IX Congreso Argentino de Antropología Social. Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales - Universidad Nacional de Misiones, Posadas, 2008. Repensando as práticas de policiais e usuárias da delegacia de mulheres na administração de conflitos domésticos. Flávia Melo da Cunha. Cita: Flávia Melo da Cunha (2008). Repensando as práticas de policiais e usuárias da delegacia de mulheres na administração de conflitos domésticos. IX Congreso Argentino de Antropología Social. Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales - Universidad Nacional de Misiones, Posadas. Dirección estable: http://www.aacademica.org/000-080/91 Acta Académica es un proyecto académico sin fines de lucro enmarcado en la iniciativa de acceso abierto. Acta Académica fue creado para facilitar a investigadores de todo el mundo el compartir su producción académica. Para crear un perfil gratuitamente o acceder a otros trabajos visite: http://www.aacademica.org. Mesa de Trabajo 05 – Antropología Jurídica REPENSANDO AS PRÁTICAS DE POLICIAIS E USUÁRIAS DA DELEGACIA DE MULHERES NA ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS Flávia Melo da Cunha, PPG em Antropologia Social – UNICAMP, Bolsista FAPESP Resumo O alcance da Lei nº 9.099/1995 aos crimes atendidos pelas delegacias de mulheres brasileiras (DEAMs) provocou entre militantes e acadêmicos grande oposição à proposta minimalista de administração de conflitos contida na lei que criou os juizados especiais criminais. Dez anos depois, vigora no Brasil uma nova lei (Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha) que, dentre outras providências, define a violência doméstica e familiar contra mulheres como uma violação dos direitos humanos; proíbe a aplicação da lei anterior a tais casos; regulamenta a atuação das DEAMs; e, embora reconheça a importância da atenção multidisciplinar e preventiva à violência contra mulheres, fortalece sua criminalização. Este processo é observado em outros países americanos, como a Costa Rica, Equador, Peru e Nicarágua, que nos últimos anos aprovaram legislações similares. Estudos dedicados à etnografia de práticas policiais e judiciais e aqueles que incorporam a perspectiva dos sujeitos envolvidos em relações violentas sugerem que a relação entre parâmetros legais de atuação policial e judicial, ideal feminista e expectativas de vítimas de violência é demasiado complexa, implicando em distintas formas de apropriação desses instrumentos na administração de conflitos domésticos, tanto pelos operadores da justiça (policiais, advogados, promotores e juízes) quanto pelas usuárias do sistema. Este trabalho analisa as implicações disso, comparando os resultados de alguns desses estudos à etnografia realizada entre os anos de 2006-2007 na DEAM da cidade Manaus/AM e a entrevistas com usuárias desse serviço. As respostas engendradas pelos sujeitos desta pesquisa denotam diferentes formas de participação e agência, corroborando para a desconstrução de estereótipos que polarizam as relações violentas entre homens e mulheres, baseados em pressupostos universalizantes superados por algumas vertentes feministas contemporâneas. Ademais, provocam o questionamento das soluções judiciais disponíveis, segundo a perspectiva das mulheres vítimas de violência, e permitem refletir sobre as formas de apropriação dos instrumentos da justiça exercidas por tais mulheres. Palavras-chave: lesão corporal grave, violência de gênero, justiça, agência Da investigação policial à investigação antropológica A penetração da pesquisa antropológica nas grandes cidades e centros urbanos promoveu um encontro emblemático entre pesquisador e objeto. Esta proximidade repercutiu na trajetória e nos métodos antropológicos; estabelecendo uma dinâmica de permanente revisão de suas técnicas e refinamento de seu instrumental analítico a fim de garantir o controle da dimensão valorativa, exercício intrínseco à objetividade. Trata-se de uma proximidade relativa porque, nos termos de Roberto Da Matta (1981), tal familiaridade não é sinônimo de conhecimento científico; participar de uma mesma sociedade e guardar com o grupo pesquisado certo grau de compartilhamento cultural não constitui o conhecimento específico construído pela pesquisa antropológica e denota diferentes formas de estar no mundo e conhecê-lo. Ademais, a ausência de distanciamento geográfico e cultural e do desconhecimento da língua nativa – aspectos determinantes da etnografia clássica – impõe ao pesquisador adotar procedimentos que lhe possibilitem resguardar-se de sua cultura para melhor compreender a cultura do grupo estudado. Destarte, as pré-noções devem ser cuidadosamente avaliadas e colocadas sob a égide da típica suspeição antropológica, instigando o olhar atento e cauteloso do pesquisador aos acontecimentos a sua volta, sobretudo quando considerados familiares. A pesquisa em tais circunstâncias, portanto, exige a construção do estranhamento dentro de uma realidade aparente ou circunstancialmente familiar (Velho, 1978; Da Matta, 1981). Eunice Durham (1986) assinala que desde os trabalhos precursores da antropologia no Brasil muitos estudos dedicaram-se aos problemas vividos na cidade e estes se configuraram como uma espécie de auto-etnografia da sociedade brasileira, dedicada a assuntos do cotidiano de grupos marginalizados tais como mulheres, homossexuais, negros, usuários de drogas, moradores de rua, prostitutas, dentre outros. Não raras vezes, tal interesse ancorava-se no compartilhamento de valores e convicções políticas; envolvimento que, segundo a autora, nem sempre contribuiu para a qualidade desses estudos, produzindo antes uma participação subjetiva e observante que uma observação objetiva e participante (Durham, 1986:26). Essa tendência é notada no Brasil desde meados dos anos 1960 e atualmente é possível enumerar centenas de estudos nos quais a proximidade com o tema investigado não é algo extraordinário. Com freqüência, é através de uma rede de relações precedente à investigação que muitos pesquisadores chegam aos grupos e temas de seu interesse (Velho, 2003). Durham reconhece a relevância da empatia com os grupos estudados para facilitar a apreensão das categorias nativas; contudo, adverte para o risco de a explicação nativa suprimir a antropológica. Todavia, se tal proximidade é fator comprometedor da pesquisa sob alguns aspectos, a inserção em determinados campos seria certamente mais difícil e mesmo inviável caso inexistisse um liame anterior entre pesquisadores e grupos ou instituições estudadas. Isso é particularmente relevante no caso de pesquisas em instituições policiais, judiciais e prisionais, nas quais os pesquisadores freqüentemente se deparam com empecilhos para acessar documentos e dependências. Ora, se todo o esforço da observação participante é alcançar a confiança do grupo para chegar às senhas de acesso aos códigos da cultura estudada, quando o pesquisador a possui a priori, é necessário investir em outros aspectos a fim de que tal proximidade não deprecie a pesquisa desenvolvida em tais condições. A pesquisa de mestrado por mim desenvolvida caracteriza-se por essa proximidade, pois resulta da confluência entre duas experiências vivenciadas concomitantemente entre os anos de 2001-2005, quando concluí a graduação em Ciências Sociais e ingressei na Polícia Civil, trabalhando na Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher de Manaus/AM (DECCM)1 durante quatro anos. Dentre as atividades rotineiras na delegacia, fui encarregada de produzir fotografias de mulheres lesionadas para composição de inquéritos ou termos circunstanciados remetidos à justiça2. Nessas ocasiões, elas costumavam chegar envoltas em xales, lenços, roupas largas, óculos escuros, acessórios utilizados para ocultar, sem sucesso, 1 Quando me referir especificamente à Delegacia Especializada em crimes contra mulheres de Manaus/AM adotarei a sigla DECCM. Empregarei a sigla DEAM para designar delegacia de mulheres genericamente. 