INSTITUIÇÕES, CULTURA E IDENTIDADE ORGANIZACIONAL* Clóvis L. Machado-da-Silva (CEPPAD/UFPR) Eros E. Silva Nogueira (CEPPAD/UFPR) RESUMO No presente trabalho procura-se verificar os fatores que delineiam a identidade de determinadas organizações brasileiras, escolhidas intencionalmente. Parte-se do pressuposto de que a análise da identidade organizacional não se pode desvincular da visão de contexto institucional. Para tanto, procura-se avaliar o padrão de relacionamento entre os fatores que delineiam a identidade organizacional e o contexto institucional de referência, com base no estudo comparativo de casos. Mediante a utilização de múltiplas fontes de evidência, verifica-se a existência de valores, normas, expectativas de papéis e padrões reais de interação que, no conjunto, denotam a existência de estruturas sociais específicas, em termos do que é central, distintivo e duradouro para as pessoas que delas fazem parte. A análise dos dados permite concluir que os preceitos culturais do contexto institucional trazem em seu bojo conteúdos simbólicos compartilhados em sociedade que afetam a formulação e a manutenção da identidade organizacional. INTRODUÇÃO As pessoas configuram e estruturam a sua realidade como em um processo de representação. As solicitações da vida cotidiana requerem que se assuma um papel ativo para trazer à tona a realidade: atribuindo um significado e configurando um significante, apesar do hábito de se crer que a realidade é como as coisas são e se apresentam. O conceito de representação enfatiza o papel proativo que o indivíduo desempenha criando e recriando o mundo. Essa visão representativa da cultura permite compreender as organizações como realidades socialmente construídas, existentes mais nas mentes dos seus membros do que nos seus elementos formais e objetivos. Estrutura organizacional, regras, políticas, objetivos, missões, descrições de cargos e procedimentos operacionais padronizados desempenham funções interpretativas. São usados como elementos de referência no modo pelo qual as pessoas pensam e dão sentido aos contextos e ao seu trabalho. Esses aspectos nada mais são que artefatos culturais para representar a realidade organizacional. Sob a ótica do processo de construção da realidade, os relacionamentos diários na organização compõem o contexto onde os entendimentos podem ser construídos de modo a serem, ou não, convergentes ou coerentes. A formação dos grupos e os processos de liderança dependem da habilidade de se criar um senso compartilhado de realidade. Grupos coesos crescem em torno de entendimentos comuns, grupos fragmentados esposam visões de realidade múltiplas. Hinings e Greenwood (1988) consideram que toda organização está em movimento; é dotada de uma trajetória consoante sua particular situação histórica e sua inserção num contexto institucional. Mudança e estabilidade são duas faces de uma mesma moeda. Há vinculação entre as estruturas e processos de uma organização e as idéias, crenças e valores vigentes. Essa vinculação é denominada de arquétipo organizacional, combinação entre as estruturas prescritas e as interações emergentes com os valores e crenças vigentes. A estrutura prescrita (composta pelos papéis, responsabilidades, sistemas de decisão e sistema de recursos humanos) não são exaustivas; na interação cotidiana, os membros da organização suprem as lacunas ou desconsideram o prescrito por meio das interações emergentes. Chanlat (1992) sugere que o fenômeno social possa ser estudado em cinco níveis de analise: do indivíduo, das interações, da organização, da sociedade e mundial. Nesse contexto, 1 a organização vem sendo considerada um quadro social privilegiado de referência, no qual se pode reconhecer as dimensões simbólica e estrutural. Essas duas dimensões, mediadas pelas relações de poder, permitem a noção de ordem organizacional. A ordem organizacional exerce um papel na edificação da ordem societária. A sociedade pode ser vista como natureza histórica, uma ordem em movimento, em que o equilíbrio é sempre instável, causado pela sua constituição na ordem organizacional e inserção numa ordem maior, a ordem mundial. Sem descurar dos níveis de análise é possível inferir que uma cultura estabelece uma identidade, uma marca reconhecível quer pelos que dela participam quer pelos que com que ela interagem. Essa identidade corresponde a uma visão de mundo, a um modo particular de fazer as coisas, de interagir e de ser. Nesse sentido, a identidade organizacional pode ser considerada como resultante de uma representação compartilhada dos membros de uma organização e daqueles com quem ela interage. Assim, a identidade organizacional pode ser vista como elemento chave interpretativo do senso compartilhado de realidade. A partir dessas considerações preliminares, procura-se estudar a identidade organizacional com base na análise de dois casos: um de manutenção da identidade, outro de mudança. O caso de manutenção da identidade refere-se à Alfândega brasileira; já a Telepar Telecomunicações do Paraná configura-se como o caso de mudança da identidade. Em ambos os casos o contexto institucional de referência da organização parece ter exercido influência relevante. Na seqüência, este trabalho está estruturado da seguinte forma: uma seção destinada a estabelecer o quadro de referência conceitual do estudo; duas outras em que se trata dos dois casos em análise: a Aduana e a Telepar. Por último, uma seção de considerações finais. QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA O conceito de cultura tem sido utilizado em diversos contextos e com acentuadas diferenças de significado. Essa variação decorre da perspectiva utilizada e do que se assume como essencial: crenças; pressupostos básicos; valores compartilhados; ideologia; entendimentos significativos; programas coletivos da mente; e outros (Geertz, 1989; Schein, 1991; Alvesson e Berg, 1992; Sackmann, 1992; Trice e Beyer, 1993). Em linhas gerais, esses estudos pressupõem que a cultura confere racionalidade ou significados compartilhados ao que poderia, de outra forma, ser considerado sem sentido. Desta forma, confere condições de previsibilidade e de estabilidade ao conhecimento humano. Smircich (1983) propõe uma tipologia que serve de referência ao estudo da cultura. A autora argumenta que o estudo da cultura vem sendo desenvolvido sobre dois enfoques distintos: a cultura como variável e a cultura como metáfora. A cultura como metáfora é interpretada, essencialmente, como um contínuo e dinâmico processo de construção e reconstrução da realidade por meio da interação social, razão pela qual é a perspectiva adotada neste trabalho. Compreende as abordagens que consideram a organização como um modo de expressão da consciência humana, de suas idéias e aspectos simbólicos. Nessa visão, a organização não tem uma cultura mas é uma cultura. Os que seguem essa perspectiva adotam uma definição antropológica de cultura. Dentre os enfoques antropológicos de cultura interessam especificamente para este estudo o cognitivo e o simbólico. Tal interesse decorre da necessidade de entendimento da concepção e da ação dos indivíduos participantes do grupo, e dos que com ele interagem, a respeito dos valores e crenças que têm sobre o próprio grupo, que julgam que outros tenham sobre o grupo e que suponham serem aceitas na sociedade. 