UM HOMEM SUPERIOR Setembro de 1951. Emergência de férias de Verão. Ninguém se encontrava no Gabinete do Presidente. Lembraram ao Doutor Lumbrales, Ministro da Presidência, uma pessoa disponível. O meu nome foi indicado ao Doutor Salazar. Nesta emergência de férias de Verão fui para o Gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, Doutor António de Oliveira Salazar. Era uma emergência temporária. Tempo passou. E fiquei uma década certa. Década caracterizada pelo signo da NATO. Década caracterizada pelo início da apressada descolonização de todos os territórios ultramarinos de todos os países europeus. Os primeiros contactos com o Presidente do Conselho não foram difíceis. Simplicidade e à-vontade os tipificaram. Não houve qualquer surpresa. Sobre a personalidade de Salazar tudo vinha a coincidir. Logo saltaram os elementos psicológicos: o máximo realismo na apreciação dos homens e das coisas; máxima objectividade e argúcia; máxima noção das oportunidades. Oportunidade, argúcia, realidade perfeita, foco Salazar no seu complexo psicológico. A minha larga experiência deste fenómeno só veio a confirmá-lo. Esta foi a imagem que me ficou, desde logo, do retrato instantâneo de um pensador e homem de acção ímpar. Mas houve outros retratos. O da vida simples, o da convivência quotidiana, o do trato na vida social, o das reacções normais de um viver qualquer. E é deste viver que irei falar. Dentro do Gabinete da Residência Oficial, o ambiente que encontrei foi o de uma aparente preocupação de doenças quase originárias. Doenças do senhor Presidente do Conselho. Ou os receios sugeridos pela preocupação de quem o rodeava. «Doenças» imaginárias. Ou quase. Doenças de gabinete. «Males» causados por força das actividades próprias do trabalho. «Males» de gabinete. O que o senhor Presidente se queixava era da garganta. E eu começava quase a sentir o mesmo... Estranhei que uma pessoa que se apresentava forte, ágil, capaz de pegar em grandes pesos sem grandes esforços, se mostrasse tão abalado na sua preciosa saúde... O que seria então aquilo ? E comecei a ver como ele procedia e os que o rodeavam. As muitas cartas escritas, cartas particulares e até o envio de notas para os Ministros eram normalmente fechadas por ele, pelo antigo processo da utilização da saliva!... Claro que os Secretários não fugiam à regra... Não havia outro material para encerrar sobrescritos... Esta prática usada muitas vezes provocaria irritação das mucosas. O sistema de aquecimento central desidratava o meio ambiente... E disse-o a Salazar. Salazar contou o facto a uma visita habitual da Residência. O Doutor Ricardo Espírito Santo confirmou e disse que utilizassem toalhas ou outros panos ensopados em água e os colocassem sobre os irradiadores do aquecimento central. E assim se fez. Nunca mais o senhor Presidente do Conselho se queixou. Arranjaram-se recipientes próprios para conter água e pincel. E assim se humedeciam os sobrescritos da correspondência. As cartas cerradas ficariam durante o despacho debaixo de certos pesos que, para o caso, seriam um cão de mármore ou uma bela figura de hoplita em bronze e pedra que se encontravam em cima da grande secretária do Presidente. Secretária que nunca o vi utilizar na sua função própria. Trabalhava, sentado numa poltrona (maple), e escrevia sobre uma pasta adequada que tinha sobre os joelhos. Chegou a altura de fazer um parêntesis. Dizer do modo como Salazar escrevia as suas notas, a correspondência própria ou fazia a leitura dos diplomas que diariamente lhe eram submetidos. Ou a leitura atenta dos despachos e telegramas que recebia através do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O trabalho diário do despacho presidencial com os seus secretários particulares era, apenas, isto... Há que invocar as recordações que se verificavam na relação de Salazar com os seus secretários particulares logo a seguir ao Presidente se acomodar na sua poltrona, antes de iniciar o «despacho». O Presidente acomodava-se na