INSTITUIÇÕES, CULTURA E IDENTIDADE ORGANIZACIONAL*
Clóvis L. Machado-da-Silva (CEPPAD/UFPR)
Eros E. Silva Nogueira (CEPPAD/UFPR)
RESUMO
No presente trabalho procura-se verificar os fatores que delineiam a identidade de determinadas organizações
brasileiras, escolhidas intencionalmente. Parte-se do pressuposto de que a análise da identidade organizacional
não se pode desvincular da visão de contexto institucional. Para tanto, procura-se avaliar o padrão de
relacionamento entre os fatores que delineiam a identidade organizacional e o contexto institucional de
referência, com base no estudo comparativo de casos. Mediante a utilização de múltiplas fontes de evidência,
verifica-se a existência de valores, normas, expectativas de papéis e padrões reais de interação que, no conjunto,
denotam a existência de estruturas sociais específicas, em termos do que é central, distintivo e duradouro para as
pessoas que delas fazem parte. A análise dos dados permite concluir que os preceitos culturais do contexto
institucional trazem em seu bojo conteúdos simbólicos compartilhados em sociedade que afetam a formulação e
a manutenção da identidade organizacional.
INTRODUÇÃO
As pessoas configuram e estruturam a sua realidade como em um processo de
representação. As solicitações da vida cotidiana requerem que se assuma um papel ativo para
trazer à tona a realidade: atribuindo um significado e configurando um significante, apesar do
hábito de se crer que a realidade é como as coisas são e se apresentam. O conceito de
representação enfatiza o papel proativo que o indivíduo desempenha criando e recriando o
mundo.
Essa visão representativa da cultura permite compreender as organizações como
realidades socialmente construídas, existentes mais nas mentes dos seus membros do que nos
seus elementos formais e objetivos. Estrutura organizacional, regras, políticas, objetivos,
missões, descrições de cargos e procedimentos operacionais padronizados desempenham
funções interpretativas. São usados como elementos de referência no modo pelo qual as
pessoas pensam e dão sentido aos contextos e ao seu trabalho. Esses aspectos nada mais são
que artefatos culturais para representar a realidade organizacional.
Sob a ótica do processo de construção da realidade, os relacionamentos diários na
organização compõem o contexto onde os entendimentos podem ser construídos de modo a
serem, ou não, convergentes ou coerentes. A formação dos grupos e os processos de
liderança dependem da habilidade de se criar um senso compartilhado de realidade. Grupos
coesos crescem em torno de entendimentos comuns, grupos fragmentados esposam visões de
realidade múltiplas.
Hinings e Greenwood (1988) consideram que toda organização está em movimento; é
dotada de uma trajetória consoante sua particular situação histórica e sua inserção num
contexto institucional. Mudança e estabilidade são duas faces de uma mesma moeda. Há
vinculação entre as estruturas e processos de uma organização e as idéias, crenças e valores
vigentes. Essa vinculação é denominada de arquétipo organizacional, combinação entre as
estruturas prescritas e as interações emergentes com os valores e crenças vigentes. A estrutura
prescrita (composta pelos papéis, responsabilidades, sistemas de decisão e sistema de recursos
humanos) não são exaustivas; na interação cotidiana, os membros da organização suprem as
lacunas ou desconsideram o prescrito por meio das interações emergentes.
Chanlat (1992) sugere que o fenômeno social possa ser estudado em cinco níveis de
analise: do indivíduo, das interações, da organização, da sociedade e mundial. Nesse contexto,
1
a organização vem sendo considerada um quadro social privilegiado de referência, no qual se
pode reconhecer as dimensões simbólica e estrutural. Essas duas dimensões, mediadas pelas
relações de poder, permitem a noção de ordem organizacional.
A ordem organizacional exerce um papel na edificação da ordem societária. A
sociedade pode ser vista como natureza histórica, uma ordem em movimento, em que o
equilíbrio é sempre instável, causado pela sua constituição na ordem organizacional e inserção
numa ordem maior, a ordem mundial.
Sem descurar dos níveis de análise é possível inferir que uma cultura estabelece uma
identidade, uma marca reconhecível quer pelos que dela participam quer pelos que com que
ela interagem. Essa identidade corresponde a uma visão de mundo, a um modo particular de
fazer as coisas, de interagir e de ser. Nesse sentido, a identidade organizacional pode ser
considerada como resultante de uma representação compartilhada dos membros de uma
organização e daqueles com quem ela interage. Assim, a identidade organizacional pode ser
vista como elemento chave interpretativo do senso compartilhado de realidade.
A partir dessas considerações preliminares, procura-se estudar a identidade
organizacional com base na análise de dois casos: um de manutenção da identidade, outro de
mudança. O caso de manutenção da identidade refere-se à Alfândega brasileira; já a Telepar Telecomunicações do Paraná configura-se como o caso de mudança da identidade. Em ambos
os casos o contexto institucional de referência da organização parece ter exercido influência
relevante.
Na seqüência, este trabalho está estruturado da seguinte forma: uma seção destinada a
estabelecer o quadro de referência conceitual do estudo; duas outras em que se trata dos dois
casos em análise: a Aduana e a Telepar. Por último, uma seção de considerações finais.
QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA
O conceito de cultura tem sido utilizado em diversos contextos e com acentuadas
diferenças de significado. Essa variação decorre da perspectiva utilizada e do que se assume
como essencial: crenças; pressupostos básicos; valores compartilhados; ideologia;
entendimentos significativos; programas coletivos da mente; e outros (Geertz, 1989; Schein,
1991; Alvesson e Berg, 1992; Sackmann, 1992; Trice e Beyer, 1993).
Em linhas gerais, esses estudos pressupõem que a cultura confere racionalidade ou
significados compartilhados ao que poderia, de outra forma, ser considerado sem sentido.
Desta forma, confere condições de previsibilidade e de estabilidade ao conhecimento
humano.
Smircich (1983) propõe uma tipologia que serve de referência ao estudo da cultura. A
autora argumenta que o estudo da cultura vem sendo desenvolvido sobre dois enfoques
distintos: a cultura como variável e a cultura como metáfora. A cultura como metáfora é
interpretada, essencialmente, como um contínuo e dinâmico processo de construção e
reconstrução da realidade por meio da interação social, razão pela qual é a perspectiva
adotada neste trabalho. Compreende as abordagens que consideram a organização como um
modo de expressão da consciência humana, de suas idéias e aspectos simbólicos. Nessa visão,
a organização não tem uma cultura mas é uma cultura. Os que seguem essa perspectiva
adotam uma definição antropológica de cultura.
