XII Encontro de Pós-Graduação e Pesquisa Universidade de Fortaleza 22 à 26 de Outubro de 2012 O “vácuo moral” na contemporaneidade: narrativas e experiência da violência no cotidiano laboral Ana Karina Loiola de Oliveira*¹ (PG), Ana Maria Almeida Marques ² (PG), João Bosco Feitosa dos Santos³ (PQ) 1Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE; 2Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE; 3 Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE. [email protected] Palavras-chave: Relações de trabalho. Saúde do trabalhador. Assédio moral. Resumo O “vácuo moral” se constitui no processo de racionalização do processo de produção baseado no materialismo traduzido pelo consumo massificado, na efemeridade das relações e no relativismo dos valores capitalistas, ensejador de uma nova ética. Se liga à criação de uma nova individualidade idealizada que provoca, nesse sentido um enfraquecimento dos laços sociais, que é sentido com crescente intensidade contemporaneamente. No campo das relações de trabalho esse contexto se traduz em flexibilização, exploração e fragilização dos direitos sociais e garantias fundamentais, manifestados muitas vezes por meio de humilhações e violência psicológica contra o trabalhador. Nesse sentido, o assédio moral se torna cada vez mais motivo de atenção no que se refere à saúde do trabalhador. O presente estudo propõe considerar a atual configuração do assédio moral no ambiente de trabalho, condutas, muitas vezes sutis, porém sistemáticas, que atuam no sentido de desestabilizar o indivíduo em seu ambiente de labor. Consideramos, ainda, que as manifestações desse fenômeno não podem ser estudadas de modo dissociado das relações de poder inseridas no ambiente organizacional. Introdução Para Durkheim (1969, apud Rajer, p.284), a exagerada divisão do trabalho, compreendida pelo autor como divisão anômica do trabalho, fruto do avanço tecnológico e da racionalização do processo produtivo, conduziria a um enfraquecimento dos laços sociais, criando um vácuo moral sustentado pelo materialismo, relativismo e tecnicismo. De acordo com Harvey (2005, p.72), as marcas da contemporaneidade se manifestam no campo da fragmentação, da descontinuidade, da efemeridade, do caótico, em oposição a rigidez organizada da modernidade. Privilegia-se, agora, a estética em lugar da ética, moldando-se aí uma 1 inversão de valores tanto no campo sociopolítico quanto no campo organizacional . No cotidiano das relações de trabalho, tão essenciais ao individuo, pois culturalmente o homem se define pelo que produz, estas marcas se traduzem na constituição de relações de poder e exploração que podem acarretar em danos graves aos trabalhadores. O crescente aumento de casos de assédio moral no trabalho e suas graves repercussões sobre a saúde do trabalhador são um forte exemplo da gravidade desses danos e serão, portanto, objeto discussão do presente estudo. Segundo Torres (2010, p.21) ao trazer esta problemática a lume quando se fala do Brasil, indica que (...) o tema é ainda pouco discutido, mas os números também assustam. Estudo feito com 97 empresas de São Paulo (setores químico, plástico e cosmético) mostra que, dos 2.072 entrevistados, 870 deles (42 %) 1 Bauman (2005, p.46) fala de um processo de exclusão no qual a coesão social é enfraquecida em nome de interesses individuais. Aduz que “(...) o significado da “identidade da subclasse” é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, do “rosto” – esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”. 