Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs)
Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da
história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto:
EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
Norbert Elias e a corte portuguesa
Luciano Cesar da Costa
Infelizmente, sociologia de Norbert Elias teve seu reconhecimento
relativamente tardio. Sua primeira grande obra, O Processo Civilizadori, foi publicada
apenas em 1939 e permaneceu pouco traduzida ao longo de boa parte do século XX.
Contudo, o mesmo não se pode falar em relação às últimas três décadas, sobretudo a
partir dos novos matizes dos ciências sociais após os anos 1970. Vemos que a obra de
Elias pareceu ressurgir nesse novo contexto. Esse trabalho insere-se nessa pretensão,
isto é, mostrar a contribuição de Norbert Elias para as humanidades, e acima de tudo,
para o conhecimento histórico. A hipótese central defendida é a de que o modelo de
sociedade de corte e sua perspectiva sobre o processo civilizador são de grande
validade para o arcabouço teórico de outros estudiosos da época moderna, contudo,
sua aplicabilidade deve ser testada em uma conjuntura empírica especifica, em nosso
caso a sociedade portuguesa de corte de fins do século XVII.
Assim, o ideal é instrumentalizar a obra de Elias. Evidente que, como qualquer
instrumento, este também apresenta seus limites. Começaremos explicando o modelo
de corte eliasiano. A sociedade de corte seria para Elias o produto de uma mudança de
hábitus, a passagem do guerreiro medieval para o nobre cortesão. O conceito de
hábitus é sem dúvida um instrumental essencial para Elias, emprestado da sociologia
clássica, mais aplicado a novos objetos, dentre os quais o mais evidentes são o
comportamento e modo de vida dos cortesãos franceses, sendo que entendo por
hábitus aquele modo de proceder e agir de um determinado segmento social. Assim,
devemos avaliar como Elias entende essa transição do guerreiro para o cortesão.
Sinteticamente, podemos dizer que a curialização ocorre quando uma determinada
família consegue ter a posse de uma extensão maior de terras e uma vasta rede
clientelar, de tal forma que nenhuma outra família rival consiga desafiar seu mando
de maneira direta, ao mesmo tempo em que este senhor mantém todos os membros de
sua família atuando em funções administrativas. ii Logo, as rivalidades não se
manifestam apenas na força da soberania central daquele que tem um exército, mas
dentro da própria casa dos Capetos, a primeira grande casa dinástica francesa. É a
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partir desse momento que os conflitos não ocorrem mais para acabar com o governo
monopolista, e sim para decidir quem vai controlá-lo. Logo, esse governante
monopolista começa a impor restrições ou satisfazer suas inclinações com
precedência sobre os demais. iii Entretanto, a formação de uma teia humana cada vez
mais vasta tende a limitar o poder de decisão do rei, ou ao menos constrangê-lo,
formando um jogo de interdependências. Ainda que exista um monopólio, aquela
sociedade tem uma livre competição, restrita, evidentemente, pela possibilidade de
acessos aos recursos. Em suma, o monopólio da força vai sendo substituído por um
monopólio de oportunidades que prescrevem uma rede de sujeitos interdependentes.
Essas interdependências se manifestavam frequentemente por meio de conflitos de
precedência, isto é, na disputa entre os nobres pela proximidade com o rei em uma
determinada cerimonia da monarquia, de tal forma que esta cerimônia funciona como
uma maquete de todo o edifício social. Portanto, iremos analisar quando esses
conflitos de precedência ocorriam entre nobres portugueses, e mais especificamente,
quando esses conflitos relacionavam-se com jogos ou duelos, sempre utilizando como
instrumental a obra de Elias.
O caso mais emblemático de sociedade de corte seria a monarquia francesa,
seguido pelo caso inglês. Note-se que essa tônica comparativa está presente em toda
obra de Elias. Nos livros Os alemães e Mozart, a sociologia de um gênio o autor foca
no processo civilizador alemão, enquanto o caso francês fica por conta dos dois
volumes do Processo Civilizador e da obra A Sociedade de Corte, por fim, temos a
sociedade inglesa que está a cargo da obra coletiva escrita com outro sociólogo Eric
Dunnig, Desporto y ócio. En el processo de la civilización.
