Teoria estética – Theodor W. Adorno 1 Crítica da teoria psicanalítica da arte A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte na sublimação. É, portanto, plausível extrair a definição do que é a arte a partir de uma teoria do psiquismo. O ceticismo a respeito das doutrinas dos invariantes antropológicos recomenda o emprego da teoria psicanalítica. Mas ela é mais proveitosa no campo psicológico do que na estética. Considera as obras de arte essencialmente como projeções do inconsciente daqueles que as produziram, esquece as categorias formais da hermenêutica dos materiais, transpõe de algum modo o pedantismo de médicos subtis para o objeto mais inadequado: Leonardo ou Baudelaire. Não obstante a acentuação do sexo, deve ali desmascarar-se o filistinismo pelo fato de, nas obras referentes a estas questões, de muitos modos rebentos da moda biográfica, os artistas, cuja obra objetiva sem censura a negatividade da existência, serem rebaixados à categoria de neuróticos. O livro de Laforgue resume toda a seriedade de Baudelaire ao fato de ele sofrer de um complexo maternal. Nem sequer uma vez surge no horizonte a pergunta de se ele, como psiquicamente são, poderia ter escrito Lês Fleurs du Mal e, com maior razão, se os poemas foram mais medíocres em virtude da neurose. Erige-se abusivamente em critério um psiquismo normal, mesmo quando a qualidade estética se revela ser, de modo tão pronunciado como em Baudelaire, condicionada pela ausência da mens sana. Segundo o teor das monografias psicanalíticas, a arte deveria acabar afirmativamente com a negatividade da experiência. O momento negativo já não é para elas o processo daquele recalcamento, que se inscreve na obra de arte. As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos diurnos; ela confunde-os com documentos, transfere-os para os que sonham enquanto que, por outro lado, os reduz, em compensação da esfera extramental salvaguardada, a elementos materiais brutos, de um modo aliás curiosamente regressivo em relação à teoria freudiana do «trabalho do sonho». O momento de ficção nas obras de arte é, como em todos os positivistas, excessivamente valorizado pela sua suposta analogia com os sonhos. O elemento projetivo no processo de produção dos artistas é, na relação à obra, apenas um momento e dificilmente o decisivo; o idioma, o material e sobretudo o próprio produto têm um peso específico, que surpreende sempre os analistas. A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranóia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nada diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada. A teoria psicanalítica da arte tem, sobre a teoria idealista, a vantagem de trazer à luz o que, no interior da arte, não é em si mesmo artístico. Permite subtrair a arte ao sortilégio do Espírito absoluto. No espírito da Aufklärung, levanta-se contra o idealismo vulgar que, por rancor contra o conhecimento da arte, especialmente do seu entrelaçamento com a pulsão, a desejaria pôr de quarentena numa pretensa esfera superior. Ao decifrar o caráter social que se exprime pela obra de arte e no qual se manifesta muitas vezes o do seu autor, fornece as articulações de uma mediação concreta entre a estrutura das obras e a estrutura social. Mas difunde igualmente um constrangimento afim ao do idealismo, o de um sistema de signos absolutamente subjetivo para moções pulsionais também subjetivas. Decifra fenômenos, mas não alcança o fenômeno arte. As obras de arte surgem-lhe apenas como fatos, e escapa-lhe a sua objetividade própria, a sua coerência, o seu nível formal, os seus impulsos críticos e, finalmente, a sua ideia de verdade. À pintora, que, sob o pacto da total sinceridade existente entre o analisando e o analista, escarnecia das más gravuras vienenses com que ele desfigurava as suas paredes, explicava-lhe este que tudo se reduzia à agressão da sua parte. As obras de arte são incomparavelmente muito menos reflexo e propriedade do artista do que o pensa um médico, que apenas conhece o artista no seu divã. 1 Parágrafos selecionados da Teoria estética de Theodor Adorno. Tradução de Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp.19-24; texto