CONSELHOS CLÁSSICOS EUROPEUS E CONSELHOS DE DIREITOS E DE POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL: CONTRAPONTOS Rafaela Brustolin Hellmann RESUMO Este trabalho é parte do primeiro capítulo de meu Trabalho de Conclusão de Curso - defendido em 2004 como exigência parcial para obtenção do título de Assistente Social - desenvolvido a partir de inserção no projeto “Fronteira Mercosul: um estudo sobre o direito à saúde”. O objetivo aqui apresentado é de resgatar três experiências européias com conselhos, a Comuna de Paris, os Sovietes da Rússia e os Conselhos de Fábrica da Itália, diferenciando o conteúdo destes conselhos clássicos dos conselhos de direitos e de políticas sociais, instituídos no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Para isso, o trabalho está estruturado em duas partes: a primeira resgata as três experiências supracitadas com conselhos na Europa, e a segunda traduz como nasceram os conselhos de direitos no Brasil e com quais objetivos para a classe trabalhadora e para a classe dominante. Esta pesquisa exploratória, conduzida pelo estudo bibliográfico, possibilita inferir, como corolário, que as dificuldades quanto à participação dos conselhos no Brasil são decorrentes da ausência de capacitação política destes e do controle exercido pelo segmento do gestor municipal, decorrente do interesse e do esforço do Estado em não permitir que a participação popular se faça incisiva, atuante e reivindicatória. PALAVRAS-CHAVE Conselhos Clássicos; Conselhos de Direitos e de Políticas Sociais; Participação; Controle Social. INTRODUÇÃO O presente trabalho foi formulado a partir do primeiro capítulo de meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) desenvolvido e defendido no ano letivo de 2004, sob orientação do Professor Dr. Alfredo Batista, por ocasião da conclusão do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Campus de Toledo. Cabe colocar que o referido TCC desenvolveu-se a partir da inserção no Projeto “Fronteira Mercosul: um estudo sobre o direito à saúde”, coordenado pela Professora Dra. Vera Maria Ribeiro Nogueira da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual, sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), levantou e analisou dados referentes ao direito à saúde em municípios de fronteira do sul do país. O objetivo do trabalho ora apresentado é de resgatar três experiências européias com conselhos, a Comuna de Paris, os Sovietes da Rússia e os Conselhos de Fábrica da Itália, diferenciando o conteúdo destes conselhos clássicos dos conselhos de direitos e de políticas sociais, instituídos no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988, de modo a identificar os limites dos conselhos brasileiros postos pela lógica Neoliberal. Assim, a fim de atingir o objetivo traçado, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, isto é, um estudo geral sobre os principais trabalhos desenvolvidos na área investigada, os quais foram capazes de fornecer dados atuais e relevantes, enquanto fonte de informação indispensável para a orientação e o desenvolvimento da pesquisa. Também se faz importante colocar que considerando o marco teóricometodológico que fundamenta a leitura, a interpretação e a análise da realidade, que se encontra na Teoria Social de Marx, o presente trabalho se desenvolveu sob a orientação da pesquisa qualitativa. Esta tem como obrigatoriedade aprofundar-se no mundo dos significados das ações e das relações humanas, respondendo a questões particulares, possibilitando uma maior compreensão dos objetivos preestabelecidos e da temática a ser investigada (MINAYO, 1994). Ressalta-se que este trabalho é de nível exploratório, por ter como finalidade a aproximação das determinações que se apresentam no movimento do objeto. Considerando que as pesquisas exploratórias desenvolvem, esclarecem e modificam conceitos, visando a formulação de problemas e hipóteses pesquisáveis em estudos posteriores. Geralmente, as pesquisas exploratórias objetivam proporcionar uma visão geral, aproximativa, acerca do tema em investigação. Estas pesquisas são realizadas essencialmente quando o tema em estudo é pouco conhecido ou explorado. Desta maneira, este trabalho explorou preliminarmente a temática conselhos, visando a continuidade da discussão em estudos posteriores. RESULTADOS Experiências envolvendo conselhos podem ser