Dentre os enfoques antropológicos de cultura interessam especificamente para este
estudo o cognitivo e o simbólico. Tal interesse decorre da necessidade de entendimento da
concepção e da ação dos indivíduos participantes do grupo, e dos que com ele interagem, a
respeito dos valores e crenças que têm sobre o próprio grupo, que julgam que outros tenham
sobre o grupo e que suponham serem aceitas na sociedade.
2
A abordagem cognitiva compreende cultura como um sistema de conhecimentos, de
padrões de percepção, de crenças e de modelos de avaliação aprendidos que norteiam o modo
dos indivíduos agirem. Já a abordagem simbólica refere-se a símbolos e significados
compartilhados que resultam das interações sociais, em face da necessidade de interpretar a
realidade e de estabelecer critérios orientadores para a ação. Nessa perspectiva, a analise
organizacional focaliza a maneira como os indivíduos entendem as suas experiências e como
essas interpretações se relacionam com a ação.
O entendimento de que as organizações são, no mais das vezes, multiculturais vem
predominando na literatura especializada (Martin, 1992; Trice e Beyer, 1993; Rodrigues,
1997). A maioria das organizações, exceto as muito pequenas, são constituídas por
subculturas. A partir das crenças e valores é possível distinguir essas subculturas da cultura
abrangente da organização. Há muitos fatores que podem explicar o desenvolvimento e a
existência de subculturas: campos específicos de conhecimento; grupos demográficos; e assim
por diante.
A ocupação, por exemplo, pode prover motivo e base para significativas e altamente
organizadas subculturas que, muitas vezes, se estendem para além das fronteiras da
organização. As ocupações definem papéis e atividades que os seus membros podem passar a
considerar como de seu direito exclusivo. Ao longo do tempo, pode-se criar definições,
valores e ideologias que auxiliam a manter as suas identidades com a ocupação e a justificar
suas ações. Além disso, membros de uma mesma ocupação freqüentemente compartilham a
consciência de constituírem uma categoria diferenciada dos demais, apoiando-se uns nos
outros, como ponto de referência. Podem desenvolver identidade a partir de suas atividades,
compartilhando extensivas relações sociais, e tornando-se etnocêntricos. As ocupações têm
sido consideradas como fonte importante do surgimento de subculturas, compondo as
denominadas comunidades ocupacionais. Os meios eletrônicos de comunicação, as mídias de
massa, a interdependência de papeis, a tenuidade dos laços sociais e outros fatores propiciam
que essas subculturas mantenham sua dinâmica interação e existência para além das fronteiras
da organização (Alvesson e Berg, 1992; Trice e Beyer, 1993).
Em face do exposto, entende-se cultura organizacional como sendo o conjunto de
crenças, valores e significados concebidos, aprendidos e compartilhados pelos membros de
uma organização ou grupo. Tal conjunto propicia sentido e permite a interpretação da
realidade. Como elementos de identificação e descrição da cultura, nesse contexto, adota-se
valores e crenças, principalmente por serem os mais amplamente aceitos entre os autores
pesquisados.
O entendimento de valores como preferências permite inferir que as crenças podem ser
conceituadas como componentes implícitos que delineiam as opções dos indivíduos e que
servem de fundamento à racionalização. Representam a noção de como a realidade é, ou seja
os pressupostos básicos da realidade (Enz, 1988).
De acordo com Hatch (1997), a relação entre valores e crenças é interativa. De um
lado, as crenças sustentam os valores, à medida que aquilo que as pessoas assumem como
verdadeiro influencia o que valorizam; e, por outro, os valores podem originar crenças, à
medida que os valores são reafirmados em comportamentos eficazes, são internalizados
gradativamente como verdade e passam a ser pressupostos subjacentes.
Os membros de determinada cultura adotam valores e se ajustam às normas porque
suas crenças fundamentais alimentam e formulam esses valores e normas. Por sua vez, os
valores e as normas estimulam atividades e oferecem condições em que são produzidos
artefatos. Seria possível supor que os artefatos são, em última instância, extensões ou
expressões dos mesmos elementos essenciais da cultura que mantêm os valores e as normas.
Machado-da-Silva, Fonseca e Fernandes (1999) propõem que a realização dos
significados é mais que mera passiva recepção. Os significados são criados e recriados
3
ativamente, em modos indexados, refletidos e dotados de propósito. Ademais, Morgan
(1996), focaliza o entendimento de que ação e símbolo são inseparáveis; toda ação tem um
aspecto simbólico, significante e valorado somente em termos de sua relação com outros
símbolos que, mais do que causa do agir, se realizam através do agir.
Ao mesmo tempo que os valores e as crenças podem se expressar por meio de
artefatos, estes, por sua vez, podem estar sendo interpretados de modo a inculcar valores e
crenças que se tornarão seus futuros mantenedores. Assim é que os artefatos e as normas são
usados pelos membros de uma cultura para expressar sua identidade e para formular e
perseguir seus propósitos.
O conceito de identidade
A par das diferenças de conceituação provindas das várias escolas nos domínios da
psicologia e da psicanálise, a maioria delas parece concordar que a identidade do indivíduo
está relacionada com o sentido de unicidade pessoal e continuidade histórica; a identidade
pessoal seria um processo interno ao indivíduo, mas que é influenciado pela cultura (Adler,
1957; Filloux, 1960; Erikson, 1971; Allport, 1973; Freud, 1976, 1974; Lacan, 1985, 1980;
Jung, 1988; Freitag, 1991; Lyra, 1997). Ela seria um modo de expressão do self do indivíduo
que lhe permite ser reconhecido como diferente dos demais e, ao mesmo tempo, como similar
aos membros de uma categoria ou classe.
A psicologia social tem entendido identidade como um fenômeno social, resultante
dos significados provenientes da interações mantidas pelo indivíduo em sua vida em
coletividade. Ela passa a ser um atributo socio-cognitivo: não é nem inata nem exclusiva ao
indivíduo. Os grupos e as organizações também teriam identidade. E de fato, por meio do
processo de identificação, a identidade do indivíduo estaria relacionada estreitamente com a
identidade dos grupos e organizações em que ele se insere. Além disso, a identidade também
poderia ser entendida como tendo uma natureza reflexiva, do modo como a pessoa se vê a si
mesma, seria o seu auto-conceito.
Para alguns autores, as diferenças entre psicologia individual e social seriam não
essenciais, pois a primeira se concretiza no homem isolado, investigando os caminhos através
dos quais tenta alcançar a satisfação de seus instintos. Acontece que somente em
circunstâncias excepcionais poderia prescindir das relações com seus semelhantes. Na vida
anímica individual ele aparece sempre efetivamente integrado a outro, como modelo, objeto,
auxiliar ou adversário; assim, a psicologia individual seria, ao mesmo tempo e desde o
princípio, psicologia social, em um sentido amplo (Freud, 1974, p. 27).