2 A abordagem cognitiva compreende cultura como um sistema de conhecimentos, de padrões de percepção, de crenças e de modelos de avaliação aprendidos que norteiam o modo dos indivíduos agirem. Já a abordagem simbólica refere-se a símbolos e significados compartilhados que resultam das interações sociais, em face da necessidade de interpretar a realidade e de estabelecer critérios orientadores para a ação. Nessa perspectiva, a analise organizacional focaliza a maneira como os indivíduos entendem as suas experiências e como essas interpretações se relacionam com a ação. O entendimento de que as organizações são, no mais das vezes, multiculturais vem predominando na literatura especializada (Martin, 1992; Trice e Beyer, 1993; Rodrigues, 1997). A maioria das organizações, exceto as muito pequenas, são constituídas por subculturas. A partir das crenças e valores é possível distinguir essas subculturas da cultura abrangente da organização. Há muitos fatores que podem explicar o desenvolvimento e a existência de subculturas: campos específicos de conhecimento; grupos demográficos; e assim por diante. A ocupação, por exemplo, pode prover motivo e base para significativas e altamente organizadas subculturas que, muitas vezes, se estendem para além das fronteiras da organização. As ocupações definem papéis e atividades que os seus membros podem passar a considerar como de seu direito exclusivo. Ao longo do tempo, pode-se criar definições, valores e ideologias que auxiliam a manter as suas identidades com a ocupação e a justificar suas ações. Além disso, membros de uma mesma ocupação freqüentemente compartilham a consciência de constituírem uma categoria diferenciada dos demais, apoiando-se uns nos outros, como ponto de referência. Podem desenvolver identidade a partir de suas atividades, compartilhando extensivas relações sociais, e tornando-se etnocêntricos. As ocupações têm sido consideradas como fonte importante do surgimento de subculturas, compondo as denominadas comunidades ocupacionais. Os meios eletrônicos de comunicação, as mídias de massa, a interdependência de papeis, a tenuidade dos laços sociais e outros fatores propiciam que essas subculturas mantenham sua dinâmica interação e existência para além das fronteiras da organização (Alvesson e Berg, 1992; Trice e Beyer, 1993). Em face do exposto, entende-se cultura organizacional como sendo o conjunto de crenças, valores e significados concebidos, aprendidos e compartilhados pelos membros de uma organização ou grupo. Tal conjunto propicia sentido e permite a interpretação da realidade. Como elementos de identificação e descrição da cultura, nesse contexto, adota-se valores e crenças, principalmente por serem os mais amplamente aceitos entre os autores pesquisados. O entendimento de valores como preferências permite inferir que as crenças podem ser conceituadas como componentes implícitos que delineiam as opções dos indivíduos e que servem de fundamento à racionalização. Representam a noção de como a realidade é, ou seja os pressupostos básicos da realidade (Enz, 1988). De acordo com Hatch (1997), a relação entre valores e crenças é interativa. De um lado, as crenças sustentam os valores, à medida que aquilo que as pessoas assumem como verdadeiro influencia o que valorizam; e, por outro, os valores podem originar crenças, à medida que os valores são reafirmados em comportamentos eficazes, são internalizados gradativamente como verdade e passam a ser pressupostos subjacentes. Os membros de determinada cultura adotam valores e se ajustam às normas porque suas crenças fundamentais alimentam e formulam esses valores e normas. Por sua vez, os valores e as normas estimulam atividades e oferecem condições em que são produzidos artefatos. Seria possível supor que os artefatos são, em última instância, extensões ou expressões dos mesmos elementos essenciais da cultura que mantêm os valores e as normas. Machado-da-Silva, Fonseca e Fernandes (1999) propõem que a realização dos significados é mais que mera passiva recepção. Os significados são criados e recriados 3 ativamente, em modos indexados, refletidos e dotados de propósito. Ademais, Morgan (1996), focaliza o entendimento de que ação e símbolo são inseparáveis; toda ação tem um aspecto simbólico, significante e valorado somente em termos de sua relação com outros símbolos que, mais do que causa do agir, se realizam através do agir. Ao mesmo tempo que os valores e as crenças podem se expressar por meio de artefatos, estes, por sua vez, podem estar sendo interpretados de modo a inculcar valores e crenças que se tornarão seus futuros mantenedores. Assim é que os artefatos e as normas são usados pelos membros de uma cultura para expressar sua identidade e para formular e perseguir seus propósitos. O conceito de identidade A par das diferenças de conceituação provindas das várias escolas nos domínios da psicologia e da psicanálise, a maioria delas parece concordar que a identidade do indivíduo está relacionada com o sentido de unicidade pessoal e continuidade histórica; a identidade pessoal seria um processo interno ao indivíduo, mas que é influenciado pela cultura (Adler, 1957; Filloux, 1960; Erikson, 1971; Allport, 1973; Freud, 1976, 1974; Lacan, 1985, 1980; Jung, 1988; Freitag, 1991; Lyra, 1997). Ela seria um modo de expressão do self do indivíduo que lhe permite ser reconhecido como diferente dos demais e, ao mesmo tempo, como similar aos membros de uma categoria ou classe. A psicologia social tem entendido identidade como um fenômeno social, resultante dos significados provenientes da interações