the critical reception of the romance Gabriela, carnation
and cinnamon, of Jorge Amado, compared in texts produced by the critical impressionist,
called "critical of baseboard," propagated in periodicals and magazines; by the academic
critical produced in the ambit of brazilian universities, under the form of assays published in
specialized magazines, master's dissertations and doctoral thesis and by histories of literature,
in the period of 1958 until 1998. It also seek to understand, from proposals of the literary
critical and the cultural contemporary critical, the historical, politics and cultural conditions
that intervene in diversity of speeches and interpretative procedures reflected in the reading
and critical evaluation of the romance, considered as a dividing landmark in the literary
trajectory of the writer Jorge Amado. In the case, it argues the inventoried texts and it traces a
literary course of the critic, detaching the axles of continuity and ruptures between
generations of critics, its trends and movements of acceptance and rejection of the amado’s
narrative. In the track of the critical inventory of the years of 1958 to 1969, the research looks
to demonstrate that the judgments of the romance Gabriela, carnation and cinnamon, based
on the political ideas, in current aesthetic or in the literary tradition of the impressionist critic,
overlook for new concepts and new forms to approach the literary phenomenon in the context
of the critical academic produced between 1970 and 1998.
Keywords: Literary critical; Critical of baseboard; Academic critical; Critical reception.
15
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8
2 GABRIELA NO TRIBUNAL DA CRÍTICA DE RODAPÉ: ENTRE O IDEOLÓGICO
E O ESTÉTICO.....................................................................................................................23
2.1 Entre o estético e o social................................................................................................ 33
2.2 A primazia do estético........................................................................................................39
2.3 O abandono do ideológico.................................................................................................49
3 GABRIELA “SENHORA DAS LETRAS”... : O QUE DIZ A CRÍTICA
ESPECIALIZADA? ..............................................................................................................53
3.1 “Gabriela” nas histórias de literatura.................................................................................61
3.2 No corpo das páginas.........................................................................................................65
3.3 Entre os muros da academia..............................................................................................81
4 FECHANDO AS PÁGINAS..............................................................................................92
TEXTOS ANALISADOS.....................................................................................................96
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 98
16
1 INTRODUÇÃO
Para mim meus romances só existem enquanto os escrevo, ao colocar
a palavra fim ao pé da página, o romance que me consumiu o juízo e
me comeu as carnes deixa de existir - não é bem isso: continua, mas já
não é meu. Passa a pertencer aos outros: editores, críticos, tradutores,
leitores, aos leitores sobretudo. Meu, exclusivamente meu, somente
durante o tempo dos dedos no teclado da máquina de escrever na
busca dos caminhos da narrativa, quando concebo e levanto ambientes
e personagens, pouco a pouco os desentranho da cabeça, do coração,
dos culhas e os vejo vivos no papel, chorando e rindo - duro, difícil,
emocionante ofício o de escritor. Há quem diga que o faço bem, há
quem diga que o faço mal, eu o faço o melhor que posso, não busco
outra ocupação, pois não sei fazer mais nada.
Jorge Amado, Navegação de Cabotagem.1992.
No ano de 2008, o romance Gabriela, cravo e canela, do escritor baiano Jorge Amado,
completa 50 anos de publicação. Nesse longo período de existência, essa narrativa foi lida por
milhares e milhares de leitores, adaptada para diferentes meios de comunicação, a exemplo do
rádio, da TV e do cinema, bem como avaliada, comentada, analisada e julgada pela crítica
literária no Brasil e no exterior. Em sua história, esse romance contribui para a constituição do
campo da crítica no país, num primeiro momento exposto nas páginas calorosas e ferinas dos
críticos militantes, da chamada crítica de rodapé, e num segundo momento, recebido com
certa reserva pela crítica acadêmica, aparelhada com um instrumental teórico, oriundo de
domínios de conhecimentos específicos.
Com a publicação desse romance, foram acirrados os questionamentos sobre a produção
literária amadiana, cuja trajetória se caracteriza pelo fervor com que é acatada ou vista com
desconfiança e desmerecimento, desde a publicação de O país do carnaval, em 1931. Tal
receptividade tem um rebatimento no chamado leitor comum brasileiro, que por muito tempo
viveu o desconforto de ser e dizer-se leitor de Jorge Amado. Tal comunidade de leitores, por
perceber as controvérsias da crítica e o descrédito atribuído à produção literária desse escritor,
omitia muitas vezes, por pudor, e de acordo com o lugar, o gosto e o prazer de ser leitor de
romances amadianos.1
1
Márcia Rios faz um estudo da recepção de Jorge Amado, através de cartas endereçadas ao romancista por
leitores e fãs, os chamados “leitores comuns”, tomando-os como indicadores férteis para se refletir sobre a
constituição da recepção amadiana. Para a autora, as cartas também “se constituem em fontes para a análise dos
mecanismos de formação de público e do campo literário”. Cf. Márcia Rios da SILVA. O rumor das cartas; um
estudo da recepção de Jorge Amado. Salvador: Fundação Gregório de Matos; EDUFBA, 2006. (Série Fundação
Gregório de Mattos, 13).
17
Numa crítica à noção de gosto, o sociólogo francês Pierre Bourdieu ressalta que, se o
gosto pode ser compreendido como “um princípio das escolhas, ”2 para que seja exercido, “é
preciso que os bens oferecidos sejam classificados de ‘bom’ ou ‘mau’ gosto, ‘distintos’ ou
‘vulgares’ [...] , hierarquizados e hierarquizantes e que haja pessoas dotadas de princípios de
classificação de gostos [...],”3 a saber, os críticos literários.4 Esse mesmo autor complementa
que “bens assim oferecidos tendem a perder sua raridade relativa e seu valor distintivo.”5Visto
isso, a mediação das escolhas desses leitores pela crítica literária brasileira, portanto, só
poderia trazer-lhes a sensação ambígua de rejeição e fascínio pelo objeto desejado, o romance
amadiano, aquele que fala a “língua” da comunidade de leitores anônimos.
As avaliações realizadas pela crítica sobre Gabriela, cravo e canela deixam marcas das
condições históricas nas quais foram produzidas. Há uma diversidade de discursos críticos e
procedimentos interpretativos, que oscilam nesse percurso, refletindo a respeito das
particularidades das práticas de leitura de seus consumidores: críticos de rodapé e críticos
provenientes de instituições universitárias, incluindo-se aí historiadores da literatura como
Alfredo Bosi, Assis Brasil e Afrânio Coutinho.
Que juízos de valor emitiram esses legisladores do campo literário sobre Gabriela,
cravo e canela? Para responder a essa questão, no recorte da pesquisa aqui realizado,
privilegiam-se duas instâncias da recepção desse romance: a crítica de rodapé, também
conhecida como impressionista, veiculada em jornais e revistas; e a crítica produzida no
âmbito das universidades brasileiras, sob a forma de ensaios publicados nas revistas
especializadas, dissertações de mestrado e teses de doutoramento.
A primeira produção crítica sobre o romance, considerada como crítica de rodapé,
compreende um período que vai do ano do lançamento do livro, em 1958 até 1969, mantendo
um viés impressionista. Quanto à segunda, abarca o período de 1970 a 1998,6 momento em
2
Segundo o sociólogo, os gostos como conjunto de escolhas feitas por uma pessoa determinada são o produto de
um encontro entre o gosto objetivado do artista e o gosto do consumidor. Cf. Pierre BOURDIEU. A
metamorfose dos gostos. In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 129.
3
Cf. Pierre BOURDIEU, 1983. Op. cit., p. 127-134.
4
Quando Bourdieu analisa a noção de campo, um dos pressupostos diz respeito à existência de campos
específicos que, como universos, possuem leis próprias, propriedades específicas e interesses comuns, o que lhes
outorga independência e autoridade. No campo intelectual, facções que ocupam posições diferenciadas almejam
à conquista de uma hegemonia que lhes dê a legitimação necessária, entretanto, é o habitus - entendido como um
“ofício” conjunto de técnicas e de crenças de profissional ajustado às exigências do campo - é que vai funcionar
como “tradução.” Cf. Pierre BOURDIEU, Op. cit., p..89-91.
5
Id., Ibid., p. 134.
6
Em 1996, participei do Projeto “A recepção crítica da produção amadiana”, coordenado pela pesquisadora
Profa. Ívia Alves, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, quando uma equipe de pesquisadores
realizou um exaustivo levantamento bibliográfico sobre a recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela.
18
que a crítica, oriunda da universidade, se apropria de referencial teórico e metodológico na
análise do texto literário.
Neste estudo da recepção crítica de Gabriela, cravo e canela, não se perde de vista o
pressuposto de que a leitura está historicamente marcada, assim como a coloca João Adolfo
Hansen ao rechaçar o “universalismo que prescreve que ler é reconhecer significação e
sentido único dos textos.” 7 Dessa forma, busca-se compreender o discurso da crítica literária,
desde os seus agentes críticos às estratégias discursivas utilizadas na interpretação do
romance, assim como os modos pelos quais toda obra está sujeita a uma infinidade de
interferências e condicionamentos que acabam orientando o seu percurso.
A proposta de estudar a recepção crítica de Gabriela, cravo e canela deve-se ao fato de
ele ter sido, desde sempre, considerado, por um grande contingente da crítica literária
brasileira, um romance emblemático, marco divisor de uma nova fase na trajetória do
romancista, julgamento que tem dado margem a uma diversidade de leituras e interpretações e
colocado essa narrativa à mercê de múltiplos e controvertidos critérios de avaliação, que, por
sua vez, trazem a marca das ideologias que as fundamentava, sejam elas estéticas ou políticas.
A opção pela cronologia para a análise dessa produção crítica deve-se ao entendimento
de que se encontrou um percurso metodológico que contribuiu para demarcar as diferentes
modalidades críticas e posicionamentos sobre o romance de Jorge Amado. O intuito inicial
era distinguir tal produção a partir de seu veículo de divulgação. Contudo, verifica-se que a
crítica de rodapé e a crítica acadêmica, em forma de resenhas e ensaios, circularam em jornais
e seus suplementos, em revistas de variedades, culturais, revistas informativas e literárias.8
A crítica de rodapé e a crítica acadêmica, ocuparam jornais e revistas com a divulgação
de suas resenhas e ensaios sobre o romance Gabriela, cravo e canela. Nos anos
compreendidos entre 1950 e 1969, foram encontrados artigos, resenhas e ensaios sobre o
romance, publicados não só em jornais, como também em revistas, a exemplo de Visão
(1958), O Cruzeiro, Cigarra (1958), Revista Brasiliense (1960), Crítica, Leitura 1958),
7
Cf. João Adolfo HANSEN. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, Márcia;
SCHAPOCHNIK, Nelson [Orgs.]. Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado das Letras,
2005. p. 22.
8
As revistas se constituíam em espaços de crítica e denúncia do país, desde o século XIX, quando se
apresentava como um abrigo quase exclusivo para a produção literária que deslanchava, principalmente a que foi
produzida pela escola romântica. Segundo Ana Luíza Martins: “aquela inicial produção, quando poesias,
folhetins, textos de publicistas e romances imprimiram-se nas improvisadas revistas acadêmicas e nas demais
denominadas literárias, quase que confinando as publicações periódicas a uma só designação: revista literária”.
A revista, como suporte que condensava uma variedade de assuntos numa só publicação, em seu início, atinge
uma gama diversificada de leitores. Por não dispor de público segmentado, foi, por muito tempo, um gênero
preferencial. Cf. Ana Luíza MARTINS. Revistas na emergência da grande imprensa: entre práticas e
representações (1890-1930). In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Orgs.) Cultura letrada no Brasil:
objetos e práticas. Campinas: Mercado de Letras, 2005. p. 249.
19
Mundo Ilustrado (1962), (1961), Estudos Sociais (1958).
Nesse período, segundo Renato Ortiz, “o mercado de publicações se amplia com o
aumento do número de jornais, revistas e livros. São vários os indicadores que demonstram o
crescimento deste setor: tiragem, importação de papel, implantação de grupos nacionais na
produção de papel”9 que apontam para um crescimento da produção editorial brasileira. Ortiz
cita como exemplo a tiragem da revista O Cruzeiro, que em 1952 atingiu o número
estrondoso para a época de 550 mil exemplares.
Na delimitação dos períodos analisados neste estudo, constata-se que a crítica de rodapé,
volumosa desde o lançamento do romance, estende-se até por volta de 1966, ano da
publicação de Dona Flor e seus dois maridos, quando essa narrativa passa a ser o foco das
atenções da crítica. Mesmo ocupando lugar secundário na pauta da crítica literária brasileira,
Gabriela, cravo e canela, no final dos anos 1960, é alvo de estudos, tanto da remanescente
crítica de rodapé, quanto da crítica acadêmica, que começa a ganhar corpo, como da crítica de
rodapé que retorna por ocasião da apresentação da novela Gabriela, pela TV Globo em 1975.
A crítica a esse romance retorna em momentos pontuais, como nas edições comemorativas,
em reedições, ou cobrindo outros eventos referentes ao livro ou ao seu autor.
Para este estudo, foram cotejados resenhas e ensaios críticos acerca de Gabriela, cravo e
canela, publicados em jornais, revistas informativas e especializadas, bem como sob a forma
de dissertações e teses. E assim se configurou o perfil da produção crítica analisada: nos
jornais, foram publicados desde o mês agosto de 1958, data de publicação do romance, artigos
e resenhas de divulgação, alguns deles oriundos da própria Editora Martins e que ocupavam,
nos jornais, colunas dedicadas à literatura, tais como: Porta de Livraria, no jornal O Globo;
Últimos Livros, na Folha de São Paulo; Literatura, no jornal Última Hora; Livros, no Jornal
do Brasil; Literatura-Cultura-Artes, no Jornal da Bahia; O Livro e a perspectiva, n’ O Estado
de Fortaleza; Leitura de Ofício, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.
Não só em jornais foram publicados, nos anos 1958 a 1969, artigos, resenhas e ensaios
sobre o romance. Nas revistas de cunho informativo são encontrados artigos de divulgação
que, semelhantes às resenhas publicadas nos jornais, descrevem o romance, tecendo
comentários sobre o autor e a obra, enquanto outras exploram e dão uma ênfase
sensacionalista ao “picaresco” que percorre toda a obra. Muitos desses artigos destacam e
elogiam, em Gabriela, cravo e canela, o “exotismo” e a “sensualidade” da personagem que dá
nome ao romance. Desses veículos, destacam-se as revistas Visão, Manchete, Cigarra, Nova,
9
Cf. Renato ORTIZ. A moderna tradição brasileira. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 42-43.
20
O Cruzeiro, Vogue.
As revistas especializadas em literatura e artes também abrigaram em suas páginas
resenhas e ensaios escritos por críticos de rodapé, muitos dos quais distanciados do tempo da
publicação da obra, constituindo-se em releituras e se inserindo em novos contextos críticos.
Reatualizam o romance, dando-lhe outra dimensão cultural. Destacam-se nesse conjunto as
revistas Leitura, Crítica, Tempo Brasileiro, Cultura, Exu, Cadernos de Literatura Brasileira,
Travessia, Estudos Sociais, Revista Brasiliense, Estudos Literários, Boletim do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e tantas outras nas quais podem ser encontrados
ensaios e artigos de críticos como Eduardo Portela, Juarez da Gama Batista, Roberto Reis,
Belmira Magalhães, Eduardo Assis Duarte e outros analistas da obra amadiana.
Muitos ensaios críticos sobre o romance foram publicados em coletâneas e em livros
monográficos10, os quais normalmente são compostos por estudos críticos do conjunto da obra
e/ou sobre o romancista. Muitas vezes, tais estudos, compilados no formato de edições
comemorativas11, abarcam ensaios, artigos, depoimentos, entrevistas publicadas em diferentes
épocas, reunidas em edições especiais, como as edições comemorativas dos 30, 40 anos de
vida literária de Jorge Amado, organizadas e publicadas pela Editora Martins, e a edição
ordenada pelo crítico Eduardo Portela, publicada na Revista Tempo Brasileiro, n. 74, que
comemora os 70 anos do romancista.
As teses e dissertações analisadas diferem das resenhas e ensaios críticos por se
voltarem, em outro contexto crítico, dos anos 1970 a 1998, para o aprofundamento de temas
de interesse acadêmico, caracterizados pela verticalização de seus estudos. Do conjunto de
dissertações e teses que compõe esse estudo se fez um levantamento dos resumos e
introduções, enquanto foi dada uma atenção mais aprofundada à dissertação do antropólogo
Milton Moura, (1986), e à do sociólogo Antonio Jonas Dias Filho (1998), ambos da
Universidade Federal da Bahia, pela especificidade de suas leituras e análises do romance.
Moura, pela escolha do personagem Nacib como eixo condutor da análise, e Dias Filho, por
trazer à baila a contribuição do romance Gabriela, cravo e canela no processo de construção
10
A exemplo do livro de autoria de Miécio Tati: Jorge Amado; vida e obra, publicado em 1961, sendo a fortuna
crítica do escritor extremamente representativa.
11
No ano de 1961, a Editora Martins publica Jorge Amado: 30 anos de literatura, onde foram compilados
resenhas, crônicas e ensaios sobra a obra do escritor, até a novela A morte e a morte de Quincas Berro d’Água.
Em 1972, a mesma editora publica Jorge Amado povo e terra; 40 anos de literatura, reunindo ensaios e artigos
sobre sua obra. Nele estão incluídos ensaios sobre Gabriela, cravo e canela, escritos por Juarez da Gama Batista
e Tristão de Athayde. A revista Tempo Brasileiro, n. 74, de 1983, é dedicada ao escritor quando completa 70
anos de literatura: Jorge Amado Km 70. A edição organizada pelo crítico Eduardo Portela também é composta de
ensaios e artigos, dentre eles o da pesquisadora Ilana Strozemberg, que colabora com o ensaio Gabriela, cravo e
canela ou as confusões de uma cozinheira temperada.
21
de uma identidade baiana que, exportada, na visão deste favorece e estimula o turismo sexual
em Salvador.
A primeira dissertação que compõe o acervo pesquisado data de 1978, defendida na
PUC do Rio de Janeiro por Eduardo Assis Duarte, tempo em que novas abordagens da obra
literária se abrem para os estudos de escritores ou obras que não fazem parte do cânon oficial.
No entanto, em Portugal, no ano de 1967, na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, já se defende um trabalho sobre Jorge Amado, versando sobre o valor poético e o
“primitivismo” em sua obra e em Gabriela, cravo e canela.12
No cotejo realizado para este estudo, recorreu-se aos catálogos das bibliotecas públicas e
universitárias locais, a bancos de dados especializados em literatura, bancos de teses nacionais
e estrangeiros, e ao Centro de Documentação da Fundação Casa de Jorge Amado. Alguns
textos, por não estarem disponíveis nas bibliotecas locais, na Fundação Casa de Jorge Amado
e mesmo via Internet, foram adquiridos através do Serviço de Comutação Bibliográfica do
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Dos textos coletados, 32 deles
foram selecionados para apreciação e análise como corpus da pesquisa não só pela sua
acessibilidade, mas, e sobretudo, por serem férteis em informações necessárias ao
desenvolvimento do estudo proposto.
Delineia-se, a partir daí, um cenário em que os textos da crítica de rodapé sobre o
romance Gabriela, cravo e canela e a produção historiográfica realizada nos anos 1960 a
1970, tendem, de forma hierarquizadora, ora a colocar o escritor e sua obra no patamar da alta
literatura, ora a classificar tal narrativa de baixa literatura. Desde 1950, a crítica especializada
no Brasil encontra-se provocada pelo ideal de revolução/renovação pretendido por Afrânio
Coutinho, na tentativa de estabelecimento do seu campo, do seu estatuto de ciência, que,
independente da diversidade metodológica ou doutrinária, inclinava-se, segundo Eneida Maria
Souza,13 ao uso exacerbado de métodos e teorias de análise literária.
Os estudos posteriores à década de 1970, particularmente os ensaios publicados em
revistas, as dissertações e teses, adotam uma forma plural de procedimentos analíticos e se
abrem para a utilização de novas ferramentas metodológicas, impulsionando um processo de
reversão crítica que, segundo a autora, foi causado pela proliferação de cursos de pós-
12
REDONDO, Maria Isabel Coelho Costa. Valor poético e primitivismo em Jorge Amado. Coimbra:
Universidade de Coimbra/Faculdade de Letras, 1967. Dissertação de Licenciatura.
13
Cf. Eneida Maria de SOUZA. Os livros de cabeceira da crítica. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002. p. 15.
22
graduação no Brasil, resultante da proposta inserida na reforma universitária ocorrida nos idos
de 1967.14
No bojo dessa reforma são criados os cursos de Pós-graduação em Letras no Brasil e,
como resultado da atividade universitária, nos anos 1970, ainda segundo Eneida Maria de
Souza, os trabalhos dos mestres saídos da Universidade de São Paulo – USP, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, apontando para uma multiplicidade de
vertentes da crítica literária, que a essa altura se via diante do emprego excessivo de teorias e
métodos de análise literária, buscando a construção científica do seu objeto.
Provocada pelas mudanças inspiradas por inúmeras razões de ordem cultural, pelos
influxos dos Estudos Culturais, nos anos 1980, a situação da crítica começa a se reverter, e
mais ou menos nos anos 1990, a crítica literária, segundo a pesquisadora Ívia Alves, de mãos
dadas com a Antropologia Social e os estudos de cultura brasileira, encontra os “instrumentos
capazes de entender melhor e interpretar de uma maneira mais compreensiva todas as
possibilidades do discurso narrativo de Jorge Amado.”15
Em sua longa trajetória como escritor e homem público, militante do Partido
Comunista,16 a literatura produzida por Jorge Amado o coloca à mercê de uma pluralidade de
leituras e tendências críticas, que cresce significativamente a partir da publicação do romance
Gabriela, cravo e canela. Jorge Amado mobilizou uma máquina editorial, tornou-se imortal
da Academia Brasileira de Letras, como também seduziu o mercado internacional e
conquistou o abstrato e poderoso leitor médio brasileiro.17 Ademais, essa conquista, na década
de 1970, se amplia com a presença de Amado na mídia, o que lhe faculta uma aproximação
ainda maior com um público, agora, telespectador. Longe das amarras que a cultura letrada e
as patrulhas ideológicas lhe impunham, o escritor prenuncia o processo pelo qual,
posteriormente, passaria o cânone literário brasileiro: o de pôr em suspenso a noção de valor
estético da obra literária, investindo na relação que esta mantinha com o leitor.
14
Cf. Otaíza de Oliveira ROMANELLI. História da educação no Brasil (1930/1973). 8. ed. Petrópolis: Vozes,
1978. p. 224. Segundo Romanelli, estudiosa da história da educação no Brasil, o Grupo de Trabalho da Reforma
Universitária propunha uma política de implantação de cursos de Pós-graduação, nos níveis de mestrado e
doutorado com vistas a um aprofundamento do conhecimento que os cursos de graduação não ofereciam.
15
Cf. Ívia ALVES. A recepção crítica dos romances de Jorge Amado. In: Colóquio Jorge Amado: 70 anos de
Jubiabá. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Faculdades Jorge Amado, 2006. p. 104.
16
O primeiro livro publicado por Jorge Amado foi O país do carnaval, datado de 1931, e o último: A descoberta
da América pelos turcos, em 1992, segundo bibliografia elaborada pela Fundação Casa de Jorge Amado.
17
Cf. Tânia PELLEGRINI. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea. Campinas:
Mercado das letras; São Paulo: FAPES, 1999. p. 125.
23
Eduardo Assis Duarte afirma que poucos escritores no Brasil têm tido uma avaliação
crítica tão apaixonada, polêmica e heterogênea quanto esse romancista, porém, poucos foram
lidos por uma gama imensa de leitores nacionais e estrangeiros. Segundo Duarte, Amado é o
nosso escritor de maior repercussão popular, produtor da “única obra da literatura brasileira
com ampla penetração internacional, tendo chegado, igualmente, a milhões de leitores nas três
Américas, na Europa e na antiga União Soviética.”18
Fato notório é que a obra de Amado foi traduzida em mais de 49 idiomas, em mais de 50
países, com tiragens que ultrapassam milhões de exemplares. Daí ser ele considerado uma
“grife”, uma marca brasileira que ultrapassa, em muito, o domínio da literatura, sendo o seu
nome transformado num espelho do Brasil, e principalmente da Bahia, terra/musa por ele
considerada “uma nação, romântica, sensual e mágica [...] cenário e tema de praticamente
toda a minha obra de ficção[...].”19
Na trajetória literária de Amado, o romance Gabriela, cravo e canela20 se constitui, para
muitos, em ritual de passagem. É quando o escritor, sob os olhares da crítica e do Partido
Comunista, dá continuidade ao seu projeto literário livre das amarras do sectarismo pregado
pela cultura do partido e se lança, tal como afirma Eduardo Portela, para “O infatigável sonho
da liberdade.” 21
Na década de 1930, sopravam os ares da revolução socialista de 1917. Aos 20 anos, já
tendo escrito o seu primeiro livro, Jorge Amado filia-se à Juventude Comunista, e ingressa no
cenário literário brasileiro, levando consigo o povo e sua fala, sua própria expressão, crenças,
miséria, poesia, denunciando a sua discriminação, inspirando-se na sua cultura, o que termina
por lhe facultar um estatuto de herói.
É documentada, com poesia e comprometimento, a saga do proletariado brasileiro, do
homem do povo, dando-lhe uma dimensão de universalidade, a partir de onde Jorge Amado
passa a dialogar com o seu tempo, inserindo-se, segundo o crítico Eduardo Assis Duarte, “na
grande corrente da literatura social em vigor no período.” A literatura produzida por Amado,
nesse período, num tempo cognominado por Duarte de “tempos de utopia,” é marcada pelo
lançamento de O país do carnaval-1931, indo até Subterrâneos da Liberdade-1954.
Dos anos 1930 às primeiras décadas de 1950, reformas técnicas e temáticas marcaram a
18
Cf. Eduardo Assis DUARTE. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1995. p.
17.
19
Declaração dada numa entrevista concedida à revista Playboy, ano 64, n. 64, 1980. p. 50.
20
Publicado em agosto de 1958 em duas semanas esgota uma tiragem de 20.000 exemplares e até dezembro do
mesmo ano atinge 50 000 exemplares. Cf. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 3, mar. 1970. p. 17.
21
Título de um artigo sobre Jorge Amado publicado na Revista de Letras, UFRJ, n.1, 1983, e no livro Jorge
Amado: ensaios sobre o escritor. Salvador: UFBA, 1982.
24
busca da legitimação de novos pressupostos para o estabelecimento de uma nova crítica
literária no Brasil. Esse período também demarca o empenho da crítica em introduzir, na
interpretação e análise literária, critérios estéticos de valoração que alijassem do seu processo
de renovação o cientificismo do período oitocentista.
Afrânio Coutinho22considera que nessa época a crítica respondia a inspirações das mais
variadas. Da crítica social dos anos 30 e 40 à crítica esteticista que se consolida a partir de
1950, os critérios que regiam o valor atribuído a autores e obras oscilavam entre a valorização
do estético e o valor social da obra de arte, critérios impressionistas, centrados no gosto
individual do crítico e devidos à sua formação. Esses critérios eram desprovidos, segundo
Coutinho, de qualquer método ou doutrina que os sustentasse.
A literatura produzida nessa época pelos romancistas da geração de 30, que segundo
Antonio Cândido inaugura o romance brasileiro, a nova ficção nordestina, regionalista,
documental, enxertada de sentido social, e em particular a literatura amadiana, debilitaria os
juízos de valor em que se centrava a crítica literária de então. Por ser uma literatura que
estabelecia, entre o projeto político e o projeto literário, uma relação simbiótica, o desejo era
transformar o mundo através de uma literatura que denunciasse as contradições sociais que
caracterizavam a cultura brasileira, representada pela prosa literária de José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado.
Essa nova forma de se fazer literatura acarretava não só a defasagem entre a crítica
praticada no Brasil, nesse período, e a realidade ficcional que surgia, como flagrava a falta de
perspectiva histórica que desse ao crítico condições para um julgamento mais fundamentado.
A crítica brasileira desse período, segundo Coutinho, ainda se mostrava carente do
conhecimento do seu próprio ofício e diante de um novo estilo impregnado de uma linguagem
popular, coloquial, linguagem que documentava a realidade social num tom de acusação, só
poderia emitir juízos de valor que lhes fossem “simpáticos” e, acrescenta o crítico, aqueles
que lhes fossem contrários “ou não se manifestaram ou não tiveram as suas opiniões
guardadas pela história.” 23
A literatura inspirada nos princípios do realismo socialista produzida por Amado, assim
como o seu engajamento, custou-lhe uma recepção crítica polêmica e heterogênea e uma
trajetória literária, arbitrariamente dividida em fases distintas, pela crítica, que, ora partidária,
esquerdista, ora esteticista, mantenedora do projeto modernista, propiciava ao escritor e à sua
22
Cf. Afrânio COUTINHO. A crítica literária no Brasil. In: Críticos & críticas. Rio de Janeiro: Livraria
Acadêmica, 1968. p. 115-157.
23
Cf. Afrânio COUTINHO. A literatura no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986. p. 368.
25
obra, a entrada ou exclusão do cânon literário por ela instituído.
Segundo Nelson Cerqueira, estudioso da trajetória literária e política de Amado, de 1934
a 1958, Jorge Amado foi acusado pelos críticos não marxistas de escrever literatura de
propaganda e panfletos ideológicos, enquanto os esquerdistas classificavam-no de realista,
crítico realista e, por vezes, socialista realista.
De acordo com o crítico Eduardo Assis Duarte, o entusiasmo por parte dos leitores,
refletido nas sucessivas edições de seus romances e nas tiragens espetaculares para a época,
não foi acompanhado por grande parte da crítica, prevalecendo a postura redutora de
considerar a ficção amadiana de maniqueísta e superficial, postura que se contrapunha a outra
corrente que aplaudia a novidade, a nova forma de Amado escrever sobre e para o povo,
adotando uma linguagem marcada pela oralidade, recuperando “modalidades dos falares
populares que o romance brasileiro até então fora incapaz de incorporar ou o fizera de modo
excessivamente estilizado24.