2 Em razão da demora na apuração criminal e tramitação dos processos judiciais, muitas das vítimas de lesão corporal não mais apresentavam sinais físicos da violência e, em alguns casos, sequer o laudo de exame de corpo de delito estava disponível quando das audiências na justiça criminal. Por tais razões, e no intuito de sensibilizar conciliadores e juízes, a DECCM começou a anexar fotografias das mulheres lesionadas à documentação enviada aos juizados especiais e às varas criminais. os ferimentos sofridos. Apesar de o rito – análogo ao da fotografia sinalética de Bertillon3 transformar a confecção dessas fotografias em uma sucessão de posturas previamente determinadas e com pouca ou nenhuma intervenção dos sujeitos fotografados, em conversas informais as vítimas mencionavam a vergonha sentida diante dos outros e do próprio corpo. O ato de vê-las despidas dos disfarces ou das roupas causava grande constrangimento e desconforto a mim, mas principalmente a elas. Conhecer as histórias daquelas mulheres despertou meu interesse pelo estudo de casos de lesão corporal e provocou minha primeira aproximação com questões relacionadas à violência praticada contra mulheres e aos estudos de gênero. Portanto, foi através da participação observante que forjei as primeiras indagações desta pesquisa. A expressão, empregada por Durham (1986:26), é um trocadilho de observação participante, método consagrado pela pesquisa antropológica, segundo o qual o pesquisador deve construir uma inserção tal na vida da comunidade pesquisada de modo a garantir o máximo de compartilhamento possível das categorias nativas a fim de interpretar coerentemente a cultura estudada. Inversamente, vivenciei esta experiência como estudante de ciências sociais e policial civil, buscando apropriar-me das categorias acadêmicas para interpretar os fatos que faziam parte da rotina policial. Esta relação é uma experiência emblemática para a compreensão do modo como minha análise foi forjada pela dupla inserção no campo. Ambivalências do exercício policial Ingressei na carreira de investigadora de Polícia Civil através de concurso público em 2001, quando cursava o último ano da graduação em Ciências Sociais. No segundo semestre do mesmo ano, teve início o curso de formação na Academia de Polícia Civil do Amazonas (ACADEPOL), no qual cursei disciplinas como noções de direito penal e processual penal, medicina legal, práticas cartorárias, direitos humanos e treinamentos de defesa pessoal, condicionamento físico e técnicas de armamento e tiro. Segundo o estatuto do policial civil do Amazonas, compete aos investigadores de polícia (agentes da autoridade policial) a execução das ações constitucionais de polícia judiciária, determinadas pelo delegado de polícia (autoridade policial). Tais ações consistem em reunir provas; preservar vestígios do crime; apurar a procedência das denúncias; identificar e intimar testemunhas, vítimas ou autores de crimes; executar prisões ou conduções coercitivas e zelar pela ordem e segurança da delegacia. Como a lógica judicial brasileira é fundamentada em princípios acusatoriais, a investigação criminal, função típica da polícia4, cumpre o dever de constatar a existência do crime através de provas materiais e testemunhais e indicar os responsáveis pela sua autoria. A preponderância dessa lógica de formação da culpa é fundamental para compreender o ethos da atividade policial. À essência dessa atribuição está relacionada a constituição do inquérito policial5, instrumento formal da investigação criminal presidido pela autoridade policial. Contudo, compreender as práticas policiais requer muito mais que a descrição de suas 3 A fotografia sinalética foi desenvolvida no século XIX e compõe, juntamente com o retrato falado e a datiloscopia (estudo das impressões digitais), um conjunto de técnicas conhecidas como bertilonagem - denominação derivada do nome de seu criador, o francês Alphonse Bertillon - e baseadas nos princípios da Antropometria. Consiste em fotografia comum com distância focal que permita calcular o tamanho real do indivíduo, de frente e de perfil direito (Croce, 1995: 80). 4 De acordo com o Delegado da Polícia Federal Célio Santos (2006), a investigação criminal foi atividade realizada exclusivamente pela polícia do descobrimento até o ano de 1827, ocasião em que foi atribuída ao Juiz de Paz. Em 1841 a atividade retornou à polícia. 5 Artigos 4º a 23 do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3689 de 03/10/1941). atribuições legais. David Bayley (2006) realizou estudo comparativo detalhado sobre o trabalho policial em diferentes países (EUA, França, Noruega, Índia, Sri Lanka e Singapura) e seus resultados indicaram uma surpreendente variedade de funções atribuídas à polícia que incluíam, além da investigação criminal, atividades de prevenção, aconselhamento e investigação não criminal. Dentre as várias atividades, o autor indica a existência de um elemento geral de identificação da ação policial em todos os países analisados: o uso legitimado da força na regulação da vida social. Seguindo a mesma perspectiva de compreender a polícia através de suas ações, muitos cientistas sociais brasileiros dedicaram-se ao estudo das práticas policiais no Brasil. O trabalho de Guaracy Mingardi (1992) merece destaque por seu ineditismo à época em que foi realizado: em 1985, recém graduado em ciências sociais, o autor decidiu ingressar na polícia civil para investigar a instituição. Seu relato oferece uma descrição detalhada da organização e funcionamento dos distritos policiais na cidade de São Paulo. Dentre outros aspectos, enfatiza a importância do inquérito policial na dinamização da atividade da polícia judiciária e descreve em pormenores os arranjos construídos em cada distrito policial (DP) para seleção e priorização de tipos de crime e vítimas, definição do papel de cada uma das equipes da unidade, hierarquização entre e interclasses e participação de “colaboradores” externos (informantes e advogados). A participação e a observação da rotina da DECCM acrescenta outros elementos a essa reflexão. Menciono alguns deles. A mobilização política do movimento feminista que incitou a criação das delegacias de mulheres no Brasil e o tipo de demanda desde então apresentada pela sociedade a essas delegacias especializadas, atribuíram-lhes caráter e status muito distintos das demais unidades da polícia civil. Ademais, entre 1995 e 2006, a importância do inquérito policial como principal atividade da investigação criminal foi cada vez menor, pois nesse período a Lei nº 9.099 de 26/09/19956 ainda era aplicada aos crimes praticados contra mulheres no âmbito doméstico ou familiar, e como a maior parcela de crimes atendidos pelas DEAMs foi englobada pela classificação de crime de menor potencial ofensivo, a atividade de investigação policial foi gradativamente esvaziada e a maior ênfase do exercício policial nas DEAMs concentrou-se na confecção dos termos circunstanciados de ocorrência (TCO). Durante o período em que trabalhei na DECCM (2001-2005) e quando realizei a pesquisa de campo (2006-2007), as atribuições desempenhadas pelos investigadores de polícia podiam ser organizadas em seis grupos: atividades cartorárias – registrar boletins de ocorrência, confeccionar requisições de exames periciais e intimações; atividades de recepção – dar informações, agendar audiências com a delegada, receber e encaminhar as usuárias aos cartórios e gabinetes, atender telefone e rádio; atividades de investigação – entregar intimações, receber presos, manutenção de armamentos, segurança da carceragem e da delegacia; atividades de prevenção – palestras, blitz informativas; atividades burocráticoadministrativas – entregar relatórios estatísticos, protocolar documentos e buscar a refeição de funcionários e presos; e atividades assistenciais: transporte de mudanças, condução a hospitais, atenção a crianças, atendimento psicológico, encaminhamento a outros serviços (defensoria pública, conselho tutelar, grupos de alcoólicos anônimos). Evidentemente, concentrando tantas atribuições, a equipe de investigação representava a porta de entrada à delegacia tanto para vítimas quanto para agressores e para muitos deles não era somente a face mais evidente da polícia, mas a única à qual tinham acesso. 6 A Lei 9.099/95 criou os juizados especiais criminais (JECRIM) e formalizou um procedimento de apuração criminal segundo os princípios da celeridade e da informalidade que resultou nos termos circunstanciados de ocorrência, procedimento aplicado pela polícia judiciária aos crimes de menor potencial ofensivo, em substituição do inquérito policial. Esta definição de menor potencial ofensivo diz respeito a crimes com pena máxima de até um ano e contravenções penais. A Lei nº 10.259 de 12/07/2001 estendeu a definição aos crimes com penas de até dois anos. Das atribuições legais à diversidade de atividades realizadas, é evidente a existência de ao menos dois aspectos para compreender o exercício policial: o que a polícia é designada a fazer segundo o ordenamento jurídico de cada sociedade e as diversas situações não criminais com as quais deve lidar frente aos problemas trazidos pela sociedade. Destarte, o conjunto de ações desenvolvidas por um policial resulta dos arranjos elaborados a partir desses aspectos. Não obstante tal realidade, as academias de polícia civil ou militar orientam o exercício policial enfatizando a perspectiva legal de suas atribuições, tal como retratado por Paula Poncioni (2006), cuja pesquisa foi junto às academias de polícia no Rio de Janeiro: “[a] formação profissional nas academias de polícia expressa uma determinada concepção do fazer policial que privilegia, quase exclusivamente, como preocupação principal, moldar o policial para um comportamento legalista, numa versão burocrático-militar com forte ênfase no ‘combate ao crime’; omite-se em sua preparação a multiplicidade de tarefas que é exercida no trabalho diário policial e que não se restringe apenas à solução de problemas estritamente legais ou penais” (Poncioni, 