encontradas na Europa durante o século XIX e o século XX, como importantes instrumentos de participação popular, manifestações concretas que registram nos anais da história suas ações. Situemos três significativas experiências com a finalidade de apresentar a participação popular nas decisões públicas e privadas, garantindo e ampliando os espaços de decisões democráticas. Estas experiências indicam ao movimento internacional dos trabalhadores que a emancipação humana somente é possível através da materialização de ações participativas nos atos individuais e coletivos, legitimadores de que os homens fazem a história e não apenas a sofrem. A experiência francesa da Comuna de Paris, em 1871, embora tenha sido de rápida passagem - apenas setenta dias - foi importante “[...] não apenas por aquilo que realizou como por aquilo que anunciou [...]” (HOBSBAWM, 1982, p. 184). Tratou-se, pela primeira vez na história, da autogestão operária por meio de conselhos populares, inaugurando o fato da gestão da cidade poder ser realizada com a participação direta da população. Embora a Comuna de Paris não tenha conseguido efetivar a proposta de eliminar a organização do trabalho sob a lógica capitalista, acabando assim com a dominação e opressão de classes, ela caracterizou-se como o governo da classe operária. Para Karl Marx a Comuna poderia ter vindo a ser uma ditadura do proletariado, transferindo para a sociedade as funções estatais e inaugurando um modelo de sociedade na qual a igualdade deixa de ser formal para ser real (GRUPPI, 1980). Portanto, uma experiência de grande valia para o movimento revolucionário. Ao ser proclamada em 18 de março de 1871, já se esperava que a Comuna trouxesse consigo outra direção para as coisas públicas, pois representava o governo da classe trabalhadora e como tal almejava acabar com a dominação de classes (MARX; ENGELS, 1989). Os operários franceses sempre impressionavam a Marx pelo espírito combativo que demonstravam, fato que fez crescer o movimento revolucionário neste país (BRUHAT, 1971). Constituída por conselheiros municipais eleitos através do sufrágio universal - na maioria composta por trabalhadores ou representantes da classe operária - a Comuna era uma corporação de trabalhadores executiva e ao mesmo tempo legislativa, sem haver interferência dos homens do Estado. O povo era ouvido pelos conselheiros e estes exerciam efetivamente sua representação, sendo comprometidos com a vontade coletiva (MARX; ENGELS, 1989). Desta maneira, a república passava a ser uma organização democrática e não mais monárquica. Em várias tentativas de contato com os conselheiros da Comuna, Marx tinha o objetivo de alertá-los sobre a existência de outras influências no interior da Comuna, que iam além da dos operários. Uma possível preocupação quanto ao seu fim era percebida (BRUHAT, 1971). Mas, frente a diferentes correntes de pensamento e diferentes interesses que tomaram conta da Comuna, a derrota tornou-se inevitável (BRUHAT, 1971). Entretanto, seus princípios permanecem vivos, como já anunciava Marx em 23 de maio naquele ano “mas se a Comuna está derrotada, a luta ficará apenas adiada. Os princípios da Comuna são eternos” (apud BRUHAT, 1971, p. 185). A Comuna representava para Marx a forma política na qual era possível realizar a emancipação política do trabalho, pois era algo que se opunha a qualquer forma de partido constituído anteriormente (BRUHAT, 1971). “Trabalhadores ousaram ter o privilégio de governar, executando um trabalho consciente e eficaz: Comuna tomou a direção da revolução para si” (MARX; ENGELS, 1989, p. 300). A Comuna permanece sendo uma experiência louvável porque ousou lutar pela vontade coletiva de um povo que esperava por melhores condições de vida e que queria ter seus direitos políticos exercidos. Foi um governo do povo e pelo povo (MARX; ENGELS, 1989), um meio para acabar com a relação estabelecida entre capital e trabalho e a própria exploração de classes. Contudo, não institucionalizada, desvinculada da Igreja e do Estado, a Comuna de Paris deixa até os dias atuais um exemplo de organização popular. A experiência da Comuna foi o alicerce para que os trabalhadores de todos os continentes conquistassem espaço no interior do projeto societário burguês instituindo outras experiências que direcionavam o movimento dos trabalhadores para a criação de uma nova sociedade