Erikson (1987) estudou a noção de identidade, descrevendo-a como um sentimento
subjetivo de uma revigorante uniformidade e continuidade, possuindo uma natureza pessoal e
cultural. Para ele a formação da identidade compreende o processo essencial no âmago do
indivíduo e a inserção na cultura coletiva. Ele propõe que a formação da identidade é
inseparável da evolução sóciogenética, uma vez que somente dentro de um grupo definido
ela pode existir. Ele vislumbra, contudo, que o indivíduo possa transcender sua identidade e
tornar-se verdadeiramente individual e, ao mesmo tempo, situar-se além da individualidade.
Haveria um nexo entre as imagens sociais e as forças organísmicas, entre identidade de grupo
e identidade de ego, de ethos e ego.
Identidade social
Pages et al. (1993), tentando uma posição nem idealista nem positivista da
possibilidade de se conhecer o indivíduo e a realidade, afirmam que o discurso informa ao
mesmo tempo: (a) sobre uma realidade objetiva exterior e transcendente aos indivíduos e (b)
4
sobre seu universo mental. O discurso de cada indivíduo seria ao mesmo tempo coletivo e
individual. Coletivo na medida em que revela, de maneira exemplar, estruturas, relações entre
fenômenos, presentes de diferentes formas nos outros indivíduos. Também seria coletivo pela
complementaridade, ao invés de só pelas semelhanças, entre os diferentes discursos
individuais. O caracter coletivo do discursos remeteria, necessariamente, ao conceito de
estruturas, à existência postulada de relações entre fenômenos que operam transversalmente
sobre toda a extensão do campo sócio-mental e a um corpo teórico de hipóteses sobre a
natureza das relações .
Alguns autores analisam que no nível da sociedade, os sistemas estruturais e
simbólicos articulam as relações sociais (Holmer-Nadesan, 1996). A sociedade seria esse
espaço onde essas relações são exercidas, em suas características socioculturais comuns
(tradições, língua) e especificidades sociopolíticas (estruturas de classe, organização política.).
Para tanto são utilizados símbolos coletivos, conceitos e valores, que conferem uma certa
coesão à identidade social. Nesse conjunto se desenrolam os conflitos, as tensões, as
mudanças, as histórias (Dejours, 1992). A sociedade é domínio e condição do sentido e
significado, ela invade o indivíduo, suas interações e criações. O ser humano é o ser
socializado de determinado meio. O indivíduo é amoldado ao seu grupo, através de gestos,
ritos, atitudes, comportamentos, signos para que possa ser aceito e reconhecido pelo grupo e
possa atuar no meio. Esse processo está na base da identidade e da alteridade, as duas faces da
realidade identitária (Todorov apud Chanlat, 1996).
Para Berger e Luckman (1998), a identidade é um elemento chave da realidade
subjetiva e se encontra em relação dialética com a sociedade. Ela, de um lado, seria formada,
conservada e/ou remodelada por processos sociais, determinados pela estrutura social. Por
outro lado, ela reage sobre a estrutura social, mantendo-a, modificando-a ou remodelando-a.
As estruturas sociais históricas engendrariam tipos de identidade, elementos relativamente
estáveis da realidade social objetiva, mas isso não significaria a formulação de uma identidade
coletiva.
Os níveis individual, interpessoal, organizacional e societário estão em constante
interação. Há uma relação complexa e interdependente entre eles. O indivíduo se desenvolve e
constrói sua identidade em sua relação com o outro, e, também, por sua inserção em contextos
organizacional e social específicos.
Identidade organizacional
Caldas e Wood Jr. (1997) consideram que a idéia de identidade organizacional pode
aparecer em diversas dimensões. Pode surgir na forma pela qual a organização é percebida, a
sua imagem externa, por aqueles com quem ela interage, como, por exemplo, clientes e
fornecedores (Engels, Blackwell e Miniard, 1995). Pode surgir, também, na forma como seus
membros internos, especialmente seus dirigentes, a percebem de forma compartilhada,
correspondendo a uma percepção de si mesma ou auto-percepção ou auto-imagem. Pode
surgir, ainda, na definição da razão de ser, finalidade ou propósito da entidade ou do grupo de
indivíduos, de modo que a identidade representaria esse propósito existencial.
Para Albert e Wheten (1985), a identidade organizacional compreenderia as crenças
compartilhadas pelos membros sobre o que é central, distintivo e duradouro na organização.
“O critério de centralidade aponta as características vistas como essência da organização. O
critério da distintividade aponta os elementos que distinguiria uma organização das outras
com as quais poderia ser comparada. O critério de continuidade temporal ressalta as
características estáveis no tempo” (Albert e Wheten, 1985, p. 265). Esses três critérios seriam,
segundo os autores, cada um necessário e, como conjunto, suficientes para definir identidade
organizacional como conceito cientifico.
5
O critério que pretende estabelecer a sua distintividade, embora não possa ser, do
ponto de vista de Albert e Wheten (1985), uma propriedade mensurável, pode ser traduzido de
diversas maneiras, tais como: objetivos organizacionais estratégicos, missão, proposições
ideológicas, valores, filosofia ou cultura particular. Esses autores argumentam, ainda, que os
estudos sobre o tema precisariam considerar que as organizações podem não ter uma
identidade unidimensional ou única; elas podem ser híbridas, compostas de múltiplos tipos.
Compreendem, também, que em nível organizacional, possivelmente como se supõe ocorrer
no nível dos indivíduos, a identidade organizacional é formulada e mantida por meio de
interações, numa forma análoga aos modelos propostos por Mead (1953) e Goffman (1985).
O senso compartilhado de continuidade da organização pode estar amparado na
percepção de continuidade proporcionada pelos discursos e narrativas que operam a
estabilidade da ordem social ou grupal, inter-relacionados aos hábitos e aos recursos de
comunicação (figuras conceituais, metáforas, signos e outros) adotados por eles (Alvesson,
1994).
Nessa linha de pesquisa, Elsbach (1996) sublinha que a identidade de uma organização
reflete seus atributos centrais e diferenciadores, incluindo seus valores essenciais, cultura
organizacional, modos de desempenho e de agir e produtos. No nível dos indivíduos que
participam da organização, a identidade organizacional é fruto do seu esquema cognitivo ou
da sua percepção dos atributos essenciais e diferenciadores da organização, sua situação,
posicionamento no contexto e comparação com outras organizações.
Trabalhos mais recentes, também no âmbito da Psicologia Social, tratam a identidade
organizacional como uma função da forma como a organização percebe a si mesma. Haveria,
nesse enfoque, uma correlação entre identificação organizacional, auto conceito individual e
imagem da organização (Dutton, Dukerich e Harquail, 1994).