A recepção crítica de Amado, até os anos de 1945, se mostrava polêmica e heterogênea,
e se acirrava a cada livro publicado, cabendo ao romance Gabriela, cravo e canela, publicado
em 1958, o seu maior legado crítico.
Afastando-se do cenário brasileiro, de 1948 a 1953, por força da cassação do registro do
Partido Comunista e do seu mandato de deputado, Jorge Amado passa a viver exilado na
Europa, precisamente na França. Expulso desse país, por motivos políticos, fixa residência na
Tchecoslováquia, mas é na Rússia que começa a escrever Os Subterrâneos da Liberdade, só
publicado quando do seu retorno ao Brasil em 1954. Nessa época, Amado detinha um
considerável conhecimento da atividade editorial, exercida na Editorial Vitória,25 pertencente
ao Partido, nas editoras Schmidt e José Olímpio e uma larga experiência jornalística. Em
entrevista a Alice Raillard, Jorge Amado confessa-lhe que “trabalhava em edição porque não
queria um emprego que [o] afastasse demais daquilo que [...] queria realmente fazer, ou seja,
escrever. Queria ser um escritor profissional.”26
O desejo, a experiência e o desencanto conduziram e fortaleceram a decisão que Amado
viria a tomar, a de ser apenas “um escritor”. Nesse tempo, já esboçava o desejo de viver de
literatura, livre das amarras sectárias da militância e do cerceamento à liberdade de criação
24
Cf. DUARTE, 1995. p. 12.
Os comunistas desenvolveram uma intensa e sistemática atividade editorial nos anos de 1940 a 1950. Nasceu
nesse período o Editorial Vitória, que seria a editora mais importante dos comunistas brasileiros. Nos anos de
1950, publicou a coleção “Romances do Povo”, sob a direção de Jorge Amado. Cf. Augusto BOUNICORE.
Comunistas, cultura e intelectuais entre os anos de 1940 e 1950. Revista Espaço Acadêmico, n. 32. jan., 2004.
Disponível em <http:/ www.espaçoacadêmico.com.br/o32/32cbounicore.htm p. 2. Acesso em: 13 fev. 2008.
26
AMADO, 1990 apud RAILLARD, 1990, p. 112.
25
26
imposta pelo Partido, passando a imprimir a sua marca na literatura e nas artes, visivelmente,
a partir de 1930.
Segundo Albino Rubim, o Partido devota uma certa apreciação à posterior “Geração de
30”, ao contrário do que nutria pelos modernistas de 22, pelas características de forma e
conteúdo com que tece a sua literatura, agora de cunho social, e por aliar-se ao Partido um
contingente de escritores e intelectuais. “Dentre os autores que se tornaram comunistas estão
nomes como: Jorge Amado, Graciliano Ramos, Dionélio Machado, Raquel de Queiróz e
Rubem Braga [...].” 27
Na literatura, o paradigma cultural forjador da “cultura do partido” instituía critérios de
avaliação que priorizavam o conteúdo em detrimento da forma e, por se colocarem
antagônicos às conquistas formais e às renovações literárias propostas pelo Modernismo,
deram margem a uma argumentação por parte da crítica, de que a obra de Jorge Amado, ao
aliar política e produção literária, era uma obra de baixa qualidade estética, maniqueísta e
panfletária.
Para que se possa analisar e entender a diversidade dos posicionamentos críticos
oriundos das leituras do romance Gabriela, cravo e canela, não se pode perder de vista o
período da sua publicação, 1958, a década em que foi escrito e seus valores, tanto políticos
quanto estéticos. Para tanto, se faz necessário lançar um olhar retrospectivo sobre a
circunstância histórica de sua composição, final dos anos 50, a qual andou paralela ao
desapontamento dos comunistas diante das denúncias e acusações de ilegalidades cometidas
por Stalin, repercutidas na visível exaustão do domínio e intervenção do Partido Comunista na
política cultural do país. Corresponde também, esse período, a um processo de renovação da
crítica literária brasileira.
O tempo da escrita do romance é o tempo do Brasil de Juscelino Kubitschek. Os anos de
1956-1961. “O país vive um processo de modernização técnica e renovação cultural
manifestada pelo surgimento de diversos movimentos artísticos que atingiram profundamente
a sociedade brasileira.”28 A construção de Brasília, o incremento da industria automobilística,
a implantação da televisão, a bossa nova, o Teatro de Arena, o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros – ISEB, para quem o nacionalismo surge como uma ideologia desenvolvimentista,
inspiram um clima de euforia, favorecendo, segundo o próprio Amado, a “uma espécie de
convivência democrática entre políticos, intelectuais e artistas [...] Uma grande efervescência
27
Cf. Albino Canelas RUBIN. Partido comunista, cultura e literatura brasileira. [S.l., s.n.], p.220.
Cf. Maria do Socorro CARVALHO. Imagens de um tempo em movimento; cinema e cultura na Bahia dos anos
JK. (1956-1961). Salvador: UFBA / FFCH, 1992. p. 47.
28
27
em todos os setores. Foi nesse clima que escrevi Gabriela e de certa maneira, é verdade, o
livro corresponde à realidade deste clima.”29
A Bahia dos anos de 1950, governada por Antonio Balbino (1955-1959) e Juracy
Magalhães (1959-1963), também respirava os ares da modernização, movida pelos ecos do
discurso modernizador de Kubitschek. A industrialização lhe chega através da Petrobrás. Com
a criação da Comissão de Planejamento Econômico - CPE, a Bahia se volta para o estudo e o
planejamento estratégico de sua economia e para a modernização da sua estrutura
administrativa. A Universidade, sob a égide do Reitor Edgar Santos, se insere nesse processo,
através da implementação de ações renovadoras que favoreceram uma ambientação propícia
ao surgimento de artistas e intelectuais.
Os reflexos dessa ambientação, desse “espírito de época,” influenciaram no processo de
se fazer crítica e literatura no Brasil. Muitos intelectuais dessa geração, dentre eles Jorge
Amado, imprimem às suas manifestações culturais, à terra e ao povo, características que
afirmem a sua identidade. Gabriela é a primeira personagem feminina, amadiana, construída
nesse contexto de afirmação identitária, uma representação da afirmação e do anseio de
liberdade de Jorge Amado e do desejo de marcar a identidade de sua terra, através do seu
exotismo e da sua exuberância, enfim, da sua diferença.
Ao analisar essa repercussão, e crendo que o fato literário não pode separar-se do fato
histórico, o crítico Wilson Martins chama a atenção da crítica para o fato de que, “por menos
que pareça, uma certa política do petróleo está intimamente relacionada com a qualidade de
um romance ou de uma crítica publicados contemporaneamente [no Brasil e ambas] refletem
uma constelação espiritual inconfundível,”30 o que deixa transparecer nas entrelinhas a crença
na indissolubilidade da união que prevalece entre o homem e o mundo que o cerca,
pressuposto norteador da corrente crítica sociológica, centrada no tripé: documento, história e
poesia, ainda vigente na década de 50, representada pelo eminente crítico Antonio Candido.
Para Alice Raillard, nas narrativas amadianas, o tempo é o tempo da realidade imediata
e o tempo do romance corresponde ao tempo da escrita. Dessa homologia com a história,
estabelecida ao escrever Gabriela, cravo e canela, o próprio escritor declara:
Quando falamos de Gabriela, tenho muito a dizer. Não propriamente sobre
Gabriela, mas em torno. [...]. Na realidade, Gabriela foi um livro de 58 e
Brasília foi inaugurada em 60 [...]. É um livro otimista e naquele momento
havia um certo sentimento de orgulho nacional no Brasil.31
29
AMADO, 1990, apud RAILLARD, 1990. p. 274.
MARTINS, 1963 apud LUCAS, 1963. p. 69.
31
Cf. Alice RAILLARD. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: 1990. p. 273-274.
30
28
Podemos considerar que a transparência histórica que perpassa toda a obra de Jorge
Amado só favorece o reconhecimento do contexto em que seus escritos foram produzidos.
O retorno do Jorge Amado ao cenário literário brasileiro, em 1958, marcado pela
publicação do romance Gabriela, cravo e canela, é saudado pelo crítico Eduardo Portela “como
um dos acontecimentos mais importantes desses nossos dias literários e Gabriela, cravo e
canela como sendo a afirmação categórica dos méritos novelísticos do escritor.”32
No entanto, esse retorno provoca, ou melhor, reinicia uma polemização no seio da
crítica brasileira e uma decepção aos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro. O picaresco,
o riso, o humor, a sensualidade da personagem Gabriela, o estético que percorre toda a obra,
distanciados do “cartesianismo” socialista das obras anteriores, surpreendem os críticos
inseridos no rígido paradigma cultural do Partido; companheiros de militância, amigos do
escritor, críticos que por comungarem do mesmo ideário, aplaudiram a publicação de
Subterrâneos da Liberdade. E surpreendem, são aplaudidos, recebidos com certa reserva pela
crítica esteticista, pelos impressionistas e críticos de rodapé.
Esse é o momento, o “marco zero” da maior polêmica que caracteriza a trajetória
amadiana: com Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado teria abandonado o ideológico em
favor do estético? Diante dessa questão, como se posicionaram os críticos?
Para responder a essas questões e entender o modo pelo qual os críticos, em diferentes
momentos e com distinta formação, acolhem o romance Gabriela, cravo e canela, e sobre os
critérios de avaliação adotados nos seus julgamentos, este estudo aborda no Capítulo 1,
intitulado Gabriela no tribunal da crítica de rodapé: entre o ideológico e o estético, o
trajeto percorrido pela crítica literária brasileira, particularmente pela crítica de rodapé, desde
os anos de 1930, sem perder de vista as tensões entre tendências críticas e entre críticos, as
transformações ocorridas no interior do seu próprio campo e a relevância dos espaços por ela
ocupada: os jornais e revistas da época. Essas reflexões partem dos estudos e análises
desenvolvidos por Antonio Cândido, Roberto Ventura, Afrânio Coutinho, Flora Sussekind e
Eduardo Portela.
Importa igualmente a crítica quando o tempo analisado é o tempo de Gabriela, cravo e
canela, desde a publicação do romance em 1958 até o ano de 1969, quando se traz uma
análise e descrição de um conjunto de resenhas e ensaios críticos sobre o romance, veiculados
em jornais e revistas pela crítica impressionista. Esta, caracterizada pela ausência de
especialização, era exercida por “bacharéis e letrados”, também chamada de “crítica de
32
Cf. Eduardo PORTELA. Gabriela. O Estado, Fortaleza, 4, jan., 1959.
29
rodapé,” cujas discordâncias literárias, centradas na polaridade entre o estético e o ideológico,
são demonstrativas da disparidade dos julgamentos aos quais o romance Gabriela, cravo e
canela esteve sujeito, e das avaliações fundamentadas, quase sempre, nas idéias políticas, na
estética vigente ou mesmo na tradição literária. É destaque também nesse capítulo o acato do
escritor por parte de instâncias legitimadoras do literário demonstrado pela concessão de
títulos e honrarias que lhe foram conferidos a partir da publicação do romance, culminando
com a entrada do escritor na Academia Brasileira de Letras em 1961.
A partir dos anos 1970, são criados no Brasil cursos de pós-graduação em Letras, dando
início a uma especialização acadêmica que, refletindo na crítica literária, delineia um novo
modelo de crítico, o crítico acadêmico, especializado, cujo rigor científico regia os
julgamentos e avaliações das obras literárias, inspiradas por influxos teóricos residuais da
Nova Crítica, apregoada por Afrânio Coutinho e por aqueles recentes advindos
principalmente do estruturalismo. Por outro lado, contaminada pelas revisões teóricas do
campo das Ciências Humanas e pelas idéias dos formalistas russos aportadas no Brasil, passa
essa crítica a ter uma nova concepção de texto, se distanciando do perfil impressionista e
estetizante, abarcando análises de caráter intra-textual.
No Capitulo 2, Gabriela “Senhora das Letras”... O que diz a crítica especializada?,
a atenção é concentrada na recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela, advinda
dessa crítica especializada produzida no âmbito das universidades, por críticos acadêmicos e
intelectuais, sob a forma de artigos e ensaios publicados em revistas especializadas,
suplementos literários, dissertações e teses de doutorado nos anos de 1970 a 1998. Nesse
conjunto estão incluídas algumas histórias da literatura, por se constituírem como espaços de
legitimação de autores e obras, e como meios eficazes e interferidores no julgamento e
avaliação do romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. E ademais por essa
historiografia literária brasileira vir a se constituir em uma produção acadêmica desde quando
os historiadores têm uma formação no âmbito da universidade.
Os estudos analíticos de Eneida Maria de Souza, Silviano Santiago, Ívia Alves, Tânia
Pellegrini e Márcia Rios da Silva balizam as reflexões em torno das transformações ocorridas
no âmbito da crítica, refletidas na recepção do romance Gabriela, cravo e canela. Diante de
novos pressupostos para a literatura, agora encarada como uma prática cultural, o eixo
analítico desliza do campo literário para o campo da cultura, no tempo em que os chamados
Estudos Culturais encontram espaço nas universidades brasileiras.
30
Esse capítulo, por fim, privilegia a recepção crítica feminista do romance ao trazer
algumas leituras feitas por mulheres,
33
perpassando, sem pretensões de um aprofundamento
pelas questões de gênero, através dos estudos de Tereza de Lauretis e Jonathan Culler, desde
quando a crítica feminista tem contribuído com novos ângulos e perspectivas para os estudos
da literatura, entrecruzados agora com os estudos da cultura.
O alargamento de público, através das sucessivas edições de seus romances, é um fato
inegável desde o início da carreira de Jorge Amado, assim como a relação que o escritor
manteve com aos meios de comunicação de massa durante esse percurso. Através de ensaios
que analisam a adaptação do romance Gabriela, cravo e canela para a televisão pela Rede
Globo, em 1975, é aberta uma discussão em torno da consolidação da indústria cultural no
Brasil.
Com isso busca-se dar possíveis respostas às questões que são levantadas no início da
pesquisa, levando-se em conta as transformações ocorridas no seio da crítica literária
brasileira e as condições políticas, históricas e sociais de seus leitores críticos como fatores
que interferem na historicidade e recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela.
33
A pesquisadora Márcia Rios da Silva faz uma reflexão acerca da recepção literária de Jorge Amado pelo
público feminino, analisando os modos de ler expressos nas cartas endereçadas ao escritor pelas mulheres
leitoras das suas obras. Cf. SILVA, 2006. Op. cit., p. 87.
31
2 GABRIELA NO TRIBUNAL DA CRÍTICA DE RODAPÉ: ENTRE O
IDEOLÓGICO E O ESTÉTICO
O estilo do Sr. Jorge Amado – tanto o direto como o indireto –
ainda tem muito de inorgânico e desarticulado. Há uma grande
desproporção entre o seu poderoso talento de romancista e os
seus fracos recursos de escritor.
Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca. 1963.
Mas, tratar-se-á deveras de defeitos? A idéia que realmente
defendemos aqui é que não se deve julgar um escritor pelas
normas tiradas de uma literatura diferente daquela que ele
pratica.
Roger Bastide, Sobre o escritor Jorge Amado. 1972.
A crítica de rodapé tem uma contribuição inegável para se entender a formação do
campo da crítica no Brasil, como também para se compreender a divulgação e a recepção de
Gabriela, cravo e canela entre a esfera letrada e culta no país. Aquela produção também ficou
conhecida como crítica impressionista, termo apropriado da área das artes, principalmente da
pintura impressionista, o qual emerge na França na segunda metade do século XIX.
34
Tal
crítica vem a ser, segundo Wilson Martins, “uma invenção dos franceses: [que] colocaram o
artigo no rodapé da página, obtendo uma paginação uniforme e regular, sem quebrar o
texto.”35
A crítica impressionista se estende vigorosamente até por volta do período que vai de
1940 a 1950, depois do qual continua a permanecer de forma residual. Ao termo
impressionismo, transportado para a literatura pelos franceses Jules Lemaître, Anatole France
e Remy de Gourmont, agregou-se um exacerbado subjetivismo, dando margem ao
florescimento de uma modalidade crítica que deveria restringir-se à notação das impressões
que uma obra desencadeasse nos leitores.
Por não acreditarem em sentenças universais no plano estético, tais críticos
consideravam que a tarefa crítica, porque lúdica e descompromissada, deveria consistir num
diálogo ameno entre pessoas cultas e sensíveis, e o gosto individual, por sua vez, nortearia os
34
Ao explorar os efeitos da luz nos objetos e na atmosfera, os pintores impressionistas afastam o ilusionismo
naturalista da pintura acadêmica, propondo-se a “representar os objetos de acordo com as suas impressões
pessoais, sem se preocupar com regras geralmente estabelecidas”. Cf. Maurice SERULLAZ. O impressionismo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. p. 07. Trad. Álvaro Cabral.
35
Cf. Wilson MARTINS. A crítica como ofício. Jornal do Brasil. Caderno de Idéias, Rio de Janeiro, 28 ago.
2005.
32
juízos. A crítica de rodapé vem marcada pela ausência de especialização, tendo sido exercida
por bacharéis e cultores das belas letras, os quais não seguiam um referencial teórico
demarcado, tampouco métodos bem precisos.
Tais críticos, também tidos como cronistas, tinham espaço nos “pés” de página e
colunas dos grandes jornais e revistas, sendo que a eles cabia a responsabilidade de orientar e
divulgar a cultura numa linguagem eloqüente, mas de fácil leitura. Os textos deslizavam entre
a crônica e o noticiário, num tom opinativo e informativo, porém sintonizados com o público
e o mercado.36
No Brasil oitocentista, recém-liberto de Portugal, a crítica literária, assim como a
imprensa e a ficção, expõe os influxos da estética romântica, num momento em que o país
anseia por sua autonomia cultural. A literatura aqui produzida vai buscar no passado indícios
de traços definidores de sua nacionalidade. Nesse contexto, a crítica literária ocupou lugar de
destaque, imbuída da função pedagógica de educar e formar a opinião dos leitores, incutindolhes uma excessiva valorização da cultura local.
Para Antonio Candido, os críticos literários, do mesmo modo que os escritores
românticos, obcecados por dar ao país uma “cor local” e inspirados pelos ares da
independência, dispunham-se a “dotar o Brasil de uma literatura equivalente às européias, que
exprimisse [...] a sua realidade própria ou como então se dizia, ‘uma literatura nacional’.”37
Assim, quanto mais próxima aos modelos estrangeiros, europeus acima de tudo, mais valor se
atribuía à literatura produzida nos trópicos.
O crítico Afrânio Coutinho, comungando com Antonio Candido, ressalta que o cultivo
de um nacionalismo exacerbado se justifica por ter sido muito forte e profunda a subordinação
do Brasil a Portugal, levando-o a abrir-se a outras influências intelectuais, especialmente a
francesa. Dessa volta ao passado, em busca de uma identidade nacional, resulta, segundo
Coutinho, “um grande movimento de indagação histórica [...] uma onda historicista [que]
contaminou os estudos literários trazendo ademais a identificação entre historiadores e
críticos.”38 Assim, as idéias nacionalistas, datadas do século XIX, e a partir de 1880, passam
36
No Brasil, os grandes jornais diários funcionavam como espaço de legitimação do discurso crítico, vindo a
destacar-se críticos como Olavo Bilac, José Veríssimo, Sílvio Romero, Monteiro Lobato, Araripe Júnior,
atividade que continua sendo exercida por outros críticos, de distinta formação, mencionados por Flora
Sussekind: “neste solo comum da crítica jornalística, ocupando pés de página ou colunas exclusivas, havia então
os nomes mais diversos: Antonio Cândido, Tristão de Athayde, Sérgio Milliet, Otto Maria Carpeaux, Mário de
Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Wilson Martins, Nelson Werneck Sodré, Olívio Montenegro, Agripino
Grieco, além do onipresente Álvaro Lins [...]”. Cf. Flora SUSSEKIND. Rodapés, tratados e ensaios: a formação
da crítica brasileira moderna. In: Papéis colados. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 17.
37
Cf. Antonio CÂNDIDO. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). Belo Horizonte: Itatiaia,
1997. v. 2 (1836-1880). p. 11.
38
Cf. COUTINHO, [19 ], p.4.
33
obrigatoriamente pela literatura, desdobrando-se na crítica literária, por onde ecoa, segundo
Eliana Yunes,39 a formação do pensamento teórico no Brasil.
Nesse
período,
o
público
leitor/cidadão,40
quantitativamente
inexpressivo
e
despreparado qualitativamente, se entusiasma com as idéias disseminadas pelos eminentes
críticos brasileiros, que corroboram com a visão europeizante do país. Ainda com Yunes, por
serem os críticos “destituídos de habilidades para pensar o deslocamento e o descentramento
[não foram] capazes de oferecer uma alternativa ao destino periférico, que não fosse
comprometida com o exotismo.” 41
Por outro lado, esse momento é considerado por Roberto Ventura como aquele em que
ocorre uma virada anti-romântica, com seu início a partir de 1870. De acordo com Ventura,
“esse movimento corresponde, em termos de crítica literária, à introdução do naturalismo, do
evolucionismo e do cientificismo [e que] a adoção de tais modelos tornou possível a
abordagem da literatura e da cultura de um ponto de vista histórico-social.”42
Essa crítica era exercida por homens “ilustres,” os chamados homens de letras, entre os
quais se destacam Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior, críticos que, partindo de
uma impressão para chegar a um juízo, buscavam intervir na sensibilidade do leitor.
Considerados por Antonio Cândido como praticantes de uma “crítica viva,” aquela em que
está empenhada a personalidade do crítico, o exercício dos mesmos era centrado no “trabalho
construtivo de pesquisa, informação e exegese.”43
Ressaltando a perspectiva histórica, o crítico Sílvio Romero defende o conceito de
literatura como sinônimo de cultura, numa perspectiva etnocêntrica, privilegiando a raça na
abordagem da literatura e da cultura; enquanto José Veríssimo, com uma visão menos
alargada, vê a literatura como “boas e belas letras”, conceito apoiado em teorias estéticas e na
retórica clássica, concebendo-a como “arte da palavra”. Já o crítico Araripe Júnior destaca o
meio, a natureza, como elementos constitutivos da literatura, em contraposição à etnologia de
Romero. Tais críticos buscavam inspiração nas idéias correntes da crítica européia, a saber, o
“esteticismo sem limite e um subjetivismo visionário,”
44
vindos da Inglaterra, e nas idéias
que na França se dividiam entre tendências realistas e naturalistas.
39
Cf. Eliane YUNES. Prefácio. In:MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Lições de crítica. Niterói:
EDUFF,1977. p. 14.
40
A população do Brasil do final do século XIX e início do século XX contava com mais de 70% de analfabetos.
Cf. Marisa LAJOLLO; Regina ZILBERMANN. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: 1999. p. 64.
41
Cf. YUNES, 1977. p 14. Op. cit.
42
Cf. Roberto VENTURA. Estilo tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 11.
43
Cf. CANDIDO, 1997, v.1, p.31.
44
Cf. Terry EAGLETON. A função da crítica. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p 32.
34
Esses críticos brasileiros encontraram nos jornais e revistas o espaço ideal para a
exposição de seu pensamento, sendo que os primeiros apareciam como veículos que se
tornavam àquela época, 1880, muito populares entre as camadas médias da população. Em
decorrência disto, não se pode falar sobre crítica literária no Brasil, desde o século XIX, até os
dias atuais, desconhecendo o papel exercido pelo jornal como o espaço de interlocução entre o
crítico e o leitor, assim como o papel do jornalismo literário na disseminação e formação
cultural do povo brasileiro.
De acordo com João Alexandre Barbosa, em sua análise da publicação de José
Veríssimo: Estudos de Literatura Brasileira, publicados em 1901 a 1907, na qual discute a
origem da relação mantida entre crítica e jornal, “escrever crítica literária era, naquele tempo,
entre as datas de 1895 e 1906 [...] escrever para o jornal, ou revista, obrigando-se o crítico a
responder às exigências de um determinado setor da opinião pública, consumidor desse ou
daquele periódico.” 45
No final do século XIX, a crítica literária no Brasil passa por uma crise, a qual
contribuirá para o que João Alexandre Barbosa denomina de “tradição do impasse,”46
momento marcado por ambigüidades e contradições em suas correntes, quando a crítica tendia
ora para a valorização do caráter referencial da literatura, ora para a autonomia da obra de
arte. Tal oscilação traduz a postura de alguns intelectuais brasileiros à época, que, descrentes
das mudanças sócio-econômicas prometidas quando da proclamação da República e da
Abolição da escravatura, abdicam do critério documentalista até então adotado, vindo a
defenderem o valor estético e a autonomia da literatura.
A orientação naturalista-realista, predominante, vinda da França, particularmente com o
crítico Saint-Beuve, foi responsável pela abertura da crítica literária no Brasil à sociedade e à
história, contudo, numa perspectiva determinista. Segundo Roberto Ventura, o texto literário
desse período é considerado por Romero, Veríssimo e Araripe, reflexo das condições sociais e
materiais, o que “reduziu o alcance analítico da própria crítica [...]. Tanto a reflexão
sociológica, quanto a abordagem crítico-literária de base naturalista ou evolucionista
padeceram da ausência de método e teoria específicos.” 47
Já Afrânio Coutinho, ao analisar a herança deixada por essa geração de críticos,
considera que essa corrente crítica, por ele denominada de sociológica, foi uma das mais
45
Cf. João Alexandre BARBOSA. A crítica em série. In: Estudos de literatura brasileira: 1ª série. São Paulo:
EDUSP, Belo Horizonte: Itatiaia, 1977. p.14.
46
Sobre a tradição do impasse, ver o estudo de Cf. Rachel Esteves LIMA. Ainda a tradição do impasse. [200].
p. 3.
47
Cf. VENTURA, 1991. Op. cit., p. 161.
35
importantes no Brasil, tanto pelo número de representantes, quanto pelo valor de muitos deles
e pelo prolongado tempo de permanência na cena literária, desde a geração de 1870 em
diante, chegando aos nossos dias através do renomado crítico Antonio Candido,
especialmente com a publicação, em 1959, da Formação da literatura brasileira.
Candido também reconhece a importância dessa geração de críticos, vindo a imprimirlhe um sentido de renovação, expressa na “felicidade com que as sugestões externas se
prestaram à estilização das tendências locais, resultando um momento harmonioso e íntegro,
que ainda hoje parece a muitos o mais brasileiro, mais autêntico dentre os que tivemos.”48
Os princípios, valores e crenças que nortearam a geração de 1870, como ficou
conhecido esse grupo de críticos, permaneceram até os anos 1950, numa perspectiva
sociologizante, historicista ou impressionista, no intento de relacionar a literatura e a crítica
com a história. A crítica literária passa a ter por função analisar as características tidas como
exteriores à obra literária: a época em que vivia o autor, seu meio, sua geografia, sua
ideologia, condicionantes de um modo de ser e de escrever.
A despeito de o modernismo literário no Brasil, nos anos 1920, sinalizar em seus
manifestos e em algumas produções literárias a necessidade de uma renovação da linguagem,
não se constata um rebatimento desse ideal de ruptura nos textos da crítica literária do
momento. Importa destacar aqui os trabalhos dos formalistas russos, iniciados nessa mesma
década, os quais vieram a ter disseminação e repercussão no Brasil nos anos de 1970.
No entendimento de Afrânio Coutinho, a orientação metodológica da crítica e da
historiografia literária no Brasil, que vigorou até meados do século XX, reflete uma visão
incompleta e difusa do “fenômeno” artístico e literário. Contra a idéia de que a literatura não
passa de um “epifenômeno” da vida política e social e de que a crítica literária seja uma
interpretação genética de seus elementos extra-literários, Coutinho, que retorna dos Estados
Unidos por volta de 1948, apresenta o ideário do New Criticism, a Nova Crítica.
Esse crítico inicia um movimento em prol da autonomia da literatura e de uma crítica
apoiada nos valores estéticos, propondo um estudo imanente do texto com técnicas
minuciosas de análise, focado no que se entendia como elementos intrínsecos. A Nova Crítica
floresce em solo norte-americano nos fins da década de 1930, como uma saída estética para o
racionalismo científico da sociedade burguesa e industrial, tendo “por tarefa recuperar para o
mundo aquela especificidade sensorial da qual [o] racionalismo a tinha privado, opondo-se à
abstração e à mercantilização impiedosa com as quais abordava a experiência,”
48
49
49
propondo
Cf. CANDIDO, 1997, v. 2, p. 15.
Cf. EAGLETON, 1991. p. 84.
36
uma prática crítica focada em todas as particularidades do texto, afastada dos aspectos extra
textuais, a saber, uma “close reading”, leitura imanente do texto.
Afrânio Coutinho milita pela superação do impressionismo, combate a análise crítica
exercida por bacharéis e letrados, vindo a deflagrar uma campanha contra a crítica de rodapé e
seus ferrenhos militantes, os “jornalistas literários”, no dizer do autor, que ocupavam as
páginas dos jornais de todo o Brasil. Dessa geração de críticos de rodapé, destacam-se Álvaro
Lins, Wilson Martins e Tristão de Athayde, cuja trajetória e legado crítico favorecem o estudo
e análise da crítica impressionista no Brasil.
Tristão de Athayde, de formação humanista e católica, rechaça o exacerbado
subjetivismo da crítica impressionista, por estar vulnerável a especulações pessoais,50 o que
inviabilizaria uma análise da literatura em sua totalidade. Para esse intelectual, qualquer obra
literária
é um centro de ações e reações de um universo de valores – estéticos,
científicos, religiosos, filosóficos – que constituem sua atmosfera normal
[portanto], descobrir, situar, analisar, sugerir, corrigir ou comentar essas
coordenadas de modo que a obra ressalte em sua significação multiforme é
a tarefa essencial da crítica de valores a que está intimamente ligada a
crítica literária. 51
Segundo Athayde, deve-se disciplinar a subjetividade, buscar algum respaldo teórico, o
que faltava à crítica impressionista, daí defender a idéia de uma crítica expressionista, ainda
que compreenda o ofício do crítico como “a comunhão prévia do espírito crítico e da alma do
autor.”52
Nas páginas dos jornais desde 1946, exercendo a crítica por mais de 50 anos, o crítico
militante Wilson Martins ganha destaque no cenário crítico-literário brasileiro, assinando até
os 84 anos uma coluna semanal: “Rodapé-literário”, nos jornais O Globo do Rio de Janeiro e
Gazeta do Povo, de Curitiba. Martins encara a crítica não como uma “obra sublime de
criação, mas como um ofício do dia a dia, de uma tarimba diária,” afirmando não haver nada
de teleológico ou metafísico nessa atividade. Ao ser entrevistado, no ano de 2005, pelo Jornal
50
Para esse crítico, não se trata “de forma alguma defender o primado do lirismo crítico. A crítica é atividade
intelectual e não afetiva, filosófica e não apenas psicológica, objetiva em seus fins e não puramente subjetiva.