Neste ponto, iremos analisar o papel do jogo nas sociedades modernas, e sobre
como também eles prescreviam conflitos. Uma memória frequente em relação à
infância da maioria das pessoas é a cena de cachorrinhos parecendo brigar, mas que
na verdade estão apenas brincando. Essa recordação simplória alerta-nos para a
complexidade do ato de brincar. Aqueles pequenos cães procuravam satisfazer certas
necessidades, afiar os dentes de leite ou mostrar sua afetividade. Se para os caninos o
ato de brincar representa algo, o que falar da espécie humana? Como nos lembra o
historiador neerlandês Johan Huizinga, o ato de brincar comporta para cachorros,
crianças e adultos a presença de algum significado além do jogo em si. E aí não
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contam apenas os elementos biológicos, como na recordação da infância, mas também
elementos sociais.iv As sociedades de corte, não apenas aquelas descritas por Norbert
Elias, mas todas as que empregam de alguma modo a dimensão do prestígio,
conferem grande importância ao jogo.v Assim, entende-se o prestígio a partir de um
significado mais amplo, próximo à honra e à importância social.
Assim, parece inquestionável a relevância dessa obra Desporto Y Ócio s para
a análise posta. Antes de enveredar por ela, é preciso voltar brevemente ao caráter
geral da obra de Elias. A universidade alemã estava, ao longo da primeira metade do
século XX, dominada por
abordagens empíricas e pelo funcionalismo, ambos
apresentados de maneira estática. Elias, ao ligar a sociologia à psicologia e a outras
áreas, procura acabar com essa formulação, valorizando a dimensão teóricometodológica na chamada escola “Leicesteriana”.vi Novamente, o plano teórico dos
artigos contidos nessa obra coletiva escrita por Elias e Dunning enquadra-se nessa
formulação geral, por sua vez relacionada ao processo civilizador e à formação do
Estado, tão estudado pelo sociólogo alemão. Cabe ainda destacar que a obra em
análise é um ponto de ruptura, pois em geral, a obra de Elias foi pouco aproveitada no
mundo anglófono, com a importante exceção deste trabalho em parceria com Eric
Dunning.
A questão dos jogos e do ócio é recente na sociologia (seja aquela formulada
no livro de 1986, seja na sociologia dos dias presentes). O ponto de partida é entender
porque a questão dos jogos e do ócio não era percebida como objeto relevante em
termos sociológicos. A despeito de algumas referências esparsas em Weber, esses
temas não foram analisados por nenhum dos “três mosqueteiros.”, Marx, Weber e
Durkheim. Outro argumento utilizado no processo que negava a importância dos
jogos para o campo sociológico procurava afirmar que os jogos não relacionavam-se à
dimensão econômica, apesar de essencial ao homem. Ora, esse argumento parece hoje
errôneo, pois essa crítica não considera a dimensão simbólica do esporte - veja-se as
medalhas, os prêmios e o prestígio por ele conferido.
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O grande argumento no sentido de valorizar os esportes, bem como a guerra,
como objeto sociológico e também histórico, estaria na sua configuração,
funcionando como um laboratório natural. Leia-se:
por último, puede usarse el deporte como una especia de laboratório natural donde explorar
propriedades de as relaciones sociales tales como competicíon y cooperacíon, conflito e
armonía, que logicamente y en términos de los valores independetes, parecem alternativas
mutuamente excluyentes pero que, a causa de la estrutura intrínseca del deporte, se revelan
con todo claridade en ese contexto como interdependentes. vii
Ao projetarem os esportes e jogos como maquetes sociais, esses sociólogos
apresentam a dimensão do conflito, seguindo duas análises distintas. A primeira
defende que o jogo e a guerra são opostos, uma vez que o jogo substitui a guerra; a
segunda coloca que jogo seria o vínculo ideal da guerra, aumentando a dureza e
agressividade naquela sociedade. viii Em um dos primeiro artigos da coletânea, “Lá
busqueda de la emocione en el ócio”, ilustra-se bem o enfoque eliasiano sobre o tema,
portanto
procurando
descontruir
dicotomias,
tais
como
ócio/trabalho,
harmonia/conflito. Essa última dicotomia interessa bastante, pois defendemos como
postura teórica um meio do caminho entre abordagens orgânicas e conflituosas, o que
implica ao mesmo tempo propor uma análise mais global do fenômeno do jogo e da
sociedade de corte. O ponto central é entender que os esportes formulam “grupos de
tensão controlada”, de tal forma que os impulsos violentos são controlados, e estes
mecanismos de controle tendem a avançar conforme uma dada sociedade “civiliza-se”
(para usar a expressão de Elias, emprestada de Erasmo). ix Esses grupos de tensão
manteriam um constante jogo de interdependências, impedindo a manifestação do
conflito de modo mais violento. Competições que implicariam o uso de habilidades
físicas, sem serem, entretanto, militares. A ideia é minimizar ao máximo a
possibilidade de danos físicos ao oponente.
