A POLÊMICA DOUTRINÁRIA ACERCA DA NECESSIDADE DA MANUTENÇÃO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO JOÃO BATISTA RICALDE GERVASIO 1. INTRODUÇÃO A falibilidade do ser humano é algo incontestável, assim como a aversão ao conformismo com algo que é contrário ao desejado. Sempre que se está diante de situação adversa, de situação insatisfatória, busca-se uma segunda opinião ou julgamento, haja vista que o erro é inerente ao ser humano, pois ninguém possui a almejada condição de ser perfeito. Uma das principais características do ser humano é a diversidade. Diversidade de interesses, de opiniões. A convivência com essa diversidade gera conflitos, vez que é natural que cada um busque proteger seus interesses, suas necessidades. Num primeiro momento da sociedade, a forma de solução dos conflitos era a autotulela, ou seja, a solução dos conflitos era alcançada através da força, vencendo o mais forte, representado pela expressão “olho por olho, dente por dente”. Superada tal fase, o ser humano delegou a solução dos conflitos de interesses ao Estado, através do Poder Judiciário que, no exercício da Jurisdição (poder de dizer o Direito), substitui a vontade das partes conflitantes e pronuncia a vontade do ordenamento jurídico vigente. No entanto, a prolação de uma decisão ou deliberação desfavorável causa insatisfação, uma vez que o ser humano é revolto a decisões que contrariam suas vontades. Daí surgiu a necessidade da criação de mecanismos de reexame das decisões judiciais como medida justa e adequada aos maiores anseios da equidade, pois além do indócil espírito do inconformismo vem a falibilidade humana com a possibilidade de incursão em erro daquele que julga o conflito. A possibilidade de revisar a decisão proferida pelo julgador recebeu a denominação de recurso, dando vida ao duplo grau de jurisdição que encontra fundamento na luta incansável do homem em encontrar uma solução mais adequada a seu interesse. O duplo grau de jurisdição está presente na maioria dos países ocidentais visando a garantia de uma boa solução à lide, o direito à segurança e o direito à justiça das decisões judiciais, tendo íntima relação com a preocupação dos ordenamentos jurídicos em evitar a possibilidade de equívocos por parte do juiz. Assim, a parte vencida tem a possibilidade de ver a decisão reexaminada por outro órgão judiciário, possibilitando uma reapreciação da decisão, gerando uma maior segurança de que a decisão foi justa. No entanto, o princípio do duplo grau de jurisdição está diretamente ligado á problemática sobre a infinita possibilidade do uso dos recursos, que acarreta na morosidade do judiciário, bem como desvaloriza a decisão do primeiro julgador, logo aquele que tem contato direto com os conflitantes. Deste jeito, há uma forte corrente que prega a abolição do duplo grau de jurisdição. Tendência esta que ganha cada vez mais força em todo o mundo e já tem reflexos aqui no Brasil, pois com as recentes reformas realizadas no processo civil relativou-se muito o “direito de recorrer”, como bem se pode observar na adoção da súmula impeditiva de recursos e da súmula vinculante. 2 DESENVOLVIMENTO Embalado pelo grito lançado primeiramente na Itália por Cappeletti, rompendo com a tranquilidade histórica acerca do assunto, parte da doutrina começou a manifestar-se contrária a manutenção do duplo grau de jurisdição. Os argumentos são fartos, porém baseados na tese de que a garantia do duplo grau seria uma afronta ao princípio do acesso à justiça, visto que, é necessário uma duração não excessiva do procedimento, o que não ocorre quando existe mais de um juízo sobre o mérito. Entre os tantos argumentos destacam-se: - a abolição do duplo grau de jurisdição favoreceria os princípios fundamentais da imediatidade, oralidade, concentração e economia processual, já que é no primeiro grau que se tem uma longa apreciação da causa, bem como é diante do juiz monocrático que a prova é produzida, o que possibilita uma decisão mais adequada com a realidade do que aquela decisão proferida por um tribunal que não manteve contato com as partes e com as provas; - a decisão proferida uma única vez provoca um maior valor de certeza jurídica, ao passo que, havendo reforma da sentença surgem margens para dúvidas quanto a aplicação do direito, produzindo incertezas e apontando divergências de interpretação, desprestigiando o judiciário; - a decisão do segundo grau que confirma a decisão proferida pelo juiz de primeiro grau aponta flagrantemente a inutilidade do princípio; - os juízos de hierarquia superior, mesmo que sejam compostos por juízes mais experientes, também são falíveis, passíveis de cometer erros e injustiças, afastando-se assim o fator de segurança jurídica, argumento dos que são favoráveis a manutenção do duplo grau; - o duplo grau não traduz relação de dependência ou continência com o devido processo legal, nem se relaciona com os direitos de ação e de defesa, razão pela qual existe a possibilidade de restringir-se as hipóteses de admissibilidade recursal. De outra forma, mas com a mesma intenção de abolir o duplo grau de jurisdição, Luiz Guilherme Marinoni traz argumentos diferentes daqueles relacionado pela doutrina italiana, quais sejam: - o duplo grau de jurisdição nada mais é do que um duplo juízo sobre o mérito, porque, mesmo quando a decisão é feita pelo tribunal, não há o que se falar em dois graus de jurisdição, mas sim em dois órgãos do Poder Judiciário analisando a mesma causa; - a doutrina quando alude ao duplo grau de jurisdição, costuma afirmar que a revisão das decisões do magistrado de primeiro grau, por parte de um órgão “hierarquicamente superior”, é fundamental para o controle da atividade do juiz. No entanto, a finalidade do duplo grau não é a de permitir o controle da atividade do juiz, mas sim a de propiciar ao vencido a revisão do julgado, pois