mantidas pelo indivíduo em sua vida em coletividade. Ela passa a ser um atributo socio-cognitivo: não é nem inata nem exclusiva ao indivíduo. Os grupos e as organizações também teriam identidade. E de fato, por meio do processo de identificação, a identidade do indivíduo estaria relacionada estreitamente com a identidade dos grupos e organizações em que ele se insere. Além disso, a identidade também poderia ser entendida como tendo uma natureza reflexiva, do modo como a pessoa se vê a si mesma, seria o seu auto-conceito. Para alguns autores, as diferenças entre psicologia individual e social seriam não essenciais, pois a primeira se concretiza no homem isolado, investigando os caminhos através dos quais tenta alcançar a satisfação de seus instintos. Acontece que somente em circunstâncias excepcionais poderia prescindir das relações com seus semelhantes. Na vida anímica individual ele aparece sempre efetivamente integrado a outro, como modelo, objeto, auxiliar ou adversário; assim, a psicologia individual seria, ao mesmo tempo e desde o princípio, psicologia social, em um sentido amplo (Freud, 1974, p. 27). Erikson (1987) estudou a noção de identidade, descrevendo-a como um sentimento subjetivo de uma revigorante uniformidade e continuidade, possuindo uma natureza pessoal e cultural. Para ele a formação da identidade compreende o processo essencial no âmago do indivíduo e a inserção na cultura coletiva. Ele propõe que a formação da identidade é inseparável da evolução sóciogenética, uma vez que somente dentro de um grupo definido ela pode existir. Ele vislumbra, contudo, que o indivíduo possa transcender sua identidade e tornar-se verdadeiramente individual e, ao mesmo tempo, situar-se além da individualidade. Haveria um nexo entre as imagens sociais e as forças organísmicas, entre identidade de grupo e identidade de ego, de ethos e ego. Identidade social Pages et al. (1993), tentando uma posição nem idealista nem positivista da possibilidade de se conhecer o indivíduo e a realidade, afirmam que o discurso informa ao mesmo tempo: (a) sobre uma realidade objetiva exterior e transcendente aos indivíduos e (b) 4 sobre seu universo mental. O discurso de cada indivíduo seria ao mesmo tempo coletivo e individual. Coletivo na medida em que revela, de maneira exemplar, estruturas, relações entre fenômenos, presentes de diferentes formas nos outros indivíduos. Também seria coletivo pela complementaridade, ao invés de só pelas semelhanças, entre os diferentes discursos individuais. O caracter coletivo do discursos remeteria, necessariamente, ao conceito de estruturas, à existência postulada de relações entre fenômenos que operam transversalmente sobre toda a extensão do campo sócio-mental e a um corpo teórico de hipóteses sobre a natureza das relações . Alguns autores analisam que no nível da sociedade, os sistemas estruturais e simbólicos articulam as relações sociais (Holmer-Nadesan, 1996). A sociedade seria esse espaço onde essas relações são exercidas, em suas características socioculturais comuns (tradições, língua) e especificidades sociopolíticas (estruturas de classe, organização política.). Para tanto são utilizados símbolos coletivos, conceitos e valores, que conferem uma certa coesão à identidade social. Nesse conjunto se desenrolam os conflitos, as tensões, as mudanças, as histórias (Dejours, 1992). A sociedade é domínio e condição do sentido e significado, ela invade o indivíduo, suas interações e criações. O ser humano é o ser socializado de determinado meio. O indivíduo é amoldado ao seu grupo, através de gestos, ritos, atitudes, comportamentos, signos para que possa ser aceito e reconhecido pelo grupo e possa atuar no meio. Esse processo está na base da identidade e da alteridade, as duas faces da realidade identitária (Todorov apud Chanlat, 1996). Para Berger e Luckman (1998), a identidade é um elemento chave da realidade subjetiva e se encontra em relação dialética com a sociedade. Ela, de um lado, seria formada, conservada e/ou remodelada por processos sociais, determinados pela estrutura social. Por outro lado, ela reage sobre a estrutura social, mantendo-a, modificando-a ou remodelando-a. As estruturas sociais históricas engendrariam tipos de identidade, elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva, mas isso não significaria a formulação de uma identidade coletiva. Os níveis individual, interpessoal, organizacional e societário estão em constante interação. Há uma relação complexa e interdependente entre eles. O indivíduo se desenvolve e constrói sua identidade em sua relação com o outro, e, também, por sua inserção em contextos organizacional e social específicos. Identidade organizacional Caldas e Wood Jr. (1997) consideram que a idéia de identidade organizacional pode aparecer em diversas dimensões. Pode surgir na forma pela qual a organização é percebida, a sua imagem externa, por aqueles com quem ela interage, como, por exemplo, clientes e fornecedores (Engels, Blackwell e Miniard, 1995). Pode surgir, também, na forma como seus membros internos, especialmente seus dirigentes, a percebem de forma compartilhada, correspondendo a uma percepção de si mesma ou auto-percepção ou auto-imagem. Pode surgir, ainda, na definição da razão de ser, finalidade ou propósito da entidade ou do grupo de indivíduos, de modo que a identidade representaria esse propósito existencial. Para Albert e Wheten (1985), a identidade organizacional compreenderia as crenças compartilhadas pelos membros sobre o que é central, distintivo e duradouro na organização. “O critério de centralidade aponta as características vistas como essência da organização. O critério da distintividade aponta os elementos que distinguiria uma organização das outras com as quais poderia ser comparada. O critério de continuidade temporal ressalta as características estáveis no tempo” (Albert e Wheten, 1985, p. 265). Esses três critérios seriam, segundo os autores, cada um necessário e, como conjunto, suficientes para definir identidade organizacional como conceito cientifico. 