Portanto, entender o significado social do jogo nesse contexto é de suma
importância para sua compreensão mais ampla. Como sabemos, desde o século XIII
tem-se jogado por toda a Europa o chamado jogo da péla, permanecendo vivo nos
costumes. Veja-se quando, às vésperas da Revolução Francesa, secretamente o rei
ordenou o fim das reuniões do Terceiro Estado, levando-o a reunir-se na sala de jogos
do palácio, lá permanecendo até a promulgação de uma constituição, fato conhecido
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como Juramento do Jogo da Péla. Seja como for, o jogo da péla nutria naquela
sociedade um significado que ultrapassava o jogo em si.
Nesse sentido, esse jogo também deixava evidenciarem-se alguns conflitos
de precedência no contexto estudado neste artigo, um dos quais ocorrido entre dois
partidários da nobreza lusitana seiscentista. Esses conflitos são bem relatados pela
cronística da época restauracionista porutuguesa, mais precisamente naquelas crônicas
escritas pelos partidários dos irmãos reais, D. Pedro e D. Afonso. Os irmãos
disputavam desde a morte do pai a sucessão do reino, e ainda que D. Afonso fosse
jurado rei em cortes, mais tarde seu irmão iria assumir a barca do governo como
príncipe regente. Lembre-se que essa disputa tinha como pano de fundo a Guerra de
Restaução Portuguesa, dando termo a famoso União Ibérica e restabelecendo Portugal
como monarquia independente. E dentro dessa disputa dos irmãos reais que se
escrevem duas crônicas: Catastrophe de Portugal e Anticastastrophe de Portugal, a
primeira escrita pelos defensores de D. Pedro e a segunda pelos defensores de D.
Afonso, somando-se a elas um terceiro conjunto documental: Monstruosidades do
Tempo e da Fortuna, outro valioso conjunto de crônicas.
Voltando aos jogos e seus conflitos de precedência merece destaque o
conflito ocorrido entre o marquês de Fontes e D. Antonio, filho do marquês de Minas.
A contenda relacionou-se ao jogo da péla, como vimos um motivo de inúmeras
disputas, estendendo-se de forma que acabaram os dois feridos. Deu ordem S. A. para
que fossem presos, e com a mesma facilidade com que os ânimos acenderam-se,
depois acalmavaram-se, “não havendo mais razão para a amizade, do que houve para
a pendência”.x
Outro conflito de precedência ocorreu entre duas importantes figuras da corte,
o valido de D. Afonso VI e o mordomo-mor do infante D. Pedro. A posição de valido
apresentava grande papel na sociedade moderna, e Castelo Melhor possuía o cargo de
escrivão da puridade. No mesmo sentido, teria grande destaque o cargo de mordomomor, estando no topo da hierarquia da Casa Real. Assim, a briga que se segue era, no
jargão popular, “briga de cachorros grandes”. D. Rodrigo de Meneses, mordomo-mor
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do infante, era um nobre importante na corte e teve papel essencial na formação da
Casa do Infante, e assim gerou grande influência no arbítrio de D. Pedro. Como
sabemos, os condes nomeados para a Casa do Infante (conde de S. João, conde da
Torre, conde de Aveiros e conde de Vila-Maior) não eram aliados diretos de D.
Rodrigo, contudo, todos aliançaram-se frente à ameaça do conde de Castelo Melhor.
Oposição que, para D. Rodrigo já fazia-se presente alguns anos antes no jogo da péla.
Observe-se o seguinte trecho: “havia 7 ou 8 anos que o Conde de Castelo Melhor
havia tido uma pendência com D. Rodrigo de Meneses no jogo da péla, e com o
Conde da Torre, e nela matará o Conde de Vimoso, que era da parte dos seus
contrários.” xi Dessa forma, procuravam os condes criados do infante, junto a D.