sob premissas que asseguravam a emancipação não somente política, mas humana. É com este objetivo que na Rússia é criado os sovietes, entre 1905 e 1917, a segunda experiência com conselhos a ser mostrada. Organismos de massa criados pelos operários de São Petersburgo, nas greves de 1905 e que em 1917 já se encontravam por toda a Rússia, com Lênin afirmando “todo poder aos sovietes” (apud ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 63) representava a força do movimento operário, um exemplo que atravessou fronteiras levando os ideais da democracia proletária e do socialismo. Baseado nos princípios da Comuna de Paris, tratava-se de um movimento pela disputa do poder estatal, diante de uma crise que assolava a sociedade com propostas de construção de uma alternativa capaz de eliminar os entraves sociais, político e econômicos desta sociedade, pois seu objetivo era acabar com a diferenciação entre o poder político e o poder econômico, e inaugurar a autonomia e a emancipação dos trabalhadores para além da esfera do poder político [...] O soviete é a forma através da qual, em toda parte onde existam proletários em luta para conquistar a autonomia industrial, a classe operária manifesta essa vontade de se emancipar. O soviete é a forma de autogoverno das massas operárias [...] (GRAMSCI, 1920 apud ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 52). Os sovietes - compostos por operários, camponeses, soldados e intelectuais revolucionários - aos poucos foram se organizando em conselhos, de forma que passaram a desempenhar e coordenar tarefas públicas que até então estavam sob a responsabilidade do Estado. Também tinham o exército como seu aliado e com isso, conquistaram todo o poder, concedendo liberdade de organização a todos. A democracia direta foi estabelecida com a quebra do aparelho estatal imposto até então, assim, tornou-se possível a estruturação de instituições que representavam a base da sociedade (GRUPPI, 1980). Como representantes da classe trabalhadora, defendendo os interesses coletivos, os sovietes derrubaram a burguesia do poder para que esta não os impedissem de colocar os ideais revolucionários em prática Todo o valor e a força do Soviete está, portanto, não em uma estrutura especial, mas no fato de ser esse o órgão de uma classe que toma para si toda a direção da gestão social. Cada membro do Soviete é um proletário, consciente de exercer a Ditadura junto à própria classe (BORDIGA, 1919 apud GRAMSCI; BORDIGA, 1981, p. 59). De acordo com Lênin os sovietes foram além de retomar a Comuna embora em muitos pontos percebam-se os mesmos ideais em ambas as experiências porque conseguiram espalhar-se por toda a Rússia e também por outros países, conforme aconteceu após 1917 quando a experiência de gestão participativa por meio de conselhos espalhou-se pela Europa, especificamente na Alemanha, na Itália e na Espanha. Não tardou e a Itália havia se tornado o berço de uma nova experiência com conselhos. Com a presença de Antônio Gramsci, teórico e militante do movimento operário, os conselhos de fábrica são materializados no berço da Europa ocidental. A terceira experiência a citar, dos conselhos de fábrica da Itália, nasceu entre 1919 e 1921, caracterizados como organizações autônomas capazes de organizar os trabalhadores para dar fim ao Estado burguês e instituir um poder popular, com uma nova hegemonia política (GOHN, 1990). Originados das Comissões Internas, baseavam-se no exemplo dos sovietes [...] as comissões internas são órgãos de democracia operária e ocorre liberta-las das limitações impostas pelos empresários [...]. As comissões internas limitam hoje o poder dos capitalistas na fábrica e desenvolvem funções de arbitragem e disciplina. Desenvolvidas e enriquecidas, deverão ser amanhã os órgãos do poder proletário que substitui o capitalismo em todas as suas funções úteis, de direção e de administração [...] (Gramsci, Jornal Ordine Nuovo de 21 de junho de 1919 apud ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 63). Tratando o movimento dos trabalhadores com experiência teórico/prática e pautando-se no jogo constante entre tática e estratégia, Gramsci já anunciava o poder das comissões em estágio mais elevado, assumindo-se como conselhos. O germe soviético italiano para este autor, em referência ao sovietes da Rússia, não poderia nascer senão pelas comissões (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). Os conselhos concediam, mormente, poder aos operários, mas não era um simples poder paralelo, havia nesta organização popular uma vontade coletiva de modificar a estrutura social posta naquele momento, conforme expresso no programa dos Comissários de Seção (conselhos de fábrica de Turim, na Itália) publicado no jornal Ordine Nuovo em 8 de novembro de 1919 [...] os conselhos encarnam [...] o poder da classe trabalhadora organizada por fábrica, e em antítese com a autoridade patronal que se realiza na própria fábrica. Socialmente, encarnam a ação de todo o proletariado, solidário na luta pela conquista do poder político, pela supressão da propriedade privada [...] (apud ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 67). A organização dos trabalhadores no interior das fábricas representou não somente a unificação do movimento operário italiano, mas também um importante instrumento na luta de forças entre o capital e o trabalho, contra a exploração e a precarização do mesmo e favorável à emancipação deste (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). Os conselhos também contribuíram para as mudanças ocorridas nos sindicatos, estes passaram de órgãos burocráticos com ações que se restringiam a fechar contratos sindicais com o patronato, para engrossarem os movimentos de massa contrários ao Modo de Produção Capitalista (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). Mas conforme verificamos em Coutinho, sindicatos e conselhos continham ainda nítidas diferenças, sendo importante esclarecê-las. Os sindicatos de categoria representavam o trabalhador assalariado em negociações por melhor remuneração por sua força de trabalho, mas a própria relação salarial e mercantil não era posta em questionamento, enquanto os conselhos defendiam os interesses dos trabalhadores frente aos interesses da classe industrial, indo além, tornavam-se meios para a transformação do trabalhador assalariado em produtor Os conselhos [...] são o organismo através do qual o operário pode se elevar à condição de produtor, superando sua condição de mercadoria e sua conseqüente subordinação ao capital, na medida em que assume em suas próprias mãos o controle do processo produtivo. E mais: já que a dominação do proletariado tem seu pressuposto básico na fábrica, ou seja, nesse controle do processo produtivo, os conselhos são igualmente a base para a construção do novo Estado socialista, que Gramsci concebe como o resultado da articulação dos vários conselhos singulares num Conselho Executivo Central (apud GRAMSCI; BORDIGA, 1981, p. 10). A esta discussão acrescenta-se ainda a palavra de Gino Olivetti, Secretário Geral da Confindustria em 1920, em convenção nacional dos industriais O Conselho de fábrica é um organismo original, em relação aos sindicatos, porque nele o operário se considera como produtor, inserido necessariamente no processo técnico do trabalho e no complexo das funções produtivas [...] (Ordine Nuovo, 15 de maio de 1920 apud GRAMSCI; BORDIGA, 1981, p. 116). Todavia, diante da disseminação dos conselhos e do número de operários que conseguiam mobilizar, estes passaram a ser vistos pelos empresários como uma ameaça à propriedade privada dos meios de produção. Em meio a isto, pairava sobre os empresários a ameaça do comunismo, então forças policiais foram acionadas, pois era preciso eliminar a revolução em potência (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). Iniciava-se a movimentação burguesa pelo fim dos conselhos de fábrica, sob a premissa de que um organismo não poderia transpor os órgãos diretivos da fábrica para tomar as decisões desta. Os capitalistas, para inviabilizarem e desarticularem a organização dos trabalhadores em conselhos, atacaram a raiz de seu movimento, isto é, as comissões internas, de modo que estas não chegassem a limitar o poder dos capitalistas nas fábricas e nem despertassem uma alternativa real de superação do capitalismo. Com a derrota dos operários na “greve dos ponteiros de relógio” , conduzida pelos conselhos, duas questões se evidenciaram: a primeira é que os industriais permitiram a organização dos trabalhadores e concederam poder de decisão aos conselhos até o ponto em que isto não prejudicasse os interesses de suas indústrias, logo que o movimento operário passou a representar uma ameaça, com