Nada se faz, porém em atividade alguma, nada de semelhante e realmente verdadeiro se conseguira,
especialmente em crítica literária, sem esse calor da emoção que conduz a vontade e desperta a inteligência [...]
É a alma do crítico que a deve iluminar. Sem ela [a emoção] não conseguirá jamais penetrar a obra estudada,
impregnar-se dela, embeber-se do seu espírito. É o dever primordial de toda a crítica sincera, plástica, arguta”.
Apud NEGRÃO, Maria José da Trindade. Tristão de Athayde e o problema da crítica literária. Rio de Janeiro:
Faculdade de Letras, 1985. (Estudos de Literatura Brasileira-1). Op., cit., p. 60. [grifos nossos]
51
ATHAYDE, [19 ], apud NEGRÃO, 1985. p. 60.
52
Id.; Ibid., p.60.
37
do Brasil, ele lamenta o estado atual da crítica, por não provocar a reflexão no leitor, deixando
de exercer a sua função primeira: “desafiar o leitor a pensar como ele ou contra ele.”53
Álvaro Lins foi um eminente crítico, cujos juízos de valor e julgamentos marcaram
época e desafiaram o leitor “a pensar como ele ou contra ele.” Suas avaliações críticas tinham
o poder de repercutir no espaço dos estudos literários dos anos 30 aos anos 50, quando foi
signatário de rodapés de crítica literária nos jornais: Diário de Notícias e Diários Associados
(1939-1940), assim como redator chefe do Correio da Manhã (1940-1956) no Rio de Janeiro.
Esses jornais foram palco das polêmicas entabuladas entre Lins, na defesa da crítica diletante,
de caráter impressionista, e o crítico Afrânio Coutinho, defensor da especialização e de uma
crítica cientificista. Para Lins, um dos princípios determinantes do exercício da crítica literária
reside no “caráter do crítico, na evidência de sua dignidade pessoal e na estrutura indiscutível
dos seus princípios morais.”54 Suas avaliações judicativas sobre a produção amadiana, que
marcam época no final dos anos trinta e início dos quarenta, reunidas em Os mortos de
sobrecasaca, 55 fizeram “perdurar seu poder de juízo de valor sobre o autor” e repercutir em
outras vozes o discurso crítico desqualificador.
Ao fazer uma análise da história da moderna crítica literária brasileira, Flora Sussekind
também destaca a atuação contundente desses críticos: Álvaro Lins, Wilson Martins e Tristão
de Athayde. De acordo com a autora, os anos 1940 e 1950 correspondem ao “triunfo da crítica
de rodapé”. Marcada pela ausência de especialização, seus militantes exerciam o ofício com
fervor e tinham no jornal o espaço privilegiado de veiculação de suas idéias e julgamentos.
Eram jornalistas-intelectuais, críticos-cronistas, que demonstravam seu poder com a presença
constante nas páginas dos jornais, através do envolvimento em polêmicas, avaliações e
julgamentos que chegavam a incrementar a venda de obras.
Flora Sussekind aponta traços formais bem delineados da crítica de rodapé:
a oscilação entre a crônica e o noticiário puro e simples, o cultivo da
eloqüência, já que se tratava de convencer rápido leitores e antagonistas, e a
adaptação às exigências (entretenimento, redundância e leitura fácil) e ao
ritmo industrial da imprensa; a uma publicidade, uma difusão bastante grande
(o que explica, de um lado, a quantidade de polêmicas e, de outro, o fato de
alguns críticos se julgarem verdadeiros ‘diretores da consciência’ de seu
53
Cf. Wilson MARTINS. A crítica como ofício. Jornal do Brasil. Caderno de Idéias, 28 ago., 2005.
Cf. Álvaro LINS. Literatura e vida literária (notas de um diário crítico, 1 e 2 volumes). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1963. p. 233.
55
LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca, estudos e ensaios; 1940-1960. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1963.
54
38
público, como costumava dizer Álvaro Lins; e, por fim, a um diálogo estreito
com o mercado, com o movimento editorial seu contemporâneo”.56
Ainda com Sussekind, nessa produção textual, posturas intelectuais divergentes ganham
relevo. Para a autora,
se o medium era comum, colunas, rodapés e suplementos literários abrigavam,
contudo, posturas conflitantes a respeito do exercício da crítica. E uma
polêmica, ora surda, ora em alto e bom som, foi se delineando de modo cada
vez mais nítido nos decênios de 1940 e 1950. E os oponentes? De um lado, os
antigos ‘homens de letras’, que se crêem ‘a consciência de todos’, defensores
do impressionismo, do autodidatismo, da review como exibição do estilo,
‘aventura da personalidade’. De outro, uma geração de críticos formados
pelas Faculdades de Filosofia do Rio de Janeiro e de São Paulo, criadas
respectivamente em 1938 e em 1934, e interessados na especialização, na
crítica ao personalismo, na pesquisa acadêmica.57
É nesse embate do campo da crítica que Gabriela, cravo e canela foi publicado, final dos
anos 1950, marcado por propostas de novos rumos da crítica literária no Brasil,
particularmente pelo empenho de se introduzir, na interpretação e análise das produções
literárias, critérios estéticos de apreciação e julgamento, como forma de eliminar o veio
cientificista ou impressionista herdado do oitocentos, destacando-se nessa luta o crítico
Afrânio Coutinho.
Esse crítico faz uma análise da crítica literária produzida à época, basicamente estética
ou social, em seu entendimento.
58
Da chamada crítica social, que se produzia já nos anos
1930 e 1940, à crítica de valoração estética, que se consolida a partir de 1950, os critérios de
apreciação de autores e obras oscilam entre a valorização do estético ou do social, no dizer de
Coutinho, centrados no “gosto” individual do crítico e em sua formação, desprovidos de
qualquer método ou doutrina que os sustentassem, prevalecendo o que se convencionou
chamar de impressionismo.
O polêmico crítico e ensaísta Agripino Grieco, que já começa a ter destaque no final dos
anos 1920, cria tipologias que traduzem esse veio impressionista – a “crítica das belezas” e a
“crítica dos defeitos” –, desde o século XIX, nos textos críticos produzidos no Brasil,
adentrando o século XX. Ao analisar a produção crítica de Jorge Amado, Eduardo Assis
Duarte retoma a classificação de Grieco, que denomina de “crítica das belezas”: a que ressalta
56
Cf. Flora SUSSEKIND. Rodapés, tratados e ensaios; a formação da crítica brasileira moderna. In:
Papéis colados. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 17.
57
Id., Ibid., p. 17.
58
Coutinho apresenta classificações variadas dessa produção exercida por críticos não especializados: crítica
biográfica, histórica, sociológica, marxista, impressionista. Cf. Afrânio COUTINHO. A crítica literária no Brasil.
In: Críticos & críticas. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968. p. 115-157.
39
as qualidades da obra sem atentar para suas “fragilidades”; sendo, portanto, de cunho
encomiasta, em defesa do escritor, como faz Roger Bastide e Eduardo Portela.
A “crítica dos defeitos”, por sua vez, apresenta-se como o anverso da medalha, ao
destacar, de modo contundente e às vezes agressivo, as supostas falhas nos romances de Jorge
Amado, a exemplo de Álvaro Lins59 e Walnice Nogueira Galvão.
60
Assis Duarte, visando
superar essa polaridade, apresenta outra tipologia, a “crítica compreensiva”: “pois que infensa
tanto ao puro elogio quanto ao discurso meramente demolidor,”61 na qual inclui textos críticos
de Sérgio Milliet e Antonio Candido sobre Jorge Amado.É interessante destacar que a
necessidade de classificar uma obra, enquadrando-a em uma determinada tipologia, vai
persistir por muito tempo durante o século XX, e o romance de Jorge Amado não foi imune a
tal rotulação, vindo inclusive orientar novas gerações de críticos, assim como o próprio Assis
Duarte.
Da produção denominada crítica de rodapé sobre Gabriela, cravo e canela, selecionada
para este estudo, emergem avaliações que expõem juízos de valor eminentemente
“impressionistas”. Nos textos analisados, são recorrentes duas posturas: a de exaltação a Jorge
Amado, pelo abandono do ideológico em favor do estético, e a censura ao escritor pela
renúncia ao ideológico. Não se deve ignorar ainda nessas apreciações e avaliações uma
cobrança de maior labor estético por alguns dos seus críticos.
Nos primeiros textos críticos sobre Gabriela, cravo e canela, produzidos no “calor da
hora”, no dizer de Walnice Galvão,
62
expõe-se o acolhimento por parte de críticos que
identificam nessa narrativa um aprimoramento estético, surpreendidos com uma trama
romanesca que inova sua linguagem, ao tempo em que rompe com um projeto literário até
então cultivado por Jorge Amado, sob a orientação do realismo socialista, ditado pelo Partido
Comunista.
Predominam análises e apreciações que destacam o “conteúdo,” o enredo, a trama
política envolvendo os coronéis e o jovem Mundinho, o idílio romântico vivido por Nacib e
59
O crítico analisa o conjunto da obra de Jorge Amado até São Jorge dos Ilhéus, ressaltando os defeitos desde os
títulos dados aos ensaios: Jorge Amado: valor instintivo de romancista e miséria objetiva de escritor e Obras
completas de Jorge Amado: um ‘inacreditável’ nas aflições entre adjetivo e advérbio. Cf. Álvaro LINS, 1963. p.
230-246.
60
É por demais conhecido o ensaio crítico sobre o romance Tereza Batista cansada de guerra. Nele a autora
discute a representação feminina da personagem principal do romance e a relação do autor com o mercado.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Amado: respeitoso, respeitável. In: Saco de Gatos; ensaios críticos. São Paulo:
Duas Cidades; Secretaria da Cultura e Tecnologia, 1976.
61
Cf. Eduardo Assis DUARTE. Do rodapé à crítica universitária; Jorge Amado, um caso polêmico. Anais do
2º. Congresso da ABRALIC, 1991. p. 237-242.
62
Termo utilizado no título da obra de sua autoria sobre a Guerra de Canudos, cujas fontes de pesquisa foram as
notícias dos jornais da época do acontecimento. Cf. Walnice Nogueira GALVÃO. No calor da hora (a Guerra
de Canudos nos jornais) 4 expedição. São Paulo: Ática, 1977.
40
Gabriela, para muitos, o moto criador e poético do livro. Destaca-se, em muitos desses textos
críticos, a mudança de foco do romancista. Independente do enfoque eleito por esses críticos,
ganha relevo a personagem Gabriela, centro das atenções, “a senhora absoluta do romance,”
no dizer do crítico M. Cavalcanti Proença, pela força e domínio que exerce sobre o leitor.
Alguns críticos, tais como Tristão de Athayde, Antonio Olinto, Hildon Rocha se
posicionam de modo favorável ao romance, por considerá-lo uma obra que “fecha um ciclo e
principia outro,” “encerra a história dos coronéis,” recupera o “lirismo primitivo” e o
“domínio da poesia e da graça,” demonstrados em romances anteriores. Outros críticos
constatam uma volta ao que se considera regional: “um regresso à terra nativa
assombrosamente lírica e trágica, temática que inspirou o autor no início da sua carreira”, tal
como afirma o crítico cearense Oliveiro Litrento.63
A publicação de Gabriela, cravo e canela rende ao escritor as mais ferrenhas críticas
dos marxistas, muitos deles militantes do Partido Comunista, como Jorge Amado. De acordo
com Amado, que afirma ter escrito “uma história de amor, sem abandonar o contexto social, a
questão da realidade brasileira”,
[...] vários responsáveis do PC, alguns que eram até meus amigos, claro que
sob instrução da direção, que permaneceu stalinista [...] atacaram-me
violentamente. Trataram meu livro de lixo [...] Fizeram comigo como se fazia
na URSS, no Pravda, com todos os escritores que não seguiam exatamente a
linha oficial. Dizem que a obra se tornara folclórica e que era a negação da
obra passada. [...] A crítica em si era tão boba que não conseguia me abalar
[ao] escrever tais coisas estavam cumprindo ordens, submetendo-se a elas. Eu
sei... Conheço bem o mecanismo [...].64
Segundo Albino Rubim, a “cultura do partido” instituiu critérios de avaliação das obras
literárias atrelados a uma visão de engajamento, que cobra do artista e do escritor um
compromisso com as questões sociais do país; daí priorizarem o conteúdo em detrimento da
forma. Ainda com Albino Rubim, o Partido Comunista, fundado em 1922, passa a imprimir
sua marca na literatura e nas artes, visivelmente a partir de 1930, expressando uma avaliação
negativa do movimento modernista de 1922, do ponto de vista estético-literário – por suas
“frases de efeito e estilo de ornamentação” – e político-cultural – pela compreensão de
“brasilidade” e de renovação nacional dos modernistas, apropriada, segundo o Partido
Comunista, pelo discurso oficial do Estado Novo.
Devota o Partido, no entanto, uma certa apreciação à posterior “Geração de 30,” ao
contrário do que nutria pelos modernistas de 22, pelas características de forma e conteúdo
63
64
Cf. Oliveiro LITRENTO. Gabriela. O Estado de Fortaleza, 2 dez. 1958.
AMADO, 1990 apud RAILLARD, 1990, p. 265.
41
com que tece a sua literatura, agora de cunho social, e por filiar-se ao Partido um contingente
de escritores e intelectuais, nomes como Graciliano Ramos, Dionélio Machado, Raquel de
Queiroz e Rubem Braga, além do próprio Jorge Amado.
Na crítica de rodapé sobre Gabriela, cravo e canela, expõe-se a cobrança de um
compromisso do escritor na perspectiva de um engajamento político-partidário, vinda de uma
parte de críticos - ainda que não se afirmem marxistas - de uma literatura engajada com a
proposta do realismo socialista, o que faz com que esse romance gere uma polêmica
inesgotável. As opiniões e avaliações sejam positivas ou negativas, que circulam na crítica de
rodapé, convergem para dois grandes eixos de orientação de análise: o ideológico e o estético.
Como entender essas divergências? Que noção de ideológico têm esses críticos? Que
entendimento expressam em relação ao estético?
A noção de estético nesses textos de rodapé remete ao trabalho com a linguagem, com o
labor do texto, no que diz respeito ao emprego e jogo das palavras, à composição da trama e à
solução dada aos enredos, algumas vezes, valorizando a inovação. Em relação à noção de
ideológico, é inegável que o termo remete, de imediato, nos textos analisados, a uma visão de
ideológico casada com a de partidário, produzida pelas correntes de pensamento marxistas,
que estiveram à frente na luta por mudanças no país, representadas pelo Partido Comunista,
ao qual Jorge Amado foi filiado. Um contingente significativo da crítica literária militante
considera, no entanto, que Jorge Amado dá continuidade ao seu projeto literário, caminhando
em paralelo o estético e o social no romance Gabriela, cravo e canela.
2.1 Entre o estético e o social
No ano da publicação do romance, no mês de agosto ainda na primeira quinzena desse
mês, Miécio Tati (1958), crítico e amigo do escritor, escreve uma resenha no jornal Para
Todos, periódico do Partido Comunista, para o qual trabalhou Jorge Amado, considerando que
em Gabriela, cravo e canela o “social” e o “estético” caminham em paralelo. Para o crítico, o
caráter político não assume o primeiro plano, mas se espraia pelo romance com
“naturalidade”.
É importante assinalar que os aspectos políticos da obra não assumem
nenhum primeiro plano de oportunidade discutível, mas decorrem com
naturalidade do desenvolvimento da trama novelesca, convincentes e certos.
Jorge Amado contador inato de casos e senhor definitivo de uma conversa
literária sedutora, não se limita, nos seus livros às facilidades de servir-se de
42
seus dons para o fim de narrar histórias de indivíduos sem levar em boa conta
seu enquadramento social, econômico e político [...]. 65
O crítico destaca o “dom” de Amado como contador de histórias, superando uma fase
em que o ideológico, expresso no foco dos “aspectos políticos,” norteava a construção da
trama novelesca. Tati registra, como sempre, e ainda desta vez, que perpassa em Jorge
Amado, através do romance, “o sopro de uma irresistível poesia, muita coisa de povo e de
suas paixões, seus costumes, suas crenças, o modo como brinca e sofre, a maneira como fala e
a maneira como ama [...],” 66 dando a entender que no conjunto da obra amadiana, até aquele
momento, tem-se uma continuidade de projeto literário, que pode ser flagrada no modo de
tematizar “as claras e profundas raízes da alma do seu povo”. Para o crítico, se alguma
mudança foi percebida em Gabriela, cravo e canela,
[...] é preciso que se diga com ou sem restrições desse tipo (é um direito do
autor a procura de novos caminhos estéticos através de experiências várias,
nos domínios do estilo) que Gabriela, cravo e canela é um romance de rica
humanidade pitoresca. 67
Miécio Tati faz uma defesa do escritor, respondendo antecipadamente às críticas
desfavoráveis que ocorreram, ao entender que “é um direito do autor a procura de novos
caminhos estéticos”, o que resultou na riqueza do romance de “humanidade pitoresca.”
Henrique Pongetti (1958), escritor e cronista, por sua vez, em O Globo, do Rio de
Janeiro, na resenha O canto de Ofenísia e Gabriela, retoma o início da carreira de Jorge
Amado, considerando Gabriela, cravo e canela “um romance social, mas sem a premeditação
de edificar, de definir responsabilidades, de servir a uma ideologia política,” condenando toda
literatura maniqueísta e panfletária de propaganda e a serviço do Partido. Segundo Pongetti,
foi com O país do carnaval
que começou a carreira do mais universal dos nossos escritores, o mais
traduzido, o mais lido [...]. Se aquém ou além da Cortina de Ferro pouco
importa. Gabriela, cravo e canela, sobrepaira o clima político, é apolítico
no sentido de humanidade e de premeditação ideológica, [e] em nenhum
momento se inquina de propaganda. 68
65
Cf. Miécio TATI. Gabriela. Para Todos. Rio de Janeiro/São Paulo, segunda quinzena ago.1958.
Id. Ibid., 1958.
67
Id.; Ibid., 1958.
68
Cf. Henrique PONGETTI. O canto de Ofenísia e Gabriela. O Globo, Rio de janeiro, 1958.
66
43
Para esse crítico, há um valor no romance, pelo sentido universal de humanidade que
supera o ideológico-partidário. Em sua avaliação, sublinha a poesia dessa narrativa,
destacando que Amado apura ainda mais a virtude de romancista, que, insatisfeito com o
ritmo e a forma gráfica da prosa, elege o canto, ora pela voz de Ofenísia: “Luis Antonio, meu
irmão, que esperais pra me matar,” ora pela de Gabriela: “Posso não? Andar descalça de pé no
chão?”. Para o crítico, o canto se deve ao fato de o
Nordeste ser terra de cantadores de histórias, [que] acabam em música de
versos as notícias dos jornais, e é da letra dos cantadores que as histórias saem
para o romance [portanto torna-se] difícil fazer literatura panfletária com essa
miséria que canta e se imprime em opúsculos de poesia. 69
Em resenha publicada no jornal O Estado de São Paulo, logo após o lançamento do
romance, o escritor, crítico e jornalista Luiz Martins (1958) expõe sua surpresa diante do
“aspecto imprevisto e de certa forma desconcertante, dadas as modificações que parece
indicar, não nas convicções políticas ou ideológicas do escritor, porém nos processos de fazer
romance.” 70 [grifos nossos].
Segundo o crítico, a maturação definitiva do “estilo” e da técnica de composição salta
aos olhos do leitor como uma vitória conquistada pelo artista sobre o homem, cuja libertação
de toda preocupação doutrinária despojou Gabriela cravo e canela de “qualquer laivo de
pregação socialista que em seus livros anteriores alcançava pôr vezes uma ênfase poética de
alta beleza, porém não raro decaia na demagogia, na retórica e na vulgaridade.”
71
[grifos
nossos].
Conforme Martins, nutrindo pelos homens uma ternura mais generosa e uma simpatia
mais eqüitativa pelos homens, Jorge Amado, como um “romancista social”, foi levado a uma
isenção puramente estética, libertando o romance da polêmica e dando-lhe um mais sólido,
mais plenamente e mais convincente conteúdo humano. É o estético acatado pelo crítico, em
detrimento das convicções políticas e sociais do escritor. Diz Martins que a evolução da
técnica e da arte de fazer romance já se fazia sentir, em Jorge Amado, desde Terras do Sem
Fim, apesar do romance ainda trazer umas “tiradas de comício político e poesia
revolucionária.”72 O “desconcertante,” para Martins, fica por conta de Jorge Amado em
Gabriela, cravo e canela, onde “em lugar de escrever uma epopéia, o autor faz um idílio [não
69
Id.; Ibid.; 1958.
Cf. Luis MARTINS. Gabriela, cravo e canela. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30, ago. 1958.
71
Id.; Ibid.; 1958.
72
Cf MARTINS, 1958.
70
44
sendo] mais o heroísmo que distingue os homens, os eleva, que os valoriza: [agora] é o
amor”.73
Tecendo elogios ao romance, e considerando que ele abriu “um horizonte novo na obra
de Jorge Amado”, o horizonte do trivial urbano, Antonio Rangel Bandeira (1958) na resenha
Gabriela: um mito, publicada no jornal paulistano, Última Hora, detém-se na análise da
personagem Gabriela, considerando sua criação um “absurdo” por ser “humana demais”.
Numa análise comparativa entre Gabriela e o Anjo, de Jorge de Lima, Bandeira considera a
ambas como personagens absurdas. “O Anjo poderá ainda ser considerado uma fotomontagem supra-realista de mistura com a Cinelândia. E Gabriela? Ela é humana demais para
ser confundida com delírios estéticos.”74
E, tendo Jorge Amado, segundo Bandeira, deslocado o foco em relação às injustiças
sociais ou individuais, não se exime Gabriela, cravo e canela de ser “talvez, o mais
revolucionário, o mais dialético dos livros de Jorge Amado. Não é um panfleto, um protesto,
um libelo. É obra de criação literária, antes de mais nada.”
75
Bandeira não identifica nessa
narrativa um distanciamento do escritor das questões sociais, ao tempo em que nela reconhece
um forte teor revolucionário. Ainda segundo esse crítico, o elogio ao romance advém de sua
ruptura com a doutrina socialista em favor de uma compreensão mais alargada e complexa,
daí ser Gabriela, cravo e canela “o mais dialético dos livros de Jorge Amado”, de uma
sociedade de classes na qual conflitos e interesses diversos compõem a sua dinâmica.
Centrados nas impressões pessoais, tais análises e julgamentos vão compondo a
recepção crítica do romance, marcada pela ausência de consenso. Isso tem sido reconhecido
desde o seu lançamento por parte de críticos literários. Maurício Vinhas (1958), em análise
publicada sobre o romance Gabriela, cravo e canela, na revista Estudos Sociais, afirma não
haver
unanimidade nos julgamentos, mas que todos o debatem, às vezes
acaloradamente, dando uma prova de que o romance não só agradou ao
grande público como ao escrevê-lo, Jorge Amado não buscou uma receita
adrede conhecida. 76
Ao levantar essa questão, Vinhas se filia aos críticos que apontam o novo rumo tomado
por Amado, que, ao optar pelo aprimoramento estético, não se distancia das questões sociais e
do “realismo revolucionário” trilhado em romances anteriores. O crítico privilegia uma
73
Id.; Ibid.; 1958.
Cf. Antonio Rangel BANDEIRA. Gabriela: um mito. Última Hora. São Paulo, 9 out. 1958.
75
Id.; Ibid.; 1958.
76
Cf. Maurício VINHAS. Gabriela e os coronéis do cacau. Revista Estudos Sociais, n. ¾ , set./dez. 1958.
74
45
abordagem de viés sociológico, anunciada já no título do seu texto: Gabriela e os coronéis do
cacau. Chama a atenção para o caso dos coronéis na trama romanesca, processo que vinha
sendo vivenciado no país, nos idos de 1925 e 1930, mote que o crítico elegeu para demonstrar
a homologia estabelecida por Amado entre a literatura e a história.
A trama, situada às vésperas da revolução de 1930, retrata, para Vinhas, a decaída do
coronelismo no Brasil, marcado pelo poder dos grandes proprietários rurais, e a ascensão de
uma classe burguesa. Uma transformação, no dizer desse crítico, bem representada através da
luta travada entre o coronel Ramiro Bastos, o “manda chuva” da região, dono de terras em
Ilhéus, e Mundinho Falcão, um estrangeiro que, vindo do sul, dedica-se ao comércio de
exportação, pregando idéias progressistas, um contraponto com o atraso, conveniente aos
coronéis do cacau.
Como um dos aspectos marcantes da obra, Vinhas destaca o tratamento dado por Jorge
Amado às mulheres. Para o autor, “o desenvolvimento de uma sociedade pode ser aferido
pelo grau em que nela se encontra emancipada a mulher,”
77
daí considerar como “viva e
brilhante ilustração” o livro Gabriela, cravo e canela, por delinear perfis femininos tão
diversos e tão reais. Para o crítico, o romance traz uma denúncia e o reconhecimento das lutas
feministas por emancipação, numa sincronia e homologia histórica, considerando a entrada da
mulher brasileira no espaço público, ainda que tímida, por conta das transformações
econômicas ocorridas no país nos anos de 1950.
Considerando que Amado não abandonou o “ideológico”, ao avançar no aprimoramento
estético, Vinhas destaca o valor do romance:
falou-se muito em que o êxito de Gabriela se deve a que teria Jorge Amado, o
nosso Jorge, saltado do bonde andando e abandonado certo modo de criação
artística. Parece-nos que, ao contrário, seguiu a trilha dos seus mais
característicos romances e nela foi apenas mais longe, chegou a novas
paragens [...]. Agora Jorge Amado retorna vigorosa e corretamente a sua
peculiar espécie de realismo revolucionário e, segundo julgamos, supera-se
mesmo em qualidade literária e densidade humana. 78 [grifo nosso].
Muitas são as formas de ler Jorge Amado, que nem sempre se aproximam dos modelos
ou das instâncias críticas legitimadoras. Fato é que no mês de dezembro do ano da publicação
do romance, uma cronista, Maluh de Ouro Preto (1958), do Shopping News, jornal de
variedades do Rio de Janeiro, escreve um texto sobre Gabriela, cravo e canela. Por tradição,
esse jornal dedica a última crônica do ano a pessoas e fatos que foram destaque. Em 1958, a
77
78
Id.; Ibid.; 1958.
Id.; Ibid.; 1958.
46
escolha recai sobre a personagem Gabriela: “vou falar apenas de um acontecimento, um só
fato, uma única pessoa, da moça do ano [...] a mais das dez mais, [...] a personagem feminina
mais discutida dos últimos tempos. Morena, tem a cor de canela, seu corpo é esguio, sua fala
mansa e sua voz “cariciosa”, [...] boca rosada e sensual.” 79
A cronista dedilha um rosário de elogios aos atributos físicos da personagem, tal qual o
seu criador. Saindo da representação, Ouro Preto afirma que “Gabriela existe! [...] ela entrou
triunfante na literatura brasileira tomando seu lugar ao lado de Ceci, Iracema, Capitu e Ana
Terra.”80 Ingressa numa linhagem de mulheres personagens que, na literatura brasileira,
representam e reiteram modelos femininos marcantes que, alimentando o imaginário
feminino, contribuem para processos de identificação. Não se percebe no texto analisado,
qualquer vestígio de crítica à representação feminina da personagem amadiana, o que vai
ocorrer de forma contundente e se constituir como alvo de ataque ao escritor por parte da
crítica acadêmica de autoria feminina.
Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde (1959), destacado crítico literário,
colocando a sua análise acima dos seus preceitos e mesmo rejeitando radicalmente a
moralidade do romance e a filosofia de vida do escritor, por conta da sua formação católica,
considera Gabriela, cravo e canela o melhor dos romances já escritos por Jorge Amado, ao
não tecer essa trama “dentro dos moldes rígidos do realismo socialista.” Segundo o crítico,
nessa narrativa,
Amado consuma sua arte ao saber condimentar seriamente o social com o
literário, sem se deixar levar pelo “estetismo”, nem pelo “sociatismo”,
reconhecendo-lhe a plena maturidade, síntese da farta produção e de uma
fecunda carreira, cuja qualidade maior é precisamente, não ser uma obra de
finalidade política, enquadrada dentro dos moldes rígidos do realismo
socialista, nela podendo Jorge Amado criar a história de Gabriela, como um
poeta e não como um homem de partido.81
Embora não se coloque como defensor das sistematizações teóricas e se considere um
leitor mais consciente, Athayde afirma exercer a crítica como
uma atividade intelectual e não afetiva, filosófica e não apenas psicológica,
objetiva e não puramente subjetiva, porém não como uma atividade
79
Cf. Malhu OURO PRETO. A moça do ano. Shopping News, Rio de Janeiro, dez. 1958.
Id.; Ibid., 1958.
81
Cf. Tristão de ATHAYDE. Gabriela ou o crepúsculo dos coronéis. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1959.
80
47
judicativa, mas testemunhal, [porque] nada se faz, especialmente em crítica
literária, sem o calor da emoção.”82
Contudo, pelas declarações e textos críticos produzidos, observa-se que esse notório
crítico elege seu ofício como uma atividade criadora, ensaística, na qual o subjetivismo das
avaliações e o “calor da emoção” predominam.