Outros estudiosos discutem o conceito de identidade organizacional sob a ótica de
imagem organizacional ou corporativa, ou seja, a sua imagem externa e a percepção dessa
imagem externa (Alvesson e Berg, 1992).
Elsbach (1996) apresenta o ponto de vista de que é necessário distinguir entre dois
tipos de percepção da identidade organizacional (Dutton, Dukerich e Harquail, 1994): (a) a
identidade organizacional percebida pelos seus membros (aquilo que eles crêem serem os
seus atributos centrais, diferenciadores e mantenedores ao longo do tempo); (b) a sua
identidade externa construída (aquilo que eles, os membros, pensam que aqueles que não
pertencem à organização crêem serem esses atributos centrais, diferenciadores e
mantenedores). Os dois tipos de percepção estão relacionados com representações cognitivas
mantidas pelos indivíduos, membros e não-membros da organização.
Essa teoria sugere alguns fatores que poderiam estar relacionados com o aumento da
identificação organizacional. Primeiro, a distintividade dos valores e das práticas dessa
organização em comparação com os de outras; seria um importante fator que proporciona um
entendimento de identidade única e singular. Essa distintividade poderia explicar, em parte, o
zelo missionário de membros de organizações recém criadas ou que esposam objetivos
específicos e altamente valorados pela coletividade. O segundo seria o prestígio que a
afiliação proporcionaria, tendo em vista os mecanismos de comparação social, afetando a
auto-estima. Terceiro, ela poderia ressaltar a não inclusão do indivíduo em outros grupos,
sublinhando a homogeneidade do que se sente participante e a separação ou segregação com
relação aos não-semelhantes.
A identidade social, para esses autores seria um mecanismo cognitivo que tornaria
possível o comportamento grupal. As definições situacionais e as auto-definições emergiriam
por meio de interações simbólicas, em que os significados evolveriam das interações verbais e
não-verbais dos indivíduos. O entendimento da singularidade da identidade de uma
organização pode ser compartilhado não somente entre seus membros, mas por outros
6
indivíduos e grupos que se relacionam com ela, como, por exemplo, fornecedores, clientes,
consultores.
Na mesma linha de raciocínio, Turner (1986), analisando os aspectos sociológicos do
simbolismo organizacional, argumenta que os indivíduos também mantém uma concepção de
sua própria identidade social, que é uma medida de seu próprio auto-conceito, definida pela
sua associação ou afiliação com grupos sociais.
Acredita-se que em nível cognitivo as identidades sociais dos indivíduos são
organizadas em termos de múltiplas e hierárquicas categorias (incluindo diversos elementos,
tais como: geração, idade, raça, afiliações institucionais e organizacionais). Assim a
percepção a respeito da identidade organizacional pode ter efeito direto sobre a percepção da
própria identidade social.
Devido a essa relação psicológica entre identidade social e organizacional, os estudos
têm se debruçado em avaliar a sua importância e extensão. As pessoas podem buscar
identidades sociais mais positivas e aceitas através da associação com organizações que
tenham identidade positiva (como se houvesse uma transferência do atributos para a
identidade social). O inverso também seria passível de analise: a ameaça à identidade
organizacional ou do grupo pode se constituir em ameaça à identidade social.
A identidade organizacional pode ser compreendida como resultante dos esquemas
cognitivos ou percepção a respeito dos atributos diferenciadores e essenciais da organização,
incluindo seu posicionamento no contexto (status) e comparações relevantes com outros
grupos ou organizações. Eventos externos e situações ambientais que refutem ou coloquem
em questão essas características definidoras podem ser percebidas como ameaças à percepção
dos membros da identidade da organização da qual façam parte (Elsbach e Kramer, 1996;
Gioia e Thomas, 1996)
Há vários elementos que vêem sendo usados para explicar que as organizações
possuem identidades coletivas, resultantes das crenças que os seus participantes compartilham
como central, duradouro e distintivo a respeito de cada uma delas. Muitos estudiosos afirmam
que é menos importante se esses elementos justificadores de singularidade são ou não
empiricamente válidos do que o fato de que os membros se engajam intensamente nos
processos de comunicação e influenciação para formular ou manter uma identidade coletiva
para si (para o grupo).
Esses grupos e organizações desempenham um conjunto de expressões culturais, tais
como símbolos, rituais , cerimônias e estórias que traduzem, comunicam e codificam padrões
organizacionais compartilhados de entendimentos e comportamentos (Allaire e Firsirotu,
1984). Esse repertório de expressões culturais delineiam e comunicam a identidade coletiva
organizacional.
Entretanto, nem sempre as pessoas estão conscientes desses atributos definidores da
identidade organizacional; eles podem permanecer subliminares para elas até que ela seja
ameaçada ou desafiada (Albert e Whetten, 1985; Fiol, 1991). Muitas vezes alterações
consideradas importantes ou significativas, no ambiente ou contexto, como as promovidas por
novas leis ou normas regulamentando o setor ou a atividade, ou as provocadas por
redefinições de posicionamento e ação entre concorrentes, podem desvelar ou tornar mais
evidente a identidade coletiva da organização.
Segundo Alvesson (1994), a identidade também pode se tornar mais saliente quando
seus membros acreditam que há inconsistência entre ela e a ação desempenhada pela
organização, ou quando a ação desempenhada individualmente por seus membros contradiz a
identidade ou a imagem da organização ou grupo. Quando isso ocorre, essas ações individuais
ou organizacionais interrompem o curso normal e rotineiro da dinâmica em que participam e,
assim, provocam os indivíduos a se questionarem sobre a finalidade e a natureza de sua
atividade. São momentos de revisão, aprofundamento e ampliação da consciência a respeito
7
do que eles acreditam definir a organização; são momentos, possivelmente, de rever a
magnitude da conexão que com ela mantêm, individual e coletivamente.
Esses recursos conceituais permitiram verificar, nos dois casos analisados, se os
membros de cada uma das organizações objeto do estudo lhes atribuem imagem, finalidade,
propósito e atributos próprios e, também, avaliar em que medida esses aspectos podem estar
contribuindo para um senso de existência e identidade organizacional compartilhado.
A SITUAÇÃO EM ESTUDO
Procedimentos metodológicos
A presente pesquisa caracteriza-se como estudo comparativo de casos, com múltiplas
fontes de evidência, de natureza descritiva. A abordagem metodológica, predominantemente
descritivo-qualitativa, permitiu analisar aspectos subjetivos tais como: percepções,
compreensão do contexto da organização, significados compartilhados e dinâmica das
interações. A pesquisa teve enfoque antropológico, utilizando-se dos discursos e práticas
cotidianas. O nível de analise foi organizacional e a unidade de analise foi constituída pelos
grupos da organização.