muita habilidade e cooperação entre a classe industrial, foi posto um fim a organização dos trabalhadores; a segunda questão que ficou evidente foi a fragilidade do movimento operário italiano frente aos industriários, isto é, a necessidade de trabalhar (o risco da perda dos postos de trabalho) por muitas vezes superou o espírito revolucionário do movimento, reforçando a dependência do capital (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). O confronto entre operários e industriários, era sempre desfavorável aos primeiros, visto que a classe dominante além de ser bem organizada possuía todo o apoio do Estado. Assim, os operários sentiram os próprios princípios de seu movimento irem se esgotando a cada novo confronto com a polícia do Estado capitalista (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981). Percebe-se que enquanto na Comuna e nos sovietes o poder estatal foi tomado pelo movimento dos trabalhadores, nos conselhos de fábrica isto não aconteceu, fato que dificultou a continuidade destes, visto que representavam uma ameaça para a classe burguesa. O empecilho para o sucesso das reivindicações - greves, manifestações, ocupações - do movimento dos operários liderados pelos conselhos de fábrica era devido à ausência de um apoio político mais concreto e de uma direção política revolucionária, direção esta que era necessária para unificar as massas (ANTUNES, NOGUEIRA, 1981). Já em 1921 e 1922 cerca de “[...] 31 000 operários encontravam-se desempregados somente em Turim, além de que os conselhos de fábrica e as comissões foram abolidas, pela repressão capitalista” (ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 79). Em meio a suas limitações, o movimento dos operários italianos, através dos conselhos de fábrica, deixou para a história a experiência de homens que provaram ser capazes de produzir de forma independente, sem os capitalistas e sem o controle de seus gerentes e encarregados de setor, com competência superior aos próprios capitalistas. Isto ocorreu na ocasião da ocupação de fábricas em setembro de 1920. Outro ponto marcante foi a prova de que a classe trabalhadora somente apropriará do poder por meio de um movimento que tenha princípios revolucionários e não reformistas, “Somente um partido político conscientemente revolucionário pode superar efetivamente o sindicalismo e levar a revolução à vitória” (LUKÁCS apud ANTUNES; NOGUEIRA, 1981, p. 78). Diante do exposto pode-se inferir que o movimento dos conselhos de fábrica representou um feito concreto realizado pelo movimento proletário. Contudo, Comuna de Paris na França, sovietes na Rússia e conselhos de fábrica na Itália, são exemplos concretos clássicos da organização popular que se fortaleceram para reivindicar direitos sociais no interior do projeto societário burguês e também porque consideraram que uma outra ordem societária poderia ser construída coletivamente, justa e igualitária. Entraves encontrados na história destas três experiências envolvendo conselhos estavam ligadas, mormente, a força do Estado na desarticulação e inviabilização do movimento popular. No entanto, estas experiência devem ser retomadas por qualquer movimento que se propunha a construir uma nova ordem social, com ausência de classe e efetiva/real participação popular. No Brasil os conselhos de direitos e de políticas sociais nasceram no interior dos movimentos sociais decorrentes das lutas econômicas e políticas que marcaram o país nas décadas de 70 e 80 do século XX. Resultado das reivindicações que os movimentos sociais e populares, da sociedade organizada em geral, pautaram junto ao Estado. Diferente das premissas contidas nos conselhos clássicos autogestão das esferas econômicas, políticas e sociais - os conselhos de direito atuam na esfera da reprodução social, ou seja, não há por parte dos conselhos de direitos e de políticas sociais a pretensão de ir além do que está garantido legalmente, o movimento é de luta pela implementação dos direitos sociais. A temática conselhos de direitos e de políticas sociais passa a ser discutida e reivindicada ampla e concretamente num contexto de redemocratização do país que despertou um conjunto significativo de debates em torno da participação popular, diante de um cenário de intensa mobilização popular, decorrente de mais de duas décadas de ditadura militar. Frente a redemocratização