1 ISSN 1808-8457 apresentam histórias de humilhação no trabalho. Segundo o estudo realizado pela médica Margarida Barreto, pesquisadora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), as mulheres são as maiores vítimas - 65 % das entrevistadas têm histórias de humilhação, contra 29 % dos homens. Por fim, em pesquisa realizada no Brasil com um universo de 4.718 profissionais ouvidos em todo o território, 68% deles afirmaram sofrer algum tipo de humilhação várias vezes por semana, sendo que a maioria dos entrevistados (66%) disseram ter sido intimidados por seus respectivos superiores. Este tipo de violência moral não é um tema novo, encontra-se nas origens das relações de trabalho. No entanto, apresenta-se cada dia mais como um dos grandes problemas que afetam a sociedade do século XXI. A maior parte dos estudiosos que realizam pesquisas sobre esse tipo de violência relaciona sua manifestação à ampliação do setor de serviços, à crescente complexidade organizacional do trabalho e à ampliação radical da presença da subjetividade nas relações de trabalho, simultaneamente mais impessoais e mais afetivas. Nota-se nesse contexto uma deterioração das relações humanas em detrimento do cumprimento de metas, da flexibilização das relações de trabalho, da minimização da garantia dos direitos sociais. A mudança ocorrida no ambiente organizacional nos últimos anos não diz respeito apenas às técnicas gerenciais ou a introdução de novas tecnologias no cotidiano dos trabalhadores: houve uma revolução, como já citado anteriormente, no que tange à dinâmica dos relacionamentos entre as pessoas, especialmente no que tange à disputa de poder, geradora de uma competitividade desumanizada. O assédio moral consiste em usar deliberadamente de força e poder contra uma pessoa, grupo ou comunidade causando danos físicos, mentais e morais através da autoridade ou força psicológica, gerando uma atitude discriminatória e humilhante (OMS) com o intuito de desmotivar e prejudicar, uma intenção clara e intencional de eliminar a concorrência e fazer com que a pessoa, por exemplo, desista de seu emprego (Barreto, 2002, p. 35). Normalmente, as vítimas de humilhação são pessoas que de alguma forma não se encaixam no perfil considerado adequado no universo da atividade laboral, seja este no sentido de produtividade, faixa etária, aparência física, concepções filosóficas, fazendo com que muitas vezes a própria vítima se sinta culpada pelos atos de violência a ela direcionados. Sendo assim, este estudo se propõe a compreender as condições de trabalho contemporâneas, identificando a manifestação do assédio moral no ambiente de trabalho e analisando as repercussões dessa violência sobre o cotidiano e a saúde do trabalhador. Metodologia No sentido de alcançar os objetivos propostos e analisar o material coletado, parte-se da visão de provisoriedade, dinamismo e especificidade da questão social, conforme apresenta Minayo (1994, p.34), assim como da noção de historicidade proposta por Chizzotti (2008, p. 12). Consideram-se no estudo as múltiplas manifestações do fenômeno e suas implicações na vida pessoal e social dos sujeitos, no contexto das transformações sociais. Cabe ressaltar que essas transformações repercutem na prática do assédio moral que se concretiza, por sua vez, em problemas na saúde do trabalhador, sob seus vários aspectos. Dessa forma, realizamos um levantamento bibliográfico acerca do trabalho na contemporaneidade, assim como do assédio moral, suas características e desdobramentos. Posteriormente, realizamos uma pesquisa de campo a qual consistiu de estudos de caso baseados na aplicação de entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram aplicadas aos trabalhadores que buscaram atendimento no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador Manoel Jacaré, na cidade de Fortaleza, Ceará, sob queixas de ISSN 1808-8457 2 assédio moral. Foram gravadas, com o consentimento dos entrevistados e, em seguida, transcritas e analisadas. A análise critica do discurso realizou-se posteriormente à coleta de dados através das entrevistas. Buscou-se através destas compreender a representação social e subjetiva dos indivíduos acerca dos transtornos vivenciados em virtude do assédio moral. Resultados e Discussão Segundo Barreto (2005, p.29), a busca desenfreada pelo lucro e por maior produtividade ao menor custo operacional, através do atual modelo econômico neoliberal globalizado, sem compromisso com a dignidade da pessoa humana tem impulsionado políticas de gestão de pessoal que incentivam a prática de assédio moral na medida em que buscam tornar exeqüível o atingimento das metas impostas ao trabalhador no meio ambiente de trabalho, que