As fontes primárias se constituíram entrevistas semi-estruturadas, com as pessoas
selecionadas de acordo com critérios de amostragem proposital e estratificada casual. As
fontes secundárias se reportaram a documentos internos e externos, artefatos, signos e
símbolos e outros elementos que permitiram aferir, na comunicação, a história, a cultura e a
situação atual do grupo estudado. Os dados primários foram tratados por meio de analise
descritiva e de analise de conteúdo. Os dados secundários o foram por meio de analise
documental
O caso da Aduana brasileira
A Reforma de 1934 privilegiou as funções administrativas do Ministério da Fazenda,
em detrimento das funções arrecadatório-fiscais. Propôs uma organização dos serviços
orientada por critérios de racionalização e eficiência, separando finanças e administração. A
partir daí, a Aduana passou a se denominar Diretoria de Rendas Aduaneiras e, todos os
tributos e serviços fiscais não aduaneiros, como, por exemplo, referentes ao Imposto de
Consumo, passaram a ser tratados por um outro órgão, a Diretoria das rendas Internas. Elas
se tornam os pilares principais do Departamento do Ministério da Fazenda.
Em 1967, o Governo Federal decidiu criar uma nova estrutura para conduzir a
administração tributária no Brasil. A Secretaria da Receita Federal foi criada e instalada em
substituição à anterior Direção Geral da Fazenda Nacional, incluindo as funções
desempenhadas pelas extintas Diretorias de Rendas Aduaneiras, de Rendas Internas, de
Imposto de Renda e de Arrecadação. O ato que criou a Secretaria da Receita Federal em 1968
e extinguiu o órgão encarregado pela Aduana, definiu sua estrutura em quatro sistemas
básicos: sistema de fiscalização, sistema de arrecadação, sistema de tributação e sistema de
informações econômico-fiscais. Esse critério não comportava condições para manter-se um
departamento ou setor especializado por tributo (IPI, Imposto. de Renda e outros) ou por
natureza de atuação (exemplo: aduaneiro ou tributos internos).
Apesar de regimentalmente a aduana ter sido dissolvida, entre 1967 e 1985, por quase
vinte anos, as atividades aduaneiras continuaram sendo prestadas e desenvolvidas pelas
unidades locais especializadas remanescentes e pelos recursos humanos que sobreviveram à
reforma, sem um comando estratégico e diretor especializado a nível central.
Vários fatores, contudo, concorreram para o processo de restauração da administração
8
aduaneira (núcleo especializado com status estratégico nacional e núcleos especializados a
nível operacional, num conjunto que estabelece uma coordenação geral e um sentido de
unicidade organizacional), com destaque para a situação conjuntural do comércio exterior
logo após o choque do petróleo , aproximadamente em 1974.
Somente em 1985, com o crescimento significativo das importações e a diversificação
da pauta de exportações, é que começou a merecer destaque a gravidade dos problemas da
área aduaneira, desvelando a falta de estrutura organizacional para gerir essa área e atender à
realidade econômica e às demandas dos operadores do comércio internacional.
Essa conjuntura demandou uma atuação mais efetiva da Secretaria da Receita Federal
no âmbito aduaneiro, o que justificou as iniciativas que permitiram a revisão de sua estrutura
e a acomodação de segmentos especializados na atuação aduaneira em todos os níveis
hierárquicos.
A crise revelava a necessidade de se recriar o sistema aduaneiro e de se fornecer a
especificidade das suas atividades. A comissão incumbida desse estudo, teve uma missão
geradora e, graças ao seu desempenho, logo em seguida foi elaborada uma nova versão de
Regulamento Aduaneiro, consolidando a legislação principal e todas as outras esparsas, e
também foi criada a Coordenação-Geral, porém, com seus espaços constitucionais e
operacionais limitados pela competência concorrente dos outros sistemas internos da
Secretaria da Receita Federal (sistema de fiscalização; sistema de arrecadação, sistema de
tributação e sistemas de informações e tecnologia).
Em 1992 foi admitida a (re)denominação de Alfândega às unidades operacionais
locais, especializadas nas atividades aduaneiras, em alguns dos portos e aeroportos brasileiros
(ex.: Alfândega do Porto de Santos: até então, essas funções eram desempenhadas por setores
da Delegacia da Receita Federal em Santos, que cuidava cumulativamente das questões de
tributos internos e aduaneiras).
A partir da análise dos dados, algumas crenças parecem estar estreitamente associadas
entre si, assim como parecem estar associadas com alguns valores, o que sugere que elas
possam constituir um sistema de crenças devidos a essa aparente associação e
interdependência. Os dados coletados indicam um amplo consenso, dentre aqueles que
participam ou interagem diretamente com o sistema aduaneiro, com relação às crenças
identificadas.
A existência do Estado, seu papel e funções; a natureza da atividade aduaneira, sua
missão e atividades; a existência e obrigatoriedade do ordenamento jurídico; a soberania do
Estado e do ordenamento jurídico; a qualidade assimétrica do exercício do poder no
relacionamento com a Aduana (e com o Estado) e outros pressupostos semelhantes emergem
dos dados em consenso.
Transparece a aceitação nas crenças de que é conveniente e desejável: agir de acordo
com a legalidade. A legalidade é pressuposto da legitimação. o Estado e a Aduana trabalham
para o bem comum. A soberania do Estado e da Nação deve ser preservada, a prática desleal
de comércio é abominável e outras afirmações do gênero.
A historicidade da aduana, sua corporatividade internacional, seu caráter institucional
são elementos consensuais de referência freqüente, que criam a percepção de unidade do
grupo, de vinculação entre si e superação das divisões políticas, funcionais e geográficas.
As manifestações culturais apresentam, em sua grande maioria, alto grau de
consistência. As práticas formais e informais, tais como os eventos característicos da cultura
aduaneira são consistentes com as crenças, valores, idéias e temáticas simbólicas nela
reconhecida (exemplo: o Estado exercendo sua soberania através do controle aduaneiro; a
aduana defendendo a economia nacional, verificando a legalidade das ações). A ordem
normativa mantém razoável consistência com os processos organizacionais e os elementos
estruturais.
9
Questionados sobre a natureza da atividade aduaneira, os entrevistados apresentam,
como respostas, afirmações a respeito do que se pode considerar como sua missão (exemplo:
defender a economia nacional”, “proteger o trabalho nacional”, “afirmar a soberania
nacional”). Também nos documentos analisados constata-se freqüentes e acentuadas
afirmações sobre sua missão, finalidade e papel. Nesses dados, há nítido entendimento que a
natureza de sua atividade é mais estatal-econômica do que social (stricto sensu) ou
arrecadatória-tributária.