do país e a pressão de movimentos sociais e da sociedade no geral exigindo a criação de instrumentos de participação popular efetiva e respostas mais qualificadas aos problemas sociais, o Estado abre espaço para a criação dos conselhos como instrumentos de controle social, de modo a suprirem a carência histórica de participação da sociedade no direcionamento das políticas públicas. Uma nova relação entre Estado e sociedade civil, decorrente do retorno da democracia no país, despertou a “[...] participação de diferentes segmentos da sociedade civil na busca de elementos que apontem para a possibilidade de superação de formas tradicionais de encaminhamento das políticas públicas” (SIMIONATTO; NOGUEIRA, 1994, p. 54). O que podemos verificar hoje é que está havendo uma redefinição das práticas entre Estado e população. O Estado começa a internalizar elementos que faziam parte das reivindicações dos movimentos sociais [...] criando condições para a inserção dos usuários dos movimentos organizados nesse processo de vigilância, e controle e acompanhamento de gestão (DALLARI et. al., 1996 apud LOPES; ALMEIDA, 2000, p. 126). A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 representou um marco na ampliação de direitos civis e políticos e na consolidação dos direitos sociais, estes últimos consagram-se explicitamente pela primeira vez em uma carta magna brasileira. Todavia, paralelo a sua promulgação iniciam-se as tentativas de inviabilização dos preceitos constitucionais e de reforma constitucional, conforme podemos verificar em Vieira (1997, p. 68) [...] a classe dirigente no Brasil tem oscilado entre a inércia e a modernização imposta de fora, entre a promulgação de Constituição e a imediata proclamação de sua reforma. Assim, cada novíssima Constituição sempre surge atrasada, porque a classe dirigente exige outras regras, diferentes daquelas que lhe eram aceitáveis ou favoráveis há pouco tempo, justificando-se com a necessidade de manter a estabilidade ou o crescimento do país. Para José Paulo Netto (1999) a Constituição de 1988 trouxe, pela primeira vez no Brasil, a oportunidade de construir algo similar ao Estado de Bem-Estar Social europeu (Welfare State), gerando uma alternativa concreta de implantar no país uma política social compatível com a justiça social, com a eqüidade e com a universalidade. A Constituição de 1988 estabeleceu o arcabouço jurídico-político para uma política social de cunho universalizante e, contando com mecanismos de gestão amplamente democráticos (inclusive com a participação dos usuários), capaz de articular as políticas setoriais de Saúde, Previdência e Assistência Social, mediante ações integradas e continuadas de proteção social e garantia de direitos sociais (NETTO, 1999, p. 84). No entanto, no mesmo momento da promulgação da referida Constituição, a conjuntura internacional era de reestruturação do Capitalismo Mundial e esgotamento do Estado de Bem-Estar Social, ao passo em que entra em crise o socialismo real. Com isso, o receituário neoliberal ganha espaço e com ela também a desregulamentação, a flexibilização e a privatização, elementos inerentes à globalização comandada pelo grande capital. Neste sentido, o projeto político deste capital foi se efetivando e inviabilizando o projeto social contido na Constituição Federal de 1988, projeto este que visa a construção de um Estado com amplas responsabilidades sociais (NETTO, 1999). Diante do intenso esforço em não deixar que os direitos expressos na Constituição viessem a ser concretizados, conquistas dos movimentos sociais foram parcialmente ou totalmente desativadas, enquanto os espaços de participação cidadã e os mecanismos de controle social sofreram fortes agressões. Neste contexto, a participação popular é por vezes rebaixada a uma mera participação formal, o que exigiu dos movimentos sociais uma organização maior e objetivos de lutas definidos. Após vinte anos de Ditadura Militar, esta havia desmontado a cultura política no país, gerado um contingente despreparado para reivindicar seus direitos. Um ponto decorrente da desmobilização e inviabilização dos movimentos populares é percebido no momento em que estes se inserem em espaços como dos conselhos, quando inexiste uma identidade coletiva e não se supera a busca por interesses individuais. É importante lembrar que o grau de coletivização das decisões