modificado por Verlaine Freitas. Só os diletantes referem tudo o que se encontra na arte ao inconsciente. A pureza da sua sensibilidade repete clichês decadentes. No processo de produção artístico, as moções inconscientes são impulso e material entre muitos outros. Inserem-se na obra de arte através da mediação da lei formal; o sujeito literal, que compõe a obra, não passaria de um cavalo pintado. As obras de arte não constituem thematic apperception tests do seu autor. Em tal amusia é responsável também o culto que a psicanálise rende ao princípio de realidade: o que não lhe obedece é sempre «fuga» apenas, a adaptação à realidade surge como o “summum bonum”. A realidade oferece muitos outros motivos reais para dela se fugir e mais do que o admite a indignação a respeito da fuga, que é veiculada pela ideologia da harmonia; até mesmo psicologicamente seria mais fácil legitimar a arte do que o reconhece a psicologia. Sem dúvida, a imaginação é também fuga, mas não completamente: o que o princípio de realidade transcende para algo de superior encontra-se também sempre em baixo. É maldoso pôr ali o dedo. Destrói-se a imago do artista como aquele que é tolerado: neurótico incorporado na sociedade da divisão do trabalho. Nos artistas de altíssima classe, como Beethoven ou Rembrandt, aliava-se a mais aguda consciência da realidade à alienação da realidade; só por si isto já constituiria um objeto digno da psicologia da arte, que não teria de decifrar a obra de arte apenas como algo de semelhante ao artista, mas como alguma coisa de diferente, como trabalho em algo que resiste. Se a arte tem raízes psicanalíticas, são as da fantasia na fantasia da onipotência. Na arte, porém, atua também o desejo de construir um mundo melhor, libertando assim a dialética total, ao passo que a concepção da obra de arte como linguagem puramente subjetiva do inconsciente não consegue apreendê-la. As teorias da arte em Kant e Freud A teoria kantiana é a antítese da teoria freudiana da arte enquanto teoria da realização do desejo. O primeiro momento do juízo de gosto na Analítica do Belo seria o comprazimento desinteressado (4). O interesse é aí chamado «o comprazimento», o que nós associamos com a representação da existência de um objeto» (5). Não é evidente se pela «representação da existência de um objeto» se entende o objeto tratado numa obra de arte como sua matéria, ou a própria obra de arte; o modelo nu bonito ou a harmonia suave dos sons musicais podem ser kitsch, mas também um momento integral de qualidade artística. O acento posto na «representação» deriva do ponto de partida subjetivista de Kant, no sentido pregnante do termo, que busca implicitamente a qualidade estética, em consonância com a tradição racionalista, sobretudo de Moisés Mendelssohn, no efeito da obra de arte sobre o seu admirador. Revolucionário, na Crítica da faculdade do juízo, é o fato de que, sem abandonar o âmbito da antiga estética do efeito, ela a restringe ao mesmo tempo por uma crítica imanente, da mesma maneira que o subjetivismo kantiano tem o seu peso específico na sua intenção objetiva, na tentativa de salvar a objetividade graças à análise dos momentos subjetivos. A ausência de interesse afasta-se do efeito imediato, que o comprazimento quer conservar, e prepara assim a ruptura com a sua supremacia. O comprazimento, desprovido deste modo do que em Kant se chama o interesse, torna-se comprazimento de algo tão indefinido que já não serve para nenhuma definição do belo. A doutrina do comprazimento desinteressado é pobre perante o fenômeno estético. Redu-lo ao belo formal, sobremaneira problemático no seu isolamento, ou a objetos naturais ditos sublimes. A sublimação numa forma absoluta deixaria de lado nas obras de arte o espírito em nome do qual se opera esta sublimação. A nota excessiva de Kant (6), segundo a qual um juízo sobre um objeto de comprazimento poderia sem dúvida ser desinteressado, e, no entanto, ser interessante, isto é, suscitar um interesse, mesmo se em nada se funda, atesta sincera e involuntariamente este fato. Kant separa o sentimento estético — e