2006:158). Argumentos empíricos e teóricos revelam uma profunda contradição entre o fazer policial e a formação profissional oferecida pelas academias de polícia. Tal contradição acarreta sérios prejuízos ao serviço prestado pelas polícias porque as ações “sociais” são inevitavelmente realizadas por agentes despreparados para tais fins, que não as concebem como apropriadas à função policial e as percebem como depreciativas e distantes da função primordial de combate ao crime à qual foram preparados. A despeito de tamanhas contradições, o recurso privilegiado dos mais pobres à polícia (Debert, 2006b; Poncioni, 2006) reflete a escassez de recursos dessa população para administração dos problemas mais diversos e a conseqüente importância adquirida pela polícia – com maior ou menor eficiência – para responder às demandas desse segmento da população, configurando-se como espaço público por excelência para resolução de problemas aos quais a lei e as demais instituições sociais não respondem. Delegacia “social” da mulher Uma invenção brasileira, a primeira delegacia especializada de atendimento à mulher (DEAM) foi criada em 1985, na cidade de São Paulo/SP, resultado de ampla mobilização do movimento feminista exigindo intervenção estatal no combate aos crimes praticados contra mulheres. Um dos propósitos de sua criação foi garantir atenção especializada às mulheres que procuravam as delegacias de polícia e freqüentemente eram submetidas a tratamentos vexatórios e negligentes. De fato, a criação das delegacias especiais motivou muitas mulheres a denunciar, dando visibilidade ao problema da violência contra a mulher e questionando, dentre outros preconceitos, os fundamentos da máxima “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Apesar desse propósito e das expectativas do movimento, as novas delegacias foram inseridas no quadro organizacional das polícias civis – herdeiras de uma matriz cultural autoritária – e regulamentadas por leis ou decretos estaduais em conformidade com as atribuições constitucionais da polícia judiciária e com os códigos penal e processual penal brasileiros7. Naquela ocasião, nenhuma lei federal foi elaborada para regulamentar o funcionamento e as atribuições das DEAMs de modo que a única especificidade garantida às novas delegacias foi a de destinatários e agentes, pois uma de suas características iniciais foi a inclusão de policiais femininos para suprir o anseio de atendimento especializado, o que nem sempre logrou sucesso. Acreditava-se que policiais femininos poderiam entender melhor e solidarizar-se com 7 Código Penal Decreto-Lei nº 2.848 de 07/12/1940 e Código de Processo Penal Decreto-Lei nº 3.689 de 03/10/1941. os problemas das mulheres que recorriam à polícia porque partilhavam da condição feminina. Entretanto, essa concepção universalizante da categoria mulher mobilizada pelo movimento feminista negligenciava outras categorias sociais em jogo tais como classe social, raça/etnia, geração. As delegacias de mulheres proliferaram em todo o país e dinamizaram-se em torno das demandas trazidas pela sociedade. Desde sua criação, as “queixas” apresentadas extrapolam os tipos criminais definidos pela legislação e exigem dessas unidades procedimentos diversos da apuração criminal. Em cada unidade, as respostas às demandas foram construídas diferentemente, com maior ou menor sucesso, segundo a orientação das delegadas, a intervenção da sociedade organizada e do Estado, o que atribuiu a cada DEAM uma dinâmica muito própria e regionalizada8. A respeito das demandas e expectativas das usuárias que procuravam o serviço das delegacias de mulheres, um investigador de polícia de Manaus denominava-a delegacia “social” da mulher, referindo-se aos serviços exigidos dos policiais naquela especializada, tais como orientação para divórcio, partilha de bens ou guarda de filhos, transporte de mudanças, condução a hospitais e atenção a crianças. A pesquisa Perfil Organizacional das Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP/MJ) em 2003 e 2004 indicava que “a conciliação, assim como a mediação de conflitos, associadas à orientação jurídica e assistência psicológica, representavam mais de 50% das atividades realizadas” pelas DEAMS em todo o Brasil (SENASP/MJ, 2006:17) e desde 2006 a Lei Maria da Penha regulamentou muitas dessas ações “sociais” como atribuição da autoridade policial9. Isso constitui um paradoxo institucional característico das delegacias de mulheres: embora sejam órgãos subordinados aos governos estaduais e inseridos nas secretarias de segurança pública através das polícias civis, têm suas origens e diretrizes em instrumentos legais federais, cujo processo de elaboração resultou de reivindicação e mobilização sociais. No caso das delegacias de mulheres, criadas sem uma lei federal, a atuação do movimento feminista foi fundamental para que sua recomendação fosse aceita nos estados da federação brasileira. Uma norma nacional de padronização das DEAMs, definindo diretrizes e atribuições das delegacias especiais, foi publicada somente no ano de 2006, vinte anos depois de criada a primeira DEAM brasileira10. As ambivalências presentes na constituição das DEAMs também estão relacionadas ao lugar de subalternidade que as delegacias de mulheres ocupam no conjunto da polícia civil; no status atribuído aos agentes lotados nessas unidades; e na destinação de recursos humanos e materiais para sua estruturação. Esta é uma constatação reiterada pelo documento de normatização supracitado: “as DEAMs, no geral, não contam com prestígio político junto às autoridades de segurança, sejam das esferas municipais, estaduais ou federais. São 8 Há vários estudos que retratam a diversidade e as semelhanças entre as delegacias de mulheres brasileiras, cito apenas alguns que tratam de especificidades regionais: Região Nordeste (Amaral, 2001); Região Centro-Oeste (Bandeira, 2004); Rio de Janeiro/RJ (Brandão, 1998); São Carlos/SP (Bronckson, 2006); São José do Rio Pardo/SP (Oliveira, 2006); São Paulo/SP (Izumino, 1998); Florianópolis/SC (Camargo, 1991); Salvador/BA (Aquino, 2006); Manaus/AM (Ramos, 2003); Distrito Federal (Suarez, 1999). Convém ainda consultar o Perfil Organizacional das Delegacias especializadas de Atendimento à Mulher, relatório produzido pelo Ministério da Justiça do Brasil em 2003 e 2004. 9 O artigo 11 da Lei nº 11.340 de 07/08/2006 (Lei Maria da Penha) estabelece: “No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I – garantir proteção policial [...]; II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao IML; III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes [...]; IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou domicílio familiar”. 10 O documento “Norma técnica de padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher” foi produzido pela SENASP/MJ e SPM e tem o intuito de formalizar um conjunto de normas para padronização do funcionamento das delegacias de mulheres em todo o país. indicadores desta situação as precárias condições materiais e humanas para poder desempenhar em condições razoáveis suas atividades” (SENASP/MJ, 2006:18). Existe ainda uma convenção hierárquica articulada em torno do tipo de crime ao qual cada unidade policial é dedicada, de modo que um policial da unidade de entorpecentes, homicídios ou seqüestros é considerado mais “operacional” do que um policial da delegacia de defesa da infância, do idoso ou da mulher, embora as formas de ingresso e capacitação sejam idênticas. Além do caráter mais repressivo das delegacias consideradas “operacionais”, existe a distinção entre o crime profissional e os crimes domésticos, “feijoadas” (Poncioni, 2006), “zicas” (Mingardi, 1992) ou “brigas de marido e mulher” que envolvem conflitos interpessoais entre vizinhos, familiares ou casais, e que representam a maior parcela das denúncias trazidas às delegacias especializadas. A distinção entre crime profissional e doméstico, entre delegacia operacional e delegacia assistencial, também assinala o lugar de homens e mulheres na instituição e nas funções policiais exercidas pelos sujeitos e representa padrões de masculinidades e feminilidades presentes na instituição policial. Portanto, o crime profissional, a delegacia operacional e o policial masculino são associados a uma masculinidade cujos atributos são representados pela virilidade, força e o serviço “de rua” (público). Os conflitos domésticos, a delegacia assistencial e o policial feminino são alocados numa feminilidade caracterizada pela solidariedade, fragilidade, submissão e o serviço burocrático (privado). No ano de 2001, para quatro policiais femininos na DECCM Manaus, havia um policial masculino e essa razão era inversamente proporcional em muitas unidades “operacionais” da polícia civil do Amazonas. As mulheres, em sua maioria, ocupavam os cargos de escrivãs e delegadas e poucas eram as investigadoras que se voluntariavam a trabalhar nas delegacias “operacionais”. Outro argumento que corrobora na explicação do tipo de demanda