5 O critério que pretende estabelecer a sua distintividade, embora não possa ser, do ponto de vista de Albert e Wheten (1985), uma propriedade mensurável, pode ser traduzido de diversas maneiras, tais como: objetivos organizacionais estratégicos, missão, proposições ideológicas, valores, filosofia ou cultura particular. Esses autores argumentam, ainda, que os estudos sobre o tema precisariam considerar que as organizações podem não ter uma identidade unidimensional ou única; elas podem ser híbridas, compostas de múltiplos tipos. Compreendem, também, que em nível organizacional, possivelmente como se supõe ocorrer no nível dos indivíduos, a identidade organizacional é formulada e mantida por meio de interações, numa forma análoga aos modelos propostos por Mead (1953) e Goffman (1985). O senso compartilhado de continuidade da organização pode estar amparado na percepção de continuidade proporcionada pelos discursos e narrativas que operam a estabilidade da ordem social ou grupal, inter-relacionados aos hábitos e aos recursos de comunicação (figuras conceituais, metáforas, signos e outros) adotados por eles (Alvesson, 1994). Nessa linha de pesquisa, Elsbach (1996) sublinha que a identidade de uma organização reflete seus atributos centrais e diferenciadores, incluindo seus valores essenciais, cultura organizacional, modos de desempenho e de agir e produtos. No nível dos indivíduos que participam da organização, a identidade organizacional é fruto do seu esquema cognitivo ou da sua percepção dos atributos essenciais e diferenciadores da organização, sua situação, posicionamento no contexto e comparação com outras organizações. Trabalhos mais recentes, também no âmbito da Psicologia Social, tratam a identidade organizacional como uma função da forma como a organização percebe a si mesma. Haveria, nesse enfoque, uma correlação entre identificação organizacional, auto conceito individual e imagem da organização (Dutton, Dukerich e Harquail, 1994). Outros estudiosos discutem o conceito de identidade organizacional sob a ótica de imagem organizacional ou corporativa, ou seja, a sua imagem externa e a percepção dessa imagem externa (Alvesson e Berg, 1992). Elsbach (1996) apresenta o ponto de vista de que é necessário distinguir entre dois tipos de percepção da identidade organizacional (Dutton, Dukerich e Harquail, 1994): (a) a identidade organizacional percebida pelos seus membros (aquilo que eles crêem serem os seus atributos centrais, diferenciadores e mantenedores ao longo do tempo); (b) a sua identidade externa construída (aquilo que eles, os membros, pensam que aqueles que não pertencem à organização crêem serem esses atributos centrais, diferenciadores e mantenedores). Os dois tipos de percepção estão relacionados com representações cognitivas mantidas pelos indivíduos, membros e não-membros da organização. Essa teoria sugere alguns fatores que poderiam estar relacionados com o aumento da identificação organizacional. Primeiro, a distintividade dos valores e das práticas dessa organização em comparação com os de outras; seria um importante fator que proporciona um entendimento de identidade única e singular. Essa distintividade poderia explicar, em parte, o zelo missionário de membros de organizações recém criadas ou que esposam objetivos específicos e altamente valorados pela coletividade. O segundo seria o prestígio que a afiliação proporcionaria, tendo em vista os mecanismos de comparação social, afetando a auto-estima. Terceiro, ela poderia ressaltar a não inclusão do indivíduo em outros grupos, sublinhando a homogeneidade do que se sente participante e a separação ou segregação com relação aos não-semelhantes. A identidade social, para esses autores seria um mecanismo cognitivo que tornaria possível o comportamento grupal. As definições situacionais e as auto-definições emergiriam por meio de interações simbólicas, em que os significados evolveriam das interações verbais e não-verbais dos indivíduos. O entendimento da singularidade da identidade de uma organização pode ser compartilhado não somente entre seus membros, mas por outros 6 indivíduos e grupos que se relacionam com ela, como, por exemplo, fornecedores, clientes, consultores. Na mesma linha de raciocínio, Turner (1986), analisando os aspectos sociológicos do simbolismo organizacional, argumenta que os indivíduos também mantém uma concepção de sua própria identidade social, que é uma medida de seu próprio auto-conceito, definida pela sua associação ou afiliação com grupos sociais. Acredita-se que em nível cognitivo as identidades sociais dos indivíduos são organizadas em termos de múltiplas e hierárquicas categorias (incluindo diversos elementos, tais como: geração, idade, raça, afiliações institucionais e organizacionais). Assim a percepção a respeito da identidade organizacional pode ter efeito direto sobre a percepção da própria identidade social. Devido a essa relação psicológica entre identidade social e organizacional, os estudos têm se debruçado em avaliar a sua importância e extensão. As pessoas podem buscar identidades sociais mais positivas e aceitas através da associação com organizações que tenham identidade positiva (como se houvesse uma transferência do atributos para a identidade social). O inverso também seria passível de analise: a ameaça à identidade organizacional ou do grupo pode se constituir em ameaça à identidade social. A identidade organizacional pode ser compreendida como resultante dos esquemas cognitivos ou percepção a respeito dos atributos diferenciadores e essenciais da organização, incluindo seu posicionamento no contexto (status) e comparações relevantes com outros grupos ou organizações. Eventos externos e situações ambientais que refutem ou coloquem em questão essas características definidoras podem ser percebidas como ameaças à percepção dos membros da identidade da organização da qual façam parte (Elsbach e Kramer, 1996; Gioia e Thomas, 1996) Há vários elementos que vêem sendo usados para explicar que as organizações possuem identidades coletivas, resultantes das crenças que os seus participantes compartilham como central, duradouro e distintivo a respeito de cada uma delas. Muitos estudiosos afirmam que é menos importante se esses elementos justificadores de singularidade são ou não empiricamente válidos do que o fato de que os membros se engajam intensamente nos processos de comunicação e influenciação para formular ou manter uma identidade coletiva para si (para o grupo). Esses grupos e organizações desempenham um conjunto de expressões culturais, tais como símbolos, rituais , cerimônias e estórias que traduzem, comunicam e codificam padrões organizacionais compartilhados de entendimentos e comportamentos (Allaire e Firsirotu, 1984). Esse repertório de expressões culturais delineiam e comunicam a identidade coletiva organizacional. Entretanto, nem