Segundo Athayde, Gabriela, cravo e canela representa uma libertação das amarras da
política cultural do Partido Comunista, refletida na poesia que perpassa pela obra. Recorrendo
a imagens bíblicas, que metaforizam o recomeço da vida e o ideal de libertação, saúda
calorosamente o romance, é “novidade alvissareira”, por ser um “livro que traz, como uma
pomba da arca de Noé, um ramo de folhas verdes no bico, mostrando que o dilúvio começa a
baixar e o ‘sol da liberdade’ [começa] a iluminar uma terra onde renascem talvez a vida e a
liberdade.” 83
2.2 A primazia do estético
Em um número expressivo de críticos de rodapé, há o destaque para o valor estético,
sendo visto como um aprimoramento da ficção do escritor. No jornal O Globo, na seção Porta
de Livraria, que noticiava os principais fatos da vida literária e livreira do país, um mês após
o lançamento do romance, Antonio Olinto (1958), professor e crítico literário, editor da seção,
publica uma resenha crítica sobre Gabriela, cravo e canela. Como crítico militante, Olinto
expõe seu sentimento acerca dessa narrativa: “O que me espanta, em primeiro lugar e me
agrada, nesse romance de Jorge Amado é a sua largueza de concepção.”84 Admitindo que há
muito o escritor se preparava para escrever um livro como Gabriela, cravo e canela, Olinto o
enquadra numa terceira fase:
Seus romances da primeira fase, de O País do Carnaval até São Jorge dos
Ilhéus, mostravam um talento indisciplinado, ainda não contente consigo
mesmo. Ingressou depois, o romancista numa tentativa de contenção, fixandose num cartesianismo que por veemente que fosse, se prendia ao cerebral [...].
82
ATHAIDE,[19 ] apud NEGRÃO, Maria José da Trindade. Tristão de Athayde e o problema da crítica.
Estudos de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, n. 1, 1985. p. 60.
83
Cf. ATAYDE, 1959.
84
Cf. Antonio OLINTO. Gabriela, cravo e canela. O Globo, Rio de Janeiro, 6 set. 1958.
48
Foi a época de Seara Vermelha e de Os Subterrâneos da Liberdade. Agora
me parece que Jorge Amado domina uma terceira fase. 85
Apontando para o “talento indisciplinado” do escritor até São Jorge dos Ilhéus (1944), o
crítico condena o seu “cartesianismo,” por escrever sob as ordens do Partido, leia-se,
orientado pelas premissas do realismo socialista, a partir de Seara Vermelha (1946) até
Subterrâneos da Liberdade (1954). Deixa claro que a ordenação entre as fases não significa,
em princípio, uma superioridade de uma etapa sobre a outra, apenas um critério cronológico,
mas afirma que “não se pode deixar de ver em Gabriela, cravo e canela, uma superioridade
das qualidades demonstradas no período de Mar Morto.” 86
Olinto destaca o humor desse romance, “a marca da alegria”, assim como farão muitos
críticos em seguida. “Raras vezes deparei com um romance tão alegre, [onde] os lados
ridículos da vida provocam, aí, um sorriso que é quase um riso.”87 Para isso, contribuiu
fortemente o modo como o romancista vê a sua gente, como a apresenta, e a vivacidade da
linguagem que lhe empresta. O outro aspecto destacado pelo crítico é o trato da liberdade
sexual. Para ele, Gabriela, cravo e canela “é um livro cujos personagens são de fato homens e
mulheres. A condição sexual de cada um não se deslinda da narrativa porque dela faz parte
essencial.” 88
Não se verifica nesses textos da crítica de rodapé uma referência explícita à teoria da
carnavalização de Mikhail Bakhtin, o que vai se constatar entre os textos da chamada crítica
especializada.
89
Para alguns críticos de rodapé, a inovação de Gabriela, cravo e canela
advém justamente da incorporação do riso, recurso que, para Bakhtin, vem a ser a
“ridicularização da atualidade vivente,” pelo poder que o riso tem de
destruir o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, [de
colocá-lo] em contato familiar e, com isto, prepara-o para uma investigação
absolutamente livre. O riso é um fator essencial à criação dessa premissa da
intrepidez, sem a qual não seria possível a compreensão realística do
mundo. 90
85
Id.; Ibid.; 1958.
Id.; Ibid.; !958.
87
Id.; Ibid.; 1958.
88
Cf. OLINTO. Op. cit., 1958.
89
José Paulo Paes na obra De ‘Cacau’ a ‘Gabriela’: um percurso pastoral, que compõe o conjunto das críticas
acadêmicas analisadas, traz Bakthin, quando analisa, no romance Gabriela, cravo e canela, a representação do
“homem do povo” cuja imagem, segundo Bakthin, relaciona-se freqüentemente a uma descrição particular da
comida, da bebida, do amor , da procriação.
90
BAKTHIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a Teoria do romance). 3 ed., São Paulo: UNESP,
1993. p.413-414.
86
49
De acordo com Bakhtin, a presença do riso no romance insere esse gênero literário
numa linhagem cômico-popular, considerando essa nova modalidade a primeira etapa de uma
série de transformações pelas quais o gênero romance passou. Para o pensador russo, em tal
linhagem,
não se trata daquele riso que se engendra por uma irritação passageira,
biliosa, doentia [...] não se trata tampouco daquele riso leve que se usa para
o entretenimento de festas [...] mas trata-se daquele riso que se desprende
inteiramente da natureza ridícula do homem, desprendendo-se dela porque é
o fundo da mesma que encerra um manancial que jorra sem cessar.91
Ao incorporar o riso em suas narrativas, a partir de Gabriela, cravo e canela, Amado dá
continuidade a uma noção de popular inspirada nos valores, crenças e cultura dos segmentos
sociais de baixo poder aquisitivo, resistentes aos valores de uma racionalidade ocidental. No
romance, o riso representa uma celebração à vida, à liberdade vislumbrada por Amado, após
um período de acorrentamento partidário, de uma produção literária dogmática, e também
uma forma encontrada pelo romancista de dizer “muitas coisas [que] revoltariam os homens
se fossem apresentadas na sua nudez: porém se aclaradas pela força do riso, elas trazem
conciliação para a alma [...],” 92 como diria Bakthin
A presença do humor nessa narrativa será inclusive um indicador da nova fase do
projeto literário de Jorge Amado, embora nem todos os críticos a ele recorram. O crítico e
escritor baiano Hildon Rocha (1958), por exemplo, concorda que o romancista inaugura uma
nova fase e chama a atenção da crítica, numa resenha intitulada “Gabriela, um novo
caminho”, veiculada no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para que haja cautela nas
análises, com o intuito de “não enveredar pelos rumos da ênfase em matéria de apreciação ou
do entusiasmo crítico convencional.” Para Rocha,
desde quando Jorge Amado com Gabriela, inaugura uma fase não
circunstancial ou incidental, mas uma fase que apresenta um jeito de definição
de tendências que contrastam com a posição que dele conhecíamos com
relação não só a arte como também com relação à vida [e,] numa coincidência
com os primeiros fios brancos é tomado por um contagiante sentimento de
conciliação artística com o mundo burguês tão condenado em seus romances
da juventude.93
Entendendo a postura de Amado como conciliadora, numa comparação com sua
produção textual anterior, Rocha cobra outra perspectiva de avaliação e julgamento,
91
Ib.; Ibid.; p. 434.
Id.; Ibid.;. p. 434.
93
Cf. Hildon ROCHA. Gabriela, um novo caminho. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30, ago.1958.
92
50
advertindo a crítica a não se restringir ao “ângulo artístico, ou tecnicamente literário”, à
sobriedade do seu tom ou a alterações na forma. Ainda, devem os críticos superar a análise de
processos pessoais que ressurgem na ficção do criador de Jubiabá e de outros romances que
tematizam a luta de classes. Frente a Gabriela, cravo e canela, diz o crítico, tem-se “uma
quase subversão das raízes psicológicas desse ficcionista [e] isso significa uma mudança de
rumos, uma nova posição (como artista é claro) em face da problemática humana e social em
torno da qual tem gravitado a sua obra.” 94
De acordo com Rocha, Amado abandona o psicologismo extremista que plasmava
heróis uniformes e homogêneos nos sentimentos, como o fazia em obras anteriores, e
apresenta uma visão multiforme das fraquezas, das grandezas, dos defeitos e qualidades dos
humanos, apesar de ainda lhes impingir uma feição caricatural. O crítico atribui tal fato às
reminiscências de Eça de Queiroz ou de naturalistas inclinados à sátira ou ao humor carregado
como Raul Pompéia, Dickens e outros pintores irônicos de caracteres e situações, comparação
pertinente desde quando o próprio Jorge Amado confessa ter sido um assíduo leitor de
Dickens. 95
Segundo Rocha, em Gabriela, cravo e canela está explicita a negação do sentimento e
das tendências revolucionárias, e sem qualquer afinidade ideológica com o realismo-socialista
de que Jorge Amado deu uma exegese esclarecedora ao publicar Subterrâneos da Liberdade.
“O que este romance revela, [Gabriela] em verdade, é um novo caminho em Jorge Amado –
caminho que começa com o riso acolhedor de Gabriela.” 96
O reconhecido crítico M. Cavalcanti Proença (1958), por sua vez, na resenha Senhora
Gabriela, na cidade das letras, publicada no Jornal do Brasil, sublinha o avanço da
linguagem e da técnica, considerando que em Gabriela, cravo e canela Jorge Amado volta ao
regional e ao estilo característico dos romances anteriores. Para o crítico, Amado “vem logo
mostrando muito progresso de técnica; na estrutura do livro não se percebem os barbantes que
acionam os mamulengos e a linguagem de agora é muito tensa e ajustada ao assunto.”
97
Ao
destacar que o romancista libertou-se dos “barbantes que acionam os mamulengos”,
Cavalcanti Proença refere-se ao sectarismo dos marxistas, que direcionava a produção cultural
dos militantes do Partido Comunista.
Ressalta-se agora um novo elemento no romance, a personagem Gabriela, que domina o
leitor de uma vez, e, ao entrar em Ilheús, afirma Cavalcanti Proença, “ela não tomou conta
94
Id.; Ibid.; 1958.
Cf. RAILLARD, 1990. p. 274.
96
Cf. ROCHA, 1958.
97
Cf. M. Cavalcanti PROENÇA. Senhora Gabriela, na cidade das Letras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1958.
95
51
apenas do bar de Nacib, dos sonhos dos homens, das ruas e praias da cidade. Em verdade,
estava entrando na cidade das letras. E conquistando lugar permanente entre as personagens
mais autênticas do romance brasileiro.” 98
Sem ignorar a força da cultura popular na narrativa de Jorge Amado, Proença considera
que o uso de redondilhas e do tom irônico, meio arcaizante dos títulos dos capítulos do
romance, tanto pode ser imitação dos quinhentistas, João de Barros, por exemplo, como
fidelidade aos livros de estória popular. Admitindo que o tom da oratória, característica de
romances anteriores, se arrefeceu em Gabriela, cravo e canela, Proença critica o prazer de
Amado em jogar com as palavras em trechos ritmados de “fácil colheita” apontados na fala da
própria Gabriela, que tem uma marcação definida pela ênfase do “não” final e do infinitivo
sempre destacado, como exemplo: “quero não,” “pimenta morder.” Para o crítico o
romancista já apresenta “uma linguagem mais depurada, concordante com as cenas, as
paisagens, as pessoas, contensão que não suprime a poesia impressa nas páginas do
romance.”99
O crítico baiano Afrânio Coutinho (1959) publica uma resenha no Correio Paulistano,
considerando que Gabriela, cravo e canela coloca Jorge Amado numa posição ímpar na
literatura nacional, não só pela maturidade literária alcançada com o romance, como também
pela consonância e ajustamento do escritor com o público. Coutinho declara que “por mais
que eu queira evitar a exclamação, não é possível fugir-lhe: o livro é de extraordinária beleza!
[...] Desde a felicidade do título, desde os saborosos subtítulos; desde a
arquitetura singular; até a língua, a caracterização, o enredo, a narrativa, o
lirismo, tudo se harmoniza no romance para fazer dele com sua inesquecível
Gabriela, uma verdadeira obra-prima, a exigir da crítica uma análise de
fundo.100
Coutinho destaca no romance “a língua, a caracterização, o enredo, a narrativa, o lirismo,”
cobrando da crítica uma “análise de fundo”, a saber, um estudo imanente do texto, como
propõe a Nova Crítica. Ao investir Gabriela, cravo e canela de conotações humorísticas,
distanciado do engajamento político-partidário das obras anteriores, o crítico baiano
reconhece e aprova a mudança e, em defesa do romance, pela primazia do estético, entende
que “o recuo político não significa uma involução estética [pois] as coisas não são tão
geométricas como pretende o realismo socialista,” 101 que põe em segundo plano o estético em
98
Id.; Ibid.; 1958..
Id.; Ibid.; 1958.
100
Cf. Afrânio COUTINHO. Gabriela, cravo e canela. São Paulo, Correio Paulistano, 6 maio. 1959.
101
Id.; Ibid.; 1959.
99
52
favor do ideológico.
Ganha destaque na análise de Coutinho o sucesso editorial do romance – “70.000
exemplares vendidos é um fato sem precedentes em nossa literatura,”
102
o que comprova a
imensa popularidade do escritor e impõe “uma pausa para meditação,” um questionamento:
“Que significa isso?” Para o crítico, tal êxito reflete tanto
uma maturidade literária, de quem vive no meio do seu “povo”, a auscultarlhe os anseios, a maneira de falar, captando suas lendas e mitos, como um
amadurecimento do público leitor, ao se identificar com o escritor, passando a
comungar, ambos, dos mesmos ideais, dos mesmos motivos, na mesma
expressão. 103
Defensor da autonomia da arte, Coutinho vê na narrativa de Amado uma “literatura
livre, peculiar, com personalidade própria,” assim como inconfundível, quando se inspira e é
originária de uma tradição nativa, com uma “língua própria” e com o “falar do povo,”
marcando assim uma identidade nacional. São palavras do crítico:
Eis aqui, de maneira convincente o que pode um grande escritor, fazer com
a língua portuguesa para afeiçoá-la ao temperamento e à sensibilidade
brasileira, tornando uma língua diferente ou veiculando essa língua
diferente do que dela já é. 104
Quanto ao sucesso junto ao público leitor, Coutinho atribui o talento de Amado em falar
a linguagem do outro, a uma “nova experiência que está sendo posta em arte. Graças a artistas
de profunda percepção criadora, recebendo de seu povo a melhor inspiração.”105
Eduardo Portela (1959), crítico baiano, parceiro de Amado, escreve uma resenha sobre
Gabriela, cravo e canela, n’ O Estado de Fortaleza, saudando o escritor, cuja última
publicação se deu em 1954, com a trilogia Subterrâneos da Liberdade: um “dos
acontecimentos mais importantes desses dias literários é, sem dúvida alguma o retorno de
Jorge Amado ao quadro ativo da nossa literatura.”106 Assim como Coutinho, Portela comunga
do ideário da Nova Crítica.
Considerando Subterrâneos da Liberdade um retrocesso, Portela avalia Gabriela, cravo
e canela positivamente, pelo acréscimo na trajetória do escritor e pela confirmação dos seus
méritos novelísticos. Contudo, ao lançar o foco na estrutura dessa narrativa, Eduardo Portela a
denomina de “romance de tipo tradicional,” visivelmente comprometido com o esquema
102
Id.; Ibid.; 1959.
Id.; Ibid.; 1959.
104
Id.;Ibid.; 1959.
105
Id.; Ibid.;1959.
106
Cf. Eduardo PORTELA. Gabriela, cravo e canela. O Estado de Fortaleza, 4 jan. 1959.
103
53
naturalista. Como contador de histórias, de intensa força romanesca, considera que Jorge
Amado está “inteiramente isento da elementariedade que tanto tem comprometido seus
companheiros de ofício, [reconhecendo] que Gabriela, cravo e canela se ressente
visivelmente da falta de densidade.”107
Portela ressalta a incorporação do humor no romance, ao lado das “virtudes estilísticas
mais disciplinadas”. Diferente de Mark Twain, Amado, de acordo com Portela, consegue
resultados surpreendentes por entender que em tal narrativa não há um emprego gratuito desse
recurso. Ao contrário, vem para compor situações, criar e recriar atmosferas, caracterizar
personagens, como é o caso de Nacib e Gabriela, sobretudo o primeiro, pois, segundo Portela,
com esse personagem o romance se enriquece ao trazer a figura do anti-herói, tido por esse
crítico como um “pícaro”:
Nacib é um pícaro, naquele sentido de que o pícaro é o anti-herói, como já
disse com acerto Américo de Castro. Anti-herói sem deixar de ser, à sua
maneira um herói: um herói às avessas. Inclusive a carga de comicidade que
acompanha Nacib o afasta, inteiramente, de uma atitude que pudesse ser
velada ou deliberadamente heróica. 108
Portela avalia a atitude picaresca como típica da alma popular brasileira e considera que,
na obra de Amado, e especialmente em Gabriela, cravo e canela, essa atitude tem o poder
extraordinário de extrair heroicidade do anti-herói, como é o caso de Nacib, o que permite
uma profunda aproximação e identificação da literatura produzida por Amado com o gosto e
as aspirações do povo.
Contudo, No entendimento desse crítico, Gabriela, cravo e canela, acrescido de novos
valores, ampliados de romances anteriores como Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim,
“é ainda uma crônica ou um documento social.”
Em resenha publicada no jornal carioca Gazeta de Notícias, na secção Leitura de Ofício,
o crítico H. Pereira da Silva (1960) avalia que, em sua produção anterior, Amado teria se
descuidado da forma e da expressão. Ainda que não encontre em Gabriela, cravo e canela “a
pujança dos grandes romances,” reconhece que aí o escritor “apresenta-se mais cuidadoso,
correto e elegante em relação aos demais volumes lançados anteriormente, [mas] ainda assim
o seu estilo carece de certa polidez.”109 Chama a atenção para um paradoxo: a existência de
qualidades artísticas, inegáveis, segundo o crítico, e a ausência de burilamento, ao se manter
107
Id.; Ibid.; 1959.
Id.; Ibid.; 1959.
109
Cf. H. Pereira da SILVA. Gabriela, cravo e canela. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 maio, 1960.
108
54
“ciosamente em estado bruto, disso fazendo alarde.”110
Pereira da Silva também sublinha o riso em Gabriela, cravo e canela, não dentro do
diapasão de Portela, mas comparando o tratamento que Amado lhe confere ao mesmo de
Daumier, na pintura francesa: o riso rouba ao assunto, por mais comovente que seja, a
seriedade percebida. E não seria essa a estratégia escolhida por Amado para falar das mazelas
da sociedade de Ilhéus, do país e do sofrimento do seu povo?
Outra faceta do romance que o crítico ainda realça, e que “implica em considerações
mais profundas,” diz respeito ao sexo, à sensualidade que, desde os primeiros romances,
sempre “serviu de isca” a Jorge Amado. Afirma Pereira da Silva: “quem quer que tenha lido
um livro de Jorge Amado poderá até esquecer do título [...] exceto da impressão um tanto
libidinosa que ele deixa.”
111
Reconhece um Amado mais comedido nesse romance, no que
considera um palavreado livre dos personagens. Em relação a Gabriela, afirma que o escritor
lhe atribui “poderes quase mágicos na cozinha [mas], onde ela é mágica mesmo é na cama
[...].”112 Tal imagem é reiterada posteriormente pela mídia, quando da adaptação desse
romance nos anos 1970, alvo da crítica feminista.
Na resenha de Pereira da Silva, laivos impressionistas têm espaço, ao tempo em que
ensaia uma avaliação numa perspectiva sociológica. Para o crítico, Amado, protegido pelo
realismo de suas obras, ainda não foi estudado “interiormente”. Em seu entendimento, a
crítica tem se limitado “a examinar apenas a forma exterior dos seus romances”. Ao contrário,
deve-se “conhecer a paisagem interior de um escritor, [de Jorge Amado] que joga nas suas
páginas tantos aspectos exteriores!” Reivindica, portanto, uma análise crítica que não se limite
a comentar características, defeitos ou qualidades, e questiona os prêmios conferidos ao
romance, por não encontrar em tal produção qualquer “evolução espiritual.”
Tendo publicado essa resenha dois anos após o lançamento desse romance, Pereira da
Silva confessa o desconforto gerado entre aqueles que se arvoravam a tecer comentários
críticos desfavoráveis ao romance, desde quando “os louvores, as edições e os prêmios
sucessivos de Gabriela, cravo e canela colocam a crítica em posição estratégica neste
combate de elogios cruzados que gastam com facilidade a ‘munição’ nem sempre farta da
Editora Martins.” 113
Fato notório desde quando, a partir de 1958, há um renascimento de Jorge Amado em
colunas literárias que, desde Cacau, lhe eram hostis, revelando uma reaproximação com os
110
Id.; Ibid.; 1960.
Id.; Ibid.; 1960.
112
Cf. SILVA, 1960. Op. cit., 1960.
113
Id.; Ibid.; 1960.
111
55
seus mais severos antagonistas. O Noticiário Cultural da revista BBB (01/1959), ao fazer um
balanço literário do ano de 1958, notifica que em todas as resenhas salta logo à vista a
presença da moderna literatura baiana no campo da ficção, do ensaio e da crítica no cenário
das letras brasileiras. Na relação dos melhores desse ano, selecionados pelo escritor Luiz
Santa Cruz, do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, o escritor Adonias Filho revelou-se o
melhor colunista de literatura do ano e “Jorge Amado, autor do melhor romance documentário
do ano, o já famoso Gabriela, cravo e canela.”
Não só nos jornais e revistas o romance e o autor ocuparam a atenção da crítica. Com
Gabriela, cravo e canela, Amado alcança um reconhecimento dos salões literários e rodas
intelectuais que antes se mantinham inteiramente fechados para ele. O romance acaba por
descerrar as portas das instâncias de avaliação da produção literária que se mobilizam para
recebê-lo, chegando Jorge Amado a ser escolhido como o Personagem Literário do Ano de
1958, provando que a intolerância e as antigas restrições que existiam por parte de uma facção
crítica se rende aos méritos literários do autor, demonstrados em Gabriela, cravo e canela.
Por conta do sucesso de público e aprovação de um grande contingente da crítica, o que
deu ao romance e ao autor uma excessiva visibilidade, Jorge Amado foi agraciado, no ano de
1959, com vários prêmios e honrarias:
114
Prêmios Machado de Assis e Luísa Cláudio de
Souza, concedidos pelo Instituto Nacional do Livro; o Prêmio Paula Brito, concedido pela
Prefeitura do Distrito Federal; pela Câmara Brasileira do Livro foi agraciado com o Prêmio
Jabuti; e o Pen Club do Brasil concede a Jorge Amado o Prêmio Carmem Dolores Barbosa,
ingressando o escritor, em 1961, na Academia Brasileira de Letras.115 Seguindo uma trajetória
laureada de prêmios, medalhas e honrarias, em 1967 Amado é indicado pela União Brasileira
dos Escritores para o Prêmio Nobel da Paz, e em 1970, para o Prêmio Juca Pato como
Intelectual do Ano.
Antes de Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado tinha recebido, no Brasil, um único
prêmio, datado de 1936: o Prêmio Graça Aranha. Desde então, e até 1959, uma única vez foi
laureado, internacionalmente, em 1951 com o Prêmio Stalin da Paz. O lançamento do livro,
segundo Alfredo Wagner Berno de Almeida, “sublinha a recepção favorável por parte de
inúmeros críticos [...] que usufruem de uma intimidade com os cânones destas importantes
114
Cf. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n.3. 1997. p. 17-21.
A concessão desses prêmios é feita sem maiores controvérsias. As restrições que estes círculos letrados
faziam ao escritor são abrandadas e convertidas numa aceitação quase unânime de seus méritos literários.
Cf.Alfredo Wagner Berno de ALMEIDA. O romance picaresco e a consagração máxima ou reconciliação. In: -Jorge Amado: política e literatura; um estudo sobre a trajetória intelectual de Jorge Amado. Rio de Janeiro:
Campus, 1979. p. 246-274..
115
56
instituições consagradoras.” 116
Quando do lançamento da primeira edição de Gabriela, cravo e canela nos Estados
Unidos, em 1962, o crítico Wilson Martins (1962) escreve para o Estado de São Paulo uma
resenha intitulada Clove and Cinamon, na qual considera o romance “um dos prováveis ‘bestsellers’ estrangeiros do ano.” Segundo Martins, que entende o ofício do crítico como uma
“tarimba literária”, e não como algo sublime da criação, esse romance reúne “todas as
condições de sucesso comercial, mas também, e é isso o que importa na história do romance
brasileiro, as melhores condições de sucesso crítico.”
117
Em sua apreciação, esse é o livro
mais bem escrito por Amado, “um livro maduro, em que uma experiência de outra ordem – a
experiência literária – condensa e resume as aquisições positivas de toda a sua carreira.” 118
Na visão do crítico, é o romance na sua expressão mais convencionalmente e por isso
mesmo, mais admiravelmente literário, distante de um autor que, por seguir a orientação do
Partido, escrevia “sem literatura.” Com tal publicação, marcada pela imprevisibilidade, tem-se
o “resultado material da evolução do escritor.” Gabriela, cravo e canela representa, para
Wilson Martins, o resumo de toda a produção anterior de Jorge Amado, uma síntese das suas
qualidades com a eliminação das deficiências mais ostensivas.
Ganham destaque nessa avaliação o estilo e a estrutura da narrativa, na qual se tecem
elogios à transposição para o cenário urbano de um tema já tratado em Terras do Sem Fim,
cuja trama se desenrola na zona rural. Martins censura a prolixidade do romance, tida como
um traço da escrita de Jorge Amado ainda não superado, mas admitindo a dimensão
romanesca que, de outra forma, não teria. Para Martins, a passagem do rural para o urbano só
adquire a plenitude da sua significação se percebermos que são os costumes e não a
economia, os elementos sociais que realmente se modificam. E, para o crítico, “isso é muito
pouco marxista.”
Martins concorda com a parcela de críticos que censuram Amado por ter produzido uma
literatura atrelada ao dogmatismo marxista. Em sua avaliação, afirma que
se o romancista acabou por sobrepujar o ideólogo, é porque, justamente, a
ideologia era, nele, uma camada meramente superficial e de resto, desprovido
de aquisições supervenientes realmente substanciais. O paradoxo consiste em
provar com Gabriela, cravo e canela que a ideologia pouco tem a fazer no
romance [...]. 119
116
Id.; Ibid.; 1979. p. 264.
Cf. Wilson MARTINS. Clove and cinamon. O Estado de São Paulo, 6 out. 1962.
118
Id.; Ibid.; 1962.
119
Id.; Ibid.; 1962.
117
57
Com a publicação de Gabriela, cravo e canela, Wilson Martins conclui que Jorge
Amado veio a entender que o realismo socialista não abarca a realidade como uma dinâmica,
em sua complexidade e heterogeneidade.
Recaindo o foco sobre a personagem Gabriela e o seu idílio com Nacib, o crítico Wilson
Martins considera que Jorge Amado, no romance, compreendeu que as transformações sociais
não se dão de forma linear e previsível. Nacib e Gabriela, por serem imigrantes, representam
no romance o elemento novo, aquele que vem de fora, o que abre brechas para a análise do
rompimento da homogeneidade e linearidade das transformações sociais pretendidas pelos
marxistas. Para o crítico, Jorge Amado introduz na homogeneização psicológica da sociedade
tradicional em que se inserem os personagens um fator de diversificação. E por que não dizer,
um fator de encantamento.
2.3 O abandono do ideológico
É notório que o romance Gabriela, cravo e canela engendrado no decurso de uma
reviravolta no pensamento de um romancista já consagrado, tenha se tornado, desde a sua
publicação, objeto de polêmica no seio da crítica literária brasileira. Uma parcela da crítica
exige do escritor uma incondicional fidelidade aos princípios do realismo socialista, para ela
alijados do processo de construção do romance, enquanto outra aplaude a primazia do
estético. Delineia-se assim toda uma série de interpretações elogiosas e sanções, impressões e
observações controvertidas que assinalam as modificações que se supõe terem sido marcantes,
como aquelas consideradas como sobrevivências de pontos de vista anteriores do escritor.
Estabelece a crítica uma relação entre a qualidade artística do romance e as novas
concepções políticas do autor, e, como conseqüência, o aprimoramento literário ou o descuido
das obras anteriores passam a ser explicados pelo rompimento com os critérios do realismo
socialista.
As reflexões do crítico Paulo Dantas (1961), expressas no artigo Os caminhos de Jorge
Amado, escrito para a Revista Brasiliense,120 favorecem a compreensão da recepção de Jorge
Amado pela crítica de viés marxista. Com certa ironia, ele declara que
120
Fundada por um grupo de intelectuais de esquerda, em 1955, a Revista Brasiliense segundo Albino Rubim foi
uma publicação político-cultural orientada pelo marxismo e pelo nacionalismo independente e divergente das
teses do PC. Criada com o propósito de apoiar a “renovação e os progressos da cultura”, nela são encontrados
58
falar de Jorge Amado contra ou a favor agora está em moda. Direi mesmo
que isto é um dos novos e atuais modismos da vida intelectual brasileira, no
momento mais preocupada com a “vida social” do que mesmo com a
verdadeira literatura [...].”121
Como verdadeira literatura, Dantas refere-se àquela produzida pelo romancista, anterior
ao romance Gabriela, cravo e canela. Não vendo nenhum “amadurecimento” literário em
Amado, senão uma “acomodação”, uma perda substancial nas qualidades mais “primitivas” e
“autênticas” do romancista, Dantas louva o êxito do romance pela perspectiva de venda que
abriu junto ao público leitor brasileiro. Faz restrições ao seu “caráter artístico” e à “dose
excessiva de picaresco que sempre lhe pareceu uma fuga em face dos problemas reais e
populares que o romancista não quis enfrentar, isto por comodismo e habilidade do que
mesmo por falta de captação e vibração.”122
Ressaltando o caráter de “autêntico” na obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de
Jesus, destaca-lhe o testemunho direto que em seu “texto-reflexo” só faz fortalecer a causa das
“massas populares.” Quanto a Jorge Amado, o crítico se esforça para retirá-lo do grupo dos
escritores progressistas, por considerar que o romancista “frustrou seus leitores mais ardentes,
mais jorge-amadianos,”123 como se Amado tivesse perdido a sua substância revolucionária
ao tornar ausente os interesses do “povo” e o partido proletário da narrativa do romance.