recebida pelas DEAMs foi formulado por Debert (2006b) ao analisar o modo como a instituição policial adquiriu visibilidade na sociedade brasileira. Segundo a autora, embora ocupem um status inferior no sistema criminal, os distritos policiais têm uma das faces mais evidentes da institucionalidade pública e por tal motivo são recurso amplamente utilizado pela população mais pobre para conhecer a lei e encontrar um respaldo legal para a resolução de problemas diversos, inclusive conflitos interpessoais, domésticos e até mesmo amorosos. Entretanto, a polícia trabalha com fatos tipificados como crime a priori e o caráter acusatorial e coercitivo de suas atribuições não são capazes de responder satisfatoriamente à complexidade desses conflitos. Diante da incapacidade de lidar com tais conflitos, a polícia tenta enquadrá-los nas tipificações criminais existentes, esvaziando-os de suas especificidades e generalizando-os em conformidade com as definições penais. Ademais, a ausência de uma classificação penal para a violência contra mulheres foi fator de grande relevância nesse processo, pois, apesar de o movimento feminista ter trazido a violência contra mulheres à cena pública, legitimando-a como problema social, a classificação desse problema como crime, ou seja, o seu reconhecimento no ordenamento jurídico brasileiro ainda não ocorreu. No ano de 2004, foi acrescentado ao crime de lesão corporal o tipo especial violência doméstica (Art. 129 § 9º CPB) para casos em que a lesão fosse praticada “contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade” 11 . Contudo, somente em 2006 surgiu a definição de “violência doméstica e familiar contra mulheres” como uma das formas de violação dos direitos humanos, prescrita na Lei nº 11340 11 Lei nº 10.886 de 17/06/2004 que acrescentou ao artigo 129 do CPB o tipo especial violência doméstica. de 22/08/0612, entretanto, essa definição não transforma a violência contra mulheres em crime. Muito embora a Lei Maria da Penha a reconheça como violação aos direitos humanos, na prática policial ainda inexiste um tipo penal que designe esse tipo de violência segundo a perspectiva de gênero. A invisibilidade do crime de lesão corporal grave Muito embora a literatura especializada (Izumino, 2003; Melo & Teles, 2003; Saffioti, 2004) aponte à prevalência do crime de lesão corporal dentre as queixas recebidas pelas DEAMs em todo o Brasil, pouco se diz a respeito dos agravantes legais previstos para esse tipo de crime. Também nas estatísticas oficiais, não há muitas referências sobre o assunto, apesar da enorme diferença entre o que pode ser considerado como lesão leve ou grave13. Diante da invisibilidade da lesão de natureza grave (LCG), o interesse de minha investigação foi analisar o processo de sua ocultação no sistema policial a partir da etnografia da DECCM da cidade de Manaus/AM. Para identificação de tais casos, durante a pesquisa documental nos arquivos do cartório da DECCM consultei Livros de Registro de Ocorrências Policiais, Laudos dos Exames de Corpo de Delito expedidos pelo Instituto Médico Legal (IML), Livros de Inquéritos Policiais Instaurados e remetidos à justiça criminal e relatórios estatísticos mensais e anuais enviados à Secretaria Estadual de Segurança Pública e ao Ministério da Justiça, todos referentes aos anos de 2004 e 2005. Dentre os documentos confeccionados pela delegacia não figura o tipo penal lesão corporal grave. Em nenhum dos relatórios estatísticos produzidos entre os anos de 2000-2005 o crime é mencionado, e nos registros de ocorrência manuscritos nenhuma denúncia classificada como tal foi encontrada. Embora no formulário digital figure o campo tipo de crime com as opções lesão corporal leve e lesão corporal grave, em apenas três ocorrências foi utilizada a segunda opção. A tabela abaixo resume os relatórios estatísticos de 2000-2005 e descreve a freqüência de todos os crimes arrolados nesse período. Tabela 1 - Tipo de Crime X Ano 2000-200514 CRIME Ameaça Art. 147 CPB 12 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total 2979 2955 3959 3676 3395 3691 20655 O artigo 5º da Lei Maria da Penha define a violência doméstica e familiar contra mulheres como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. 13 Segundo a legislação penal brasileira, o crime de lesão corporal prevê duas condicionantes: uma de natureza leve e uma de natureza grave ou gravíssima, ambas com diferentes penas segundo sua gravidade. O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei Nº 2848/1940) no artigo 129, parágrafos 1º e 2º, define a lesão corporal grave ou gravíssima como ofensa à integridade corporal ou a saúde da pessoa, resultante em debilidade, perda, inutilização ou deformidades permanentes de membro, sentido ou função. Na prática policial, um ferimento superficial como arranhões ou hematomas provocados por murros ou chutes podem ser classificados como lesão corporal leve, ao passo que uma lesão corporal grave implica, por exemplo, na perda de órgãos. 14 As referências junto aos nomes dos crimes referem-se ao artigo do Código Penal (CPB), Lei de Contravenções Penais (LCP) ou Código Civil Brasileiro (CCB). O asterisco indica que o tipo indicado não apareceu no relatório do respectivo ano. As categorias classificatórias são as mesmas empregadas pela delegacia e não há nos relatórios qualquer especificação sobre os crimes arrolados como “outros”. Lesão Corporal Art. 129 CPB 1750 1699 1958 2115 2239 2902 12663 Vias de fato Art. 21 LCP 1681 1426 1408 1242 1482 1678 8917 182 262 408 651 497 735 2735 164 232 49 08 * * 453 02 * * * * * 02 * * 14 59 126 158 355 Estupro ou Tentativa de Estupro Art. 213 CPB 66 43 41 41 38 46 275 Dano Art. 163 CPB 12 14 15 25 29 33 128 Atentado violento ao pudor Art. 214 CPB 10 15 20 13 16 25 99 Violação de domicílio Art. 150 CPB * * 12 17 21 40 90 Exercício arbitrário das próprias razões Art. 345 CPB * * * * 17 60 77 * * 11 08 11 11 41 Maus tratos Art. 136 CPB 15 * 02 02 02 03 24 Sedução Art. 217 CPB 08 05 01 00 00 01 15 Tentativa de homicídio Art. 121 CPB 01 01 04 02 05 01 14 * * 05 06 00 00 11 62 51 39 64 14 38 268 6932 6703 7946 7929 7892 9422 46824 Calúnia/ Difamação/ Injúria Art. 138/139/140 CPB 15 Abandono do lar Art. 1573CCB 16 Desordem Perturbação da Tranqüilidade Art. 65 LCP 17 Assédio Sexual Art. 216 A CPB Apropriação indébita Art. 168 CPB Outros TOTAL Diante das dificuldades para localização dos casos de meu interesse, selecionei todas as 5141 denúncias classificadas pelo tipo penal genérico lesão corporal entre os anos de 2004-2005 e em seguida consultei todos os laudos de exame de corpo de delito disponíveis onde, finalmente, localizei 110 casos considerados lesão grave. Há situações em que vítimas não fazem o exame e por tal motivo não há correspondência exata entre o número de registros e o número de laudos analisados, que representaram algo em torno de 80% do total de registros. Importa destacar que os casos de lesão corporal grave identificados em dois anos superam os registros de vários dos crimes mencionados na tabela acima, o que torna ainda mais intrigante a sua ausência nos relatórios. O critério adotado para a seleção dos laudos foi a conclusão do médico legista que, de acordo com o Código Penal Brasileiro, informa as conseqüências derivadas da lesão corporal. Tais conseqüências atribuem ao crime maior ou menor gravidade e, no caso de uma lesão corporal considerada grave, significam a) incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 dias; b) perigo de vida; c) debilidade permanente de membro, sentido ou função; d) aceleração de parto; e) incapacidade permanente para o trabalho; f) enfermidade incurável; g) perda ou inutilização de membro, sentido ou função; h) deformidade permanente; i) aborto18. Para as finalidades deste estudo, foram considerados os casos em que houve resposta positiva aos 15 Este tipo de classificação não é penal e corresponde ao abandono voluntário do lar previsto no artigo 317 do Código Civil vigente até 2002. No novo Código Civil, em vigor desde janeiro de 2003, o tipo aparece no § IV do artigo 1573 e caracteriza a saída do lar conjugal por um dos cônjuges por período contínuo de um ano. Muito embora não seja crime, é praxe que a justiça cível solicite um boletim de ocorrência policial comunicando tal fato para que o documento seja utilizado em posterior processo de separação judicial, partilha de bens ou guarda de filhos. 16 Este tipo foi classificado como informal porque não figura em nenhuma das leis supracitadas. Presumo que corresponda aos fatos que nos anos seguintes foram classificados como perturbação da tranqüilidade. 17 Artigo incluído no CPB pela Lei nº 10224 de 15/05/2001. 