Rodrigo de Meneses, fazer frente a Castelo Melhor. Porquanto Castelo Melhor mais
tarde conseguiu que seu irmão Simão de Souza Vasconcellos fosse nomeado
governador da Casa do Infante. E logo passou D. Rodrigo a fazer descomposturas
juntos aos quatro condes a Simão de Souza, porém não revelou, aos seus amigos de
circunstância, seu real intento. Mais tarde, diante da pressão dos condes, Simão de
Sousa pediu licença ao rei para se retirar da casa do infante, ao que este nada
responde, dando-lhe as costas. E, segundo a fonte, ficou o infante tão ofendido com a
retirada que mandou que se dessem tiros em Simão de Sousa, irmão do valido do rei.
E assim, passando na frente das cavalariças do Conde de Castelo Melhor indo, para o
palácio, Simão de Sousa e o Visconde d`Asseca foram surpreendidos. Levou o
visconde duas cuteladas, ficando sem um dos braços, e dispararam dois tiros contra
Simão, ferindo seu cavalo, com o qual, não obstante o balaço, conseguiu se evadir.
Mandou o rei abrir devassa do caso, chamando os corregedores da corte para assim
evitar o escândalo que aqueles tiros tinham causado no mundo cortesão. Não se tendo
notícias dos delinquentes, o caso foi sossegado. E o pacato jogo da péla custou a um,
o braço, a outro o cavalo, mas a todos a certeza da violência de dos opositores.
Seguindo a descrição dessa fonte, vieram outras. Era comum nas ruas lisboetas
o chamado jogo das pedradas, e o pátio dos leões, local de outros exercícios, tornouse palco para agressividades. Dentro de pouco tempo estava toda a cidade envolvida
no jogo, por isso passando-se a defender uma das facções em disputa. Logo, tudo
passava à agressividade, como nos indica a Anticastastrophe: “aquele exercício que
em outros tempos, sendo moderado, era primícia do valor, deixando de ser pueril
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jogo, quase que era ensaio sanguinário de uma batalha”xii .Evidencie-se na situação
descrita a quebra de dois decoros: o primeiro do âmbito cortesão, no qual as regras do
jogo deveriam ser respeitadas a fim de preservar aquela ordem estabelecida; e além
disso, um jogo ligado ao ócio e à vida distante do labor não deveria torna-se violento,
contrariando assim todo comedimento condizente à vida cortesã.
Dessa forma, Norbert Elias, ao analisar o surgimento do desporto na Inglaterra
do século XIX, apresenta a regulamentação e a formalização dos esportes como um
indicativo do grau de civilidade daquela sociedade. As regras, bem como a presença
de árbitros e outros mecanismos, apontam para uma maior sensibilidade à violência
física e a consequente rejeição a qualquer forma de violência. O autor levanta a
hipótese de a pacificação dos jogos relacionar-se intimamente ao controle das pulsões
no âmbito político. Logo após o tortuoso século XVII inglês, repleto de conflitos de
sucessão e violência, os nobres ingleses encontraram uma forma de convivência
pacífica, respeitando aquelas diretrizes sancionadas pelo parlamento. Ora, se a
pacificação interna relaciona-se ao surgimento de regras mais rígidas para uso da
violência nos jogos, no Portugal Restaurado, onde as incertezas políticas
predominavam, deveria-se apresentar um certo grau de desregulamento em seus
jogos. Pois bem, não seria esse o caso do jogo das pedradas, ou do próprio jogo da
péla. A hipótese mais procedente seria que as hierarquias fluidas e as incertezas
políticas manifestavam-se também no espaço lúdico da péla e da pedra, como os
conflitos entre o marquês de Minas e o marquês de Fronteira, e entre o conde de
Castelo Melhor e D. Rodrigo de Meneses.
Norbert Elias, ao longo de sua obra, defendeu que a monarquia francesa do
século XVII chegava ao ápice de um processo de controle das pulsões, no qual os
nobres curializavam-se, abandonando sua função militar. A hipótese central defendida
é a de que a corte portuguesa, repleta de conflitos políticos, apresentava uma
hierarquia sensível. Em decorrência dessa configuração, nem sempre os conflitos
sociais conseguiam ser resolvidos de maneira pacífica, e essa não pacificidade mostra
algo especial do “processo civilizador” português, se adotarmos a expressão de
Norbert Elias. Ora, até aqui debruçamo-nos sobre os jogos e os duelos. Procuramos
mostrar o quanto esses elementos prescreviam conflitos de precedência, e por vezes
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esses nobres perdiam o controle das pulsões e adotavam posturas mais violentas,
manifestas nos duelos.