Parece que os participantes do sistema aduaneiro consideram que a afirmação de sua
missão é sua característica essencial mais importante, o núcleo justificador de sua existência.
Nos dados analisados, esse entendimento parece confirmado perlas afirmações feitas pelos
não-participantes do sistema aduaneiro que reconhecem e destacam esse atributo.
Como já sugerido por Albert e Wheten (1985), os membros e participantes de
determinada organização podem enfatizar, dar relevo ou reconhecer o que consideram
essencial nela quando se defrontam com situações em que percebem que a existência ou a
identidade ou a imagem da organização está sendo ameaçada, questionada ou confrontada.
Os episódios da extinção da Aduana em 1967, da sua absorção dentro da Secretaria da
Receita Federal, as dificuldades daí decorrentes para realizar sua missão, as estórias das
reações negativas e contrárias às pretensões de se restabelecer a autonomia da Aduana, são
alguns aspectos das descrições que compõem os dados analisados e permitem deduzir que há
uma percepção compartilhada a respeito do contexto atribuindo-lhe um carácter adverso.
As respostas às questões em torno dos atributos identificadores da Aduana podem estar
refletindo essa compreensão da existência de aspectos ambientais adversos ou ameaçadores à
sua integridade identitária. Sob esse ponto de vista, é possível supor que as assertivas sobre o
papel e a missão da Aduana podem trazer afirmações sobre atributos que consideram como
essenciais na justificativa da sua existência e identidade, como parte de uma reação ao que
consideram como atitudes ameaçadoras.
Além do mais, essas afirmações sobre o papel, a missão e a natureza de suas atividades
são expostas como orientadoras do modo como as outras instituições (sociais) deve se
relacionar com ela e, também, como critério para se aferir o que, dentre suas muitas
atividades, é mais importante e pertinente à sua finalidade institucional.
Por outro ângulo, as afirmações consideradas como aspectos essenciais de uma
identidade aduaneira não são unívocas entre si, ou seja, não são necessariamente concordantes
entre si. Essa constatação sugere ou uma ambigüidade inerente, ou uma complexidade que as
afirmações apenas refletem pobre e contraditoriamente, ou que há uma percepção que
corresponde a uma transição e mudanças significativas e atuais na trajetória histórica dessa
organização/cultura aduaneira. Coexistem crenças e valores correspondentes a duas
orientações diferentes: uma, normativa; outra, utilitária.
Há inferências, a partir do visto nesse estudo de caso, que a organização aduaneira é
considerada cumulativamente como agencia estatal reguladora, normativa, controladora e
repressora, com um foco específico em uma característica ética. Essas referências
apresentam, a priori, coerência e consistência com as afirmações concernentes à sua missão e
papel. Essas referências que parecem atribuir uma classificação genérica ao organismo
aduaneiro, desvelam, entretanto, as afirmações, contidas nos dados analisados, que elegem a
sua missão e papel como atributos de sua exclusividade e distintividade em relação a outras
organizações.
Se pode perceber que as comparações com outras que desempenham papel análogo ou a
que se atribuem o mesmo tipo, como agente regulador (ex.: Secretaria de Vigilância
Sanitária), agente normatizador (ex.: Departamento de Câmbio do Banco Central) ou agente
repressor (ex.: Departamento da Polícia Federal), são acompanhadas de proposições que
sublinham que ela é diferente das demais organizações aparentemente similares. Essas
10
proposições são resumidas nas noções de: (a) exclusividade da sua missão, como um carácter
distintivo de sua identidade (ex.: “é a aduana a única que tem por missão defender a soberania
e as fronteiras econômicas nacionais”), (b) de historicidade (ex.: “a aduana tem uma história
própria e presença ativa na história da economia brasileira” - D.E 3) e ( c) de “origens
ancestrais” (ex.: as origens da aduana se perde na história, e está estreitamente relacionada
com a existência do Estado” ; D.E.10).
Nos dados estudados se percebe a invocação do papel como significativa referência à
descrição da identidade do organismo aduaneiro, com correlação aos conteúdos simbólicos
axiais da ordem institucional (exemplo: soberania, nacionalidade servir defendendo e outros).
Esses conteúdos simbólicos parecem integrar áreas de significação e abranger a ordem
institucional em uma totalidade simbólica.
Segundo Berger e Luckman (1985), os papéis desempenhados por atores sociais
representam a ordem institucional. Alguns papéis, contudo, representam simbolicamente esta
ordem em sua totalidade mais do que outros papeis. Alguns papeis não teriam outra função
senão esta representação simbólica da ordem institucional como totalidade integrada,
enquanto outros a assumiriam eventualmente. A aduana desempenha, assim, papéis
institucionais participando desse universo simbólico que transcende e inclui a ordem
institucional.
Outro aspecto observado foi o corrente tratamento e referências às atividades aduaneiras
e às pessoas que as desempenhem como se, todo esse conjunto, constituísse um todo dotado
de existência própria autônoma e fosse um fenômeno supra cotidiano: a Aduana. A falta de
organicidade, de autonomia e de se estruturar em organização distinta não impedem que
aduaneiros e não-aduaneiros (aqueles que não desenvolvem atividades aduaneiras) se refiram
a uma Aduana como um fato objetivado.
Há como uma reificação, produzida no entendimento da existência objetivada da
Aduana, de seus papéis e da sua identidade. A aduana teria existência, assim como existiriam
o Estado, a Nação, a soberania e outros fenômenos reificados da experiência humana.
Os valores foram definidos como os padrões de julgamento cujos significados
compartilhados indicam o preferível ou desejável, e podem expressar a idéia de como deve ou
deveria ser a realidade, a idealização ou o ideal. Os dados analisados permitiram conhecer
alguns desses valores, denominados nesse trabalho como noções ou orientação valorativas,
pois alguns parecem constituir verdadeiros eixos articuladores (legalidade x ilegalidade;
lealdade x deslealdade [comercial]; eficácia x ineficácia; justiça x injustiça) de padrões entre
noções ideais. Essas noções parecem compor a descrição e a percepção de identidade
organizacional aduaneira na medida que;
a) tornam-se recursos adicionais nos processos de comparação social e categorização;
b) estabelecem padrões qualificativos sobre os padrões e modos de interação;
c) são significados compartilhados que permitem, em conjunto com as crenças, dar
sentido, formular e interpretar a realidade e a si mesmo;
d) são comunicados e reanimados nas práticas sociais e atributos culturais.