o que se discute é a oportunidade de se dar ao vencido o direito à revisão da decisão que lhe foi contrária, e que os tribunais, através das corregedorias, têm as suas próprias formas para inibir condutas ilícitas, que obviamente não se confundem com decisões “injustas”; - o fato de que a existência do duplo grau exerceria uma influência sobre o juiz que está ciente de que a sua decisão será revista por um outro órgão do Poder Judiciário consubstancia-se em uma verdadeira afronta a importância da figura do juiz de primeiro grau, pois a cada dia torna-se mais premente a necessidade de se conferir maior poder ao juiz, bem como exigir-se dele uma maior responsabilidade, sendo completamente descabido aceitar que o juiz somente exercerá com zelo e proficiência as suas funções quando ciente de que a sua decisão será revista. Dar ao juiz poder para decidir sozinho determinadas demandas é imprescindível para a qualidade e efetividade da prestação jurisdicional. Em contrapartida, a maioria dos doutrinadores ainda é absolutamente favorável a manutenção do duplo grau de jurisdição. Enfortecem as vozes em defesa do duplo grau com os seguintes argumentos: - a presença do duplo grau serve para favorecer a consecução de uma sentença justa. Allorio diz que o primeiro juízo eqüivale a uma série de experimentos científicos, enquanto que o segundo juízo eqüivale a estágios de pesquisas e estudos, que, não partindo mais dos fatos objeto da primeira investigação, avaliam e criticam o primeiro resultado, sendo mais provável que, desta forma, seja possível se chegar a um maior grau de verdade, pois a jurisdição de segundo grau beneficia-se de todo um trabalho de pesquisas e discussões feito em primeira instância, de tal sorte que o debate fica mais esclarecido, o que leva ao entendimento de que a decisão do segundo juiz será melhor que o julgamento do primeiro; - o cotidiano do primeiro grau é marcado pela superficialidade da análise, a pressa e a precipitação do aprofundamento quanto aos elementos da lide, ensejadores de erros que podem e devem ser reparados; - não há justiça quando se produz uma conseqüência tão grave quanto a coisa julgada, com a única preocupação da rapidez, ou quando se fabrica uma certeza veloz, sem resguardo da efetiva correspondência entre o direito substancial lesado e o conteúdo da disciplina jurídica que deve refletila. Entre a rapidez e a possibilidade de geração de injustiça é preferível um processo mais lento, mais cuidadoso e menos exposto ao erro; - a presença da falibilidade como fator inerente à condição humana ainda mantém-se como forte argumento da manutenção do duplo grau de jurisdição, pois que não é dado ao juiz o privilégio de supor-se imune ao cometimento de erros, principalmente considerando a importância dos atos decisórios que, como quaisquer outros, estão sujeitos a questionamentos e censuras. Sendo obra humana, também a justiça é falível, e a sentença de primeiro grau pode ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir-se sua reforma em grau de recurso, dando-se ao vencido uma oportunidade para o reexame da sentença com a qual não se conformou, visto que, é também inato ao ser humano a repulsa a decisões que lhe são contrárias; - a experiência dos integrantes dos órgãos colegiados oferece maior segurança à concretização do ideal de justiça, atenuando o risco da ocorrência de erros, que, embora possível, é menos provável; - a instituição de um Juiz único representa um risco real e verdadeiro, porque inexistindo qualquer controle de seus atos, pode acabar sendo tentado a cometer arbitrariedades; - o caráter dialético do processo determina que sua marcha seja marcada por contradições que só serão superadas pelo ato decisório. Improvável não é, no entanto, que a sintetização não se dê por ocasião do primeiro julgamento, sendo necessário, então, a evolução do exame, a fim de que no julgamento de segundo grau o litígio apareça com toda sua amplitude, permitindo uma visão mais clara e complexa da causa; - quanto mais se examina uma sentença, mais perfeita é a distribuição da justiça, o que eqüivale a dizer que o princípio não só constitui garantia fundamental de boa justiça, como se revela essencial a organização judiciária. 3 CONCLUSÃO Ponderáveis e bastante sustentáveis são ambos os argumentos, porém imprescindível é analisar o problema com olhos realistas. O argumento da falibilidade do ser humano, diante dos recentes acontecimentos, ganha razão, principalmente se somado a possibilidade (em pequeno número é verdade) de sujeição de nossos juízes a corrupção. O cidadão não pode ficar sujeito a uma única decisão proferida por uma única pessoa. É inafastável o direito de inconformação com algo que é contrário a expectativa, principalmente no momento em que suspeitas de corrupção, de imoralidade se confirmam contra membros do Poder Judiciário. Por certo que muito se ganharia em termos de economia e celeridade com a existência de um único grau de jurisdição. Certamente este será o destino do Direito se vermos com otimismo a evolução do ser humano, imaginando que a cada geração os vícios de comportamento sejam preteridos pelos bons valores. Porém, no momento, não só em virtude do caos moral que assola grande parte dos seres humanos, incluindo-se neste rol também os Juízes, mas também em razão do histórico cultural assimilado acerca do duplo grau de jurisdição, perigoso demais seria sua abolição. 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. SÁ, Djanira Maria Radamés de. Duplo Grau de Jurisdição: conteúdo e alcance constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. 2. MARINONI, Luiz Guilherme. A prova, o princípio da oralidade e o dogma do duplo grau de jurisdição. Disponível em: http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7BBF82E33F-549B-46A9-BB3B88CAFC9251FF%7D_029.pdf – Acesso em 24.11.03