Num outro diapasão, Nelson Cerqueira, pesquisador e estudioso da obra amadiana,
analisa a política do Partido Comunista e o realismo na obra de Jorge Amado. Afirma
Cerqueira que o romancista se manteve fiel à política do Partido Comunista e às suas
proposições e definições relativas à criação artística, em especial à literatura. Ao analisar a
recepção crítica do autor, discorda de críticos que consideram que ela tenha sido dividida,
arbitrariamente, em fases distintas:
os não marxistas vêem duas fases a) de 1931-1958 que eles denominam de
panfletarismo [com exceção de Terras do sem Fim] e b) de 1958 ao presente
[...] fase de criatividade instável [...]. A crítica brasileira de esquerda tem
dividido a obra de Amado em 3 fases: a) o realismo proletário da década de
30, b) o crítico realista e ou/realista socialista do período de 40 até 1958 e c) o
que eles chamam de escritor burguês e comercial de após 1958 interessado na
artigos de crítica literária, estudos históricos, filosóficos e sociológicos. Foram editados 51 volumes
bimestralmente, durante 9 anos.
121
Cf. Paulo DANTAS. Os caminhos de Jorge Amado. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 37, set / out, 1961.
122
Id.; Ibid.; 1961.
123
Cf. DANTAS, Op. cit., 1961.
59
confecção de romances “best-sellers”, que narram estereótipos exóticos da
classe operária da Bahia.124
A critica marxista, e seu rígido conceito de literatura e arte, a serviço do Partido e do
social, não acata o romance Gabriela, cravo e canela. No entanto, Cerqueira tenta
demonstrar, no estudo que faz dessas tendências, que existe uma coerência ideológica a
permear a produção literária do autor, coerência oriunda e baseada nas diretrizes do Partido
Comunista da União Soviética. Refere-se aos traços de identidade, principalmente a partir de
Gabriela, cravo e canela, entre a obra de Amado e a estética do realismo socialista, ao afirmar
que este sempre defendeu como elemento fundamental para validação da arte, os aspectos
ligados ao folclore, às expressões da arte popular.
A literatura de cordel, a preocupação com as classes menos favorecidas, a crítica às
classes dominantes, seja ela sócio-política, quanto satírica ou humorística, presentes no
romance Gabriela, cravo e canela, andou, segundo Cerqueira, passo a passo com a
redefinição dos conceitos literários do Partido, com as diretrizes instituídas por Krushev,
expostas no discurso durante o 20° Congresso do Partido Comunista, em 1956. Nesse
momento, delineou-se a nova posição do Partido, no que tange às questões estéticas, à
literatura e as artes. Cerqueira retoma a questão da reabilitação da obra de Bakthin pelo
Partido, que volta à cena com o livro Rabelais e o seu mundo, preconizando que a língua oral,
as tradições dos povos, os festivais, as atitudes carnavalescas, os prazeres sensuais, o riso e a
liberdade, devem ser utilizados como instrumentos de oposição ao mundo oficial e às classes
dominantes.
O momento de maior intencionalidade e radicalização, tanto na definição quanto na
realização da política cultural, vivido pelo Partido Comunista Brasileiro corresponde ao
período de 1950 a 1956, segundo Rubim. Nesse período, “as características constitutivas do
paradigma constituído em temporalidade anterior, aprofunda em uma intencionalidade
política de combate a cisão PC e arte/literatura moderna nos anos 50, no Brasil.”125 Esse
esforço sistemático na instrumentalização da cultura e, em especial na literatura, sob a
hegemonia do realismo socialista, está inscrito na análise que o crítico e militante marxista
Jacob Gorender faz do romance Gabriela, cravo e canela.
Assim como Paulo Dantas, Gorender considera a transformação de Jorge Amado como
um abandono do ideário que defendia o que leva o escritor a desprezar “os deveres da
124
Cf. Nelson CERQUEIRA. A política do Partido Comunista e a questão do realismo em Jorge Amado.
Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1988. p.8.
125
Cf. RUBIM. Op.cit., p.225.
60
literatura revolucionária” e, por conseguinte, a uma “mudança de direção ideológica.” No
entender de Gorender,
não faltou quem louvasse quando do aparecimento de Gabriela, a superação
por Jorge Amado do esquecimento tão marcante em Subterrâneos da
Liberdade. E de fato seria de louvar tal superação, se efetivasse sem mudança
de direção ideológica. Foi todavia o que não se verificou.126
No artigo publicado no jornal Novos Rumos, cujo título sinaliza o seu teor, As novas
tendências na obra de Jorge Amado, Gorender analisa o romance Gabriela, cravo e canela,
afirmando que essa narrativa comprova o “abandono da inspiração revolucionária” que havia
levado o romancista, anteriormente, a criar uma obra de cunho social, sintonizada com as
legítimas aspirações populares. Por considerar que em Gabriela, cravo e canela há uma
visível perda do sentido revolucionário, Gorender atribui essa perda ao afastamento de Jorge
Amado dos princípios que regem o Partido e a deserção das fileiras da militância política que
levaram o romancista a desprezar as lutas populares passadas para um plano secundário na
narrativa do romance. Certamente, Gorender considerou que Jorge Amado tenha se afastado
do exercício e da função atribuída por Stalin aos escritores comunistas, a de serem eles os
“engenheiros da alma humana.” 127
Ao largo dessas especulações, Jorge Amado afirma que
tudo isso é uma tolice incomensurável.Mas perdura até hoje: as duas obras, a
do início revolucionária, denunciando a injustiça social, e a outra. Não, minha
obra é uma unidade, do primeiro ao último momento. Só se pode dizer que
existe, no início, uma profusão do discurso político, correspondendo ao que
eu era então. 128
E quanto ao romance Gabriela, cravo e canela, o romancista confessa:
Gabriela aparece como uma etapa clara de uma outra época em minha obra.
Acho que ela é clara, mas não no que se refere ao abandono do discurso
político [...] Do meu ponto de vista, nos modestos limites da minha obra, foi a
criação que não parou de se desenvolver, até meu último livro. 129
126
Cf. Jacob GORENDER. As novas tendências na obra de Jorge Amado. Novos Rumos, São Paulo, 28 jul., a 3
ago., 1961.
127
ZHDANOV, [19 ]., apud. BANDEIRA, Moniz. O marxismo e a questão cultural. In: TROTSKY, Leon;
literatura e revolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 15.
128
AMADO, 1990 apud RAILLARD, 1990. p. 266.
129
AMADO, 1990 apud RAILLARD, 1990. p. 267.
61
3 GABRIELA, “SENHORA DAS LETRAS”... : O QUE DIZ A CRÍTICA
ESPECIALIZADA?
...entra ano e sai ano, aguarda-nos mais um romance de Jorge
Amado. Há, cada vez mais, trechos previamente repetidos;
percebe-se que são três ou quatro versões de um mesmo
episódio para seleção e aperfeiçoamento num único final, que
nunca aparece. Cada vez mais, há menor elaboração artística, a
par da fórmula pessoal infalível que é o reforçamento da
mitologia baiana.
Walnice Galvão, Saco de Gatos. 1976.
Em termos literários, acho que muitas vezes a crítica
universitária exigiu dele [de Jorge Amado] alguns aspectos que
não faziam parte da sua proposta estética nem de seu pacto com
o leitor. Por exemplo, uma ironia sutil como as de Machado ou
Graciliano, uma recriação da linguagem como a de Rosa, uma
acuidade psicológica como a de Clarice. Tais cobranças
revelam lacunas, mas não são justas porque não fazem parte
das promessas implícitas do autor a seus leitores.
Ana Maria Machado, Entrevista a Nordeste Web. 2008.
Enquanto a crítica de rodapé foi exercida de forma diletante, a crítica acadêmica
emerge na tentativa de buscar um rigor analítico e metodológico e uma base institucional que
viesse auferir cientificidade à análise imanente dos textos literários. Dessa busca, um novo
modelo de crítico, antagônico ao modelo impressionista, começa a surgir, a partir dos anos
1950, nascido da “especialização acadêmica” – o crítico acadêmico, fruto do apuramento
formal e disciplinar na abordagem do “fenômeno” literário, abarcado com vigor pelo crítico
Afrânio Coutinho. Essa crítica acadêmica vai ser veiculada através de revistas especializadas,
suplementos literários, dissertações e teses, num momento em que crescem os cursos de pósgraduação no Brasil.
Assim, no conjunto da produção tida como crítica acadêmica sobre Gabriela, cravo e
canela, situada entre os anos de 1970 a 1998, observa-se que os estudos, as avaliações e os
julgamentos centrados no valor literário do romance, na mudança de rumo do projeto literário
do autor, nas suas opções político – ideológicas vão cedendo lugar às investigações sociais,
históricas e culturais; e as análises críticas desse período sinalizam para essas mudanças de
foco, apesar da permanência de alguns conceitos avaliativos e questões já abordadas pelos
críticos de rodapé. Para entender melhor essas reorientações, é importante retratar aqui os
contextos de produção da crítica acadêmica.
62
Por volta de 1945 e primeira década de 1950, período que para Afrânio Coutinho
corresponde à terceira fase do Modernismo, a crítica vai adquirindo a consciência exata do
seu papel relevante em meio à criação e aos gêneros literários, assumindo a sua atividade
como reflexiva, com critérios e normas próprias de funcionamento. É o tempo da luta pela
superação do impressionismo e da análise crítica exercida pelos bacharéis e letrados.
Já na década de 1950, Coutinho deflagra uma ferrenha campanha contra a crítica de
rodapé e abre uma frente contra o mais notável dos seus representantes, Álvaro Lins,
signatário de rodapés de crítica literária nos jornais, por Coutinho considerado “um crítico à
moda antiga”. A criação das primeiras Faculdades de Filosofia do país, a partir dos anos
1930, segundo Sussekind,130 pode ser tida como um fato marcante na história da moderna
crítica literária brasileira.
Os formandos do meado de 1940 começam a se contrapor ao perfil e modelo do crítico
diletante, do homem de letras, abrindo espaço a outro tipo de critério de avaliação
profissional, num deslocamento “do rodapé à cátedra”, do jornal para a Universidade, dando
margem a que as resenhas e as crônicas produzidas pelos críticos de rodapé fossem ofuscadas
e substituídas por tratados e ensaios, de linguagem hermética, que nas décadas de 1960 e 1970
proliferam nas universidades brasileiras. Os cursos de pós-graduação em Letras proliferam no
Brasil entre 1960 e 1970, trazendo um movimento de institucionalização, no início da década
de 1960, da disciplina Teoria Literária, que tinha por objetivo retirar a literatura do domínio
das análises impressionistas, conferindo à crítica literária o estatuto de prática científica.
Ao analisar esse período da história da crítica literária brasileira, Benedito Nunes
afirma que
a ascensão da teoria da literatura [...] consolidou e enobreceu o ingresso da
atividade crítica na universidade, convertida em parte considerável da
competência do magistério superior habilitado em Letras, prolífico em sua
incessante produção de monografias, dissertações e teses universitárias, que,
dificilmente computável, em breve saturaria a bibliografia especializada. 131
Uma nova linhagem de críticos, também denominados “críticos-scholars”, passa a
desprezar o modelo tradicional do homem de letras, momento em que, ainda com Sussekind,
as normas passam a regular o exercício do comentário literário, qualificando ou
desqualificando os que a ele se dedicam, agora julgados segundo critérios de “competência” e
130
Cf. Flora SUSSEKIND. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna. In: Papéis
colados. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 1.
131
Cf. Benedito NUNES. Crítica literária no Brasil, ontem e hoje. In: MARTINS, Maria Helena, org. Rumos da
crítica. São Paulo: Editora do SENAC São Paulo: Itaú Cultural, 2000. p. 64.
63
“especialização,” originários da universidade. Como pré-requisito à formação do saber crítico,
o lugar do seu aprendizado passou a ser a universidade.
Por conta de novas tendências interpretativas, a crítica passa a receber influxos, cada
vez mais intensos, das teorias e métodos que aportam no Brasil e passam a legislar sobre o
literário, a exemplo do estruturalismo, da desconstrução, do formalismo russo, tendo ainda a
contribuição do método arqueológico de Michel Foucault, o que provoca, na visão de Eneida
Maria de Souza,
[...] um acirrado debate [onde] pode-se avaliar as múltiplas vertentes da crítica
literária como resultado da atividade universitária que retomava com grande
força as rédeas desse saber. Entre jovens mestres e seus orientadores, discutiase ainda o lugar de produção de um novo conhecimento, causado pela
proliferação de cursos de pós-graduação no Brasil.”132
A crítica do final dos anos 1960 e início de 1970 se viu diante de um impasse: aderir ou
denunciar o hermetismo da academia, ou assumir uma postura mais democrática. Voltar-se
para o sujeito ou repudiar por completo o indivíduo, armando-se com um arsenal de métodos
analíticos inflexíveis. Num processo de repetição, a crítica revive o que Alexandre Barbosa
cunhou de tradição do impasse, ao expressar as ambigüidades da crítica de José Veríssimo,
que oscilava entre a defesa da autonomia da obra de arte e a valorização de sua função
referencial. No interior da própria crítica, segundo Eneida Souza, vivia-se o antagonismo
entre o crítico “amador” e o “profissional”, entre o crítico “humanista e o técnico, o
científico”.
Outros fatores contribuíram para que a crítica vivesse, nesse período,
momentos de impasse. A natureza cada vez mais heterogênea do público, a produção cultural
num ritmo acelerado, a fragmentação do conhecimento e o seu alto grau de especialização
causaram convulsões sociais e políticas, afetando, por sua vez, os alicerces da crítica praticada
no Brasil. Por conseguinte, pontua Eneida Maria de Souza, nos meios acadêmicos brasileiros
desses anos, o conceito de “literariedade” vai sendo isolado por uma nova concepção de texto
e, por conta da descentralização dos valores etnocêntricos efetuada pela Antropologia, as
pesquisas tendem para a releitura de manifestações populares, como os ritos do carnaval, do
candomblé, do cotidiano, para a literatura de cordel, para a música popular, contribuições que
a autora considera valiosas para a revisão do conceito de literário.
Flora Sussekind aponta para a diversidade de posicionamentos dentro do campo crítico
132
Cf. Eneida Maria de SOUZA. Os livros de cabeceira da crítica. In: Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG,
2002. p. 15-16.
64
literário nesse período, representada ainda por Afrânio Coutinho, que primava por uma crítica
esteticista, e Antonio Candido, defensor de uma crítica sociológica, dialética. Sussekind
ressalta que tal diversidade vem desde os anos de 1930 e que, à parte das escolhas
ideológicas, o processo de reconsideração da realidade brasileira, dentro das perspectivas
política e sociológica, modifica o perfil da crítica literária.
Nas décadas de 1960 e 1970, a adoção de uma linguagem sofisticada e hermética pela
produção literária acadêmica acabou criando um divisor de águas entre a crítica, o jornal,
“caixa de ressonância da literatura no país,” e o público. No ensaio Os livros de cabeceira da
crítica, Eneida Maria de Souza considera que o abismo criado entre a produção universitária e
o jornal, espaço privilegiado da crítica de rodapé, deve-se ao fato de
a crítica literária dessa época, interessada, sobretudo em construir
cientificamente seu objeto e obrigada a cumprir as exigências acadêmicas dos
trabalhos de tese, convive de forma contraditória com a excelência de sua
produção e a dificuldade de torná-la acessível à comunidade.133
Confinada entre os muros da própria academia, essa produção transitava,
limitadamente, entre pares, resultando dessa reclusão uma crítica auto-reflexiva, que abre
caminho para um novo personagem, o crítico-teórico, muito bem representado pelos
intelectuais Luiz Costa Lima, Haroldo de Campos e Roberto Schwarz.
As revistas e livros especializados se tornaram os espaços de exposição da crítica em
geral, no entanto, ela se enfraquece pela perda do espaço que lhe era reservado nos jornais.134
Esses não mais representavam, para os críticos universitários, o veículo de sua predileção,
vindo a criar um vazio que só foi preenchido, segundo Tânia Pellegrini, pelos suplementos
culturais ou literários, veículos mistos entre o “rodapé” e a revista literária. Ao contrário do
“rodapé”, integrado ao corpo do jornal, o suplemento, por vir separado do corpo do jornal,
deixa à mostra que o tipo da crítica que aí se faz não é mais aquela que se adapta ao
“médium” para atender ao público leitor. Segundo Pellegrini,
133
Cf. Eneida Maria de SOUZA. Os livros de cabeceira da crítica. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002. p. 16.
134
Segundo Silvino Santiago, esse é um processo antigo, que vem desde o século XIX, e pode ser compreendido
devido às novas formas artísticas proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação
de massa que fizeram concorrência à literatura no jornal, perdendo o espaço em suas páginas por que o “objeto
livro foi-se tornado mercadoria, mais acessível e cada vez mais banal.[...] Até pouco tempo era impensável que
um grupo de intelectuais não se formasse numa redação de jornal. Ali se dava o processo de metamorfose do
grupo de jovens em uma nova geração literária”. Cf. Silviano SANTIAGO. A crítica literária no jornal. In: O
Cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 161.( Humanitas )
65
não é de espantar, que já no início dos anos 70, com a industrialização da
cultura avançando a largas passadas, as coisas tenham se invertido: se antes
eram os críticos acadêmicos que olhavam de soslaio para os críticos de rodapé,
agora são os jornais que, com exceção dos suplementos, passam a não aceitarlhes o “discurso competente [...] linguagem tida como ‘jargão
incompreensível’ e método que inclui uma lógica argumentativa “pesada, sem
os rasgos de intuição e as informações muitas vezes superficiais dos textos
jornalísticos.135
Para Flora Sussekind, tal reversão significou o que ela denomina de “vingança do
rodapé”. Ao analisar a crítica literária no jornal, Silviano Santiago também reconhece que,
apesar da progressiva desliteraturização da imprensa escrita, não se pode culpá-la de um total
abandono da literatura. Segundo esse crítico, tal distanciamento resulta da exigência dos
professores universitários, com formação nas grandes teorias e metodologias
do século 20 (formalismo russo, estilística, new criticism, estruturalismo, etc)
inconformados que estavam com o “impressionismo” (quer dizer com a
superficialidade) do ensaio e da crítica literária escritos por intelectuais sem
formação acadêmica.136
Santiago entende essa reversão como ironia e não vingança. Se por um lado a
insuficiência da produção crítica e ensaística dos críticos de rodapé e sua falta de rigor técnico
foram tão depreciadas pela crítica universitária, por outro, a rejeição sistemática à produção
crítica advinda da academia acarretou um esvaziamento, na imprensa e nos espaços dos
jornais, da contribuição desses críticos militantes. Como exemplo dessa rejeição sistemática,
Silviano Santiago cita a coluna Correntes Cruzadas,
137
assinada por Afrânio Coutinho, na
qual pregava e defendia a tese de ser impossível “tratar o fenômeno literário em termos
puramente jornalísticos como fazia a crítica tradicional [desde quando] o estudo da literatura
em bases rigorosas, inclusive científicas [superava] o velho impressionismo diletante e vazio,
baseado no gosto e na opinião.”138
Os suplementos literários, que desde a década de 1940 davam guarda a uma geração
de intelectuais, podem ser vistos como uma demonstração de que a imprensa não se
posicionava avessa à literatura, afirma Santiago, enquanto nas décadas de 1960 e 1970, como
135
Cf. Tânia PELLEGRINI. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea. Campinas, SP:
Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1999. p. 164.
136
Cf. Silviano SANTIAGO. A crítica literária no jornal. In: O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica
cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.162.
137
Seção do Suplemento Literário do Diário de Notícias, criada por Coutinho em 1948, onde debatia sobre
crítica e teoria literária, educação e ensino. Seção mantida até 1961.
138
COUTINHO [19 ], apud SANTIAGO, op., cit., p.165. Santiago evoca uma entrevista dada por Antonio
Cândido, em 1975, à revista Veja, na qual Cândido lamenta a morte da crítica opinativa e formativa, responsável,
no Brasil de trinta anos atrás, não só pelo sucesso ou fracasso de obras e autores, como pela formação do leitor
médio brasileiro.
66
conseqüência do hermetismo acadêmico, foram sendo ou suprimidos, como o Suplemento
Literário de O Estado de São Paulo, ou “domesticados, transformados em simples páginas de
classificados dos últimos lançamentos das grandes editoras locais.”139
Em paralelo a isso, à medida que os jornais vão aumentando os espaços para resenhas
e textos informativos - em que predominam os best-sellers - e os suplementos vão sendo
“domesticados”, prolifera a figura do intelectual que tenta dar novo enfoque, uma “dicção
nova”, misto da linguagem acadêmica e do estilo mais impressionista, ‘gênero rodapé’,
denominado por Antonio Cândido de “colunismo literário.”
De acordo com Eneida Maria de Souza, esse é um tempo em que a crítica literária
passa a conviver de forma contraditória. A excelência de sua produção a torna inacessível,
não digerida pelo público, o que a coloca na contramão da história, pois, vivendo a sociedade
um processo de crescente espetacularização, passa a carecer de textos que encantem o leitor,
que atendam aos apelos do mercado. Como afirma Sussekind, textos com o charme do “textoque-brilha”, do “texto-que-parece-crônica”, que desperte o interesse do público leitor
brasileiro.
Na visão de Sussekind, o perfil moderno do crítico brasileiro se delineia, no final de
1970, a partir da tensão entre o crítico-jornalista, o de rodapé, o crítico-cronista e o crítico“scholar”, o universitário, ensaísta, o crítico teórico. No meio dessa tensão, convive o desejo,
nesses críticos, de que sua produção intelectual viesse a intervir na vida cultural do país. Essa
geração de ensaístas, saídos de dentro e fora das universidades e que ocuparam as páginas das
revistas e cadernos literários da época,140 representam as grandes referências crítico-literárias
da contemporaneidade:
De dentro da universidade: Antonio Cândido, Walnice Nogueira Galvão,
Silviano Santiago, Heloísa Buarque de Holanda, João Alexandre Barbosa,
Davi Arrigucci Jr. De fora: intelectuais como José Paulo Paes, José Guilherme
Merquior, Sebastião Uchoa Leite, Augusto de Campos. 141
Porém, a linguagem hermética do tratado e mesmo do ensaio, reflexo de uma
exacerbação teórica metodológica impressa à crítica pelo estruturalismo, afastou a imprensa e
o leitor também dos suplementos literários. É curioso perceber que,
para compensar o excesso de especialização no suplemento literário que
afugentava o leitor do jornal e como a literatura (ou a arte em geral) deixou de
merecer a fidalguia do primeiro caderno, criou-se o segundo caderno (ou:
139
Cf. SUSSEKIND, op., cit., p. 30.
Cadernos de Opinião, Almanaque, Argumento, Opinião. Cf. SUSSEKIND, 2003. p. 34.
141
Cf. SUSSEKIND, op., cit., p. 34.
140
67
Caderno B, Ilustrada, etc.). Ali a literatura deixa de ser análise de obra e passa
a se confundir com a figura singular do escritor [...]. O escritor vira ícone pop.
A literatura passa a fazer parte do que se chama variedades [...].142
A partir dos anos de 1980 e 1990, tempo em que os chamados Estudos Culturais
encontram espaço nas universidades brasileiras, essas novas tendências interpretativas
começam a se consolidar com um enfoque marcadamente multicultural e comparativista, tal
como afirma Rachel Esteves Lima.
143
Segundo a pesquisadora, as representações das
minorias colocam em xeque o cânone literário, e as políticas de identidade, os discursos póscoloniais, as relações intersemióticas, a abordagem de gêneros, que antes, não contemplados
com a rubrica “literatura”, passam a fazer parte do rol de interesse da crítica acadêmica, o que
pode ser demonstrado nos ensaios e teses sobre o romance Gabriela, cravo e canela
desenvolvidos nesse período.
Ao largo da universidade, o mercado editorial apresenta um crescimento significativo,
acarretando um esvaziamento da reflexão crítica. Paradoxalmente, a literatura volta a dispor
de amplo espaço na imprensa, mas passa a ser regida pelas leis do mercado, cujo interesse é
voltado para a venda, e não para análise dos livros. O crítico-jornalista retorna ao seu lugar,
não mais como o foi no passado, imbuído de formar e informar um público leitor, mas com o
propósito de divulgar e fazer crescer o mercado consumidor de uma mercadoria que perdeu a
sua aura, o livro impresso, cuja instância de legitimação, desse mercado, passa a ser devedor.
Na avaliação de Renato Ortiz, a consolidação do mercado de bens culturais se
solidifica no país a partir dos anos 1960 e 1970 do século XX, cujas produções, cada vez mais
distintas, cobrem uma gama diferenciada de consumidores. Os meios de comunicação de
massa, em especial a televisão, consolidam o advento da indústria cultural no Brasil,
introduzindo formas novas de apreensão do mundo, nova sensibilidade, ao buscar atender às
exigências de uma recepção movida por novos parâmetros diante de novas formas de
produção do objeto artístico, no qual a literatura se inclui.
Como reflexo, pode-se detectar, a partir dos anos 1970, que a própria escolha dos
leitores passa a ser conduzida pelo mercado. Diante do “labirinto bibliográfico”, da produção
em massa e da rapidez com que age o mercado, torna-se difícil uma reflexão sobre a obra,
enquanto vão surgindo outros sistemas de orientação: “as colunas, os comentários, as
resenhas, as notas, as famosas ‘listas dos dez mais vendidos,’ os suplementos de cultura e
142
143
Cf. SANTIAGO, op., cit., p. 164.
Cf. Rachel Esteves LIMA, Rachel. Ainda a tradição do impasse, [S. l.: s.n.], [200 ]. p. 3.
68
cadernos ‘b’ nos jornais.”144 Sem deixar de mencionar a redefinição do estatuto do literário,
do “puro objeto estético” ter sido gradativamente substituído pelo estatuto de mercadoria.
É marcante nessa época o papel que a telenovela desempenha na televisão e a opção
desse veículo pela adaptação de romances da literatura brasileira. 145 Sem ignorar o sucesso
editorial de autores e obras reconhecidamente aceitas pelo público leitor brasileiro, a televisão
investe em adaptações que lhe garantem a venda do “produto” e o retorno financeiro desejado,
como a adaptação de Gabriela, cravo e canela, em 1975, considerada um grande sucesso de
público.
No contexto dos anos 1970 e 1980, a historiografia literária brasileira vem a se
constituir em uma produção crítica acadêmica, uma vez que os historiadores, na sua maioria
professores universitários, têm uma formação intelectual no âmbito das universidades. Nesse
período, foram escritas e reescritas algumas histórias da literatura brasileira, narrativas
responsáveis pela legitimação de obras e autores canônicos. Tais histórias passam a identificar
e reforçar, junto aos leitores e às escolas, os autores reconhecidos como produtores de alta
literatura.
Mesmo tendo sido escritas num tempo em que os discursos artísticos e as genealogias
são abaladas e a descentralização dos centros de referência cultural se torna uma realidade
presente, demarcada pela redefinição das relações entre a literatura, o leitor, o autor e a
própria crítica, algumas dessas histórias reforçam princípios estéticos do modernismo como
aparato modelador dos critérios de análise e julgamento da produção literária, privilegiando os
aspectos estéticos, a linguagem, um refinamento material da obra literária. Contudo, tais
avaliações passam a configurar-se mais como uma reciclagem do que como uma releitura dos
discursos anteriores, e assim procedem na leitura e apreciação de Gabriela, cravo e canela.
A despeito das mudanças históricas pelas quais passaram o autor, o homem, os
historiadores, os críticos, a crítica, suas teorias e métodos, quando da análise e avaliação do
romance ou do conjunto da obra desse escritor pelos historiadores, a condenação à matéria
ficcional de Amado persiste.
Na década de 1970, as teorias que se sustentavam na
literariedade e na análise imanente dos textos literários estão sendo questionadas, mas as
histórias da literatura continuam na mesma clave.146 Esse período marca o momento crucial
144
Cf. PELLEGRINI, 1999. p. 172.
Em 1975, a obra A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo foi adaptada para novela pela TV Globo, sendo
a primeira novela a cores exibida no horário das 18 horas.
146
Segundo a pesquisadora Ívia Alves, nos anos setenta, momento histórico cultural em que estão inseridas as
histórias literárias, há um exacerbamento da “qualidade” tomada como categoria de análise e julgamento da
produção literária. O julgamento positivo era estabelecido pelo refinamento material, a reflexão sobre a
linguagem, “a busca da propriedade que estaria presente nas obras literárias e que as caracterizaria como
145
69
do poder da crítica sobre a historiografia, não ficando imune a produção de Amado. Apesar do
reconhecimento de uma mudança tanto de rumo quanto do fazer literário, demonstrados no
domínio dos processos narrativos de Amado, as histórias de literatura conservam julgamentos
antecedentes, contaminando “os discursos historiográficos mais recentes,” no dizer de Ívia
Alves.
Ainda segundo a pesquisadora, “o poder de legitimar ou não a produção de um escritor
vem do lugar de onde falam esses historiadores”147 e, como a legitimação de escritores e obras
se dava no fechado espaço acadêmico, esses historiadores e críticos, apesar de não excluírem
Jorge Amado do “panteon” de escritores canônicos, desqualificam sua matéria ficcional,
precisamente a estrutura narrativa, a linguagem “descuidada”, condenam a repetição de temas
como recurso e deficiência que remete a um romancista sintonizado com as leis que regem os
meios de comunicação de massa, de fácil leitura e de gosto popular, alheio ao “gosto” da
academia.148
3.1 “Gabriela” nas histórias de literatura
O Professor Titular de Literatura Brasileira da USP, crítico e historiador Assis Brasil,
analisa e constrói o perfil do escritor Jorge Amado na obra Modernismo; História da crítica
brasileira, publicada em 1976. Critica a linguagem de Jorge Amado por nunca ter recebido
um tratamento artístico, limitando-se o autor à estrutura de uma “língua comum,” à produção
de uma obra de altos e baixos. Considera que a produção literária de Amado divide-se em
fases distintas, e sua última fase, da qual faz parte Gabriela, cravo e canela, vista por alguns
incautos como “picaresca,” nada mais é que uma volta a um romantismo meio “dourado e
folclórico.” No dizer do historiador, Gabriela, cravo e canela começaria uma fase de
pertencentes à literatura- a sua literariedade”. Cf. Ívia ALVES. De paradigmas, cânones e avaliações – ou dos
valores negativos da produção literária de Jorge Amado. In: Seminário Internacional de História da Literatura,
3, PUCRS, 1999. p.2.