sempre as pessoas estão conscientes desses atributos definidores da identidade organizacional; eles podem permanecer subliminares para elas até que ela seja ameaçada ou desafiada (Albert e Whetten, 1985; Fiol, 1991). Muitas vezes alterações consideradas importantes ou significativas, no ambiente ou contexto, como as promovidas por novas leis ou normas regulamentando o setor ou a atividade, ou as provocadas por redefinições de posicionamento e ação entre concorrentes, podem desvelar ou tornar mais evidente a identidade coletiva da organização. Segundo Alvesson (1994), a identidade também pode se tornar mais saliente quando seus membros acreditam que há inconsistência entre ela e a ação desempenhada pela organização, ou quando a ação desempenhada individualmente por seus membros contradiz a identidade ou a imagem da organização ou grupo. Quando isso ocorre, essas ações individuais ou organizacionais interrompem o curso normal e rotineiro da dinâmica em que participam e, assim, provocam os indivíduos a se questionarem sobre a finalidade e a natureza de sua atividade. São momentos de revisão, aprofundamento e ampliação da consciência a respeito 7 do que eles acreditam definir a organização; são momentos, possivelmente, de rever a magnitude da conexão que com ela mantêm, individual e coletivamente. Esses recursos conceituais permitiram verificar, nos dois casos analisados, se os membros de cada uma das organizações objeto do estudo lhes atribuem imagem, finalidade, propósito e atributos próprios e, também, avaliar em que medida esses aspectos podem estar contribuindo para um senso de existência e identidade organizacional compartilhado. A SITUAÇÃO EM ESTUDO Procedimentos metodológicos A presente pesquisa caracteriza-se como estudo comparativo de casos, com múltiplas fontes de evidência, de natureza descritiva. A abordagem metodológica, predominantemente descritivo-qualitativa, permitiu analisar aspectos subjetivos tais como: percepções, compreensão do contexto da organização, significados compartilhados e dinâmica das interações. A pesquisa teve enfoque antropológico, utilizando-se dos discursos e práticas cotidianas. O nível de analise foi organizacional e a unidade de analise foi constituída pelos grupos da organização. As fontes primárias se constituíram entrevistas semi-estruturadas, com as pessoas selecionadas de acordo com critérios de amostragem proposital e estratificada casual. As fontes secundárias se reportaram a documentos internos e externos, artefatos, signos e símbolos e outros elementos que permitiram aferir, na comunicação, a história, a cultura e a situação atual do grupo estudado. Os dados primários foram tratados por meio de analise descritiva e de analise de conteúdo. Os dados secundários o foram por meio de analise documental O caso da Aduana brasileira A Reforma de 1934 privilegiou as funções administrativas do Ministério da Fazenda, em detrimento das funções arrecadatório-fiscais. Propôs uma organização dos serviços orientada por critérios de racionalização e eficiência, separando finanças e administração. A partir daí, a Aduana passou a se denominar Diretoria de Rendas Aduaneiras e, todos os tributos e serviços fiscais não aduaneiros, como, por exemplo, referentes ao Imposto de Consumo, passaram a ser tratados por um outro órgão, a Diretoria das rendas Internas. Elas se tornam os pilares principais do Departamento do Ministério da Fazenda. Em 1967, o Governo Federal decidiu criar uma nova estrutura para conduzir a administração tributária no Brasil. A Secretaria da Receita Federal foi criada e instalada em substituição à anterior Direção Geral da Fazenda Nacional, incluindo as funções desempenhadas pelas extintas Diretorias de Rendas Aduaneiras, de Rendas Internas, de Imposto de Renda e de Arrecadação. O ato que criou a Secretaria da Receita Federal em 1968 e extinguiu o órgão encarregado pela Aduana, definiu sua estrutura em quatro sistemas básicos: sistema de fiscalização, sistema de arrecadação, sistema de tributação e sistema de informações econômico-fiscais. Esse critério não comportava condições para manter-se um departamento ou setor especializado por tributo (IPI, Imposto. de Renda e outros) ou por natureza de atuação (exemplo: aduaneiro ou tributos internos). Apesar de regimentalmente a aduana ter sido dissolvida, entre 1967 e 1985, por quase vinte anos, as atividades aduaneiras continuaram sendo prestadas e desenvolvidas pelas unidades locais especializadas remanescentes e pelos recursos humanos que sobreviveram à reforma, sem um comando estratégico e diretor especializado a nível central. Vários fatores, contudo, concorreram para o processo de restauração da administração 8 aduaneira (núcleo especializado com status estratégico nacional e núcleos especializados a nível operacional, num conjunto que estabelece uma coordenação geral e um sentido de unicidade organizacional), com destaque para a situação conjuntural do comércio exterior logo após o choque do petróleo , aproximadamente em 1974. Somente em 1985, com o crescimento significativo das importações e a diversificação da pauta de exportações, é que começou a merecer destaque a gravidade dos problemas da área aduaneira, desvelando a falta de estrutura organizacional para gerir essa área e atender à realidade econômica e às demandas dos operadores do comércio internacional. Essa conjuntura demandou uma atuação mais efetiva da Secretaria da Receita Federal no âmbito aduaneiro, o que justificou as iniciativas que permitiram a revisão de sua estrutura e a acomodação de segmentos especializados na atuação aduaneira em todos os níveis hierárquicos. A crise revelava a necessidade de se recriar o sistema aduaneiro e de se fornecer a especificidade das suas atividades. A comissão incumbida desse estudo, teve uma missão geradora e, graças ao seu desempenho, logo em seguida foi elaborada uma nova versão de Regulamento Aduaneiro, consolidando a legislação principal e todas as outras esparsas, e também foi criada a Coordenação-Geral, porém, com seus espaços constitucionais e operacionais limitados pela competência concorrente dos outros sistemas internos da Secretaria da Receita Federal (sistema de fiscalização; sistema de arrecadação, sistema de tributação e sistemas de informações e tecnologia). Em 1992 foi admitida a (re)denominação de Alfândega às unidades operacionais locais, especializadas nas atividades aduaneiras, em alguns dos portos e aeroportos brasileiros (ex.: Alfândega do Porto de Santos: até então, essas funções eram desempenhadas por setores da Delegacia da Receita Federal em Santos, que cuidava cumulativamente das questões de tributos internos e aduaneiras). A partir da análise dos dados, algumas crenças parecem estar estreitamente associadas entre si, assim como parecem estar associadas com alguns valores, o que sugere que elas possam constituir um sistema de crenças devidos a essa aparente associação e interdependência. Os dados coletados indicam um amplo consenso, dentre aqueles que participam ou interagem diretamente com o sistema aduaneiro, com relação às crenças identificadas. A existência do Estado, seu papel e funções; a natureza da atividade aduaneira, sua missão e atividades; a existência e obrigatoriedade do ordenamento jurídico; a soberania do Estado e do ordenamento jurídico; a qualidade assimétrica do exercício do poder no relacionamento com a Aduana (e com o Estado) e outros pressupostos semelhantes emergem dos dados em consenso. Transparece a aceitação nas crenças de que é conveniente e desejável: agir de acordo com a legalidade. A legalidade é pressuposto da legitimação. o Estado e a Aduana trabalham para o bem comum. A soberania do Estado e da Nação deve ser preservada, a prática desleal de comércio é abominável e outras afirmações do gênero. A historicidade da aduana, sua corporatividade internacional, seu caráter institucional são elementos consensuais de referência freqüente, que criam a percepção de unidade do grupo, de vinculação entre si e superação das divisões políticas, funcionais e geográficas. As manifestações culturais apresentam, em sua grande maioria, alto grau de consistência. As práticas formais e informais, tais como os eventos característicos da cultura aduaneira são consistentes com as crenças, valores, idéias e temáticas simbólicas nela reconhecida (exemplo: o Estado exercendo sua soberania através do controle aduaneiro; a aduana defendendo a economia nacional, verificando a legalidade das ações). A ordem normativa mantém razoável consistência com os processos organizacionais e os elementos estruturais. 9 Questionados sobre a natureza da atividade aduaneira, os entrevistados apresentam, como respostas, afirmações a respeito do que se pode considerar como sua missão (exemplo: defender a economia nacional”, “proteger o trabalho nacional”, “afirmar a soberania nacional”). Também nos documentos analisados constata-se freqüentes e acentuadas afirmações sobre sua missão, finalidade e papel. Nesses dados, há nítido entendimento que a natureza de sua atividade é mais estatal-econômica do que social (stricto sensu) ou arrecadatória-tributária. Parece que os participantes do sistema aduaneiro consideram que a afirmação de sua missão é sua característica essencial mais importante, o núcleo justificador de sua existência. Nos dados analisados, esse entendimento parece confirmado perlas afirmações feitas pelos não-participantes do sistema aduaneiro que reconhecem e destacam esse atributo. Como já sugerido por Albert e Wheten (1985), os membros e participantes de determinada organização podem enfatizar, dar relevo ou reconhecer o que consideram essencial nela quando se defrontam com situações em que percebem que a existência ou a identidade ou a imagem da organização está sendo ameaçada, questionada ou confrontada. Os episódios da extinção da Aduana em 1967, da sua absorção dentro da Secretaria da Receita Federal, as dificuldades daí decorrentes para realizar sua missão, as estórias das reações negativas e contrárias às pretensões de se restabelecer a autonomia da Aduana, são alguns aspectos das descrições que compõem os dados analisados e permitem deduzir que há uma percepção compartilhada a respeito do contexto atribuindo-lhe um carácter adverso. As respostas às questões em torno dos atributos identificadores da Aduana podem estar refletindo essa compreensão da existência de aspectos ambientais adversos ou ameaçadores à sua integridade identitária. Sob esse ponto de vista, é possível supor que as assertivas sobre o papel e a missão da Aduana podem trazer afirmações sobre atributos que consideram como essenciais na justificativa da sua existência e identidade, como parte de uma reação ao que consideram como atitudes ameaçadoras. Além do mais, essas afirmações sobre o papel, a missão e a natureza de suas atividades são expostas como orientadoras do modo como as outras instituições (sociais) deve se relacionar com ela e, também, como critério para se aferir o que, dentre suas muitas atividades, é mais importante e pertinente à sua finalidade institucional. Por outro ângulo, as afirmações consideradas como aspectos essenciais de uma identidade aduaneira não são unívocas entre si, ou seja, não são necessariamente concordantes entre si. Essa constatação sugere ou uma ambigüidade inerente, ou uma complexidade que as afirmações apenas refletem pobre e contraditoriamente, ou que há uma percepção que corresponde a uma transição e mudanças significativas e atuais na trajetória histórica dessa organização/cultura aduaneira. Coexistem crenças e valores correspondentes a duas orientações diferentes: uma, normativa; outra, utilitária. Há inferências, a partir do visto nesse estudo de caso, que a organização aduaneira é considerada cumulativamente como agencia estatal reguladora, normativa, controladora e repressora, com um foco específico em uma característica ética. Essas referências apresentam, a priori, coerência e consistência com as afirmações concernentes à sua missão e papel. Essas referências que parecem atribuir uma classificação genérica ao organismo aduaneiro, desvelam, entretanto, as afirmações, contidas nos dados analisados, que elegem a sua missão e papel como atributos de sua exclusividade e distintividade em relação a outras organizações. Se pode perceber que as comparações com outras que desempenham papel análogo ou a que se atribuem o mesmo tipo, como agente regulador (ex.: Secretaria de Vigilância Sanitária), agente normatizador (ex.: Departamento de Câmbio do Banco Central) ou agente repressor (ex.: Departamento da Polícia Federal), são acompanhadas de proposições que sublinham que ela é diferente das demais organizações aparentemente similares. Essas 10 proposições são resumidas nas noções de: (a) exclusividade da sua missão, como um carácter distintivo de sua identidade (ex.: “é a aduana a única que tem por missão defender a soberania e as fronteiras econômicas nacionais”), (b) de