Assim, esse autocontrole manifestava-se em todos os aspectos da vida cortesã:
guerra, paz, festas e, é claro, política.
Como vimos, na guerra moderna os combatentes não deixavam de ser nobres,
e por isso mesmo estavam acostumados a um modus operandi. Desse modo a batalha
imbuía-se de um cunho cerimonial e simbólico. Fazendo frente à invasão castelhana,
estava a cavalaria liderada pelo conde da Torre, e logo recebeu ordem D. João da
Silva, tenente-general, de ir assistir a este conde na defesa do reino. Lá chegando,
recebeu ordens do conde para fazer a retaguarda e segurar o inimigo, enquanto o
mesmo não ia em sua ajuda. Por fim, a ajuda do conde não veio, ficando então as
palavras do conde da Torre contra as de D. João da Silva. O tenente-general logo
angariou outros soldados para sua defesa, tendo em vista sua origem mais vil, e assim
juntaram-se à sua causa D. Luis de Menezes e o importante marquês de Marialva,
antes conde de Cantanhede. O conflito se alargou e, em certo momento, saindo da
barraca do marquês de Marialva, D. Luis de Meneses (conde de Ericeira) encontrou
com o conde da Torre
e sem tirarem os chapéus um ao outro lhe disse: ‘Bem obrais para que se fale de vós.
Disseram-me que tendes mostrado uma carta de D. João da Silva, que o desculpais, e
pondes em duelo sua defesa. D. Luiz de Meneses lhe disse que sim, e que o havia
feito, e faria, todas as vezes que se oferecesse.
Puxou então o conde da Torre pela bengala e “lhe deu com ela pela cara”, não
antes de falar-lhe algumas palavras indignas de sua pessoa. Procurando defender-se,
D. Luis de Meneses acabou ferindo-se com sua própria espada, após embaraçar-se nos
cabos da barraca, e se não fosse por um mestre de campo que reteve o conde da Torre,
o conflito teria sido mais sangrento. O nobre ferido acabou acudido por um cirurgião
na barraca do marquês de Marialva. Contudo, o conde de Ericeira decidiu calar-se
sobre essa ação e sobre a bengalada que levara, afirmando apenas ter-se ferido
sozinho. Desse duelo, ainda que vencido, saiu vitorioso o conde de Ericeira, calandose sobre a situação. Como mostra a fonte: “E bem se deu a conhecer nessa ocasião,
que os duelos não são quanto os querem fazer, e ordinariamente, os que de coisas
pequenas, vem ficar com maiores manchas na opinião.” E assim, perdeu o conde da
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Torre boa parte de seu crédito, enquanto no plano de batalha o avanço sobre Badajoz
mostrava ao povo, e às demais monarquias europeias, que a guerra portuguesa não era
apenas defensiva.xiii
Apesar dessa contenda, o marquês de Marialva e os condes de Ericeira e da
Torre estavam no mesmo partido da nobreza, contra o valimento do conde de Castelo
Melhor. Some-se ainda que o marquês de Marialva era irmão de D. Rodrigo de
Meneses, enquanto o conde da Torre era camarista do infante. E todos estes
manifestavam sua prontidão para a guerra.xiv
Se as contendas da guerra geravam inimizades entre os nobres, também
produziam laços de solidariedade. Estando todos reunidos no Conselho de Estado e
tendo deliberado sobre prestar socorro à cidade de Elvas sob ataque castelhano desde
1658,xv falaram muitos cavalheiros, para que “os senhores D. Luiz de Meneses, e o
Conde da Torre se deem as mãos, e sejam amigos, renovando a antiga amizade.”xvi
Ante essa resolução, ficaram amigos como antes. E os ditames da guerra contra um
inimigo comum suavizaram o conflito entre estes, ainda que a cidade de Elvas fosse
perdida. A perda da cidade não apenas gerou grande tristeza em Lisboa, mas certo
grau de revolta, falando-se mesmo que o rei, D. Afonso, estava morto na mão de
traidores. Tal seria a flama do povo que passou a invadir a casa daqueles considerados
culpados, inclusive o próprio marquês de Marialva, que teve alguns dos seus criados
mortos. A barafunda só encerrou quando o rei mandou despachar uma tropa de
cavalaria para dispersar a multidão. Novamente, o monarca agia como mediador
desses desordenamentos na corte.