O caso da Telepar
A Telepar - Telecomunicações do Paraná S/A nasceu em 1963, com outra
denominação. Sua trajetória encontra-se estreitamente relacionada à história das
telecomunicações no Brasil, caracterizada por flutuações na forma de atuação do Estado. Com
o surgimento do Contel - Conselho Nacional de Telecomunicações, em 1961, e, na seqüência,
com a implantação da Embratel – Empresa Brasileira de Telecomunicações, em 1965,
inaugura-se um período centralizador de atuação governamental no setor. O processo de
11
nacionalização das empresas desse segmento ocorre a partir da criação, em 1972, da
Telebrás – Telecomunicações Brasileiras S/A.
Incorporada ao sistema Telebrás, em 1975, a Telepar atravessa as décadas de 70 e 80
construindo e expandindo sua infra-estrutura no Estado do Paraná, onde detinha o privilégio
da exclusividade na concessão de serviços. Na década de 90, a empresa passa a enfrentar um
quadro ameaçador de mudanças ambientais: reforma do Estado, com base em modelo
gerencial de gestão governamental; redução dos investimentos e de gastos públicos; tendência
à privatização de empresas estatais; abertura do mercado à competição, com participação de
investidores internacionais; mercado e clientes mais exigentes; emergência de novos
patamares de capacitação tecnológica; enfim, toda uma série de transformações contextuais
decorrentes do esgotamento da capacidade de investimento e ação empresarial do Estado e da
crescente inserção do Brasil na economia global.
Em meados de 1998 ocorre a privatização da Telepar. A análise da identidade
organizacional da Telepar, no período compreendido entre sua incorporação ao Sistema
Telebrás (1975) e sua privatização (1998), traz à tona crenças e valores sobre os quais vale a
pena se deter.
A análise dos dados revela alto nível de consenso no que concerne as crenças
identificadas, até o final da década de 80. O pressuposto básico de que o sistema de
telecomunicações é fundamental para a segurança nacional é altamente esposado entre os
integrantes da empresa, independentemente do nível hierárquico em que se situam.
Diretamente vinculadas à noção de segurança estão as crenças sobre soberania nacional,
proteção dos interesses nacionais, legitimidade da ação empresarial empreendida pelo Estado.
A natureza estatal e monopolista do setor de telecomunicações e a própria
especificidade do negócio propiciaram à Telepar condições favoráveis para o
desenvolvimento de uma postura introvertida, excessivamente focada em seu processo
produtivo. Desenvolveu-se uma forte cultura tecnocrática, reforçada continuamente por
indicadores de desempenho técnico-operacional adotados pela holding do sistema, a Telebrás.
Em conseqüência, ocorreu a sedimentação de um comportamento de auto-suficiência
na empresa, permeando todos os níveis hierárquicos. Valores corporativos relacionados a
estabilidade no emprego e a benefícios crescentes, sem necessariamente guardar relação com
o desempenho individual e organizacional, ganharam grande espaço. Clientes e mercados
constituíam conceitos restritivos: quando se levantava o percentual de demanda represada
todos os argumentos se apoiavam nos limites para investimentos e nas restrições tarifárias
governamentais. A idéia de competitividade se restringia a metas de natureza quantitativa
estabelecidas em conjunto com a Telebrás.
Em suma, o desempenho da empresa era predominantemente avaliado em relação a
metas técnico-operacionais, que se constituiam em fins desejados, desconsiderando-se
perspectivas e necessidades diferenciadas dos clientes, do próprio governo e da sociedade. O
contexto de referência era a Telebrás, quer visualizando possibilidades de reconhecimento e
de promoção dos dirigentes quer restringindo a noção de competitividade à disputa entre as
empresas componentes do sistema.
Tal situação prevaleceu até o início dos anos 90. A partir daí, a série de transformações
contextuais dessa década pressionaram a Telepar no sentido de mudar para poder sobreviver.
As mudanças promovidas em 1992 ainda decorriam de uma visão essencialmente técnicooperacional: círculos de controle de qualidade, programa de qualidade total. Neste ponto vale
registrar que a empresa, com uma longa história de Presidentes efetivos e por períodos
duradouros de tempo, passou pela experiência de ter quatro presidentes temporários no curto
interregno de dois anos – 1992 a 1994.
De acordo com depoimentos de entrevistados, esse período de interinidade em plena
circunstância de fortes transformações ambientais provocou forte abalo cultural na Telepar,
12
afetando sua identidade organizacional. Perdeu-se o senso de missão e de orientação
estratégica. Tanto os gerentes quanto os funcionários assinalam que já não sabiam para onde a
empresa deveria seguir.
Desta forma, da inter-relacão entre crise de liderança interna e fortes pressões
ambientais externas emergiram as condições para mudanças fundamentais na Telepar. Em
1996, a empresa passa por mudança de maior porte mediante a implantação de um novo
modelo, intitulado Sistema de Gestão Empresarial - SGE.
A implementação do SGE resultou em redefinição da missão da empresa que passou
da ênfase em segurança, soberania e proteção dos interesses nacionais para a visão de oferecer
serviços de telecomunicações e multimidia para segmentos diferenciados do mercado.
Clientes, acionistas e sociedade são redefinidos de forma mais ampla. Novas crenças e valores
emergem na empresa. Ética, orientação estratégica, desterritorialização/globalização,
qualidade, satisfação do cliente, competitividade em sentido menos restrito, rentabilidade e
capacitação profissional passam a conviver com valores anteriores como hierarquia,
corporativismo e empregabilidade.
Em síntese, verificou-se: a) a transformação da razão de ser da Telepar (o que é
essencial) a partir do novo caráter institucional de sua missão; b) a mudança de sua situação
exclusiva como empresa estatal monopolista do setor de telecomunicações do Paraná,
obrigando-a a redefinir o seu papel social (o que é distintivo); e c) a modificação de sua
representação na ordem institucional (o que é duradouro).
No período de 1996 a 1998 a Telepar debateu-se para definir seu novo papel na nova
ordem institucional vigente. O conflito entre novos e antigos valores constituía o foco e o
lugar das interações sociais entre seus membros, nos diversos níveis hierárquicos.
Infelizmente esse estudo teve que se encerrar pouco antes dos eventos que culminaram em sua
privatização, em meados de 1998. Tal fato claramente delimitou o campo de visão dos
pesquisadores sobre a nova identidade organizacional em processo de formação na empresa
de telecomunicações resultante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dois casos analisados constituem exemplos interessantes no estudo da identidade
organizacional. Em ambos os casos o contexto institucional de referência desempenhou papel
relevante, como se pode observar na análise precedente.