historicidade (ex.: “a aduana tem uma história própria e presença ativa na história da economia brasileira” - D.E 3) e ( c) de “origens ancestrais” (ex.: as origens da aduana se perde na história, e está estreitamente relacionada com a existência do Estado” ; D.E.10). Nos dados estudados se percebe a invocação do papel como significativa referência à descrição da identidade do organismo aduaneiro, com correlação aos conteúdos simbólicos axiais da ordem institucional (exemplo: soberania, nacionalidade servir defendendo e outros). Esses conteúdos simbólicos parecem integrar áreas de significação e abranger a ordem institucional em uma totalidade simbólica. Segundo Berger e Luckman (1985), os papéis desempenhados por atores sociais representam a ordem institucional. Alguns papéis, contudo, representam simbolicamente esta ordem em sua totalidade mais do que outros papeis. Alguns papeis não teriam outra função senão esta representação simbólica da ordem institucional como totalidade integrada, enquanto outros a assumiriam eventualmente. A aduana desempenha, assim, papéis institucionais participando desse universo simbólico que transcende e inclui a ordem institucional. Outro aspecto observado foi o corrente tratamento e referências às atividades aduaneiras e às pessoas que as desempenhem como se, todo esse conjunto, constituísse um todo dotado de existência própria autônoma e fosse um fenômeno supra cotidiano: a Aduana. A falta de organicidade, de autonomia e de se estruturar em organização distinta não impedem que aduaneiros e não-aduaneiros (aqueles que não desenvolvem atividades aduaneiras) se refiram a uma Aduana como um fato objetivado. Há como uma reificação, produzida no entendimento da existência objetivada da Aduana, de seus papéis e da sua identidade. A aduana teria existência, assim como existiriam o Estado, a Nação, a soberania e outros fenômenos reificados da experiência humana. Os valores foram definidos como os padrões de julgamento cujos significados compartilhados indicam o preferível ou desejável, e podem expressar a idéia de como deve ou deveria ser a realidade, a idealização ou o ideal. Os dados analisados permitiram conhecer alguns desses valores, denominados nesse trabalho como noções ou orientação valorativas, pois alguns parecem constituir verdadeiros eixos articuladores (legalidade x ilegalidade; lealdade x deslealdade [comercial]; eficácia x ineficácia; justiça x injustiça) de padrões entre noções ideais. Essas noções parecem compor a descrição e a percepção de identidade organizacional aduaneira na medida que; a) tornam-se recursos adicionais nos processos de comparação social e categorização; b) estabelecem padrões qualificativos sobre os padrões e modos de interação; c) são significados compartilhados que permitem, em conjunto com as crenças, dar sentido, formular e interpretar a realidade e a si mesmo; d) são comunicados e reanimados nas práticas sociais e atributos culturais. O caso da Telepar A Telepar - Telecomunicações do Paraná S/A nasceu em 1963, com outra denominação. Sua trajetória encontra-se estreitamente relacionada à história das telecomunicações no Brasil, caracterizada por flutuações na forma de atuação do Estado. Com o surgimento do Contel - Conselho Nacional de Telecomunicações, em 1961, e, na seqüência, com a implantação da Embratel – Empresa Brasileira de Telecomunicações, em 1965, inaugura-se um período centralizador de atuação governamental no setor. O processo de 11 nacionalização das empresas desse segmento ocorre a partir da criação, em 1972, da Telebrás – Telecomunicações Brasileiras S/A. Incorporada ao sistema Telebrás, em 1975, a Telepar atravessa as décadas de 70 e 80 construindo e expandindo sua infra-estrutura no Estado do Paraná, onde detinha o privilégio da exclusividade na concessão de serviços. Na década de 90, a empresa passa a enfrentar um quadro ameaçador de mudanças ambientais: reforma do Estado, com base em modelo gerencial de gestão governamental; redução dos investimentos e de gastos públicos; tendência à privatização de empresas estatais; abertura do mercado à competição, com participação de investidores internacionais; mercado e clientes mais exigentes; emergência de novos patamares de capacitação tecnológica; enfim, toda uma série de transformações contextuais decorrentes do esgotamento da capacidade de investimento e ação empresarial do Estado e da crescente inserção do Brasil na economia global. Em meados de 1998 ocorre a privatização da Telepar. A análise da identidade organizacional da Telepar, no período compreendido entre sua incorporação ao Sistema Telebrás (1975) e sua privatização (1998), traz à tona crenças e valores sobre os quais vale a pena se deter. A análise dos dados revela alto nível de consenso no que concerne as crenças identificadas, até o final da década de 80. O pressuposto básico de que o sistema de telecomunicações é fundamental para a segurança nacional é altamente esposado entre os integrantes da empresa, independentemente do nível hierárquico em que se situam. Diretamente vinculadas à noção de segurança estão as crenças sobre soberania nacional, proteção dos interesses nacionais, legitimidade da ação empresarial empreendida pelo Estado. A natureza estatal e monopolista do setor de telecomunicações e a própria especificidade do negócio propiciaram à Telepar condições favoráveis para o desenvolvimento de uma postura introvertida, excessivamente focada em seu processo produtivo. Desenvolveu-se uma forte cultura tecnocrática, reforçada continuamente por indicadores de desempenho técnico-operacional adotados pela holding do sistema, a Telebrás. Em conseqüência, ocorreu a sedimentação de um comportamento de auto-suficiência na empresa, permeando todos os níveis hierárquicos. Valores corporativos relacionados a estabilidade no emprego e a benefícios crescentes, sem necessariamente guardar relação com o desempenho individual e organizacional, ganharam grande espaço. Clientes e mercados constituíam conceitos restritivos: quando se levantava o percentual de demanda represada todos os argumentos se apoiavam nos limites para investimentos e nas restrições tarifárias governamentais. A idéia de competitividade se restringia a metas de natureza quantitativa estabelecidas em conjunto com a Telebrás. Em suma, o desempenho da empresa era predominantemente avaliado em relação a metas técnico-operacionais, que se constituiam em fins desejados, desconsiderando-se