18 Artigo 129, parágrafos 1º e 2º do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848 de 07/12/1940). quesitos C, F e G. Os casos em que o médico legista sugeriu reavaliação após 30 dias foram desconsiderados. A consulta aos livros de Inquéritos Policiais Instaurados revelou nova surpresa: conforme a legislação penal brasileira, os crimes de lesão corporal grave devem ser apurados através dos inquéritos policiais19. Isso era válido inclusive durante a vigência da Lei 9099/95, afinal, a definição de menor potencial ofensivo não incluía a lesão corporal do tipo grave ou gravíssima. Entretanto, no período estudado localizei apenas 12 inquéritos instaurados para apuração deste tipo de crime. O destino dado aos 98 casos restantes ainda é uma questão a ser respondida, mas minha pressuposição de acordo com a observação dos procedimentos típicos da delegacia é que 1) mesmo antes da chegada dos laudos esses crimes tenham sido convertidos em vias de fato ou ameaça (crimes que dispensam o exame pericial) e remetidos ao juizado especial criminal; 2) durante a audiência com a delegada a vítima tenha “desistido” da apuração criminal ou aceito um termo de “bem viver”; ou 3) nenhuma providência tenha sido adotada por parte da delegacia em razão do não comparecimento da vítima na audiência. A desistência e o arquivamento são procedimentos informais estabelecidos pela delegacia, caso a vítima não retorne à delegacia depois do BO. No caso de comparecer para “retirar a queixa”, deve assinar uma breve declaração de desistência manuscrita no livro de ocorrências. Em consulta aos livros de ocorrências dos meses de janeiro a julho de 2004, localizei 781 desistências formalizadas; nesse mesmo período, a delegacia recebeu 4178 denúncias o que representa um percentual de aproximadamente 19% de desistências formalizadas. Confecção e tipificação criminal dos registros de ocorrências Entre os anos de 2000 e 2005 houve modos diferentes de registrar as ocorrências policiais e elaborar as estatísticas da delegacia. Entre janeiro de 2000 e fevereiro de 2002 os registros de ocorrências policiais eram feitos exclusivamente de forma manuscrita: os investigadores de polícia transcreviam no Livro de Ocorrências o fato relatado pelas usuárias. A instalação de computadores na recepção da delegacia e a utilização de um programa padronizado para registros de ocorrência aconteceram no mês de setembro de 2005. A partir de então, os livros de ocorrências foram abandonados. Com o novo sistema, a classificação dos crimes obedece às opções de um formulário digital e é somente nesse modelo de registro que aparecem tanto o tipo penal “lesão corporal grave” (existente desde 1940) quanto a alteração do Código Penal que incluiu em 2004 o tipo especial “violência doméstica”. Até então, toda agressão física que deixava marcas, independente da gravidade ou das circunstâncias, era classificada no boletim de ocorrência como lesão corporal. A classificação penal atribuída pelos policiais às reclamações apresentadas à DECCM não diz respeito somente às diferentes formas de registrar as ocorrências policiais, mas também ao modo como esses agentes compreendem a situação que lhes é narrada e como eles próprios constroem a sua narrativa do fato que deve ser enquadrado nas definições de um crime. Esta tarefa, segundo Debert (2006a), significa despojar um acontecimento da complexidade em que toda a ação está envolvida e ordená-lo em um novo relato de acordo com as normas legais, esvaziando-o de seu contexto. Nesse processo, concepções sobre condutas impróprias ou apropriadas, são evocadas num julgamento prévio dos sujeitos envolvidos, de modo que vítimas podem ser culpabilizadas e agressores podem ser inocentados. A este respeito, os argumentos de Corrêa (1983) são relevantes: a autora analisou no âmbito da justiça a transformação de atos em autos enfatizando como as formas jurídicas se apropriam, 19 Artigos 4º, 5º e 6º do Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-lei 3.689 de 03/10/1941). reproduzem e fundamentam suas decisões baseadas em estereótipos de feminilidade e masculinidade. Durante o período de registro manual, as denúncias eram traduzidas segundo um modelo simplificado de ocorrência policial com as seguintes informações: 1º. Cabeçalho (número do registro de ocorrência, hora da comunicação e crime comunicado); 2º. Qualificação da vítima e do agressor (nome completo, nº do registro geral, idade, data de nascimento, naturalidade, estado civil, filiação, ocupação, endereço e telefone); 3º. Resumo do fato (data, local, hora, descrição do crime e motivações); 4º. Providências adotadas pela delegacia (data e hora da audiência, expedição de intimação e requisição de exame de corpo de delito). Apesar do modelo, nem todas as informações eram solicitadas pelo policial no ato da denúncia e a riqueza de detalhes informada no resumo do fato era absolutamente relativa, dependo exclusivamente da iniciativa do agente responsável pelo registro. As transcrições abaixo evidenciam importantes aspectos que comprometem a qualidade dos registros e, conseqüentemente, a apuração criminal. Todas traduzem fatos classificados como lesão corporal e foram elaboradas por policiais diferentes. As duas primeiras foram extraídas do relatório de um mesmo plantão policial. OP. Nº 029/01/04 Às 16h32min Comunicação: LESÃO CORPORAL Compareceu a esta Especializada, a Sra. XXXX, brasileira, natural de Itacoatiara/AM, com 18 anos, RG nº XXXX SSP/AM, solteira, do lar, residente na rua XXXXXXXXXX, para comunicar que foi lesionada fisicamente, ameaçada e injuriada pelo seu companheiro, com quem vive há dois anos, chamado XXXX, brasileiro, amazonense, com 20 anos, solteiro, professor universitário na UFAM, residente no mesmo endereço. Relatou-nos que foi agredida fisicamente com empurrões e tapas; o agressor, em seguida, jogou água quente na vítima, mas não a acertou; jogou também em sua direção copo com cerveja e comida quente e por último, com uma faca lapeou a comunicante por várias vezes terminando por feri-la acima do seio esquerdo. O motivo de tal fato foi porque sem querer o acertou com um taco de sinuca durante um jogo da mesma. Fato ocorrido no dia 02/01/04, por volta das 1h40min. Providência: Marcada audiência para o dia 14/1/04, às 9h30min. Apresentação (de detido) Às 17h06min Comunicação: LESÃO CORPORAL Foi-nos apresentado, pela guarnição da PM, comandada pela SD XXXX, VTR 1215, 5º BPM, o nacional: XXXX, com 52 anos, solteiro, amazonense, autônomo, residente na XXXXXXXXXX, pelo fato de o mesmo ter lesionado a sua companheira, a Sra. XXXX, com 32 anos, solteira, amazonense, doméstica, filha de XXXX e de XXXX, residente no mesmo endereço. O fato ocorreu no dia 2/1/04, por volta das 16h30min, na residência do casal. OP. Nº 601/08/05 Às 09h40min Comunicação: LESÃO CORPORAL Compareceu a esta Especializada, a Sra. XXXX, 45 anos (17-8-1960), solteira, costureira, natural de Cruzeiro do Sul/AC, RG Nº XXXX/SSP-AC, filha de XXXX e XXXX, residente na rua XXXXXXXXXX, para nos comunicar que seu excompanheiro, o Sr. XXXX, 48 anos, solteiro, industriário, natural de Manaus-AM, residente em endereço ignorado, agrediua fisicamente com murros, além de ofendê-la moralmente. O fato ocorreu no dia 20/08/05, por volta das 21h, na residência da comunicante. Providência: Audiência agendada para o dia 01/09/05, às 09h30; expedida requisição para exame de corpo de delito. Embora classificados com a mesma tipificação penal, os resumos de cada um dos registros têm conteúdo muito diverso. O primeiro contém pormenores sobre o tipo de agressão, os instrumentos utilizados, as motivações e conseqüências, indicam as circunstâncias da agressão e a localização do casal no momento do fato. O segundo, informa exclusivamente que a vítima foi lesionada e o terceiro descreve que a agressão consistiu em murros. O mais curioso é que da forma como são apresentados os fatos, é possível pressupor que o caso de maior gravidade seja aquele relatado na primeira transcrição, quando na realidade somente o último caso foi avaliado como lesão corporal grave, conforme constatei no laudo do exame de corpo de delito. Dos “murros” resultaram fraturas de todos os ossos da face e cegueira temporária. Essas informações, entretanto, foram encontradas somente no relato da própria vítima, entrevistada durante a pesquisa. O registro de ocorrência policial é de suma importância porque representa a porta de entrada da vítima no fluxo do sistema policial e serve de referência para a elaboração de todos os relatórios estatísticos, sejam os produzidos pela própria delegacia, sejam aqueles elaborados pela secretarias de segurança ou Ministério da Justiça. Como observado nas transcrições, a primeira descrição oficial do fato comunicado à polícia depende muito da disposição do policial que faz o registro, ainda que haja um modelo oficial segundo o qual as ocorrências são registradas. Se nos registros manuais o conteúdo do resumo dos fatos era fortemente determinado pelo policial autor do registro, a implementação do formulário digital esvaziou ainda mais esse conteúdo, dado o limite de caracteres permitido. Outro fator importante para compreender o fluxo da denúncia dentro do sistema policial é a metamorfose da tipificação criminal no percurso percorrido desde o seu registro até o encaminhamento à justiça, quando isso ocorre. Da comunicação