No caso da Alfândega brasileira, a sua incorporação pela recém criada Secretaria da
Receita Federal, em 1967, não obliterou a sua identidade organizacional aduaneira como seria
de se esperar. Tal constatação remete à importância da influência do sistema aduaneiro
internacional (contexto institucional de referência da Alfândega brasileira) sobre as crenças e
valores da Aduana. Os artefatos, os significados compartilhados acabaram por manter a
identidade organizacional de uma organização que, em última instância, havia deixado de
existir em termos de sua configuração anterior. Não se deve perder de vista que se passaram
25 anos desde o momento de sua incorporação pela Secretaria da Receita Federal até a sua
(re)denominação como Alfândega. Se o contexto institucional de referência da Secretaria de
Receita Federal passasse a ser também o da Aduana, em tão longo período de tempo,
seguramente teria ocorrido a reformulação da identidade organizacional da Aduana – o que
não se verificou.
No que concerne à Telepar, parece ter sido a conjunção de fatores internos e externos
que ocasionaram a sua crise de identidade. No período de 1975 até os primeiros anos da
década de 90, o contexto institucional de referência da empresa circunscrevia-se ao sistema
Telebrás. Crenças sobre o papel e a razão de ser das telecomunicações como instrumento de
segurança e soberania nacionais, aliadas a valores como competitividade técnico-operacional
13
restrita, corporativismo, hierarquia e manutenção do emprego impediram que a Telepar
pudesse avaliar adequadamente a extensão e profundidade das mudanças ambientais
decorrentes da globalização da economia e dos mercados e do esgotamento da capacidade de
investimento e ação empresarial do Estado brasileiro.
Tais circunstâncias em adição ao período de interinidade das lideranças estratégicas da
empresa geraram uma situação de crise que acabou afetando a identidade organizacional da
Telepar. Ao invés de modificações contínuas e incrementais que poderiam ter atenuado a
situação e propiciado ajustes graduais na identidade organizacional, a mudança acabou se
configurando como de espectro radical.
NOTAS
* Os autores agradecem a Claudia Ramos de Oliveira por possibilitar o uso de dados da sua pesquisa na Telepar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADLER, A . A ciência da natureza humana. 4. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957.
ALBERT, S., WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L., STAW, B.
M. (Eds.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jay Press, 1985. 7. v.
ALLAIRE, Y., FIRSIROTU, M. Theories of organizational culture. Organization Studies, v.
15, n. 3, p. 193-226, 1984.
ALLPORT, G. W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. São Paulo: EDUSP/ EPU,
1973.
ALVESSON, M. Talking in organizations: managing identity and impressions in an
advertising agency. Organization Studies, v. 15, n. 4, p. 535-563, 1994.
ALVESSON, M., BERG, P. O. Corporate culture and organizational symbolism. New
York: Walter de Gruyter, 1992.
BERGER, P. L., LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia
do conhecimento. 15. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
CALDAS, M. P., WOOD JR., T. Identidade organizacional. Revista de Administração de
Empresas, v. 37, n. 1, p. 06-17, jan./mar. 1997.
CHANLAT, J.-F. Por uma antropologia da condição humana nas organizações. In: _____
(Ed.). O indivíduo na organização. São Paulo: Atlas , 1992.
DEJOURS, C. Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. In: CHANLAT, J.F. O indivíduo na organização. São Paulo: Atlas , 1992
DUTTON, J. E., DUKERICH, J. M., HARQUAIL, C. V. Organizational images and member
identification. Administrative Science Quartely, v. 39, p. 239-263, 1994.
ELSBACH, K. D., KRAMER, R. M. Members’ responses to organizational identity.
Administrative Science Quarterly, v. 41, p. 442-476, 1996.
ENGELS, J. F., BLACKWELL, R. D., MINIARD, P. W. Consumer behavior. 8. ed. New
York: The Dryden Press, 1995.
ENZ, C. The role of value congruity in interorganizational power. Administrative Science
Quartely, v. 33, p. 284-304, 1988.
FILLOUX, J.-C. A personalidade. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960.
FIOL, C. M. Managing culture as a competitive resource: an identity-based view of
sustainable competitive advantage. Journal of Management, v. 17, n. 1, p. 191-211,
1991.
FREITAG, B. Piaget e a filosofia. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
FREUD, S. Psicologia de las masas y analisis del yo (Conferência XIII). In: _____. Obras
completas. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1974. VII . v. (1916-1924).
14
_____. Dissecção da personalidade psíquica (Conferência XXXI). In: _____. Obras
psicológicas completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. XXII. v. (1932-1936).
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
GIOIA, D., THOMAS, J. Identity, image and isue interpretation: sensemaking during a
strategic change in academia. Administrative Science Quartely, v. 41, p. 370-403,
1996.
GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
HATCH, M. J. Organization theory: modern, symbolic and postmodern perspectives. New
York: Oxford University Press, 1997.
HININGS, C. R., GREENWOOD, R. The dynamics of strategic change. New York: Basil
Blackwell, 1988.
HOLMER-NADESAN, M. Organizational identity and space of action. Organizational
Studies, v. 17, n.1, p. 49-81, 1996.
JUNG, C. G. AION - estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petropólis: Vozes, 1988.
LACAN, J. O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim Cooperativa Editora
Livreira, SCARL, 1980.
_____. Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. In: _____. O seminário.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LYRA, C. E. Metáfora da prisão psíquica. Curitiba: UFPR, 1997.
MACHADO-DA-SILVA, C. L.; FONSECA, V. S. DA, FERNANDES, B. H. R. Mudança e
estratégia nas organizações: perspectivas cognitiva e institucional. In: VIEIRA, M. M. F.,
OLIVEIRA, L. M. B. DE (Orgs.). Administração contemporânea: perspectivas
estratégicas. São Paulo: Atlas, 1999.
MARTIN, J. Culture in organizations: three perspectives. New York: Oxford University
Press, 1992.
MEAD, G. H. Espititu, persona y sociedad: desd el punto de vista del condutismo social.
Buenos Aires: Editorial Paidos, 1953.
MORGAN, G. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 1996.
PAGES, M. et al. Poder nas organizações. São Paulo: Atlas, 1993.
RODRIGUES, S. B. Cultura corporativa e identidade: desinstitucionalização em empresa de
telecomunicações brasileira. Revista de Administração Contemporânea, v. 1, n. 2, p.
45-72, 1997.
SACKMANN, S. Cultures and subcultures: an analysis of organizational knowledge.
Administrative Science Quartely, v. 37, p. 140-161, 1992.
SCHEIN, E. Organizational culture and leadership. San Francisco: Jossey-Bass Publishers,
1991.
SMIRCICH, L. Concepts of culture and organizational analysis. Administrative Science
Quarterly, v. 28, n. 3, p. 339-358, 1983.
TRICE, H. M., BEYER, J. M. The cultures of work organizations. New Jersey: Prentice
Hall, 1993.
15
Download

INSTITUIÇÕES, CULTURA E IDENTIDADE