P á g i n a |1 www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br O sensível, demasiado sensível, da condição humana. Resenha de: HAROCHE, Claudine (2008). A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Rio de Janeiro: Contracapa. por Eliana Kuster1 O homem contemporâneo quer a sociedade na qual ele vive? Ou ele quer uma outra? Ou ainda, será que ele quer uma sociedade em geral? Cornelius Castoriadis. As encruzilhadas do labirinto: a ascensão da insignificância. A questão lançada por Castoriadis pode ser um bom ponto de partida para iniciarmos a leitura de “A condição sensível”, livro da socióloga Claudine Haroche. Valendo-se de discursos da filosofia, psicologia, sociologia, antropologia e política, Haroche nos fala do Homem, ressaltando, ao longo dos doze artigos que compõem o livro, o papel que as formas de percepção do mundo têm no engendramento desse homem nas suas construções históricas de indivíduo e sujeito. Talvez possa ser interessante começarmos esta resenha nos reportando aquilo que pode parecer óbvio ao tratarmos de um livro: o título. A condição sensível, ou seja, a nossa condição humana de apreender o mundo através daquilo que, em nós, sente. O homem é o resultado da composição das suas sensações, da sua possibilidade de ser afetado pelo mundo: do seu sensível. É através desse sensível que o mundo lhe chega. Mediado, interpretado, filtrado pelas percepções individual e coletiva. É sobre as condições dessas percepções que se debruça a autora. Foi Schopenhauer quem afirmou que “o mundo é a minha representação”, questionando assim a objetividade do real em favor da interpretação que cada um constrói desse real. Nesse sentido, a partir da leitura de Haroche, poderíamos arriscar afirmar: o mundo é a minha representação a partir da leitura que dele faz a minha sensibilidade. 1 Professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) Outubro, 2009 P á g i n a |2 www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br O que a autora faz é nos desvelar como, historicamente, aconteceu esse processo: as possibilidades de apreensão do mundo através das condições de sensibilidade de cada época e os diferentes conceitos de indivíduo – e, por conseguinte, de sociedade - que surgem a partir daí. Assim, temos na primeira parte intitulada “Moderação, postura e deferência nos gestos e nas maneiras de ser”, considerações que se baseiam na contenção pessoal, tratando o governo de si como um componente essencial para o exercício do poder e analisando-o desde a Sociedade de Corte como um fundamento para o governo dos outros. Ao assim fazer, verifica-se a transferência, para o corpo, de um status de operador político e social. Também através deste corpo e de sua organização externa podemos inferir a organização subjetiva do ser, defende Haroche, apoiada em autores como Marcel Mauss e Maurice Halbwachs. Compreender a organização da sociedade através das suas formas, ou seja, partir dos corpos concretos para, destes, chegar aos corpos políticos, e, das distâncias físicas ser capaz de chegar às distâncias subjetivas, são as transições que interessam aqui, através de atitudes como a deferência ou através de simples formas de construir o olhar para o Outro, conferindo-lhe um lugar determinado na hierarquia social. Na segunda parte, “Formas, formal, incremento do informal”, Haroche vai tratar de uma transição: de uma vida na sociedade cortesã pautada por uma consideração a outrem, que se hierarquizava naturalmente conforme fosse o seu objeto, ditando assim as formas e maneiras de comportamento, passa-se para uma sociedade pautada pela necessidade generalizada da distinção. Essa busca de reconhecimento vai contaminar os sentimentos de auto-respeito e de respeito do outro, vinculando-se à própria idéia de justiça e conferindo uma importância crucial à ‘construção de si’, afirma a autora. O crescente apagamento das formas – que traduziam através de sua aplicação todo um intrincado jogo político e social – vai, nas sociedades democráticas, dar lugar ao que Castoriadis denomina como “ascensão da insignificância”, ou seja, uma progressão contínua da informalidade no trato social e um crescente desengajamento deste mesmo social: uma exacerbação do individualismo, portanto. Outubro, 2009 P á g i n a |3 www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br “A exteriorização do homem interior” é o título da terceira parte do livro, na qual nos aproximamos do período contemporâneo: a hipermodernidade e, com ela, a emergência de novas maneiras de sentir. Haroche dá continuidade aos raciocínios anteriores, ao debruçar-se sobre as conseqüências que aquele desengajamento social já apontado tem para a constituição subjetiva do próprio indivíduo. Em outras palavras: um sujeito que não se sente mais participante do jogo social ainda é o mesmo sujeito? Quais as conseqüências subjetivas dessa desinscrição social? De que maneiras é possível a esse novo sujeito altamente individualizado, desvinculado de um conjunto, perceber o mundo? Aqui, Haroche reporta-se a Zygmunt Bauman e seu conceito de ‘sociedades líquidas’ para fazer o questionamento fundamental: “É possível pensar imerso na fluidez, sob pressão permanente e ininterrupta do fluxo? Privado de tempo, da duração exigida pelos sentimentos, o indivíduo hipermoderno pode experimentar algo diferente de sensações?” (p.123) Por fim, em “O estreitamento da consciência”, quarta e última parte, a autora densifica suas análises, lançando seu olhar sobre a mudança que a imersão contemporânea em um mundo de movimento e aceleração contínuos exerce sobre as formas de percepção, e mesmo sobre a capacidade de perceber. Apoiando-se na diferenciação entre a percepção – que seria passiva – e o pensamento – que pressupõe algo de atenção, Haroche recorre a Locke e ao encadeamento que este autor traça entre a sensação – forma primitiva de perceber e a sua elaboração: as idéias. Novamente o que nos fica é uma questão: é possível elaborar as sensações em um panorama que não cessa de modificar-se? Ou, por outra, no movimento incessante, qual a possibilidade de, muito simplesmente, pensar? As questões trazidas por Haroche em ‘A condição sensível’ partem, prioritariamente da idéia do engendramento de um sujeito a partir de sua percepção do mundo. É, a ‘condição sensível’ desse sujeito que irá lhe permitir a inscrição nesse mundo, possibilitando-lhe a porosidade necessária para esse dialogismo no qual, de um lado há os acontecimentos que compõem o mundo e, do outro, as representações que cada um é capaz de elaborar a partir de sua sensibilidade e de seu repertório interno – e, munido Outubro, 2009 P á g i n a |4 www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br dessas, passa a atuar no real. Embora concernentes ao indivíduo, estas são questões que tocam profundamente a constituição do social e, em última análise, permitem um novo olhar para as formas de organização urbana, bem como para as interdições e possibilidades apresentadas pelas cidades contemporâneas. Afinal, como antevisto por Simmel no início do século XX, “ao se tentar compreender o tecido da sociedade, os fios delicados e invisíveis que se tecem de homem a homem não serão mais considerados indignos de observação” (p.141). É assim, através da observação destes ‘fios delicados e invisíveis’, que a autora compõe aquilo que o psicanalista Joel Birman define na apresentação do livro como uma ‘sinfonia teórica’. Feliz comparação que estabelece uma metáfora da escrita da autora com uma música. Assim como em uma sinfonia na qual conseguimos, por vezes, distinguir os instrumentos que, unidos, originam a música, os textos de Haroche apresentam seu grau de independência. Podemos lê-los e considerá-los separadamente. Mas, também como os diversos instrumentos musicais em uma sinfonia, os textos da autora dialogam formando algo maior: um panorama no qual entrevemos questões que tocam profundamente o homem e a sociedade contemporâneos. Outubro, 2009