do fato no momento do registro de ocorrência até a instauração ou não do termo circunstanciado ou do inquérito policial, esses fatos são submetidos ao filtro interpretativo da instituição policial: um mesmo fato pode ser classificado pelo investigador como lesão corporal; o médico legista pode classificá-lo como lesão corporal grave; e um delegado de polícia pode denominá-lo tentativa de homicídio ao instaurar o inquérito. Como pude observar na confecção dos registros de ocorrência, nos casos de lesão corporal, a classificação da gravidade é suprimida pela adoção do tipo penal genérico, cuja ocorrência predominante na delegacia é de natureza leve. Este fato mascara a real dimensão dos casos de lesão corporal grave, inclusive deixando-os de fora das estatísticas. A generalização e posterior ocultação do tipo penal grave repercute na ação policial e pode ser uma das principais explicações para a não instauração dos inquéritos policiais mesmo quando ainda vigorava a lei 9099/95, pois ao contrário da lesão corporal de natureza leve que era englobada pela definição de menor potencial ofensivo, a configuração do tipo grave, cuja pena varia de 2 a 8 anos, não dispensava a instauração de inquéritos. A generalização da lesão grave como leve sugere ainda a existência de uma prévia concepção que banaliza a violência praticada contra mulher dentro de sua casa, considerando-a fato menos grave. A Lei 9099/1995 e a violência doméstica contra mulheres Desde sua criação, a Lei nº 9.099/1995 foi alvo de muitas críticas, tanto das militantes feministas quanto de acadêmicas. Os argumentos apontavam aos efeitos danosos da aplicação desta lei aos casos de violência doméstica contra mulheres e à necessidade de uma lei específica para tais casos, baseada no gênero. Carmen Campos (2003) argumenta que a lei dos juizados especiais criminais possui um “déficit teórico de gênero” apesar dos princípios inovadores da doutrina minimalista asseverados por tal legislação. Contrária à aplicação da lei aos casos de violência contra mulheres, a autora indicava como seus limites a banalização da violência de gênero; o arquivamento massivo de processos; a insatisfação das vítimas e a falta de autonomia destas na transação penal; a despenalização da violência doméstica; e a reprivatização do conflito doméstico, publicizado graças à criação das DEAMs, dentre outras políticas. Dez anos depois, passou a vigorar no Brasil a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) que tipifica a violência doméstica e familiar contra mulheres, proíbe a aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos crimes dessa natureza e, embora reconheça a importância da atenção multidisciplinar à violência contra mulheres, fortalece sua criminalização. Este processo é observado em outros países que recentemente aprovaram legislações similares. Apesar de tais conquistas, a nova lei contém limites e sua aprovação não dirime muitos dos problemas observados durante a vigência da Lei nº 9.099/1995, o que sugere outros caminhos para interpretação dos fatos observados no sistema policial e na justiça criminal no que tange aos crimes praticados contra mulheres. Há muitas décadas, uma série de estudos aponta aos limites do poder judiciário no tratamento desses crimes (Ardaillon & Debert, 1987; Corrêa, 1983; Vargas, 2004; Beraldo Oliveira, 2006). Estudos dedicados à etnografia de práticas policiais e judiciais e aqueles que incorporam a perspectiva dos sujeitos envolvidos em relações violentas (Gregori, 1993) sugerem ainda que a relação entre parâmetros legais de atuação policial e judicial, ideal feminista e expectativas de vítimas de violência é demasiado complexa, implicando em distintas formas de apropriação desses instrumentos na administração de conflitos domésticos, tanto pelos operadores da justiça (policiais, advogados, promotores e juízes) quanto pelas usuárias do sistema. A observação do processo de ocultação do crime de lesão corporal grave na delegacia de mulheres de Manaus/AM sugere a revisão de algumas das críticas formuladas à Lei nº 9.099/1995, sobretudo no que se refere à banalização da violência doméstica e à despenalização dessa violência. Não se trata de defender a legislação em questão – indubitavelmente, carente de perspectiva analítica de gênero –, mas de elucidar processos ainda vigentes nas práticas policiais e judiciais obscurecidos quando esta lei se configurou o “bode expiatório” para justificar as deficiências de atuação das instituições em questão, tanto para agentes do sistema policial, quanto para acadêmicas e militantes. Se a sua aplicação justificava a banalização da violência contra mulheres, considerando-a de menor potencial ofensivo – visto que a maior parte dos crimes atendidos pelas DEAMs foram abarcados por tal definição –, como explicar a inoperância policial e a subnotificação do crime de lesão corporal grave que nunca foi incluído nessa definição? Discordo da idéia de que a Lei nº 9.099/1995 foi a responsável pelo sistema policial considerar todo tipo de violência contra mulher um fato menos grave ou de esvaziar a tarefa primordial da polícia de apuração criminal. Por que tantos inquéritos policiais de lesão corporal grave não foram instaurados? O que informa o policial no momento da confecção do registro de ocorrência não é a lei que criou a classificação de crimes de menor potencial ofensivo. Policiais, demais operadores do direito e legisladores são informados por crenças e valores que mobilizam papéis sexuais, padrões de feminilidades e masculinidades e pré-conceitos acerca das relações familiares violentas, e que são acionados e reproduzidos durante a triagem e a classificação dos crimes e na resposta à violência contra mulheres. De tal modo, o foco das ações policiais e judiciais se afasta do crime e de sua gravidade e direciona-se para o comportamento dos sujeitos envolvidos (Campos, 2003). Portanto, a ocultação da LCG não pode ser explicada simplesmente pela inadequação da Lei nº 9.099/1995, mas por uma concepção anterior – ainda vigente em nossa cultura a despeito de todas as conquistas feministas – segundo a qual bater em mulher não é coisa grave, ou, ainda que seja, pouco ou nada pode ou deve ser feito, pois a vítima ainda que o denuncie não deseja que ele seja preso, mas apenas receba uma “lição” e a relação do casal seja reequilibrada. Melo e Teles (2003) argumentam que no caso específico das lesões corporais, a própria definição do Código Penal é insuficiente, pois, como afirmei anteriormente, estabelece definições muito discrepantes entre a gravidade das agressões que podem ser classificadas por este tipo penal. Segundo as autoras, “somou-se o problema da má atuação dos Juizados na violência doméstica com a classificação penal deficiente do crime de lesão corporal no Código Penal” (Melo & Teles, 2003: 94). Existe ainda uma crítica à transação penal implementada pela Lei nº 9.099/1995 que convém ser mencionada nos termos em que Campos (2003) a apresenta: “a transação penal, medida de aplicação imediata da pena não privativa de liberdade sem os danos advindos da culpabilidade, proposta pelo Ministério Público, também exclui a vítima, pois considera unicamente o autor do fato. A mulher não pode opinar sobre o tipo de pena a ser aplicada ao agressor, sobre a conveniência ou não da medida” (Campos, 2003: 167). A massiva “desistência” de mulheres vítimas de violência na retirada de “queixas” nas DEAMs é freqüentemente evocada por policiais para justificar omissões frente a violência doméstica. Esse também é um fato intrigante para o movimento de mulheres e para acadêmicos. Nessa discussão, aparece o argumento de que a negligência policial e a morosidade da justiça são fatores que corroboram ao sentimento de impunidade e à desistência das vítimas diante da incredulidade atribuída a tais instituições. Durante o período em que os crimes de violência doméstica contra mulheres eram encaminhados aos juizados especiais criminais (1996-2006), a cominação de penas pecuniárias para autores desses crimes também justificava esse argumento e, de fato, foram vários os episódios que comprovaram a insatisfação das vítimas de violência frente à transação penal vigente nos JECRIMs. O argumento que construo ao repensar as críticas feitas à aplicação da Lei nº 9.099/1995 sugere as possibilidades de outros caminhos na resolução desses conflitos domésticos que não exclusivamente através de sua criminalização, penalização e judicialização, ao menos não do modo como têm sido empregados. Parece-me que este foi o investimento político do movimento de mulheres brasileiro nos últimos anos e que logrou sucesso com a aprovação da Lei Maria da Penha. Contudo, a persistência de práticas policiais e judiciais há muito investigadas e criticadas tem demonstrado que a força das determinações legais não é suficiente para transformar preconceitos tão arraigados e oferecer resoluções satisfatórias para os conflitos em questão. Dois meses depois da vigência da Lei Maria da Penha, retornei à delegacia