147
Cf. Ívia ALVES, 1999. Op. cit., p. 4.
148
Chamando a atenção para a atitude peculiar que o escritor Jorge Amado manteve em relação aos meios de
comunicação de massa, Marinyze Oliveira considera que “o escritor baiano compreendeu, como poucos, a
maneira pela qual o quase monopólio da imagem, instituído, nas últimas décadas, pelo advento dos meios de
comunicação de massa, impôs transformações profundas na forma tanto de apreender quanto de expressar o
mundo”. Cf. Marinyse Prates de OLIVEIRA. No livro ou na tela: dois modos de ser Amado. In: Colóquio Jorge
Amado: 70 anos de Jubiabá. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Faculdades Jorge Amado, 2006. p.124.
(Casa de Palavras).
70
retorno do escritor a um romance acadêmico, romanticamente meloso, a
que, de modo geral, o autor nunca esteve imune. Mas agora troca a sua
posição declaradamente ideológica por uma espécie de manifesto das
delícias da vida burguesa baiana.149
Percebe-se nos espaços de legitimação de uma obra, como são as histórias de
literatura, que ainda persiste o eco das primeiras avaliações do romance Gabriela, cravo e
canela. Na reincidência das avaliações, o valor “estético” desse romance se encontra
embaçado, prevalecendo muitas vezes o realce dos traços românticos, como se a produção
amadiana não resistisse a uma análise imanente da obra. Nas avaliações e julgamentos desse
romance e de seu autor, os valores estéticos da modernidade ainda se fazem presentes,
constituindo-se modelos seguidos por um grande contingente da crítica literária, numa atitude
nostálgica diante do cânone, como entendida por Eneida Maria de Souza:
Diante da incapacidade de conviver com o babélico e o indefinido, o discurso
da crítica literária reveste-se de um aparato moderno para impor seus critérios
de qualidade, ignorando, muitas vezes, as condições históricas da produção
poética, ao defender a obra pelo seu valor literário (por que intrínseco ao
objeto), condição que lhe conferiria universalidade e vida longa.150
Defendendo a obra pelo seu valor literário, numa clave similar a Assis Brasil, o crítico
e historiador, professor da Universidade de São Paulo, Alfredo Bosi, analisa a obra amadiana
também a partir da idéia de fase, considerando o romance Gabriela, cravo e canela como o
marco inicial de uma última fase literária do escritor, que representa o abandono “dos
esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40,” produções que
nada mais representam que uma “mistura de equívocos, e [que] o maior deles será por certo o
de se passar por arte revolucionária.” 151
Desqualificando o conjunto da obra do escritor Jorge Amado e rotulando-o de
“cronista de tensão mínima,” de “leitura fácil,” à qual atribui seu “grande e nunca desmentido
êxito junto ao público,” o crítico resume sua análise a duas páginas, reservando a Gabriela,
cravo e canela o exíguo espaço de duas linhas. Bosi inclui essa narrativa no conjunto das
“crônicas amaneiradas de costumes provincianos, [e que] tudo se resolve no pitoresco, no
149
Cf. Assis BRASIL. O modernismo: história crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Pallas / MEC, 1976.
p. 87-88.
150
Cf, Eneida Maria de SOUZA. Nostalgias do cânone. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
p. 90.
151
Cf. Alfredo BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 457.
71
‘saboroso,’ no ‘gorduroso,’ no “apimentado do regional.”152 Ao fundar a sua análise no
conceito de alta e baixa literatura, Bosi se filia, segundo Ívia Alves, à genealogia designada
por Eduardo Assis Duarte como “crítica dos erros,” que, desde os anos de 1940, persiste nas
avaliações da obra literária de Jorge Amado, principalmente do destacado crítico Álvaro Lins.
Explicitando uma indisposição prévia de conviver com as mudanças, algumas dessas
histórias da literatura, “lugares” de legitimação, referência e formação do gosto ou de valor
estético, vão perdendo o espaço para formas de avaliação que adotam outros critérios de
julgamento além do literário, como os condicionantes históricos e culturais envolvidos na
produção de uma obra literária. Segundo Eneida Maria de Souza, essa “falta de
discernimento” faz com que essas instituições legitimadas não atentem para a existência de
outros meios de reconhecimento do valor de uma obra e de formação de gosto, que vêm
assumindo esse lugar, como a mídia, o mercado e a Internet.
Essa nova postura diante do literário, segundo Rachel Lima, deve-se à mudança do
próprio conceito de texto, agora compreendido como toda e qualquer prática significante, à
mudança do conceito de intertextualidade e à entrada em cena da figura do leitor, enquanto
produtor de sentido, fatos que “abalaram os alicerces e questionaram a universalidade dos
modelos que até o final da década de 70 haviam configurado, nos cursos de pós-graduação em
literatura no Brasil, uma atividade analítica de caráter hermenêutico bastante cerrado.” 153
A despeito desses questionamentos, os historiadores emitem avaliações sobre os
romances amadianos, a partir de critérios remanescentes e dentre eles destaca-se o crítico e
historiador Massaud Moisés, que insere o romance Gabriela, cravo e canela numa terceira e
última fase da ficção amadiana. Não obstante, considera que
há um nexo de continuidade que enlaça o romance num todo orgânico,
onde cada uma [das fases] apresenta uma nota predominante, uma temática
central
ou
uma
reflexão
constante
[representando]
o
modelo
‘inflexivelmente’ utilizado e mantido por Amado em produções
subseqüentes, tal a semelhança não só de estrutura, como de visão de
mundo nele impressa. 154
152
A pesquisadora Ívia Alves analisa esses juízos de valor atribuídos à produção desse romancista, no artigo De
paradigmas, cânones e avaliações - ou valores negativos da produção literária de Jorge Amado, apresentado no
III Seminário de História da Literatura, Porto Alegre, PUCRS, 5-7 de outubro de 1999.
153
Cf. LIMA, Op., cit. p..3.
154
Id.; Ibid.; p.209.
72
Considerando Amado um ficcionista que simboliza a permanência ou a retomada de
padrões românticos no interior do Modernismo, assinala que o seu realismo é acima de tudo
de um romântico, expresso nos traços da idealidade com que figura o “amor do povo baiano”
e na subjetividade que preexiste em suas teses revolucionárias. Como um romântico, Jorge
Amado idealiza um futuro igualitário de “uma Bahia, de marinheiros felizes, [...] em bordéis
de beira dos cais, de Gabrielas faceiras e beberrões metafísicos [...].”155
Sobre o romantismo depreciado tanto por Bosi quanto por Assis Brasil, sobre essa
“irredutível constante romântica” de Jorge Amado, no dizer do crítico José Guilherme
Merquior, tal característica amadiana não foi entendida pelos intelectuais, pela “crítica dona
da verdade e Senhora da História.”156 Segundo Merquior, em literatura, romantismo e
realismo não se excluem, daí ter Jorge Amado chegado à seqüência ficcional dos anos 1940,
e
a narrativa de costumes com um mínimo de “pátina” histórica, nutrida de exotismo
representada por Gabriela,cravo e canela.
As análises de Bosi e de Massuad Moisés tendem a uma abordagem depreciativa do
regional na literatura amadiana, ao desqualificarem os traços regionais aí impressos, tidos por
esses historiadores como próprios de uma ficção que abriga um linguajar popular oriundo das
camadas mais baixas da sociedade, modulada em seus rituais e costumes.
Primando pelo academicismo e pela autonomia plena do texto literário, o crítico e
historiador Luiz Costa Lima (1986) colabora com um estudo sobre o “Regionalismo” na obra
coordenada por Afrânio Coutinho, A Literatura no Brasil. 157 Tal obra delineia para a história
literária um desenvolvimento imanente interno “não condicionado por influências
extraliterárias,” como as influências históricas e sociais consideradas como fatores externos
ao campo da produção literária.
Na avaliação do romance, Costa Lima, interroga se “Gabriela, cravo e canela é
involução ou avanço? ”158 sinalizando para dois focos: o político e o estético. Costa Lima vê
no romance uma mudança de rumo do escritor, um recuo político que não significa involução
estética desde quando o que importa numa análise de cunho estético “é saber se a qualidade
da criação foi afetada para melhor ou pior.”
159
No caso de Gabriela, cravo e canela,
acrescenta o crítico, não houve esse paralelismo-recuo político e depreciação estética155
Id.; Ibid.; p.209.
Cf. José Guilherme MERQUIOR. Nosso Dickens. In: O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983. p.180-181.
157
A obra A Literatura no Brasil foi publicada entre os anos de 1955 a 1959, no entanto trabalhamos com a
terceira edição de 1986. COUTINHO, Afrânio, (Direção); COUTINHO, Eduardo de Faria (Co-direção). A
literatura no Brasil: estilos de época. Era modernista. Rio de Janeiro: José Olímpio; UFFF, 1986.
158
Id.; Ibid.; p. 383.
159
Id.; Ibid.; p. 383.
156
73
superpostos e desligados da estrutura da ficção, seu afastamento político não representou uma
perda do ponto de vista da ficção. “Serviu sim para marcar os limites do realismo do
escritor.”160
Ao rechaçar a crítica feita a Jorge Amado, pelo emprego de uma “linguagem comum,”
como o fazem Assis Brasil e Alfredo Bosi, Costa Lima afirma que o romancista explora a sua
qualidade notável de inventor de estórias, a sua oralidade, o seu colorido e a movimentação da
sua palavra, ultrapassando o realismo documental de romances anteriores. Quanto ao
“magismo sentimental,” marca da escrita amadiana, no dizer de Costa Lima, a qual
compromete obras como Mar Morto e Jubiabá, em Gabriela, cravo e canela ele “fere apenas
a sua coerência de criatura”, o que não elimina o mérito dessa narrativa. Gabriela é, para
Costa Lima, “o maior personagem feminino do autor e um dos maiores da literatura
nacional.”161
3.2 No corpo das páginas
Quando Jorge Amado completou 40 anos de vida literária, em 1971, alguns ensaios e
artigos sobre a obra do escritor foram reunidos no volume Jorge Amado; povo e terra, editado
pela Editora Martins. Alguns desses artigos e ensaios, divulgados anteriormente em jornais e
revistas, foram escritos por antigos críticos de rodapé que já primavam por uma análise
centrada na imanência do texto, aliada a uma linguagem de fácil entendimento, como Wilson
Martins, Tristão de Athayde, Eduardo Portela, M. Cavalcanti Proença e Miécio Tati. Além
dos jornais e seus suplementos, essas críticas passaram a ser veiculadas em revistas e em
coletâneas de ensaios literários.
Compondo a coletânea dessa edição comemorativa, o professor de Literatura
Brasileira da Universidade Federal da Paraíba, Juarez da Gama Batista (1972), reedita o
ensaio Gabriela, seu cravo e sua canela, abordando temas que vão da sociologia à arquitetura
na leitura do romance. Em Sociologia e geografia de Gabriela, um dos itens do ensaio,
Batista assegura que sociológica e geograficamente “Gabriela nada tem com a terra da Bahia
e suas grandezas. ”162 O fato de ambientá-la em Ilhéus, para o ensaísta, deve-se à busca de
160
Id.; Ibid.;p. 383.
Id., Ibid., p. 384 .
162
Cf. Juarez da Gama BATISTA. Gabriela, seu cravo sua canela. In: Jorge Amado. Povo e terra; 40 anos de
literatura. São Paulo: Martins, 1972. p. 86.
161
74
uma ambiência do romancista para si próprio, visto que o romance marca não só o seu retorno
ao país como uma revisão de seus conceitos diante da vida e da literatura.
Nessa perspectiva, e considerando Gabriela uma personagem imigrante, uma
estrangeira, Batista a compara a “uma planta sem raízes (ela continua sempre a retirante, sem
família, sem amigos e sem pertences), [cuja] geografia de emigrada terá determinado a sua
sociologia de pessoa sem endereço.” 163 Por outro lado, na concepção do ensaísta, mesmo não
dispondo de um registro civil que lhe desse visibilidade e inserção social e sendo “iluminada
por essa luz fria do construtivismo deliberado do romancista,”
164
ainda assim Gabriela
consegue absorver todas as possibilidades do romance.
Estabelecendo uma analogia entre a personagem Gabriela e a cidade de Brasília –
Arquitetura de cidade e de mulher –, Batista considera que a contemporaneidade da cidade e
da personagem resulta de influências que assinalam a vocação artística do momento histórico
em que foi escrito o romance, assegurando que a própria razão de ser da cidade é “apenas
mirar-se nas suas estruturas excepcionais.” 165 Gabriela, por sua vez, como Brasília
não representa, não define, não reivindica. [...] é mais um valor plástico do que
uma expressão romanesca. Mais um elemento visual que uma representação de
atos, vontades, situações ou formas de ser e viver [...] vale como estampa em
movimento [...] É pura imagem. [...] É mulher e é mito: o mito da mulher que
não se enlaça. 166
Por considerá-la assim, como a mulher sonhada e que nunca se enlaça, Batista retoma
um dos mitos mais antigos da humanidade que Calvino traz à cena nas suas Cidades
Invisíveis.167 Por vê-la dessa forma, como pura imagem, Batista antevê que não será difícil o
sucesso da personagem em adaptações para a TV e cinema, nas revistas em quadrinhos e
mesmo em espetáculos de dança, o que de certo aconteceu na década de 1970 e 1980. O
romance foi adaptado para novela, cinema, teatro, fotonovela, revista em quadrinhos, ballet e
foi fonte de inspiração para poetas e compositores, cujas músicas se tornaram clássicos do
cancioneiro nacional.
163
Id., Ibid., p. 87.
Id.; Ibid.; p. 89.
165
Id.; Ibid.; p. 90.
166
Id., Ibid., p. 91-92.
167
Calvino descreve uma cidade onde “homens de diferentes nações sonham o mesmo sonho: viram uma mulher
correr de noite, sonharam que a perseguiam, mas ela correndo, os despistava e nenhum deles nem acordado nem
em sonho conseguiam revê-la. Cf. Ítalo CALVINO. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 45-46. Traduzido por Diogo Mainardi.
164
75
Quando a análise se volta para as questões do literário, Batista se detém na
composição do romance, tece elogios e formula críticas aos defeitos que andam passo a passo.
Na opinião do ensaísta,
Gabriela, cravo e canela resultou, para quem lê romances, como amorável
aventura do espírito, como simples entretenimento. [...] Em Gabriela, o
autor só tem olhos para enxergar o pitoresco das coisas [...] que
condicionam, de saída, o leitor, para uma obra picaresca, sempre oscilando
entre o coloridamente burlesco e o convencionalmente inexpressivo cartãopostal.
168
Por outro lado, Batista chega a considerar que em algumas páginas do romance, Jorge
Amado dá mostras de alta experiência literária e de profundo conhecimento da técnica de
fazer valer sentimentos e expressões.
Batista também aponta as transformações econômicas e o processo civilizatório
vivenciados pela sociedade ilheense, no universo ficcional do romance, como fatores que
desencadeiam, em paralelo, a emergência de um tipo de amor, representado pelo idílio entre
Gabriela e Nacib, em que os parceiros passam a ser escolhidos livremente e não mais segundo
as rígidas leis sociais até então vigentes. Constante nas apreciações do romance, o idílio entre
os seus personagens principais tem dado margem a uma multiplicidade de abordagens tanto
sociológicas, antropológicas, quanto aquelas que abordam as questões de gênero.
A análise desse idílio abre espaço à abordagem de questões que vão do amor
romântico à moralidade e ao sexo no contexto da sociedade baiana e brasileira a partir do
estudo das relações amorosas estabelecidas na sociedade de Ilhéus, do romance Gabriela,
cravo e canela, desenvolvido pelo sociólogo Sebastião Vila Nova. Servindo o romance como
corpus analítico para o discurso sociológico de Vila Nova, empreendido a partir do universo
ficcional desse tipo de gênero, busca identificar “uma correlação positiva entre estilo de vida
urbana e padrão de amor romântico como critério de escolha de parceiros para o
casamento.”169
A representação da sociedade de Ilhéus, segundo o ensaísta, não se dá à revelia do
ficcionista. É resultante das escolhas do escritor, da relevância que atribui a traços socio-
168
Cf. BATISTA, Op. cit., p.93.
Cf. Sebastião VILA NOVA. O complexo do amor romântico em Gabriela, cravo e canela: um exemplo. In: A
realidade social da ficção; uma sociologia paralela. Recife, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,
1975. p. 59.
169
76
culturais que importam para o desenvolvimento da ação romanesca na qual “subjaz a
intencionalidade do ficcionista, em função de sua visão particular do mundo e dos seus
propósitos conscientes.”
170
No universo social do romance, o ensaísta elege um dos aspectos
das relações interpessoais – o da padronização cultural das relações amorosas – como modelo
para analisar as diversas formas de representação de amor romântico vivido por personagens
do romance: Ofenísia, Mundinho Falcão, Malvina e o casal Nacib e Gabriela. Vila Nova
afirma que “o caso de Nacib com Gabriela, pouco ou nada tem a ver com amor romântico.”171
O casamento entre os dois vem a ser um modo de Nacib aprisionar o objeto desejado,
Gabriela, tanto por ele quanto pelos coronéis. Por ser a categoria dos coronéis o grupo de
referência de Nacib, ao casar-se, nivela-se ao grupo referencial, enquanto “aprisiona,” ao
mesmo tempo, a mulher que lhe servia na cama e na mesa.
Para Vila Nova, o lugar da personagem Gabriela na estrutura social do romance é o
fator determinante do padrão de relação amorosa que ela mantém com o árabe Nacib. A
questão levantada por Juarez da Gama Batista quanto à falta de enraizamento de Gabriela é
retomada por Vila Nova, quando afirma que, estando fisicamente na Ilhéus do romance,
Gabriela, como cozinheira, não pertence sociologicamente à sociedade ilheense e por estar à
margem da sociedade, tanto econômica quanto do ponto de vista psicossocial, numa situação
de marginalidade, é que floresce o conflito entre ela e o árabe. Sem estar, portanto, inserida na
ordem “socio-normativa” estabelecida pela sociedade de Ilhéus, a qual Nacib representa, fica
evidente que “os padrões de relacionamento e comunicação amorosa, os padrões de corte e de
satisfação de necessidades sexuais são culturalmente estabelecidos, regulados pela cultura, e
aprendidos e transmitidos pela socialização.” 172
Apesar do distanciamento sociocultural entre Nacib e Gabriela, a proximidade na
cama é o elo que une a personagem ao árabe, que acaba por levá-la ao altar. Para Vila Nova,
na representação de Gabriela configura-se a inverossimilhança da personagem, que se
apresenta como oposição utópica ao mundo socialmente constituído de Ilhéus, cujas rígidas
leis sociais não permitem a uma empregada doméstica ocupar o lugar de uma senhora da
sociedade, nem tampouco exercer a livre escolha de parceiros. Considera Vila Nova que Jorge
Amado, ao atribuir à personagem qualidades sociais alheias ao seu universo sociocultural de
origem, tenta “corrigir” uma injustiça social, reforçando um estereótipo feminino – o da
170
Id.; Ibid.; p. 57.
Id.; Ibid.; p.57.
172
Id., Ibid.; p.78.
171
77
superioridade feminina centrada na cama e na cozinha, – “lugar que a sociedade permite e
prescreve.”
Ainda segundo o ensaísta, ao elevar Gabriela socialmente, Jorge Amado buscou, na
esteira da intenção, elevar toda a sua camada social, a dos desprotegidos da fortuna. Destaca
no romance, diferentes e opostos processos de tipificação – o ideológico, o caricatural e o
utópico –, que colocam à vista os anseios, valores, crenças e princípios do escritor, delineados
na
utopia de uma Gabriela que está para além dos condicionamentos da estrutura
social na qual se movimenta, [que] serve para por a nu a previsível estrutura de
uma sociedade representada no romance [enquanto] uma Gabriela acima da
noção de amor patriarcal predominante na Ilhéus do romance, provavelmente
na Ilhéus da realidade, acima da noção emergente de amor romântico, sinaliza
para o processo de urbanização e início da desintegração da antiga estrutura.173
Essa leitura crítica, apoiada no conceito de literatura como representação, na
apropriação de narrativas ficcionais com “valor enunciativo e como procedimento de escrita,”
deixa entrever um alargamento de fronteiras disciplinares, em que a literatura vai deixando de
ser objeto privilegiado da teoria literária. Na medida em que se abre a uma pluralidade
interpretativa, alarga o horizonte e dilui a idéia de que o sentido é único e que a verdade é
absoluta.
No ano em que Vila Nova desenvolve esse estudo, 1975, o romance Gabriela, cravo e
canela é adaptado para a televisão, em forma de novela, suscitando, no seio da crítica literária
acadêmica, questões relativas à “espetacularização” do autor e da obra nos meios de
comunicação de massa e sua exposição no mercado, uma opção de Amado. Conforme Márcia
Rios da Silva, por optar por uma estética marcada por regras da cultura massiva, contrária aos
valores literários vigentes, Jorge Amado entra em choque com instâncias legitimadoras do
literário que não acatam a “ausência de experimentação da linguagem” na sua produção
literária, assim como condenam o seu “alto grau de aderência ao real.” Essas instâncias
legitimadoras posicionam-se avessas à relação, harmoniosamente assumida pelo escritor Jorge
Amado, da atividade literária com o mercado, segundo parecer de Tânia Pellegrini.
Desde as primeiras produções literárias de Amado, a linguagem de “fácil leitura,” o
estímulo à repetição e o formato folhetim foram e ainda têm sido considerados, por um
contingente da crítica, elementos desqualificadores de sua obra,174 e, para outros segmentos
173
Cf. Sebastião VILA NOVA, 1975. p. 81.
Como foi demonstrado nas análises das histórias literárias dos anos de 1970 e por Pellegrini nos dias atuais:
“Cada livro que escreve já nasce o mesmo, em forma e conteúdo, pois sabe que tem cativo o “leitor médio”
acostumado aos seus “contos e à linguagem televisiva contemporânea a que não por acaso, suas histórias tão
bem se adaptam”. Cf. PELLEGRINI, 1999. p. 142.
174
78
críticos, como responsáveis pela aceitação e formação de um público leitor brasileiro, com a
qual se identificava. Tania Pellegrini chama a atenção para o fato de que, mesmo antes de se
configurar no país a relação entre bens culturais e mercado, Jorge Amado
dá forma concreta ao chamado descompasso da cultura brasileira, ao
incorporar ao tecido da sua obra, entre outras coisas a dinâmica do mercado e a
estética do espetáculo, algo que as fragilidades, aliadas à qualidade
“cinematográfica”de todos os seus textos, de certo modo antecipavam.”175
Conforme Pellegrini, é justamente a partir dos anos 70, com o incremento da indústria
cultural no Brasil, que há um incremento do intercâmbio entre mercado e mídia, favorecendo
tanto a montagem de peças teatrais, como a adaptação para televisão de sucessos literários, o
que, segundo a autora, “se não ajudam a despertar a sensibilidade propriamente literária, é
eficiente estratégia de estímulo ao consumo do produto cultural, seja livro, peça [etc].” 176
Silviano Santiago,
177
quando ao analisar a relação da literatura com a cultura de
massa, considera que na “modernidade periférica brasileira” as formas de cultura de massa
estão reduzidas ao fanatismo pelo folhetim de “alto teor sentimental e dramático,” vistos nas
radionovelas dos anos 1940 e nas telenovelas que incidem a partir dos anos 1960. É
percebendo esse fenômeno, e não ignorando o alcance do escritor junto ao público, o seu
sucesso editorial, que a TV Globo investe na adaptação para novela do romance Gabriela,
cravo e canela, em 1975, na certeza de estar lançando no mercado um produto de fácil
consumo pelo público telespectador.
No estudo desenvolvido por Renato Ortiz sobre a modernização da tradição cultural do
Brasil, destaca-se que a situação cultural dos anos 1960 e 1970 é caracterizada pelo volume e
pela dimensão das produções do mercado de bens culturais. Considera-se como marco do
advento e da consolidação da indústria cultural no Brasil o desenvolvimento da televisão. Para
Ortiz, “a televisão, por sua simples existência, prestou um grande serviço à economia
brasileira: integrou os consumidores potenciais ou não, numa economia de mercado.”178
175
Cf. PELEGRINNI, 1999. p.157.
Nesse período, foram adaptadas para a TV as obras literárias A sucessora, A escrava Isaura, Senhora,
Gabriela ,cravo e canela, e posteriormente, Tieta do Agreste, Jorge ,um brasileiro, O primo Basílio, Os maias e
outros em forma de novelas e alguns no formato de minisséries. Em 1975, a revista Amiga lançou o romance
Gabriela, cravo e canela em fotonovela; a Editora Brasil América,em revista em quadrinhos e no teatro em 1985
o romance foi adaptado para ballet e apresentado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
177
SANTIAGO, Silviano. Literatura e cultura de massa. In: O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004.
178
Cf. ORTIZ, 1991. Op. cit.,p.128.
176
79
Nesse contexto, em rede nacional, pela TV Globo, a novela Gabriela, cravo e canela estréia
em abril de 1975.
Objeto de estudo, essa adaptação é vista pela socióloga Maria Arminda do Nascimento
Arruda (1976), da Universidade de São Paulo, como um produto já fadado ao sucesso, uma
obra prima da televisão brasileira.179 No ensaio Por detrás das plumas e dos “paillettés”;
reflexões sobre Gabriela, publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de Minas
Gerais, a autora analisa as transformações sofridas pelo romance ao ser adaptado para outra
linguagem, pontuando a ascendência da indústria cultural no Brasil. Arruda considera que a
escolha do romance enquadra-se numa tendência da Rede Globo de buscar, como fonte de
inspiração das telenovelas, obras já conhecidas da literatura brasileira, podendo tal
“fenômeno” ser explicado pela configuração da indústria cultural, que se consolida a partir
dos anos 1960.
Para Arruda, o foco da análise converge para as transformações sofridas pela obra
capazes de torná-la viável como produto da indústria cultural. Sublinhando as razões que
levam os produtores da indústria cultural a substituirem antigas fórmulas – novelas escritas
por autores contratados da empresa –, a buscarem outras fontes, como as produções literárias,
Arruda aponta para o retorno financeiro em forma de audiência que lhes é auferido. No
processo de adaptação para a televisão, destaca os elementos estruturais do romance que
foram modificados em função da linguagem televisiva: locais como o Bar Vesúvio, a banca
do peixe, a papelaria Modelo, o cabaré Bataclan, apenas “pincelados” no romance, no vídeo
surgem como espaços elaborados, detalhadamente acabados, aos quais é conferida certa
autonomia, transformados em lugares nos quais toda a trama da novela se desenvolve. Para
Arruda, essa se constitui na “primeira grande transformação que o romance sofreu” ao ser
adaptado para a televisão.
Sinaliza para o reforço de estereótipos como uma prática televisiva que na novela
Gabriela, cravo e canela pode ser observada na construção dos personagens principais: em
Nacib, o estereótipo do árabe é reforçado quando o foco converge para a ganância por
dinheiro, o desejo de enriquecer e as artimanhas para conseguir tal intento. De acordo com
Arruda, Gabriela enquanto representação televisiva
179
A primeira adaptação do romance para a televisão foi feita em 1961, pela TV Tupi, por Antonio Bulhões de
Carvalho e Zora Seljan, com os atores Janete Vollu de Carvalho e Renato Consorte, nos papéis de Gabriela e
Nacib. Em 1975, com sucesso estrondoso de público, o romance foi adaptado para novela, pela TV Globo, por
Walter Durst. Dirigida por Walter Avancini, teve como atriz principal Sônia Braga no papel de Gabriela e
Armando Bogus no papel de Nacib. Estreando no dia 14 de abril e terminando no dia 24 de outubro de 1975, a
novela foi exibida no horário das 22 horas, compondo-se de 135 capítulos. Fonte: Fundação Casa de Jorge
Amado.
80
deixou de ser a afirmação da moralidade, perdendo todo aquele vigor, para
se transformar em mero objeto sexual e num tipo quase folclórico [...] pelo
fato da televisão não ter podido ou não ter sabido utilizar os pensamentos de
Gabriela, fundamentais à constituição da sua personalidade no romance. Ela
acabou reduzida a uma mulher apenas adequada como cozinheira e amante.
180
Como pontos divergentes na adaptação do romance para a TV, devido à linguagem
televisiva fundada na imagem, Arruda destaca
o realismo com que são tratados os acontecimentos e a linearidade dos fatos
que acabam por afetar a seqüência narrativa do romance, a alteração do
peso relativo do narrar e descrever; a criação de tramas amorosas paralelas e
articuladas: o didatismo; o maniqueísmo; a estereotipia; constitutivos das
principais mudanças ocorridas na trajetória do romance à novela. [...].181
Quanto à questão da escolha do romance de Jorge Amado pela TV Globo, ainda
segundo Arruda, ao que tudo indica, os produtores da telenovela pensavam estar oferecendo
aos telespectadores uma excelente oportunidade de “consumir uma obra de cultura,” cujo
conceito para ela é questionável:
Que cultura estaria aí inerente? Esta foi pensada de forma instrumental, numa
perspectiva utilitária, como um bem entre outros, o que dá no mesmo como
uma mercadoria.[...]. Compreendida dessa forma a cultura forneceu a base da
legitimação da telenovela, na medida em que Gabriela romance, já foi
legitimada como tal.”182
Como uma contribuição aos estudos em voga, da relação entre literatura e cultura de
massa, o crítico literário Silviano Santiago faz uma leitura baseada nos estudos de Walter
Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, leitura que difere das colocações
de Arruda, por atribuir um ganho à “exposição” a que está
sujeita a obra de arte na
contemporaneidade. No dizer desse crítico,
a perda do valor de culto de uma obra de arte, ao mesmo tempo em que a
dessacraliza, torna-a alheia à sua inscrição na tradição,[...] no momento em
que passa a ser produzida ou reproduzida tecnicamente perde algo, mas ganha,
como conseqüência os infinitos lugares e contextos de sua reprodução. E se
180
Cf. Maria Arminda ARRUDA. Por detrás das plumas e dos “pailletés;” reflexões sobre Gabriela. Belo
Horizonte, O Estado de Minas Gerais. Suplemento Literário, 10, jan., 1976. Parte II.