assim, segundo a sua concepção, virtualmente a própria arte da faculdade de desejar, visada pela «representação da existência de um objeto»; o comprazimento numa tal representação teria «sempre ao mesmo tempo uma relação com a faculdade de desejar» (7). Kant foi o primeiro a adquirir o conhecimento, ulteriormente admitido, segundo o qual o comportamento 2 estético está isento de desejos imediatos; arrancou a arte ao filistinismo voraz, que continua de novo a tocá-la e a saboreá-la. No entanto, o motivo kantiano não é totalmente estranho à teoria psicológica da arte: também para Freud as obras de arte não são imediatamente realizações de desejos, mas transformam a libido primeiramente insatisfeita em realização socialmente produtiva, em que o valor social da arte persiste às claras incontestado no respeito acrítico da sua validade pública. Kant, porém, realçou muito mais energicamente que Freud a diferença entre a arte e a faculdade de desejar e, portanto, a diferença entre a arte e a realidade empírica, mas não a idealizou sem mais: a separação da esfera estética em relação à empiria constitui a arte. No entanto, Kant fixou transcendentalmente esta constituição, em si mesma algo de histórico, e, mediante uma lógica simplista, equiparou-a à essência artística, sem se preocupar com o fato de que as componentes da arte subjetivamente pulsionais retornam metamorfoseadas na sua forma mais pura, que as nega. A teoria freudiana da sublimação penetrou muito mais imparcialmente no caráter dinâmico do artístico. Naturalmente, Freud não deve pagar um preço menor que Kant. Se neste sobressai a essência espiritual da obra de arte, apesar de toda a preferência pela intuição sensível, a partir da distinção entre o comportamento estético e o comportamento prático e o desiderativo, a adaptação freudiana da estética à doutrina da pulsão parece encerrar-se nela; as obras de arte, mesmo sublimadas, pouco diferem de representantes das emoções sensíveis que, quando muito, as tornam irreconhecíveis por uma espécie de trabalho do sonho. O confronto dos dois pensadores heterogêneos — Kant não rejeitou apenas o psicologismo filosófico, mas, na sua velhice, também toda a psicologia — é no entanto permitida graças a um elemento comum, que pesa mais do que a diferença entre a construção do sujeito transcendental, no primeiro, e o recurso a um sujeito psicológico empírico, no segundo. Ambos em princípio se orientam subjetivamente entre uma avaliação negativa ou positiva da faculdade de desejar. Para ambos, a obra de arte encontra-se apenas em relação com aquele que a contempla ou que a produz. Mesmo Kant é obrigado, por um mecanismo a que também a sua filosofia moral se sujeita, a considerar o indivíduo existente, o elemento ôntico, mais do que é compatível com a ideia do sujeito transcendental. Não há comprazimento sem seres vivos, aos quais agrade o objeto; o teatro de toda a Crítica da faculdade do juízo são, sem que deles se trate, os constituintes e é por isso que o que fora planeado como ponte entre a razão pura teórica e prática é um allo génos em relação às duas. Sem dúvida, o tabu da arte — e na medida em que é definida obedece a um tabu, as definições são tabus — proíbe que nos contraponhamos ao objeto de um modo animal, que dele nos apossemos corporalmente. Mas ao poder do tabu corresponde o do conteúdo a que ele se reporta. Não há nenhuma arte que não contenha em si, negado como momento, aquilo de que ela se desvia. Ao que é desprovido de interesse deve juntar-se a sombra do interesse mais feroz, se pretende ser mais do que simples indiferença; muitas coisas provam que a dignidade das obras de arte depende da grandeza do interesse a que são arrancadas. Kant nega isto por causa de um conceito de liberdade, que pune com a heteronomia o que nem sempre é próprio do sujeito. A sua teoria da arte é desfigurada pela insuficiência da doutrina da razão prática. A ideia de um Belo que, a respeito do Eu soberano, possuiria ou teria adquirido uma parcela de autonomia, surge, segundo o teor da sua filosofia, como dissipação nos mundos inteligíveis. Por conseguinte, em conjunto com aquilo de que ela