onde realizei a pesquisa de campo para saber a avaliação dos policiais da DECCM a respeito da nova legislação. Na ocasião, entrevistei duas delegadas, uma investigadora e uma escrivã que trabalhavam há mais de dez anos na delegacia e acompanharam o trabalho da DECCM antes da Lei nº 9.099/1995, durante e depois da aprovação da Lei Maria da Penha. Uma afirmação permeou o discurso de todas entrevistadas: “tudo vai continuar como era antes”. Nenhuma preparação específica fora desenvolvida em razão da nova legislação e nenhum procedimento diferenciado foi estabelecido na rotina da DECCM. Retornei novamente à delegacia dez meses depois da aprovação da Lei Maria da Penha e a maior diferença notada consistia na confecção dos termos circunstanciados de ocorrência substituída pelos inquéritos policiais e flagrantes. A subestimação da participação das mulheres vítimas de violência na construção dessas respostas pode ser outro viés para analisar as desistências e insatisfações frente às medidas existentes para resolução dos conflitos domésticos. Há uma série de fatores que dinamizam as relações violentas e os papéis nelas exercidos por homens e mulheres (Gregori, 1993); igualmente, há diferentes expectativas das vítimas de violência que recorrem à polícia e à justiça e que não representam a reprivatização da violência doméstica, mas sugerem arranjos que subvertem o papel idealizado da polícia e do judiciário no tratamento da violência, sobretudo no que tange à punição legal dos acusados (Izumino, 2003; Campos, 2003; Brandão, 2006). Izumino (2003) assinala que a preocupação com as expectativas das mulheres vítimas de violência tem recebido maior atenção nos últimos anos, “substituindo o discurso predominante nos anos 80, segundo o qual a violência contra a mulher precisava ser tratada como crime – processado, julgado e condenado pela Justiça Criminal” (Izumino, 2003: 261) e que o recurso à polícia estava mais relacionado à busca de “pacificação dos conflitos”. Conseqüentemente, existem outras respostas possíveis para esses conflitos que podem distinguir-se daquelas esperadas pelo movimento feminista ou definidas pela legislação em vigor. Percorrendo essa perspectiva, analiso as narrativas de mulheres vítimas de lesão corporal grave, focando suas expectativas e avaliações a respeito da atuação da DECCM, onde denunciaram seus agressores. As respostas engendradas por tais sujeitos denotam diferentes formas de participação e agência, corroborando para a desconstrução de estereótipos que polarizam as relações violentas entre homens e mulheres e provocam o questionamento das soluções judiciais disponíveis, segundo a perspectiva das mulheres vítimas de violência, e permitem refletir sobre as formas de apropriação dos instrumentos da justiça exercidas por tais mulheres. Responsabilidade, participação e agência Cada uma dessas expressões está relacionada ao modo como as mulheres entrevistadas nesse estudo – Dinha, Telmara, Rose, Mara e Evelyn20 – descreveram em suas narrativas suas concepções sobre as relações afetivas violentas que vivenciaram e suas expectativas e frustrações frente à delegacia de mulheres, palco onde suas trajetórias de vida encontraram-se com este órgão policial em razão da ocorrência da lesão corporal grave. A idéia de responsabilidade aparece nas narrativas das mulheres estigmatizadas quando se referem às circunstâncias da relação violenta e também quando sugerem a idéia de culpa frente às agressões sofridas. Em momento algum das narrativas de todas as entrevistadas essa expressão pode ser associada à idéia de vitimização ou resiliência. Todas elas refutam em suas trajetórias a condição de vítima. Mesmo quando admitem possuir responsabilidade na agressão o fazem segundo a mesma perspectiva empregada por Evelyn ao afirmar que foi agredida porque não se colocou no lugar que seu companheiro esperava; não se acomodou numa posição submissa, não calou e nem se resignou diante da violência: “Eu não me calei pra ele, eu revidei, ele veio me bater eu fui pra cima dele também. Ele me batia, eu batia nele, e a gente começou a se agredir, eu não me calei pra ele, entendeu? Por isso que ele ficou mais com raiva” (Evelyn). A narrativa de Dinha, por sua vez, é exemplar para elucidar a dinâmica de relações afetivas violentas fora dos pressupostos de uma dualidade entre os papéis de vítima e algoz; como uma cena complexa onde ambos, homem e mulher, participam ativamente. Essa análise, sugerida por Gregori (1993) aponta à complexidade característica das relações que constroem o contexto no qual a lesão corporal grave ocorreu. Não se trata, portanto, de um reducionismo maniqueísta no qual os homens são maus e as mulheres vítimas impotentes. Não se trata também de negar a factualidade e a gravidade do crime, mas de refletir sobre o modo como as vítimas desse crime narram tais acontecimentos de forma ambivalente. Participação é a definição mais apropriada para traduzir a sucessão de ações descritas durante o momento da agressão: “Quando ele veio, com uma garrafa de cerveja, eu sentada na cadeira lá fora, aí ele começou a me xingar, a me chamar de vagabunda, de prostituta, de tudo que não prestava, ai eu peguei, sentada, fumando, ai eu reagi também, entrei pra dentro de casa, aí lá a gente começou, ele me empurrou, eu comecei a bater nele, aí ele começou a quebrar as coisas, a gente não tinha nada, mas o que tinha ele quebrou: o aparelho de som, a geladeira em cima da máquina de lavar, que não prestou mais, quebrou, rasgou as cortinas, cortou minhas roupas, minhas sandálias, quebrou os cd’s, me jogou o primeiro tijolo, arrebentou uma tábua, aí eu fui pra cima dele com a faca, o martelo, bati nele também, errei uma facada nele, aí eu tranquei a porta e fiquei do lado de dentro na bagunça e mexendo nas coisas lá. Quando eu vi, ele começou a jogar pedra na porta, foi quando eu abri a porta e no momento que eu abri a porta só senti o tijolo no meu rosto, aí que eu não senti mais nada. E tombei na porta e só vi o sangue descer” (Dinha). 20 Nomes fictícios escolhidos pelas entrevistadas. A definição de agência apresentada por Giddens (1989) é rentável para pensar as circunstâncias narradas e particularmente a relação entre as usuárias da delegacia de mulheres e os arranjos construídos na resolução dos conflitos domésticos vivenciados por tais mulheres. Segundo o autor, “agência não se refere às intenções que as pessoas têm ao fazer as coisas, mas à capacidade delas para realizar essas coisas em primeiro lugar. [...] Agência diz respeito aos eventos dos quais um indivíduo é o perpetrador, no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de uma dada seqüência de conduta, ter atuado de modo diferente. O que quer que tenha acontecido não o teria se esse indivíduo não tivesse interferido” (Giddens, 1989: 07). De tal modo, as trajetórias das mulheres estigmatizadas, inclusive suas histórias de violência têm sua participação; são construídas também a partir das ações que desenvolvem de uma perspectiva relacional, evidentemente. Isso aparece também na forma como idealizam e avaliam o tipo de resposta apresentada pela delegacia de mulheres na resolução de seus conflitos e o modo como utilizam esse órgão. Para refletir a este respeito é necessário antes mencionar os procedimentos que devem ser cumpridos pela delegacia segundo a prescrição legal ao receber a comunicação de um crime de lesão corporal grave: registrar a ocorrência policial (BO); expedir requisição de exame de corpo de delito (ECD); marcar audiência do casal com a delegada; entregar a intimação ao agressor e conduzi-lo coercitivamente caso não responda à intimação; elaborar o inquérito policial (IPi); e remetê-lo ao Ministério Público (IPr). O quadro abaixo demonstra como essas obrigações foram cumpridas a partir do monitoramento dos procedimentos adotados no caso das cinco entrevistadas deste estudo. Quadro 1 - Monitoramento dos procedimentos obrigatórios da DECCM BO ECD INTIMAÇÃO AUDIÊNCIA IPi IPr INFORMAL DINHA SIM SIM SIM NÃO SIM SIM NÃO TELMARA SIM SIM SIM NÃO SIM SIM NÃO ROSE SIM SIM SIM NÃO NÃO NÃO NÃO MARA SIM SIM SIM SIM NÃO NÃO SIM EVELYN SIM SIM SIM SIM SIM SIM NÃO Como é possível observar no quadro acima, grande parte dos procedimentos obrigatórios – no caso das mulheres entrevistadas neste estudo – foram cumpridos: nos cinco casos, o registro de ocorrência, o exame de corpo de delito e a entrega da intimação foram efetivados pela delegacia. A realização das audiências ocorreu em apenas dois casos, mas convém ressaltar que este é um procedimento típico da delegacia onde a pesquisa foi realizada e não é uma atividade prescrita como função policial. As diferenças aparecem no que tange ao procedimento adotado para a apuração criminal: três casos em que inquéritos policiais foram instaurados e remetidos à justiça (Dinha, Telmara e Evelyn); um caso no qual nenhum procedimento foi adotado (Rose); e o último caso em que um procedimento informal (termo de “bem viver”) foi empregado (Mara). É necessário ressaltar que no caso de Mara, o IP não foi instaurado por escolha da própria vítima que descreveu da seguinte maneira a circunstância da audiência realizada pela delegada: “Aí ela perguntou se eu queria processar ele ou se eu queria fazer assim uma... deixar ele em observação, se ele não mexesse mais comigo, porque se ele voltasse a mexer aí ia partir pra parte da ... é, processar ele com alguma coisa. Aí ficou nisso, aí ta, mas chegou lá ele ainda quis dizer porque a culpa era minha porque eu não deixava ele ver os filhos dele, aí veio a doutora conversou com ele e foi até agressiva com ele sabe, porque ele quis botar a culpa assim pra cima de mim, ela disse ‘nada justifica você bater nela, vocês não se deixaram? Então vá viver sua vida e deixa a dela!’ Aí eu não quis processar ele não, ficou nisso, mas até agora só ficou por isso e ele não fala mais comigo, assim, fala por causa que a gente ainda tem filho tem que conversar mesmo, mas negócio de agressão mais pro meu lado ele não veio não, às vezes ele vem querer me ofender com palavras, eu sempre ameaço ele nesse ponto, se ele vir de novo, eu volto de novo lá”. (Mara). O depoimento de Mara evidencia como a resolução informal de assinatura de um termo de “bem viver” foi suficiente para a resolução do conflito em questão. Curiosamente, dentre as entrevistadas, a mais satisfeita com a resolução proposta pela delegacia de mulheres foi justamente aquela à qual a delegada apresentou uma alternativa informal, ao contrário daquelas que tiveram inquéritos instaurados e remetidos à justiça criminal. Se as expectativas das vítimas estivessem relacionadas estritamente ao cumprimento da lei, era possível esperar que ao menos aquelas cujo inquérito foi instaurado estivessem satisfeitas com a atuação da delegacia, entretanto, o quadro seguinte elucida uma avaliação em geral muito negativa e expectativas frustradas frente à resposta apresentada pela delegacia de mulheres. Quadro 2 - Avaliação do trabalho da DECCM AVALIAÇÃO EXPECTATIVAS Até hoje parou o caso. Não teve o procedimento que eu esperava. Até hoje não fizeram nada. Eu achava que eles ia atrás, que não iam se Eles não faziam nada. cansar de procurar, que iam pegá-lo; A delegada teria que ter mais estômago para Esperava que a delegacia o pegasse e desse mandar o pessoal. umas porradinhas. Poderia ser melhor. Seria melhor se tivessem pego ele e dado umas porradinhas. Que ele fosse preso, que pegassem ele, dessem TELMARA Ele nunca chegou a ser preso Nada podia ser feito uma lição. O policial que atendeu era um imbecil Até hoje, não saiu foi nada mais, aí por isso Ela (a delegada) falou que ele ia pegar dois EVELYN ficou. anos de cadeia, se ele se comportasse ele ia Eu acho que não foi feito nada, nem fizeram pegar três anos. nada Ela falou que se ele mijasse fora do pinico, era pra mim voltar ai, se ele me xingasse, se ele passasse por mim, falasse alguma coisa era pra mim vir Ele tando lá (na cadeia) ele ia aprender alguma coisa, com certeza ia. Queria que pegassem ele Não podia fazer nada ROSE Que prendesse ele Não passou daí Fizesse justiça Eu voltei pra casa do mesmo jeito Se eles (os policiais) o levassem que Eu nunca vi acontecer nada de justiça. acontecesse a mesma coisa que aconteceu Na delegacia da mulher é muito parado Falavam que eles espancavam e eles (os comigo agressores) nunca comparecia; comparecia, Que sentisse na pele o que eu senti assinava um termo de bom viver e nada, e acontecia depois de novo, e elas voltavam e nada acontecia Lá é mais sério. Eu fui, se ele não viesse eles Eu não quis processar ele não, ficou nisso, mas MARA vinham mesmo em casa pegar ele, só que na até agora só ficou por isso e ele não fala mais primeira intimação que deram ele veio comigo Foi ótimo assim, porque não sei, acho que eu Eu sempre ameaço ele nesse ponto, se ele vir não esperava ter tanta segurança. de novo, eu volto de novo lá Tomaram as providências certas, me deram Eu não preferi processar ele, ficou em como ela falou, se eu queria processar ele, ou observação e ta normal se eu queria que ele ficasse em observação Eu acho que do jeito que foi ta bom DINHA As afirmações sistematizadas no quadro acima podem ser reunidas em três grupos. O primeiro reúne os depoimentos que expressam as avaliações de Dinha, Telmara e Evelyn que tiveram os inquéritos policiais instaurados e remetidos à justiça. Inércia parece ser a expressão mais adequada para traduzir suas avaliações, pois para as três mulheres nada foi feito pela delegacia e esse “nada feito” está estreitamente relacionado ao castigo que elas esperavam que fosse dedicado aos seus agressores: que fossem maltratados na delegacia e presos. Dinha é a mais explícita ao definir o que seria uma boa lição para que seu agressor aprendesse que não deveria agredi-la, muito embora outros excertos dos depoimentos de Telmara e Evelyn também expressem essa concepção. A morosidade da justiça também está relacionada à insatisfação dessas mulheres, pois embora os IP tenham sido encaminhados à justiça criminal, até a ocasião das entrevistas, nenhuma delas havia sido convocada à Vara Criminal para que o processo tivesse andamento, o que provocava a sensação de impunidade e descontentamento. Possivelmente, a avaliação de Rose é a que mais se aproxima da maioria das mulheres que não teve sequer o inquérito instaurado. Para ela, a delegacia de mulheres é ineficaz e não apresentou qualquer resposta ao seu problema. As assertivas “voltei pra casa do mesmo jeito” e “nunca vi acontecer nada de justiça” são representativas do papel desempenhado pela delegacia e sua importância na resolução daqueles conflitos. Impunidade e negligência são expressões que podem traduzir a indignação de Rose. O caso de Mara é emblemático e esta é a mulher que tem uma avaliação mais positiva da atuação da delegacia que segundo uma jurisprudência muito própria da delegada, resolve o conflito com uma advertência verbal ao agressor e a assinatura de um termo de “bem viver”. Nesse caso, a vítima não apenas escolheu o tipo de resolução mais condizente com seus anseios, como saiu da audiência empoderada, portando um documento com o qual pode “ameaçar” o seu agressor quando se sentir intimidada por ele. A cena da audiência entre Mara, seu agressor e a delegada é muito interessante porque evidencia tanto os “arranjos” elaborados pelos agentes da delegacia de mulheres para resolução desses conflitos domésticos, como a atuação da mulher lesionada na escolha dos caminhos para tal. Através da advertência, a delegada repreende o agressor, informa-lhe que não tem os direitos que pensa ter e anuncia que aquela mulher agredida tem direito a uma vida autônoma. Na mesma ocasião, expõe as possibilidades existentes para resolver o conflito e diante das alternativas apresentadas delega à vítima o poder de decisão. Nesse sentido, a atuação da delegacia de mulheres parece estar mais próxima de suas expectativas que passam menos pela criminalização desses conflitos e mais pela possibilidade de atuar como sujeito. Talvez nesse caso se encontrem alguns dos elementos que carecemos para compreender melhor o uso dado pelas vítimas de violência às delegacias de mulheres, por vezes tão distantes dos preceitos legais e das expectativas do movimento feminista. Izumino (2003) sugere a existência de grupos distintos de expectativas das mulheres vítimas de violência em relação às delegacias de mulheres. Segundo a autora, há um grupo que espera da polícia apenas a “pacificação dos conflitos”; que a polícia “dê um jeitinho” em seus agressores; “um susto” ou “uma porradinha” – nos termos de Dinha. Esse grupo de mulheres rejeita a criminalização do conflito e algumas delas esperam apaziguar os conflitos e restabelecer suas relações amorosas. No entanto, há outro grupo que espera exatamente o contrário da atuação das DEAMs, isto é, que elas cumpram o papel coercitivo e punitivo previsto em suas atribuições legais; portanto, para um certo grupo de mulheres, a criminalização é a resposta esperada da polícia. O caso de Mara, no entanto, parece sugerir que a despeito das diferentes expectativas, o modo como essas respostas são construídas é de fundamental importância para não vitimizar ainda mais as mulheres violentadas, o que certamente passa pelo seu direito de participar da escolha do tipo de resolução almejada para suas relações. Referências Ardaillon, Daniele & Debert, Guita Grin. 1987. Quando a vítima é mulher: análise de julgamento de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília/DF: CEDAC. Bayley, David H. 2006. “O trabalho policial”. In: Padrões de policiamento: uma análise comparativa internacional. Tradução de René Alexandre Belmonte. 2a. ed. São Paulo/SP: EDUSP. Pp. 117-143. Beraldo Oliveira, Marcella. 2006. Crime Invisível: a mudança de significados da violência de gênero no juizado especial criminal. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Estadual De Campinas, Campinas/SP. Brandão, Elaine Reis. 2006. Renunciantes de direitos? 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