181
Id., Ibid., 1976, parte III dia 17 /1/1976.
182
Id., Ibid., 1976, parte III.dia 17/11/1976.
81
perde o valor de culto, também se refuncionaliza, passando a ter uma práxis
social, leiga que é a intervenção imediata na esfera política.183
Visto isso, pode-se dizer que a estréia na televisão brasileira da novela Gabriela se
constituiu em um marco significativo da recepção amadiana, por tal adesão ter ocorrido
quando a mídia televisiva se expande em rede nacional, o que não só favoreceu a divulgação
da produção literária de Amado, como apontou para uma nova forma de mediação entre o
livro e o leitor, agora efetuada por todos os artifícios permitidos pela relação estabelecida
entre mídia e mercado. E ademais apontou “para a fragilidade do texto escrito sobretudo
aquele que se inscreve sob a rubrica de literatura erudita em um contexto no qual a cultura
midiática torna-se hegemônica, particularmente no Brasil.” 184
Em 1991, quando os estudos comparatistas já estavam consolidados nas Universidades
brasileiras, José Paulo Paes (1991), crítico, ensaísta, tradutor e poeta, elabora um estudo
comparado dos romances Cacau e Gabriela, cravo e canela, buscando as afinidades, os
elementos comuns e as convenções que aproximam essas produções textuais. Segundo Paes,
ambos “assinalam momentos de tomada e de correção de rumos, respectivamente, que servem
para dividir a sua trajetória ficcionista [de Amado] em duas fases.” 185 Com isso, Paes retoma
uma questão que foi alvo da crítica desde o lançamento do primeiro romance de Amado,
acirrada com a publicação de Gabriela, cravo e canela: a descontinuidade da obra amadiana
movida por fatores políticos e ideológicos.
Ao traçar o percurso desses romances, intenta demonstrar que, apesar dos
condicionamentos externos aos quais o romancista esteve sujeito e ao clima da época em que
cada uma dessas narrativas foram escritas, sua representatividade como “romances-marco”
sinaliza para uma lei de desenvolvimento interno da ficção amadiana. Afirma Paes: “o nexo
de continuidade que para além das diferenças do tempo, de enfoque, de estilo e de propósitos
liga um romance ao outro e ambos aos demais romances do autor, [demonstra] a coerência do
seu projeto ficcional nem sempre reconhecido por seus críticos.” 186
Tal nexo se encontra nas características de base da literatura pastoral, tomada pelo
crítico como referencial da análise que se fundamenta “na oposição entre cidade e campo [e
se] exprime as mais das vezes, uma idealização da simplicidade da vida campestre sob o
183
Cf. Silviano SANTIAGO. Literatura e cultura de massa. In: ---. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e
crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.114-115.
184
Cf. SILVA, 2006. Op. cit.,p. 36.
185
Cf. José Paulo PAES. . De “Cacau” a “Gabriela”; um percurso pastoral. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 1991. p. 9.
186
Id.; Ibid.; p.10.
82
ponto de vista do complicado e insatisfeito homem das cidades.”
187
Em Cacau, tal
idealização se apresenta de modo invertido desde quando, afirma o crítico, na “topografia”
marxista o campo é o espaço da alienação, enquanto a cidade é o espaço de luta e
conscientização das classes. Tanto que o narrador, nesse romance, é um operário do campo
que na metrópole vive o processo de conscientização ideológica. Em Gabriela, cravo e canela
os traços da literatura de base pastoral estão marcados pela oposição entre “vida natural” “e
vida artificial,” valores essenciais e que também regem o princípio pastoral.
Desse estudo comparativo emergem tanto semelhanças que atestam o nexo de
continuidade ditado por Paes, quanto diferenças que não chegam a negar a formulação do
crítico, decorrentes das circunstâncias as quais esteve sujeito o romancista. Dentre as
diferenças realçadas entre tais romances, Paes aponta para a época em que foram escritos:
Os vínculos de Gabriela, cravo e canela (1958) com o clima ideológico da
época em que foi escrito e publicado não são, nem de longe, imediatos e
declarados como os de Cacau com o obreirismo de programa dos anos 30 [...]
Gabriela dá boa conta da circunstância histórica da sua composição, o final
dos anos 50 quando o desmonte do mito stalinista aliviara finalmente os
escritores de esquerda das coerções mais tirânicas do chamado realismo
socialista. [...] 188
Segundo o crítico, o narrador autobiográfico de Cacau, por estar próximo do tempo da
escrita, pouco ou nada se distingue do presente dos seus leitores, enquanto a história de Nacib
e Gabriela, por estar afastada do tempo, remonta ao ano de 1925, libertando Jorge Amado da
“imediatez política” da qual já vinha se distanciando desde Terras do Sem Fim. O registro da
voz narrativa em Cacau se apresenta na primeira pessoa, enquanto em Gabriela o discurso
indireto do narrador, na terceira pessoa, aponta para uma dessemelhança que provoca no
crítico a seguinte observação:
o uníssono ideológico do romance de engajamento, onde o Outro só aparece
como caricatura, cede lugar à polifonia das vozes sociais, cada qual com a sua
inflexão própria e o seu próprio universo de valores [e] a passagem do
individual ao grupal, do econômico ao mítico, do sentimental e do dramático
ao cômico e ao picaresco, num amplo e variegado tecido sinfônico cujo poder
de convencimento dá a medida do grau de maestria a que pôde chegar a arte de
ficção de Jorge Amado.189
A despeito do elogio tecido à ficção de Amado, Paes chama a atenção para a “escrita
rasteira” dos seus primeiros escritos que, inspirados nas diretrizes do realismo socialista,
187
Id.; Ibid.; p. 23.
Id.; Ibid.; p. 27.
189
Id.; Ibid.; p. 28.
188
83
afastavam-no do “literário”, considerado pelo Partido como técnica de ornamentação. Para
José Paulo Paes, só depois de liberto dos ditames marxistas e da política cultural que definia a
forma de fazer literatura Jorge Amado escreve Gabriela, cravo e canela, “romance em que o
‘literário’ invade o tecido narrativo para não menos, deliberadamente, marcar o afastamento
irônico entre narrador e personagem.” 190
Merecem destaque nesse estudo as características da literatura pastoral apontadas pelo
crítico em Gabriela, cravo e canela como mais um elemento comparativo que o enriquece. Se
Cacau se configura como um romance pastoral às avessas, Gabriela, cravo e canela, por ser
permeado de princípios e valores que se opõem – velho/novo, progresso/tradição, sujeição/
libertação feminina – enquadra-se perfeitamente numa literatura de base pastoral, desde
quando, segundo Paes, o princípio pastoral não depende necessariamente, para se atualizar em
literatura, da situação campestre onde se originou; basta conservar-lhe, como pedra de toque,
os valores essenciais, sobretudo a oposição de base entre vida natural e vida artificial.
Algumas alusões ao pastoralismo são citadas por José Paulo Paes, envolvendo a
personagem Gabriela e o seu idílio com o árabe Nacib. O episódio memorável, em que
Gabriela participa de um terno de Reis ou “pastoril.”
191
Casada com Nacib, Gabriela estaria
impedida de participar de um evento popular como esse. A leitura do episódio remete para a
insatisfação de Gabriela diante das “proibições e obrigações enfadonhas” acarretadas pelo
casamento, como o fato de acompanhar o esposo ao baile do clube Progresso. Ao juntar-se à
“boa” sociedade de Ilhéus, Gabriela estaria privada do prazer e da liberdade de dançar.
Inúmeras situações apontadas pelo crítico dão mostras do embate e da oposição entre a vida
natural e a vida artificial, um princípio pastoral, representado pela personagem Gabriela, cuja
rusticidade e espontaneidade, atribuídas pelo romancista, colocam em jogo todo o tempo a
oposição entre “naturalidade dos instintos e a convencionalidade dos costumes,” como coloca
em xeque as normas de conduta da sociedade ilheense.
Paes acaba por concluir que o romancista, desde Cacau até Gabriela cravo e canela e
em obras posteriores, dá continuidade ao desenvolvimento do seu projeto literário e dando
ênfase a uma dinâmica interna, especificamente literária da arte de ficção de Amado,
contrapõe-se à postura daqueles que limitam as suas análises
à ênfase em fatores externos, de ordem sócio-político ou circunstancial,
comumente invocados para explicar as singularidades de sua trajetória,
sobretudo a passagem, cujo divisor de águas é exatamente Gabriela, cravo e
190
Cf. PAES, Op. cit., p. 28.
Representação coreográfica e dramática de cunho popular que, tradicionalmente, acontece por ocasião do
Natal e Ano Novo no Nordeste do país e que foi trazida da Península Ibérica pelos colonizadores portugueses.
191
84
canela, de um engajamento declarado para o que, se não chega a configurar-se
como desengajamento (não o pode ser qualquer das formas de populismo,
tampouco implica em comprometimento com um programa ideológico.)192
O crítico e acadêmico Roberto Reis (1993) apresenta outro modo de ler e interpretar
criticamente o romance Gabriela, cravo e canela e a relação que a personagem Gabriela
estabelece com o árabe Nacib. Parte do princípio de que certas obras romanescas são frutos da
produção cultural que emana das elites pensantes, incluindo nesse rol os romances Fogo
Morto, de José Lins do Rego, Gabriela, cravo e canela de Jorge Amado e São Bernardo de
Graciliano Ramos, como marcos discursivos da análise que desenvolve.
É interessante perceber, chama a atenção a pesquisadora Ívia Alves, para a questão de
Reis ter colocado o romance Gabriela, cravo e canela ao lado de romances da produção
literária dos anos 1930, como um ficção representante dessa época, mesmo tendo sido escrito
na década de 1950. Tal inclusão pode ser atribuída ao fato de o crítico ter focado a sua análise
na ideologia dos intelectuais brasileiros dos anos 1930, cuja produção literária, de certa forma,
busca legitimar a aristocracia latinfundiária.
Segundo Roberto Reis, as transformações ocorridas na sociedade da cidade de Ilhéus,
do romance, se restringem basicamente aos estratos superiores da camada social. Àqueles
pertencentes às camadas mais baixas dessa sociedade e, dentre eles a personagem Gabriela,
não lhes é dada a possibilidade de ascender socialmente. Mesmo estando Gabriela situada
num contexto em vias de transformação, não lhe restam muitas escolhas, porque, segundo
Reis, “de uma forma ou de outra lhe será vedada a circulação no tecido social.”193
Apesar do destaque que o escritor acaba por dar à personagem Gabriela, assegura Reis
que
quando se torna senhora da sociedade vestida em roupas de dama e calçando
sapatos apertados, perde a sua espontaneidade e alegria de viver. Só a recupera
quando volta a ser amante e cozinheira de pratos apimentados, anulando seu
casamento com Nacib. O seu lugar é no quartinho dos fundos. 194
Para o crítico, o confronto entre o velho e o novo mundo, entre o rural e o citadino,
representada pela luta travada entre Mundinho Falcão e os coronéis do cacau, acaba não se
configurando como uma mudança efetiva, desde quando as “eventuais transformações não
192
Cf. José Paulo PAES, Op. cit., p. 54.
Cf. Roberto REIS. Espelho retrovisor: considerações sobre a transição brasileira. Travessia, Florianópolis, n.
27, 1993. p. 19-20.
194
Id.; Ibid.; p.19.
193
85
alteram de modo substancial o jogo de força social, atingindo primordialmente as frações de
classe dominantes.”195 No dizer de Reis, como é corriqueiro na política brasileira, há um
remanejamento na composição do poder, que pode ser percebido nos textos aludidos, onde
subjazem manipulações ideológicas e nacionalistas que restringem as mudanças aos estratos
superiores da pirâmide social. Alerta, portanto, que “deveríamos considerar o estatuto de
classe dos que protagonizaram o nosso sistema intelectual, sem deixar de ter em mente o
próprio caráter elitista e autoritário de significativa parcela da produção cultural brasileira.”196
O crítico Eduardo Assis Duarte (1970), estudioso da obra amadiana desde os idos de
1970, tem testemunhado as revisões por que tem passado a recepção crítica de Jorge Amado
nessas últimas décadas. Considerando a necessidade de uma releitura dessa obra, aponta para
avaliações mais abrangentes, extra-literárias, ao analisar as representações identitárias
presentes na obra do autor, vinculando-as ao processo histórico da qual emergem as vozes
recalcadas de classe, gênero e etnia.
Considera Duarte que a questão de gênero já foi tangenciada por Jorge Amado em
romances anteriores, sendo, por muito tempo, “obnubilada” pela perspectiva de classe impressa
nos romances dos anos de 1930 e 1940, quando a ficção amadiana ressalta a emergência dos
trabalhadores enquanto sujeitos políticos. A partir dos anos 1950, ainda segundo Duarte, será a
vez da “mulher ocupar a cena,” o que reafirma “as sincronias e homologias históricas
lastreadoras do literário” como uma característica da obra desse escritor.
As transformações econômicas, políticas e sociais pelas quais passava o país na época
em que Gabriela, cravo e canela foi escrito, ainda com Duarte, concorreram para que a mulher
brasileira saísse da reclusão do espaço privado que lhe era destinado e passasse a circular pelo
espaço público de “forma inédita,” fato que não passou despercebido a Jorge Amado. A
contingência da “exposição do corpo” feminino nesse novo contexto acaba por dar margem a
uma reação masculina bem comum, que é a idealização, “em proveito próprio,” da liberdade
conquistada pelas mulheres.
Declara Duarte que a partir de Gabriela, cravo e canela, pela primeira vez na obra
desse escritor,
vemos a mulher passar a epicentro narrativo e ascender a verdadeiro mito
sexual. [...] No entanto, sua obra está lastreada em várias figurações anteriores
de um feminino que tinha sempre destacada sua força – Linda, em Suor; Lívia,
em Mar Morto; Mariana, em Subterrâneos da Liberdade ou denunciada a
condição de objeto sexual – Maria do Espírito Santo, em Suor; as três irmãs
195
196
Cf. REIS., Op. cit., p.21.
Id.; Ibid.;. p. 22.
86
prostituídas, em Terras do sem Fim; Marta , em Seara Vermelha. 197
Não se pode atribuir ao acaso a predileção do escritor Jorge Amado pelo universo
feminino, mesmo em romances que sucederam Gabriela, cravo e canela (1958): Dona Flor e
seus dois maridos (1966), Teresa Batista cansada de guerra (1972), Tieta do Agreste (1977),
personagens romanescas que, dando títulos aos romances, explodiram no mercado como bestsellers, num tempo em que a luta da mulher para entrar em cena e ocupar o espaço público se
configura como vigorosa.
Os anos 1920 marcam no Brasil a luta das mulheres pela educação e por direitos civis.
A partir dos anos 1960, e em especial na década de 1970, período que compreende a
publicação de Gabriela, cravo e canela, Dona Flor e seus dois maridos e Tereza Batista
cansada de guerra, sintonizadas com os movimentos feministas dos Estados Unidos e da
Europa, as mulheres vão tomando consciência das desigualdades a que se acham submetidas,
tempo em que Jorge Amado, numa homologia com a história, passa a privilegiar, nos seus
romances, as heroínas femininas.
Duarte recorda que, por conta desses acontecimentos, inúmeros foram os poemas,
contos, romances, filmes e canções inspirados na presença maciça e cada vez mais freqüente da
mulher na esfera pública, e como um exemplo significativo da época cita a figura da Garota de
Ipanema, um hino de exaltação à mulher, apesar de a mesma ser cantada “como um elemento
da paisagem e nada mais.” Em contrapartida, ressalva Duarte, na representação feminina de
Gabriela
a mulher existe sim, como objeto erótico a insuflar a fantasia de quantos a
conhecem, mas, junto com esse objeto desejado existe nela um vigoroso sujeito
desejante que, pela fidelidade ao eros se afirma enquanto tal a ponto de trocar o
casamento pelo prazer e a segurança do lar por um momento de gozo, mas
como um objeto desejado.198
Reafirmada pelo crítico, e apontada por alguns estudiosos da ficcção amadiana, é a
capacidade do escritor para as sínteses históricas. Assis Duarte destaca no romance, através das
personagens Ofenísia, Sinhazinha, Glória, Malvina e Gabriela, as diferentes etapas da trajetória
da mulher na luta pela superação do machismo, um contraponto à leitura de Roberto Reis, que
aponta para outra direção. O crítico sublinha a abertura de Amado ao dar vez ao povo, ao
negro e agora à mulher, numa perspectiva de classe para a de gênero e etnia, questões da pauta
cultural contemporânea, o que demonstra, segundo Duarte, que Amado é detentor de “uma
197
Cf. Eduardo Assis DUARTE. Classe, gênero e etnia: povo e público na ficção de Jorge Amado. Cadernos de
Literatura Brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Sales, n. 3, 1997. p. 94.
198
Cf. DUARTE, 1997. Op., cit., p.97.
87
escrita permanentemente demarcada pelo relógio da história.” 199
A avaliação crítica do romance Gabriela, cravo e canela é objeto da crítica acadêmica
de autoria feminina, que expõe uma apreciação marcada também pela perspectiva de gênero.
Tal produção, quantitativamente pequena, se destaca num contexto em que as lutas feministas
já estão muito disseminadas e as mulheres conquistam alguns espaços públicos, dentre eles, as
universidades. Algumas das autoras são militantes do movimento, mostrando-se contundentes
na condenação ao escritor, o que não ocorreu no período áureo da crítica de rodapé, quando as
mulheres tinham uma inserção pública ainda muito tímida.
No conjunto da recepção critica feminista da obra amadiana, ocupa lugar de destaque a
análise que a intelectual Walnice Galvão desenvolve a respeito da representação do feminino
nos romances do autor, tomando como modelo a personagem principal do romance Tereza
Batista cansada de guerra, que “se ergue como uma notável produção imaginária de
machismo latino-americano, ”
200
no dizer de Galvão. Márcia Rios da Silva retoma esses
estudos quando analisa a recepção do público feminino de Jorge Amado através das cartas de
leitoras de romances do escritor, apontando para o fato de essa representação e de outras
criadas por Amado terem levado a crítica feminista no Brasil a reagir, constituindo-se
justamente como alvo de ataque de uma parcela da crítica acadêmica de autoria feminina “na
voga das leituras interpretativas politicamente corretas da década de 70,” 201como a leitura de
Walnice Galvão.
Na tentativa de compreender o que move Jorge Amado, um escritor do sexo
masculino, cidadão que fala de um país historicamente patriarcal, nascido numa Bahia ainda
provinciana, a construir personagens femininas, cujas vidas oscilam entre o excesso e a falta
de liberdade e afirmação, não poderia deixar, mesmo tangenciando, de refletir sobre as
questões de gênero que perpassam pelas leituras do romance baseadas na contribuição da
crítica feminista. De acordo com Tereza de Lauretis, pesquisadora e crítica feminista, na
questão de gênero, assim como o real, não é apenas o efeito da representação que conta, mas o
seu excesso, aquilo que pode ser encontrado fora do discurso, os “space-off” de suas
representações, que é “o espaço não visível no quadro, mas que não pode ser inferido a partir
199
200
Cf. Walnice Nogueira GALVÃO. Amado: respeitoso respeitável. In: Saco de gatos; ensaios críticos. São
Paulo: Duas idades, 1976. p.21.
201
Cf. Márcia Rios da SILVA. O rumor das cartas; um estudo d recepção de Jorge Amado. Salvador: Fundação
Gregório de Matos; EDUFBA, 2006. p. 103. ( Série, 3).
88
daquilo que a imagem torna visível nos espaços das instituições, dos discursos, das práticas
diárias, nas produções culturais, [nelas incluídas] as produções femininas.” 202
Dessa forma, Dawn Lande, crítica de formação feminista, para conceituar a mulher
leitora, parte do princípio de que as percepções literárias femininas não deixam de ser
oriundas da própria sensibilidade e da experiência das mulheres. Tal assertiva leva a
pesquisadora a defender o pressuposto de que essa experiência pode levar a crítica feminista a
“avaliar obras de forma diferente de seus correlatos masculinos.”
204
Jonathan Culler,
203
Já o crítico literário
ao traçar o itinerário da crítica feminista, considera que, no seu primeiro
momento, o conceito de “leitora” está atrelado a uma continuidade entre a experiência das
mulheres, como mulheres, e sua experiência como leitoras, conforme Lande. O que advém
dessa premissa é uma indução ao interesse, por parte das mulheres, pela psicologia das
personagens femininas, pelas atitudes em relação às mulheres e uma acuidade excessiva em
relação às “imagens de mulher” representadas nas obras literárias, contrapondo-se a uma
tradição patriarcal, da própria crítica, que sempre deu o devido destaque ao universo
masculino.
Na primeira década de 1990, quando os estudos feministas ganham espaço e buscam
descobrir caminhos e posturas ideológicas distantes dos modelos metodológicos tradicionais,
a revista EXU
205
publica o ensaio de autoria da pesquisadora alagoana Belmira Magalhães
(1990), intitulado Uma análise da representação de gênero na literatura contemporânea,
adotando procedimentos teóricos das relações de gênero no estudo das práticas sociais do
romance Gabriela, cravo e canela.
Na opinião de Magalhães, Jorge Amado, no romance, apresenta a problemática
feminina de forma interferidora na realidade através do papel exercido pela mulher na
estrutura familiar e na construção da sociedade. No entanto, ao delinear as figuras femininas e
seus rígidos papéis sociais, Jorge Amado aponta para as características fundamentais da
sociedade brasileira dos anos 1920, para as suas raízes rurais que apesar do processo de
modernização pelo qual está passando, “não consegue mudanças estruturais: há apenas uma
reorganização na velha ordem vigente,”
206
leitura que, nas suas proposições, se coloca na
mesma clave do crítico Roberto Reis.
202
LAURETIS, 1994 apud SILVA,2006. p. 92.
LANDE, [199 ] apud Jonathan CULLER. In: Sobre a desconstrução. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos
Ventos,1997. p. 55.
204
Cf. CULLER, Op. cit., p. 56.
205
Publicação trimestral da Fundação Casa de Jorge Amado.
206
Cf. Belmira MAGALHÃES. Uma análise da representação de gênero na literatura brasileira. Exu, Salvador,
Fundação Casa de Jorge Amado, n. 35, 199. p. 31.
203
89
Para Magalhães, apesar de situar-se, aparentemente, à margem do contexto, Gabriela
expressa a possibilidade de mudança daquela realidade, significando a utopia do autor, a sua
crença na mudança. E por conta dessa utopia, afirma Magalhães, Jorge Amado constrói a
personagem Gabriela que representa
o novo que não paga tributo ao velho por que dele não depende. Gabriela é
amoral. Ela não infringe regras, porque seus parâmetros de vida não são
regidos pelas regras vigentes. O estereótipo da mulher baseado nos papéis que
lhe são atribuídos [que] nada significam para ela.” 207
Há, por parte do romancista, afirma Magalhães, uma tentativa de enquadrá-la no
sistema, através do casamento com Nacib, do qual poderia advir uma “domesticação.” A
opção de Amado é dar ao personagem uma alternativa de liberdade, não lhe submetendo ao
destino que lhe estaria reservado - a punição com a morte por ter cometido o adultério,
conforme as regras da sociedade ilheense. Esse destino, se lhe fosse reservado, não faria
sentido, no dizer de Magalhães, desde quando “como pode ser punida quem não infringiu
regras porque não as tem?” 208
A saída encontrada pelo romancista é não decretar-lhe a morte, “a solução é devolver à
sua personagem o que é dela, extirpando-lhe o que lhe foi imposto pelo contexto social em
que a inseriu. Devolve-lhe a identidade, recupera-lhe o prazer.”
209
Caso contrário, afirma
Magalhães,
Jorge Amado estaria negando a possibilidade de mudança [e através de]
Gabriela, personagem central do romance, Jorge Amado coloca o
possívelsalto de qualidade, ela representa o vôo de Jorge Amado. Vôo
pequeno, cheio de contradições, mas que pressupõe a efetiva possibilidade
de mudança.210
3.3 Entre os muros da academia
Eduardo Assis Duarte, Professor Doutor em Teoria da Literatura e Literatura
Comparada, na sua dissertação de Mestrado, defendida em 1978, A mecânica de um recalque:
207
Id.; Ibid.; p.31.
Id.; Ibid.;, p.32.
209
Cf. MAGALHÃES, Op. cit., p.32.
210
Id.; Ibid.,, p.34.
208
90
leitura intertextual de Iracema, O Cortiço e Gabriela, cravo e canela,
211
aborda a
representação do feminino na obra de Jorge Amado, Aloísio de Azevedo e José de Alencar
dentro de uma perspectiva comparatista, partindo do que há em comum entre eles: a
organização em torno da relação amorosa entre mulheres brasileiras e homens estrangeiros,
além do sucesso alcançado por esses romances, junto ao público leitor.
No dizer de Duarte, “Iracema, Rita Bahiana e Gabriela, surgem inscritas como
metáforas da terra tropical, enquanto Martim, Jerônimo e Nacib representam, cada um a seu
modo, o espírito do colonizador ou do imigrante que chega para fazer a América.”212 As
oposições entre esses pares inter-raciais não se limitam só ao sexo, à raça e à cultura, salienta
o crítico, ele os vê como constitutivos de “ordens e sistemas de valores” conflitantes que
passam a exigir um posicionamento dos seus narradores.
A partir dessas observações, Duarte “persegue” no discurso dos romancistas –
“masculinos e brancos” – pistas que sinalizem o comportamento diante dessas relações tão
contrárias. Em Gabriela, cravo e canela ressalta a diferença no “tom” com que Jorge Amado
constrói o personagem central do romance, divergente de Aloísio de Azevedo, que imprime a
Rita Baiana, personagem do O Cortiço, um “furor moralizante e contraditório,” enquanto
Gabriela recebe de Amado uma carga idealizante que mais a aproxima de Iracema que de
Rita Bahiana ou Bertoleza. Contudo, para Duarte, “Gabriela tem repetido na sua configuração
dramática o estereótipo da ‘mulata assanhada’ com o erotismo à flor da pele,”
213
características flagrantes na composição do personagem – no canto, no olhar, na brejeirice –
que apontam a idealização de Jorge Amado de uma companheira perfeita, numa perspectiva
denominada por Walnice Galvão de “machismo progressista.” 214
Apoiando-se em conceitos e avaliações depreciativas e reincidentes nos anos de 1970
sobre a ficção amadiana, mais centrados no homem que na obra, Duarte se apropria de uma
declaração de Amado, “sou apenas um baiano ‘romântico e sensual’” para justificar o teor da
sua análise:
Quanto a Nacib, tamanha bondade só podia encontrar no homem alguma
recíproca. E o narrador assim procede ao fazer seu personagem subverter a
norma patriarcal que mandava matar a esposa infiel. Baianamente tudo se
ajeita [...]. 215 [grifo nosso].
211
Um resumo da tese, Mulher e preconceito (s) no romance brasileiro foi publicado pelo autor na obra Mulher
e literatura. Belo Horizonte: ANPOLL, VITAE, UFMG, 1990. Nossa análise foi baseada no referido resumo.
212
Cf. Eduardo Assis DUARTE, 1990. p. 192.
213
Id.; Ibid.; p. 198.
214
GALVÃO, 1976 apud. DUARTE, 1990, p.198. .
215
Cf. DUARTE, 1978. Op. cit., p. 199.
91
Na mesma clave, Duarte conclui afirmando que “Jorge Amado acabou criando a
utopia da empregada ideal, segundo os padrões do macho brasileiro. Num país onde todos
adoram uma boa empregada o livro só podia mesmo fazer muito sucesso.” 216Ao insinuar que
“baianamente tudo se ajeita,” percebe-se que o crítico se afasta da linguagem analítica para
um registro coloquial, Que reincide em avaliações que ao regionalizar a produção amadiana,
imprime-lhe uma desqualificação preconceituosa, tal qual a História concisa da literatura
brasileira, de autoria de Alfredo Bosi, cuja avaliação desqualificadora, centrada nas
características regionais da produção literária de Amado e do romance Gabriela, cravo e
canela, foi objeto de estudo da pesquisadora amadiana Ívia Alves. 217
Na produção crítica de Eduardo Assis Duarte, reconhecido pesquisador da obra
amadiana, esse é o primeiro trabalho sobre a obra de Jorge Amado.218 Nele se percebe uma
crítica caustica à representação feminina de Gabriela. Como prova das mudanças pelas quais
tem passado tanto a crítica quanto os críticos, num artigo datado de 1997, portanto 19 anos
depois, Classe, gênero e etnia: povo e público na ficção de Jorge Amado, incluído nesse
estudo219, o mesmo Duarte tece largos elogios à construção romanesca de Amado, pondo em
relevo a personagem Gabriela, retirando-lhe o status de objeto desejado para um “vigoroso
sujeito desejante.” No mesmo ensaio, eleva “o pendor autoral às sínteses históricas” nutrido
por Amado, elogiando a capacidade do romancista de representar no romance “as diversas
etapas da trajetória feminina em busca da realização pessoal e da superação do machismo.” 220
Isso prova que o estudo da recepção crítica da obra amadiana, cuja trajetória se estende
por mais de 60 anos, deixa transparecer e abre espaço para o estudo dos caminhos percorridos
pela crítica literária brasileira e ademais que se impõe uma diferença entre o efeito que uma
obra pode exercer sobre o leitor num determinado momento e as diferentes interpretações de
que será objeto através do tempo.
A trajetória intelectual de Jorge Amado foi objeto da tese de doutorado do antropólogo
Alfredo Wagner Berno de Almeida (1979), defendida na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, na qual dedica um capítulo às transformações ocorridas, tanto na produção literária
216
Id.; Ibid.; p. 199.
ALVES, Ívia. De paradigmas, cânones e avaliações – ou dos valores negativos da produção literária de Jorge
Amado. Trabalho apresentado no III Seminário de História da Literatura PUCRS 5-7 de outubro de 1999.
218
Fonte: Plataforma do Curriculum Lattes.
219
Ensaio incluído no grupo da crítica acadêmica publicada em revistas especializadas. 1997.
220
Cf. DUARTE, 1993, Op. cit., p.96.