acabam por desencadear situações nocivas à saúde física e mental do trabalhador, tendo em vista muitas vezes a manifestação sintomática de respostas do tipo ansiogênicas e depressivas;de indiferença; isolamento; pânico; estresse; desenvolvimento de síndromes diversas, enfim, sintomáticas que caracterizam o adoecimento do trabalhador. Sennett (2006) chama de corrosão do caráter a imposição do modelo anglo-saxônico neoliberal que institui relações efêmeras em que as pessoas não se vinculam mais a uma carreira profissional ou a compromissos a longo prazo. Tal imposição reflete na vida comunitária e familiar e não deixam, a seu tempo, de representar a erosão das relações nas quais se acha inserido o sujeito (assujeitado às situações cotidianas sobre as quais não tem controle), destituindo-lhe a autoestima, favorecendo uma auto-avaliação comprometida de si, naquilo que o próprio Sennett (2006, p.82) chama de “fantasma da inutilidade”. A organização do trabalho e a configuração das relações de poder refletem, portanto, as exigências impostas pelo sistema de produção do capital, no sentido do desenvolvimento econômico, que segue o ritmo da busca por lucro e poder, priorizada em detrimento da qualidade de vida do trabalhador. Dejours (2000, apud Ocada, 2004, p. 153-154) discute a questão do subjugo de toda a população pelo “domínio totalitário do liberalismo econômico”. Em nome da competitividade, as empresas submetem seus trabalhadores a métodos incompatíveis com as características humanas e condições de trabalho que geram adoecimento e afetam a vida do sujeito como um todo. Dessa forma, surge uma tolerância social em face do sofrimento e da injustiça, uma banalização, decorrente de uma naturalização do mal-estar, que se tornou mais visível na atualidade, em virtude das mudanças de consciência dos trabalhadores. A análise dos dados demonstrou, então, que os trabalhadores assediados se sentiam deslocados no ambiente de trabalho, ainda por se mostrarem contrários a alguma política do local de trabalho ou por outros fatores de discriminação como idade ou aparência física. Ressaltamos, também, que pedidos de licença para tratamento de doença também foram apontados como motivos para perseguição no ambiente de trabalho. Podemos concluir que a violência moral no ambiente de trabalho está relacionada com as mudanças sócio-históricas assim como com a constituição de uma lógica individualista e cada vez mais desvencilhada de uma moral coletiva. Conclusão Considerado o cotidiano das relações sociais como espaço de manifestação da subjetividade, foi utilizada a título de discussão, neste estudo, a percepção dos próprios indivíduos sobre o que tratar como assédio moral, estabelecendo vínculo com o que está posto nas discussões científicas e na literatura. Devese atentar, portanto, que é do ponto de vista do trabalhador que esta análise se realizou com todos os seus ISSN 1808-8457 3 componentes de valor. É importante não tratar os trabalhadores apenas como vítimas, pois são ao mesmo tempo atores sociais de suas realidades. Percebeu-se, ao longo do presente estudo, que a prática do assédio moral por meio de perseguições, desestabilização, exposição a situações vexatórias, está ligada a questões socioeconômicas e culturais mais amplas e, muitas vezes, confunde-se com o próprio abuso de poder nas organizações, refletindo-se nas relações sociais dos trabalhadores, em todas as suas dimensões. Ou seja, não acontece de forma gratuita, por mais que suas razões sejam veladas. A pesquisa qualitativa possibilitou perceber a repercussão dos fatores relacionados à prática de assédio moral, nas condições existentes em ambientes e regimes de trabalho diversos: estatutários, celetistas, trabalhadores de carteira assinada, através da ótica dos próprios trabalhadores, de sua subjetividade, inserida no contexto sócio-histórico. Referências ANTUNES, R . Anotações sobre o Capitalismo Recente e a Reestruturação Produtiva no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo e SILVA, Aparecida (Orgs.). O Avesso do Trabalho. 1ª Ed. 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