perspectivas e necessidades diferenciadas dos clientes, do próprio governo e da sociedade. O contexto de referência era a Telebrás, quer visualizando possibilidades de reconhecimento e de promoção dos dirigentes quer restringindo a noção de competitividade à disputa entre as empresas componentes do sistema. Tal situação prevaleceu até o início dos anos 90. A partir daí, a série de transformações contextuais dessa década pressionaram a Telepar no sentido de mudar para poder sobreviver. As mudanças promovidas em 1992 ainda decorriam de uma visão essencialmente técnicooperacional: círculos de controle de qualidade, programa de qualidade total. Neste ponto vale registrar que a empresa, com uma longa história de Presidentes efetivos e por períodos duradouros de tempo, passou pela experiência de ter quatro presidentes temporários no curto interregno de dois anos – 1992 a 1994. De acordo com depoimentos de entrevistados, esse período de interinidade em plena circunstância de fortes transformações ambientais provocou forte abalo cultural na Telepar, 12 afetando sua identidade organizacional. Perdeu-se o senso de missão e de orientação estratégica. Tanto os gerentes quanto os funcionários assinalam que já não sabiam para onde a empresa deveria seguir. Desta forma, da inter-relacão entre crise de liderança interna e fortes pressões ambientais externas emergiram as condições para mudanças fundamentais na Telepar. Em 1996, a empresa passa por mudança de maior porte mediante a implantação de um novo modelo, intitulado Sistema de Gestão Empresarial - SGE. A implementação do SGE resultou em redefinição da missão da empresa que passou da ênfase em segurança, soberania e proteção dos interesses nacionais para a visão de oferecer serviços de telecomunicações e multimidia para segmentos diferenciados do mercado. Clientes, acionistas e sociedade são redefinidos de forma mais ampla. Novas crenças e valores emergem na empresa. Ética, orientação estratégica, desterritorialização/globalização, qualidade, satisfação do cliente, competitividade em sentido menos restrito, rentabilidade e capacitação profissional passam a conviver com valores anteriores como hierarquia, corporativismo e empregabilidade. Em síntese, verificou-se: a) a transformação da razão de ser da Telepar (o que é essencial) a partir do novo caráter institucional de sua missão; b) a mudança de sua situação exclusiva como empresa estatal monopolista do setor de telecomunicações do Paraná, obrigando-a a redefinir o seu papel social (o que é distintivo); e c) a modificação de sua representação na ordem institucional (o que é duradouro). No período de 1996 a 1998 a Telepar debateu-se para definir seu novo papel na nova ordem institucional vigente. O conflito entre novos e antigos valores constituía o foco e o lugar das interações sociais entre seus membros, nos diversos níveis hierárquicos. Infelizmente esse estudo teve que se encerrar pouco antes dos eventos que culminaram em sua privatização, em meados de 1998. Tal fato claramente delimitou o campo de visão dos pesquisadores sobre a nova identidade organizacional em processo de formação na empresa de telecomunicações resultante. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dois casos analisados constituem exemplos interessantes no estudo da identidade organizacional. Em ambos os casos o contexto institucional de referência desempenhou papel relevante, como se pode observar na análise precedente. No caso da Alfândega brasileira, a sua incorporação pela recém criada Secretaria da Receita Federal, em 1967, não obliterou a sua identidade organizacional aduaneira como seria de se esperar. Tal constatação remete à importância da influência do sistema aduaneiro internacional (contexto institucional de referência da Alfândega brasileira) sobre as crenças e valores da Aduana. Os artefatos, os significados compartilhados acabaram por manter a identidade organizacional de uma organização que, em última instância, havia deixado de existir em termos de sua configuração anterior. Não se deve perder de vista que se passaram 25 anos desde o momento de sua incorporação pela Secretaria da Receita Federal até a sua (re)denominação como Alfândega. Se o contexto institucional de referência da Secretaria de Receita Federal passasse a ser também o da Aduana, em tão longo período de tempo, seguramente teria ocorrido a reformulação da identidade organizacional da Aduana – o que não se verificou. No que concerne à Telepar, parece ter sido a conjunção de fatores internos e externos que ocasionaram a sua crise de identidade. No período de 1975 até os primeiros anos da década de 90, o contexto institucional de referência da empresa circunscrevia-se ao sistema Telebrás. Crenças sobre o papel e a razão de ser das telecomunicações como instrumento de segurança e soberania nacionais, aliadas a valores como competitividade técnico-operacional 13 restrita, corporativismo, hierarquia e manutenção do emprego impediram que a Telepar pudesse avaliar adequadamente a extensão e profundidade das mudanças ambientais decorrentes da globalização da economia e dos mercados e do esgotamento da capacidade de investimento e ação empresarial do Estado brasileiro. Tais circunstâncias em adição ao período de interinidade das lideranças estratégicas da empresa geraram uma situação de crise que acabou afetando a identidade organizacional da Telepar. Ao invés de modificações contínuas e incrementais que poderiam ter atenuado a situação e propiciado ajustes graduais na identidade organizacional, a mudança acabou se configurando como de espectro radical. NOTAS * Os autores agradecem a Claudia Ramos de Oliveira por possibilitar o uso de dados da sua pesquisa na Telepar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADLER, A . A ciência da natureza humana. 4. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957. ALBERT, S., WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L., STAW, B. M. (Eds.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jay Press, 1985. 7. v. ALLAIRE, Y., FIRSIROTU, M. Theories of organizational culture. Organization Studies, v. 15, n. 3, p. 193-226, 1984. ALLPORT, G. W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. São Paulo: EDUSP/ EPU, 1973. ALVESSON, M. Talking in organizations: managing identity and impressions in an advertising agency. Organization Studies, v. 15, n. 4, p. 535-563, 1994. ALVESSON, M., BERG, P. O. 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