217
92
quanto no pensamento do romancista, na época do lançamento de Gabriela, cravo e canela: O
romance picaresco e a consagração máxima ou uma reconciliação.221
Almeida considera que a partir de Gabriela, cravo e canela “o autor dispõe ao público
o produto de seu trabalho literário supostamente edificado em outras bases,”
222
desfazendo,
no plano da literatura, a situação ambígua causada pelo seu desligamento do Partido
Comunista. Nesse momento, ainda segundo Almeida, ao expor suas “incursões em teorias de
fabricação artística,” Amado desperta no meio literário exacerbadas polêmicas. O estudo de
Almeida estende-se pela análise da crítica ao romancista e ao romance Gabriela, cravo e
canela, pontuando as leituras das correntes do pensamento crítico, vigentes na época da sua
publicação, sua aceitação e restrição nos meios literários, a repercussão no mercado de sua
produção literária, sua aceitação tanto no meio literário quanto no social, dando destaque ao
percurso e às relações políticas mantidas pelo escritor.
No dizer de Almeida, a trajetória do romancista é marcada por restrições e aceitações.
No âmbito das interpretações, essas restrições perduram e são relacionadas volta e meia
quando do lançamento de novos trabalhos ou de reedições. Percebe-se, no entanto, prossegue
Almeida, uma “direção inequívoca que se esboça no seu projeto criador e que conflui com o
seu ingresso formal em instituições de consagração e legitimação da produção intelectual,”223
representado pela entrada de Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras, quando se dá, segundo
Almeida, a “consagração máxima “ do escritor. Quanto à aceitação social de Amado, sinaliza
para o fato de ela não se manter circunscrita aos agentes do campo intelectual, aos críticos
literários,
ultrapassa os ledores habituais, encontrando ressonância nos domínios da
cena política oficial onde próceres políticos confessam-se seus admiradores
e se empenham em tornar isto o mais público possível. Ao mais altos
mandatários, presidentes da República e ministros, apresentam-se como
leitores de Gabriela e lhe fazem loas.[...]. 224
A análise de Almeida, apesar de focada nas transformações do pensamento político de
Amado que antecederam ao período da produção do romance Gabriela cravo e canela,
privilegia os laços que o autor manteve com os intérpretes e instituições do seu tempo.
221
ALMEIDA, Alfredo Berno de. O romance picaresco e a consagração máxima ou uma reconciliação. In:
Jorge Amado: política e literatura; um estudo sobre a trajetória intelectual de Jorge Amado. Rio de Janeiro:
Campus, 1979.
222
Id.; Ibid.; p. 245.
223
Id.; Ibid.; p. 258.
224
Id.; Ibid.; p. 258.
93
Com um viés sociológico, o acadêmico Milton Araújo Moura (1986) defende a tese de
que Jorge Amado, no romance Gabriela, cravo e canela, reconstituiu a vida social de Ilhéus
de 1925, focada na experiência travada por Nacib e Gabriela. Esses personagens representam
a luta entre a tradição e o progresso vivida pela cidade de Ilhéus, do romance, principalmente
Nacib, por inaugurar “um novo tipo de comportamento conjugal.” Mesmo não se dando conta
do alcance da sua atitude - não matar a mulher que lhe fora adúltera -, Nacib, conforme
Moura, personificou o novo padrão masculino, representativo da ruptura com a tradição
patriarcal vigente naquela sociedade.
Dessa leitura, ressai a concepção de que Nacib é o personagem “mais bem construído
do romance, com mais riqueza e abrangência, com mais pormenores e mais envolvimento
com a sociedade subjacente, envolvente e involvente.” 225. No dizer de Milton Moura, ele é a
representação que favorece uma melhor revelação da realidade de Ilhéus.
No universo da recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela percebe-se uma
reincidência de focos e práticas analíticas, uma diversidade de modos de ler o romance que
perpassam inicialmente pelas questões ideológicas, transitam pelas questões estéticas,
abordam a questão de gênero, mas mantendo o foco sempre direcionado para a personagem
central do romance - Gabriela. A leitura de Moura desvia-se desse rumo ao eleger Nacib
como o eixo condutor da análise que desenvolve sobre o romance, por ver no personagem “o
espaço onde se opera mais que em qualquer outro, o processo de luta e transformação de
Ilhéus entre tradição e progresso.” 226
Como exemplo dessa luta por mudanças, representada por Nacib, Moura traz o
momento que lhe é favorecido pelo narrador - o de flagrar o adultério de Gabriela. Nesse
instante, na opinião do ensaísta, todas as possibilidades contidas na história de Ilhéus entre a
tradição e o progresso se ofereciam ao marido enganado que, por não ter “natureza para
matar,” faz uma opção pela fuga. No entanto, segundo o sociólogo, a consumação da fuga
representaria a permanência do status quo vigente naquela sociedade. O fato de o romancista
ter apontado como saída para o personagem a anulação do casamento, marca o momento, de
acordo com Moura, em que “o romance começa a dar a verdadeira medida do que acontecerá
em Ilhéus a partir de grandes e menores acontecimentos na vida política da cidade, [o
225
Cf. Milton Araújo MOURA. Nacib Saad e a civilização; ensaio de sociologia dos sofrimentos, prazeres e
decisões do dono do Bar Vesúvio, entre tradição e o progresso de sua cidade quase natal. Salvador, UFBA, 1986.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais.
226
Id.; Ibid.; p. 104.
94
momento em que Nacib] saía de sua neutralidade absoluta e tomava partido do progresso.”227
Ainda segundo Moura, na realidade social de Ilhéus da década de 20,
coube ao árabe Nacib tão prosaico e até desapercebido, inaugurar o progresso
nas coisas do amor [...]. Foi preciso que um indivíduo inteiramente imerso nas
vicissitudes do cotidiano mais chão e histórico vivesse o drama para
consubstanciar uma mudança naquele estatuto moral. Quando havia já espaço
e possibilidade de outro comportamento, Nacib se fez atípico, singular,
inédito. Deixou-se levar pelo sentimento, e assim descobriu que estava
descerrada a placa do futuro no domínio das relações conjugais. 228
Como um anti-herói, e assim o vê Eduardo Portela, Nacib acaba por representar às
avessas a luta das mulheres pelo direito ao exercício da escolha do seu objeto de desejo, um
avanço nas relações e uma quebra de paradigmas sustentados pelos velhos coronéis do cacau,
conclusão a que chega o sociólogo Milton Moura.
“Suponha [agora] que o leitor instruído de uma obra literária seja uma mulher.”
229
Nesse caso, duas mulheres, acadêmicas, efetuam uma leitura do romance Gabriela, cravo e
canela sob a perspectiva dos estudos de gênero, na primeira década de 1990, sendo que cada
uma delas lê o romance de forma diferente, ressignificando-o através da adoção e utilização
de aportes analíticos variados. Transformada a problemática feminina numa questão
intelectual, consolidam-se nesse período os estudos de gênero nas universidades brasileiras e a
formação de uma consciência crítica que resulta na produção de importantes estudos sobre a
condição feminina e as relações de gênero. 230
A perspectiva interdisciplinar passa a se constituir para a crítica feminista, como o
princípio norteador dos estudos de gênero e da condição feminina, agora tratada à luz de
distintos campos do saber, dentre eles a literatura. Nesse contexto intelectual e acadêmico,
inserem-se os trabalhos desenvolvidos por Rosana Ribeiro Patrício, da Universidade Federal
da Paraíba (1992) e Ana Aline Moraes de Oliveira, da Universidade Federal de Natal (1996),
sobre o romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, em forma de dissertação de
mestrado.
A reflexão crítica sobre o romance desenvolvida por Patrício se incumbe de analisar os
comportamentos de algumas personagens femininas, considerados pela sociedade de Ilhéus
227
Id.; Ibid.; p. 108.
Cf. MOURA, Op. cit., p. 113.
229
Essa suposição lançada por Culler introduz o estudo que faz sobre a mulher leitora centrado, nas teorias da
crítica feminista. Cf. Jonathan, CULLER. Leitores e leituras. In: ---. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do
pós-estruturalismo. Tradução Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p.52.
230
Cf. Ana Alice Alcântara COSTA; Ívia Iracema ALVES. Ritos, Mitos e fatos; mulher e gênero na Bahia.
Salvador: FFCH/NEIM, 1997. p. 5.
228
95
como transgressivos. Os papéis atribuídos a cada categoria de mulher - mulher de família,
solteironas, empregadas domésticas, raparigas, filhas de família -, a subordinação a que
estavam sujeitas, aprofundando o estudo na representação da personagem Gabriela, enquanto
símbolo da identidade nacional, conforme intenção manifesta do autor, aspectos que, segundo
Patrício, têm sido pouco tratados pela ensaística brasileira.
Considerando que as personagens romanescas de Jorge Amado se constituem numa
temática relevante, por suscitar uma gama de reflexões acerca da representação da mulher na
literatura brasileira, na dissertação Gabriela e as outras (a representação da mulher em
Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado), Patrício recorre a algumas formulações acerca dos
valores patriarcais que delimitam o papel da mulher na sociedade brasileira, para analisar o
universo feminino representado no romance.
Não fugindo à regra, a trama romanesca que envolve o idílio entre Nacib e Gabriela é
o epicentro da análise de Patrício, culminando no episódio da transgressão cometida por
Gabriela e num posterior desenlace do casal. Importa saber como Patrício o interpreta. A
trajetória da personagem Gabriela propicia a leitura dos valores tradicionais que a velha
ordem oligárquica impõe às relações sociais de Ilhéus. No “episódio da transgressão,”
Gabriela, fugindo ao modelo de mulher virtuosa, trai o marido, e os interesses masculinos
acabam por prevalecer - o casamento é anulado e Gabriela retorna à condição anterior de
empregada e amante.
Na leitura que Patrício faz do retorno de Gabriela à condição anterior de empregada,
reside a diferença da sua para a leitura de Roberto Reis, e mesmo para a leitura de Belmira
Magalhães. Patrício afirma não estar implícita nessa volta nenhuma humilhação ou
negatividade e que a protagonista empreende uma trajetória inversa, ao afirmar-se como
“mulher-sentidos”. Afirma Patrício que, ao ser inapta para o papel de esposa, Gabriela aponta
para a rejeição a um modelo de casamento tradicional vigente na sociedade de Ilhéus, modelo
visto, numa perspectiva crítica, como forma de submissão da mulher. Patrício não deixa, no
entanto, de atentar para o seguinte fato:
A ótica dos personagens masculinos comanda o desenrolar dos eventos, já que
eles são apresentados como detentores do discurso “competente”, através do
qual defendem e tentam dirigir o destino das mulheres. A prevalência dos
interesses masculinos no encaminhamento das soluções do enredo são
reafirmados pela ótica do narrador[...].231
231
Cf. Rosana Maria Ribeiro PATRÍCIO. Gabriela e as outras: (a representação da mulher em Gabriela, cravo e
canela de Jorge Amado. João Pessoa: UFPa, 1992. p.142. Dissertação de Mestrado.
96
Apesar de ver na representação da personagem Gabriela aspectos e comportamentos
que apontam para uma liberdade feminina na trama urdida no romance, Patrício ainda percebe
que subjaz o comando do masculino sobre o destino das mulheres como reminiscências não
superadas pelo seu narrador.
Tomando como fio condutor os poemas que introduzem os capítulos de Gabriela,
cravo e canela, Ana Aline Moraes de Oliveira232 faz uma leitura do romance retomando
questões pertinentes à construção literária do romance, numa outra perspectiva, não mais com
um postura judicativa. Apropria-se também das teorias da crítica feminista para abordar a
questão arquetípica da sujeição através das figuras femininas representadas no romance desde
Ofenísia até Gabriela.
Oliveira busca demonstrar, como a personagem Ofenísia, para a estrutura do romance,
torna-se um arquétipo sempre presente nas ações das outras personagens femininas do
romance, que apesar de estarem inseridas num contexto que se pretende em transformação,
carregam características do velho modelo feminino.
Toma como eixo analítico do estudo os versos introdutórios de cada capítulo do
romance: rondó de Ofenísia, lamento de Glória, cantiga de ninar para Malvina e cantiga de
amigo para Gabriela, que, no seu entendimento, expressam o discurso feminino. Recorrendo
aos fundamentos da Teoria Literária, delimita os gêneros e movimentos literários aos quais
esses versos pertencem, cuja forma poética são adequadas pelo romancista à estória de cada
personagem. A análise de Ana Aline resulta por demonstrar que, a partir de Ofenísia,
organiza-se no romance uma trajetória de rupturas do padrão arquetípico feminino em cada
nova personagem introduzida na narrativa pelo romancista.
Fica evidente nos estudos desenvolvidos até o momento pela crítica considerada
acadêmica que, seja qual for a perspectiva de abordagem da leitura do romance Gabriela,
cravo e canela, o foco vai se desviando do julgamento do valor literário da obra. A perda da
hegemonia do literário abre outras possibilidades de leitura do romance como a do sociólogo
Antonio Jonas Dias Filho (1998), mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia.
Através da leitura crítica de obras literárias, dentre elas Gabriela, cravo e canela, procura
mostrar que “as construções em torno de mulheres negras e mestiças, através de falas,
práticas, textos e imagens fotográficas, na Bahia, principalmente em Salvador nos anos 90,
232
Cf. Ana Aline de Moraes OLIVEIRA. De Ofenísia a Gabriela: a superação de um arquétipo. Natal:
PPGEL/UFRGN, 1996.
97
seriam projetadas para a noção de identidade,”
233
que, assim construída, contribui para
alimentar o imaginário de turistas estrangeiros e estreitar a rede do que ele denomina de
“Circuito do Turismo Sexual de Salvador.”234
O trabalho busca respostas através das noções de sexualidade, gênero, raça e
identidade para a questão que circunda o comércio exterior do sexo entre turistas estrangeiros
e mulheres negras e mestiças. Dias Filho parte do princípio de que a construção desse
comércio e as propagandas construídas e veiculadas sobre a Bahia produzem “novos
estereótipos e clichês” das mulheres negras e mestiças, através dos quais se projeta a noção de
identidade do povo baiano marcada pela sensualidade atribuída a essas mulheres.
Pelo entendimento de que a literatura brasileira representa uma fonte constitutiva de
representações da sensualidade das mulatas, na mesma clave de Eduardo Assis Duarte e
Sebastião Vila Nova, o ensaísta analisa as obras O Mulato e O Cortiço, de Aluísio de
Azevedo, e Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, com a intenção de apontar aspectos
que contribuem para a construção, no imaginário da sociedade, do estereótipo da mulher
negra e mestiça. Ao atribuir responsabilidade à literatura pela construção de imagens da Bahia
e das mulheres mestiças, em especial, Dias Filho abre a possibilidade de refletir-se sobre o
conceito de imaginário elaborado por Pesavento como um conjunto de representações
coletivas construídas sobre a realidade, que parte do princípio de que essa construção de
sentido é social e histórica e que ela se
expressa por palavras/discursos/sons por imagens, coisas, materialidades e por
práticas, ritos, performances. O imaginário comporta crenças, mitos,
ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões,
hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. [Como] um
saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.235
Quando essa produção de sentido se expressa através do discurso, e esse discurso
ultrapassa fronteiras culturais, a tradução se constitui numa via de acesso, veiculação e
sedimentação de imagens entre diferentes povos e comunidades. Assim tem sido com a
produção literária amadiana. As traduções do romance Gabriela, cravo e canela e as suas
233
Cf. Antonio Jonas DIAS FILHO. Fulôs, Ritas, Gabrielas, gringólogas e garotas de programa; falas, práticas,
textos e imagens em torno de negras, mestiças, que apontam para a construção da identidade nacional a partir da
sensualidade atribuída à mulher brasileira. Salvador: UFBA, 1998. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais.
234
Denominação dada pelo autor aos “lugares da Região Metropolitana de Salvador, aos eventos e pessoas que
movimentam milhares de reais, tendo como público preferencial os turistas estrangeiros do sexo masculino em
busca de aventuras eróticas”. Cf. DIAS FILHO, 1998. p. 9.
235
Cf. Sandra Jatahy PESAVENTO. História & História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 43.
(Coleção História &...Reflexões, 5).
98
tiragens espetaculares têm se constituído numa via de acesso para a entrada, em muitos países
da literatura brasileira. Essa internacionalização do escritor e da obra tem possibilitado uma
relação dialógica e o encontro entre alteridades, entre a cultura brasileira e a cultura
estrangeira, favorecendo a construção e representação de imagens do Brasil, da Bahia, do seu
povo, tributárias de certa opção ideológica, moldadas por valores pré-existentes na cultura que
nos olha e que nos lê.
Segundo Brunel & Chevrel,236 desse processo advém a formação de estereótipos como
um índice de uma comunicação unívoca de uma cultura que reduz o Outro a uma
“personalidade base,” a um “indivíduo tipo.” Como modelo de construção e representação de
estereótipos presente na obra amadiana, Dias Filho traz Balduíno, personagem central do
romance Jubiabá, cujo “instinto,” voltado totalmente para a atividade sexual, é “retratado
como lascivo e insaciável,” enquanto Gabriela, mulata sensual, representa o “símbolo da
beleza e desejo nacional.” De acordo com Dias Filho, Amado reitera a lógica acerca da
sexualidade de negros e mulatos, muito presente em sua obra, quando “nos remete para o mito
da mulher mulata como objeto sexual, como Gabriela, por exemplo, que seria o equivalente
feminino de Balduíno. 237
Dito isto, não só à produção literária de Amado tem se atribuído as visões literárias da
Bahia e do Brasil que alimentam o imaginário de brasileiros e estrangeiros. Tendo cultivado
uma extensa rede de relacionamento no Brasil e no exterior, e estando sempre presente na
pauta dos meios de comunicação de massa, alvo de entrevistas e pronunciamentos, Jorge
Amado sempre deixou escapar o exotismo, a exuberância e a sensualidade como
características do povo e da mulher brasileira.
Entrevistado pela revista Playboy, e questionado sobre a sexualidade da mulher
baiana, Jorge Amado declara: “Acho que os brasileiros são sensuais. Nós somos mestiços,
resultado de uma mistura de povos de grande vigor de ordem sexual. E somos muito sensuais,
na dança, na culinária, etc.”
238
Tal assertiva enquadra-se no modelo de representação da
personagem Gabriela, uma mulher mestiça que, também no dizer de Patrício, insere-se no
projeto do autor de representar na ficção um modelo ideal de mulher brasileira, símbolo da
identidade nacional.
É, portanto, da construção e reiteração da imagem da mulher mestiça na literatura
brasileira e da participação do romance Gabriela, cravo e canela nesse processo, que advém,
236
BRUNEL.P. ; CHEVREL, Y. De l’imaginaite culturelle à l’imaginaire. In: Précis de litterature comparée.
Paris: Press Universitaires, 1999.
237
Cf. Antonio Jonas DIAS FILHO, 1998, Op. cit.; p. 80.
238
Playboy entrevista Jorge Amado. Playboy, ano 6, n. 64. 1980. p. 38.
99
segundo o ensaísta, a noção de sexualidade no Brasil, ligada fortemente à questão racial.
Constituindo-se como uma “ideologia erótica,” vinda desde o Brasil colônia, essa construção
vem alimentando o imaginário social brasileiro, produzindo enunciados e imagens acerca das
mulheres negras e mulatas. Por outro lado, vem formando redes e comunidades de sentido que
vêm sedimentando, no imaginário social, essas imagens através da reincidência e da repetição,
que não se processa só através da literatura, mas através dos homens e dos seus testemunhos,
por viajantes, pelos seus relatos, correspondências, pela iconografia, pelas traduções e
adaptações.
Essas mulheres, segundo Dias Filho, têm adquirido uma centralidade em “ditos,” cujos
enunciados se produzem e circulam em várias de suas práticas cotidianas; das práticas dessas
mulheres, dos seus agenciadores e de outros sujeitos que convivem com o “Circuito do
Turismo Sexual,” além de propagandas sobre o turismo baiano veiculadas no Brasil e no
exterior. Dias Filho chega à conclusão de que as representações sociais do turismo baiano
reforçam e criam novos estereótipos sobre a identidade negra e mestiça de Salvador e ademais
que essas representações projetam a idéia de que um dos traços distintivos da identidade
brasileira é a sensualidade da mulher de descendência africana. Das suas observações, deixa
uma pergunta no ar: “até que ponto a experiência da construção de gênero e raça do “Circuito
do Turismo Sexual” de Salvador se alinha às posições dos autores estudados?” 239 Alinha-se à
posição de Jorge Amado em Gabriela, cravo e canela?
Diante das leituras do romance Gabriela, cravo e canela feitas pela crítica acadêmica,
pode-se aferir o processo de transformação pelo qual passou a crítica literária a partir dos anos
de 1970. Da persistência e radicalidade dos valores estéticos da modernidade, impressos nas
páginas das histórias da literatura e refletidos nos julgamentos emitidos sobre o romance, às
leituras dos sociólogos, antropólogos e estudiosos da literatura, a crítica vem passando num
deslizar constante, do plano estético para o plano da cultura, numa pluralidade de
interpretações e focos analíticos que tornam visíveis os velhos e novos rumos tomados pelo
discurso crítico literário no Brasil.
239
Cf. Antonio Jonas DIAS FILHO, 1998. p. 83.
100
4 FECHANDO AS PÁGINAS
Trilhar o percurso histórico da recepção crítica do romance Gabriela, cravo e canela,
através da pluralidade de leituras e pontos de vista, deixou à mostra o acato e a rejeição aos
valores inovadores impressos na narrativa do romance, representados por uma nova
concepção estética e ideológica do escritor, assim como permitiu que fosse reconstituído o
trajeto que liga historicamente a obra ao seu passado e à experiência ressignificada desses
valores no presente.
A partir da noção de historicidade da obra de arte, que traz consigo a possibilidade de
transformação e atualização permanente de um texto literário ao longo do tempo, ficou
patente que o eixo mediador dessa permanência e atualização do romance, na pauta dos
estudos e análises literárias, está representado pela figura do leitor, e nesse caso ao leitor
crítico, junto às suas condições políticas, históricas e sociais.
Em seu estudo sobre o cânone, Roberto Reis considera que cada época é regida por
normas estéticas, convenções e valores e, portanto, “a leitura sempre estará condicionada
pelo estatuto de classe, pelo gosto, pelo lugar ocupado pelo leitor no tecido social e num dado
momento histórico,” 240 o que permite que cada uma dessas leituras traga em si uma proposta
de sentido. Segundo Reis, propostas que anseiam apagar, distorcer, dominar outras propostas
existentes. Partindo desse pressuposto, tornou-se mais compreensível a recepção do romance
Gabriela, cravo e canela e o confronto entre as condições históricas e estéticas que deram
lugar à sua aceitação e incompreensão, desde quando os seus críticos leitores concretizam
suas leituras ao dialogar com esses valores, com sua visão de mundo, classe social e história
pessoal.
A diversidade dos enfoques de leituras do romance Gabriela, cravo e canela deram
margem a uma pluralidade de interpretações, que ao longo desses quarenta anos, tempo da
pesquisa -1958-1998-, trouxeram um significado imensurável ao público leitor,
especialmente à crítica literária brasileira. Essas leituras, por outro lado, deixam entrever o
próprio percurso da crítica, as diferentes tendências interpretativas que em cada época
moldaram os julgamentos da obra literária: da crítica impressionista, também chamada de
“crítica de rodapé”, à crítica esteticista, marxista, feminista, às novas abordagens da crítica
cultural contemporânea.
240
Cf. Roberto REIS. Cânon. In: JOBIM, José Luís (org). Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo
da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 68.
101
A crítica impressionista, de rodapé, tende ao elogio encomiasta, ao desafeto, ao realce
dos defeitos e à exaltação das virtudes do escritor. No dizer do crítico Eduardo Assis Duarte,
sob o pretexto de defender a continuidade do projeto esteticista do Modernismo, a crítica
acabou caindo na unilateralidade, ressaltando às vezes os aspectos positivos, outras vezes os
aspectos negativos da obra, sem nunca chegar a uma compreensão mais profunda do objeto
analisado, não atentando para o fato de que Jorge Amado não se preocupou em ir além dele
mesmo e que em seus livros estão as marcas da sua posição política, seu distanciamento das
vanguardas modernistas, da sua atenção voltada para documentar a história, sem devaneios
psicológicos. A postura de fidelidade artística cultivada por Amado, segundo Carpeggiani,
“foi ao mesmo tempo seu inferno com a crítica e sua salvação perante o mercado.”241
Nesse primeiro momento da recepção do romance, entre os anos de 1958 a 1969,
tomam corpo os discursos que advogam pela fidelidade do escritor aos princípios do realismo
socialista, impressos na produção anterior a Gabriela, cravo e canela e destacam-se, em
volume, as críticas que contemplam e aplaudem a prioridade dada ao estético, flagradas nas
páginas do romance, em detrimento do engajamento político que norteava as suas primeiras
produções, tidas como maniqueístas e panfletárias. Tais contradições também configuram,
como um reflexo, a própria condição da crítica literária brasileira que, nesses anos, empenhase em introduzir na interpretação e análise literária critérios estéticos de valoração que lhe
auferissem o status de ciência.
Por outro lado, a crítica acadêmica, primando pelo valor literário da obra, infensa à
cultura de massa e à relação da atividade literária com o mercado, harmoniosamente
assumida por Amado, estabelece um divisor entre cultura popular e cultura erudita, alta e
baixa literatura e, com um olhar sistemático e referenciais teóricos muitas vezes inacessíveis,
silencia diante da obra do escritor. O que resulta muitas vezes desse confinamento são
leituras acadêmicas ou mesmo veleidades literárias, que olham por uma lente que não amplia,
mas reduz o seu objeto num descompasso com os rumos do debate sobre o próprio conceito
de literário.
Não restam dúvidas de que em toda sua trajetória, como escritor, Jorge Amado circulou
em espaços que ultrapassam o campo literário e entre uma significativa parcela do público
leitor médio brasileiro, através da veiculação nos meios de comunicação de massa da sua
produção literária. O fato de a sua produção ter sido veiculada no rádio, na TV, no cinema,
nas historinhas em quadrinhos, como estratégias de aproximação com o público,
241
Cf
Schneider
CARPEGIANNI.
A
revanche
de
Jorge
Amado.
http:/www.nordestweb.com/not01_0308/ne_200830319b.htm. Acesso em 31/3/2008.
Disponível
em
102
confere uma feição singular a sua recepção, no contexto da literatura
brasileira: dessacralizou o texto literário. Ao esvaziar a literatura de seu
estatuto elitista, amplia-se a noção de texto e se força uma releitura do cânon
formado, bem como uma revisão de critérios de consagração estabelecidos
pelo campo literário. 242
Os novos ares vindos do campo das Ciências Humanas, especialmente da
Antropologia, possibilitaram que a obra literária, como produção cultural, se libertasse das
análises fechadas, intrínsecas do texto e se voltasse para uma leitura interdisciplinar dos
discursos considerados como marginais pela cultura oficial.
243
Nesse contexto, datado dos
anos de 1970 e 1980, proliferam, nos meios acadêmicos, pesquisas voltadas para a releitura
de manifestações populares e para a revitalização dos discursos das minorias, nos quais se
inserem as releituras críticas do romance Gabriela, cravo e canela. A partir desse momento,
a crítica especializada passa a considerar o romance como uma fonte de referência para os
estudos da cultura, utilizando outros procedimentos como a abordagem teórica das relações
de gênero e etnia, estudos sócio-antropológicos na interpretação das práticas sociais do
romance Gabriela, cravo e canela, alguns deles compondo esse trabalho como corpus da
pesquisa.
Percebe-se que, a partir desse momento, o potencial do romance Gabriela, cravo e
canela é reatualizado através dessas novas perspectivas de leitura esboçadas nas mudanças de
relação que a obra mantém com o público leitor especializado, no âmbito das universidades
brasileiras. Do diálogo entabulado por sucessivas gerações de críticos, deve-se a contribuição
para que o romance Gabriela, cravo e canela tenha permanecido na pauta das discussões
pelo que esse texto tem de polêmico e atual, assim como a “consolidação do salto de
qualidade que assume a crítica literária ao examinar verticalmente a produção de Amado.”244
Beatriz Sarlo, no prólogo do livro A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón e
Montoneros, analisa a paisagem cultural argentina na qual está inserido o escritor Jorge Luis
Borges, uma referência incontornável no caminho que parte da literatura e leva à
compreensão do universo extra-literário. Considerando que Borges era legível e ao mesmo
tempo ilegível, não entendia o porquê dessa predileção. Situada a questão nos idos de 1970,
não imaginava que continuaria a se perguntar sobre Borges e que jamais encontraria uma
242
Cf. Márcia Rios da SILVA. O rumor das cartas: um estudo da recepção de Jorge Amado. Salvador:
PGLL/UFBA, 2002. p.2. Conclusão da Tese de Doutorado. Digitado.
243
Cf. E. Maria de SOUZA. Querelas da crítica. In: Traço crítico. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p.6.
244
Cf. Ívia ALVES. A difícil relação da crítica literária e a ficção de Jorge Amado. In: ----. (Org). Leituras
amadianas. Salvador: Quarteto; Casa de Jorge Amado, 2007. p. 132.
103
resposta que a convencesse. Confessa que Borges significava para ela “um irritante objeto de
amor e ódio,”
245
assim como para muitos intelectuais a relação com o escritor “oscilava num
conflito entre denúncia e fascínio.”246 Para Sarlo, “algo estava claro: Borges era inevitável.”247
Sinto que posso me apropriar das palavras de Sarlo depois de ter percorrido tantos
caminhos que me levaram ao universo crítico, biográfico e ficcional de Jorge Amado,
conduzida pelas mãos de Gabriela. Confesso, como Sarlo, que comunguei dos mesmos
sentimentos de fascínio e rejeição pela obra amadiana, mediados pelos preconceitos e
determinações de gosto induzidos pela crítica. Confesso que não me alardeava como leitora
de romances amadianos, enquanto mergulhava no mundo sórdido, exuberante e festivo de
seus personagens. E, como Sarlo, tenho como saldo desses dois longos anos de privação e
devassa da intimidade do autor a certeza de que Jorge é inevitável.
245
Cf. Beatriz SARLO. A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros. São Paulo: Companhia das Letras; Belo
Horizonte Editora UGMG, 2005. p. 10.
246
Id.; Ibid., p.10.
247
Id.; Ibid., p.10.
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