brotou antiteticamente, a arte fica amputada de todo o conteúdo e supõe-se no seu lugar um elemento tão formal como a satisfação. Bastante paradoxalmente, a estética torna-se para Kant um hedonismo castrado, prazer sem prazer, com igual injustiça para com a experiência artística, na qual a satisfação atua casualmente e de nenhum modo é a totalidade, e para com o interesse sensual, as necessidades reprimidas e insatisfeitas, que vibram na sua negação estética e fazem que as obras sejam mais do que modelos vazios. O desinteresse estético ampliou o interesse para além da sua particularidade. O interesse pela totalidade estética queria objetivamente ser o interesse por uma organização adequada da totalidade. Não visava a realização particular, mas a possibilidade sem entraves, que não existiria sem esta realização particular. Correlativamente à fraqueza da teoria kantiana, a teoria freudiana da arte é muito 3 mais idealista do que parece. Ao transferir simplesmente as obras de arte para a imanência psíquica, despoja-as da antítese ao não-eu. Este permanece intacto às picadas das obras de arte, que se esgotam na realização psíquica do domínio da renúncia pulsional, e, no fim de contas, na adaptação. O psicologismo da interpretação estética não se dá mal com a concepção filistina da obra de arte enquanto pacifica harmoniosamente os contrários, enquanto visão de uma vida melhor, sem consideração pela mediocridade, da qual brota. A aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, levada a cabo pela psicanálise, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese, silenciando os resultados. Se da sublimação e da integração conseguidas se fizer o mais importante da obra de arte, esta perde a força pela qual ultrapassa o existente, do qual ela se dessolidariza pelo simples fato da sua existência. Mas, logo que o comportamento da obra de arte mantém a negatividade da realidade e toma a seu respeito posição, modifica-se também o conceito de desinteresse. As obras de arte implicam em si mesmas uma relação entre o interesse e a sua recusa, contrariamente à interpretação kantiana e freudiana. Mesmo o comportamento contemplativo perante as obras de arte, extirpado dos objetos da ação, se experimenta como denúncia de uma práxis imediata e, por conseguinte, como algo também prático, como resistência a envolver-se. Apenas as obras de arte, que é possível interpretar como modos de conduta, têm a sua raison d'être. A arte não é unicamente o substituto de uma práxis melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente e por amor dele. Censura as mentiras da produção por ela mesma, opta por um estado da práxis situado para além do anátema do trabalho. Premesse de bonheur significa mais do que o fato de que, até agora, a práxis dissimula a felicidade: a felicidade estaria acima da práxis. A força da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a práxis e a felicidade. Sem dúvida, Kafka não desperta a faculdade de desejar. Mas, a angústia do real, que responde aos escritos em prosa como a Metamorfose ou a Colônia penal, o choque da náusea, da aversão, que, sacudindo a physis, tem mais a ver, enquanto defesa, com o desejo do que com o antigo desinteresse que a ele e aos seus sucessores se atribuía. O desinteresse seria grosseiramente inadequado para os seus escritos. Reduziria a arte àquilo de que Hegel escarnecia, ao carrilhão agradável ou útil da Ars poética de Horácio. Dele se libertou a estética da época idealista, ao mesmo tempo que a própria arte. A experiência artística só é autônoma quando se desembaraça do gosto da fruição. A via que aí conduz passa pelo desinteresse; a emancipação da arte a respeito dos produtos da cozinha ou da pornografia é irrevogável. Mas não se fixa no desinteresse. O desinteresse reproduz de modo imanente, modificado, o interesse. No mundo falso, toda a hedoné é falsa. Por conseguinte, o desejo sobre vive na arte. (4) Cf. Kant, Sämtlicbe Werke, Bd. 6: Ästhetische und religionsphilosophische Schriften, hg. von F. Gioss, Leipzig, p. 54 (Kritik der Urteilskraft 2). (5) E. Kant, id., p. 54. (6) Cf. ibid., p. 55. (7) Cf. Ibid., p. 54- 4