As contendas ocorridas na corte lisboeta, por vezes, eram ampliadas
territorialmente, também envolvendo nobres castelhanos. Assim foi na morte do
embaixador castelhano em Portugal. Queria D. Cristovão Manoel, nobre português,
comprar alguns itens da mobília do embaixador, acertando os detalhes da compra. E
chegando para apanhar os móveis, deu aviso o castelhano de que já vendera os móveis
a outra pessoa, tendo como resposta uma bofetada. Puxando o castelhano pela espada
junto com seus criados, defendeu-se o português e apartou-se a briga. Outro duelo
ocorreu na cidade de Cádiz, quando um cavalheiro da ordem de S. Tiago, de nome D.
João de Vila Marin, “desafiou a outro do mesmo lote sobre um lugar na comédia”. E
o cartel desafiou o castelhano para um encontro no campo de São Braz, em Portugal.
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E deliberaram muitos senhores castelhanos se o castelhano deveria aceitar um desafio
em terras lusas. E ainda que a fonte não trate do desfecho do duelo, fica claro que
ambas as sociedades, castelhana e portuguesa, percebiam o duelo como procedimento
devido.
Também as mulheres eram causas razoáveis de duelos, e assim,
desempenhavam grande papel político nessas sociedades. Em certo momento,
estavam no pátio das comédias o filho do conde do Prado e Miguel, irmão do marquês
de Fontes. E sentadas, na arquibancada acima, algumas senhoras. Pelo “acaso ou
indústria”, caiu da mão de uma delas uma rosa. E logo “querendo um e outro exceder
na estimação da dona e no merecimento do favor, se descompuseram e se castigaram,
ficando ambos feridos, e o pior tratado o filho do Prado”.xvii A briga não teria tido
maiores consequências se por conta dela o conde do Prado não tivesse atrasado sua
partida como embaixador extraordinário em Roma.
Por fim, vale lembrar que esses duelos marcavam o não cumprimento do
processo de curialização dos nobres, implicando uma reação do poder régio a esse
desmando. Destarte, logo saiu uma pragmática sobre a questão, cito:
Saíram duas pragmáticas, uma sobre os trajes, outra sobre os desafios, ambas rigorosas e
com graves penas, que andavam impressas; mas não sei como se observavam, que bem
antiga lei é a que proíbe os desafios, e não se pôr em execução, que bem disse o outro
decreto que as leis eram teias de aranha em que se prendiam moscas e nunca ficavam aves,
porque estas rompem a rede, para elas fraca, e aquelas, que por fracas não rompem, ficam.
As leis não valem mais por novos, senão por observadas; o acrescentá-los aumenta o
desprezo; alma do respeito foi sempre observância, porque em tanto dura o respeito,
enquanto dura o medo.xviii
A pequena citação é expressiva de dois elementos: da evidente preocupação
com esses desafios, e da referência à ancestralidade dessa prática, de uma norma,
segundo parece, já antiga no reino, ainda que não aplicada. Ainda assim, quando a lei
era de fato respeitada, quase sempre as punições abarcavam as “moscas” e nunca as
“aves”, ou seja, aqueles homens de maior estirpe não eram alcançados. Ora, essa
informação comprova dois elementos. Primeiro, o o frágil aparato legislativo no qual
assentavam-se sociedades de Antigo Regime como a portuguesa. Algo concernente à
hipótese de que as sociedades pré-capitalistas tinham um aparato legislativo frágil,
inviabilizando a ideia de que essas desigualdades fossem sancionadas pela lei, pois
afinal a desigualdade no Antigo Regime português relacionava-se ao nascimento, ao
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sangue. O segundo, por sua vez, refere-se à necessidade de controle por parte do
monarca desses desarranjos sociais, sempre mediando conflitos. Concluindo, esses
duelos e batalhas corpóreas manifestavam o não regulamento das pulsões condizente
à vida cortesã, pois o mundo cortesão português nos anos subsequentes à Restauração
estava essencialmente repleto de conflitos, de precedência ou não, e dentre eles os
duelos são apenas mais um exemplo da conflitualidade inerente a esse corpo social.
i
Norbert Elias. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Jahar Ed., 1993. 2v.