diz sobre a democracia de um país “Quanto mais o interesse geral envolve um conjunto de decisões, mais democráticas elas são [...] quanto menos coletivização há nas decisões e, portanto, quanto mais particularização, menos ou nada democrático é o governo” (VIEIRA, 1998, p. 12). Para Offe (1984 apud SIMIONATTO; NOGUEIRA, 1994, p. 59) as relações de poder existentes no interior dos conselhos poderão ser alteradas através da construção de uma identidade coletiva, explicitando a importância disto. Desde a criação legal dos conselhos no Brasil, estes estiveram vinculados a uma exigência da sociedade e não a vontade do Estado em dividir seu poder de decisão. Ou seja, a instituição dos conselhos representou uma ação que veio de encontro aos interesses do Estado em acalmar as movimentações populares e efetivar a democracia. Foi a ação e a pressão da sociedade que conquistaram espaços de participação. O direito da sociedade de participar é resultado de sua própria luta e reivindicação, visto que a atuação do Estado depende mais da pressão sofrida do que de sua espontaneidade. No Brasil, se por um lado os movimentos populares pressionaram o poder público de forma a garantir a inclusão da população nos processos decisórios, em espaços como dos conselhos, por outro lado, há que se levar em consideração que no país não são as leis ou declarações - formalização - que asseguram o acesso aos direitos, mas o poder de mobilização dos seus cidadãos. O princípio da democratização expresso na Constituição de 1988 se concretiza na implementação e fortalecimento dos espaços de gestão colegiada entre o poder público e a sociedade civil, como ocorre no espaço dos conselhos. Os conselhos buscam articular interesses por um consenso que esteja em consonância com os princípios de participação popular expressos na Lei maior brasileira, de forma a concretizá-la. Os conselhos de direitos e de políticas sociais são expressões concretas de conquistas de diferentes movimentos organizados no interior da sociedade civil, porém, é nítido que suas ações ocorrem sob as regras construídas no interior da sociedade burguesa. CONCLUSÕES O contexto mundial atual é de minimização do Estado, que se retira de suas responsabilidades, e de esgotamento das políticas sociais historicamente subordinadas à política econômica. Assim, as políticas sociais sofrem fortes agressões principalmente no que tange ao princípio da universalidade. Sob esta perspectiva neoliberal, o Estado concede organismos de participação institucionalizada e regulamentada legalmente para controlar a pressão dos movimentos sociais, no entanto, estes são também controlados por ele, fato que não dá a possibilidade de conquista de hegemonia. Ao nascerem como instrumentos de luta contra a centralização do poder, através da participação da sociedade civil, os conselhos têm dificuldades de conquistar algo acerca disto, visto que acabam se transformando em instrumentos funcionais ao modelo de gestão estabelecido. Estes conselhos de participação chamada de “passiva” foram formados justamente para não funcionar, visando mostrar a inércia dos conselhos, a sua inutilidade (VIEIRA, 1998). Assim, os conselhos distante de uma vinculação com os ideários da classe trabalhadora, não pode senão deixar os ideais revolucionários para servir de sustentação ao poder decisório já estabelecido. Desta forma, os conselhos não têm sido um meio de reivindicar interesses coletivos, com vistas a assegurar direitos e a emancipação de classe, mas um fim em si mesmo, diante do controle que lhe é exercido pelo Estado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Ricardo; NOGUEIRA, Arnaldo. O que são Comissões de Fábrica. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1981. 120 p. BORDIGA, Amadeo; GRAMSCI, Antonio. Conselhos de Fábrica. São Paulo: Brasiliense, 1981. 121 p. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. José Silveira Paes (Trad.). São Paulo: Global, 1984. 237 p. BRUHAT, Jean. Marx/Engels. Coleção Universidade Livre. Seara Nova, 1971. 237p. GOHN, Maria da Glória. Conselhos populares e participação popular. In: Serviço Social & Sociedade nº 34, ano XI. São Paulo: Cortez, dezembro de 1990. (p. 65-89). GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel: As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. 93 p. 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