Norbert Elias, Op. cit., v.2., p. 120.
iii
Norbert Elias, Op. cit., v.2, p. 100.
iv
Johan Huizinga. Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
v
Norbert Elias; Eric Dunning. Deporte y ócio. En el processo de la civilización. Madrid: Fondo de
Cultura, 1992.
vi
Elias vai formular a chamada teoria “desarrolista”, desenvolvimentista. A ideia central é abandonar
os estudos meramente empíricos, centrando-se em questões teóricas, e afastando as dicotomias
tradicionalmente formuladas por outras teorias sociais (ócio/trabalho; harmonia/conflito). Outro
dualismo com o qual Elias procura romper é o existente entre a sociologia e outros campos do saber
social, especialmente a psicologia. Essa filiação fica evidente nos correntes usos que Elias faz dessa
disciplina. Sempre procurando formular uma síntese mais adequada aos objetos de estudo. Os seres
humanos interagem em três níveis: orgânico, inorgânico e humano-social. Cada um desses níveis
apresenta certo grau de regularidade, de onde se subtraem leis gerais. Entretanto, essas leis gerais só
podem ser formuladas em fenômenos que ocorrem mais lentamente. Nesse caso, entender o processo é
mais importante que formular leis gerais. Dai decorre a grande dificuldade, porque os fenômenos
humanos-sociais ocorrem em grande velocidade, a solução imediata é observar um determinado
fenômeno de forma estática, o que implica em consequência negativas para o conhecimento social.
Elias resolve a questão adotando os conceitos de “seres humanos abertos” e “figuração”: no primeiro
vemos que Elias entende os seres humanos como abertos em termos de relacionamentos, defendendo
que as pessoas são interdependentes, ligadas em diversos níveis e de várias maneiras; o segundo, por
seu turno, refere-se às ações de uma pluralidade de pessoas interdependentes que formam uma
estrutura, tal como os eixos de tensão, os sistemas de classes e estratificação, esportes, e crises
econômicas. Em suma, o que Elias pretende é formular uma teoria que dê conta da complexidade
social, sem enquadrá-la em dicotomias ou analisá-la de forma estática, sem perceber os processos
sociais, e as diversas características imanentes a esse processo. Cf. Norbert Elias; Eric Dunnig. Op. cit.
vii
Norbert Elias; Eric Dunnig. Op. cit., p. 15.
viii
Norbert Elias; Eric Dunnig. Op. cit., p. 13.
ix
Norbert Elias; Eric Dunnig. Op. cit., p. 33.
x
Damião Peres. Op. cit.,v.2, p. 120.
xi
Camillo Aureliano da Silva e Souza. A Anti-Catastrophe: historia d'elrei d. Affonso 6. de Portugal.
Porto: Tipografia da Rua Formosa, 1845, p. 68.
xii
Idem. p. 29.
xiii
Cf. Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier; Pedro Cardim. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2008, p. 103.
xiv
D. Luis de Meneses, Conde de Ericeira chegava mesmo a retirar de seus rendimentos vultuosas
quantias que distribuía pelo homens e soldados mais valentes. Cf. Camillo Aureliano da Silva e Souza.
Op. cit., p. 164.
xv
Note-se que o avanço português foi acompanhado de uma tentativa de avanço dos castelhanos, o
Conselho de Portugal, órgão da administração dos Felipes voltado para Portugal. O órgão estava
desativado desde 1639, e foi reativado em 1658, a objetivo era retomar Portugal, tal como tinha
ii
11
Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs)
Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da
história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto:
EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
ocorrido com a Catalunha, alguns anos antes. Cf. Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier; Pedro
Cardim. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 103.
xvi
Camillo Aureliano da Silva e Souza. Op. cit., p. 143.
xvii
Damião Peres. (Ed.) Monstruosidades do tempo e da fortuna. (1662-1669) Porto: Companhia
Editora do Minho Barcelos, 1938, v.1., p. 132.
xviii
Damião Peres. Op. cit., v.1., p. 89.
12
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Norbert Elias e a corte portuguesa - Seminário Brasileiro de História