poltrona. Punha a manta e, com todo o cuidado, enrolava-a às pernas tendo os pés sobre a escalfeta eléctrica que ele mesmo ligava na altura. Evidentemente, isto durante o Inverno. Depois, recostava-se e perguntava: «Que novidades há?». Nós, então, contávamos os fait-divers da véspera ou mesmo os ocorridos durante a manhã do próprio dia. Este «antes do despacho» tornou-se habitual e foi verdadeira «instituição». Começo do despacho presidencial. Iniciava-se, em regra, pela leitura sistemática dos telegramas vindos dos Serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da NATO. Seguia-se a leitura, análise e assinatura dos decretos-lei e outros diplomas emanados dos Ministérios e que tinham destinos vários conforme o Presidente entendia: se havia reparos a fazer eram devolvidos aos respectivos departamentos, não havendo, seriam assinados pelo Presidente e enviados ao Chefe de Estado para serem promulgados. No caso de haver reparos a fazer, o Presidente do Conselho elaborava as notas aos Ministros com as considerações necessárias. Escrevi-as directamente sempre num bloco de tamanho médio e mandava o manuscrito com um cartão seu, de cumprimentos respeitosos. Ao Chefe de Estado, o Presidente do Conselho dirigia-se por meio de carta autógrafa. O «Diário» do Presidente escrevia-o, este, numa espécie de agenda. Um livro de capa vermelha e letras douradas. Por via de regra, era antes de começar o «despacho», que Salazar escrevia o «Diário». Em certos casos, o registo no «Diário» poderia ser feito no fim do trabalho da manhã. Na elaboração das notas para o «Diário», normalmente os secretários é que indicavam a ordem por que o Presidente tinha recebido os Ministros e outras pessoas, quer no «despacho» da sua residência, quer fossem recebidas no Palácio da Assembleia Nacional. Na parte da tarde, os secretários trabalhavam no seu gabinete do Palácio da Assembleia Nacional, onde funcionava, então, a Presidência do Conselho. Despachavam os assuntos que estavam a seu cargo. Assuntos referentes ao Presidente do Conselho e ao seu gabinete. Os assuntos de menor importância. Em geral, os referentes a pedidos particulares. Estes eram enviados aos vários Departamentos de Estado ou a outras entidades. Havia «formulários» para tal efeito. Recebiam as pessoas que vinham à Presidência por qualquer motivo, fosse particular ou mesmo oficial. O «despacho» do dia, dado na Residência do Presidente, ia para a Presidência do Conselho, que o fazia seguir para os seus destinos. Duas vezes por mês, havia o Conselho de Ministros presidido por Salazar. Era à terçafeira. O Presidente do Conselho de Ministros deslocava-se de automóvel para o seu gabinete da Presidência do Conselho, no Palácio de São Bento, da parte da tarde e depois das 18 horas, onde, por via de regra, também costumava receber os Ministros, outras entidades oficiais, os embaixadores e o diplomatas, quer portugueses quer estrangeiros. Estas reuniões duravam, aproximadamente, até às 21 horas. Às vezes prolongavam-se, conforme a extensão dos trabalhos do Conselho de Ministros. Na altura da ida de Salazar ao Palácio da Assembleia Nacional e Presidência do Conselho, é que nós tínhamos a ocasião de ver e até de falar não só aos políticos nacionais como aos das outra nações. As visitas eram recebidas pelo Presidente no seu gabinete da Presidência do Conselho que, como se sabe, funcionava também no Palácio da Assembleia Nacional. Além do seu Gabinete, estavam instalados aí o gabinete e dependências do Ministro da Presidência e seus Serviços e a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho. Era esta que trabalhava para o Presidente ou para o Ministro e Subsecretário de Estado afecto à Presidência. Havia, na Presidência do Conselho, uma espécie de Chefe de Protocolo, cargo que era desempenhado pelo então solícito Coronel Esmeraldo de Carvalhais. O Coronel Esmeraldo Carvalhais estava sempre presente nestas deslocações habituais de Salazar ao Palácio de São Bento. Voltemos à Residência oficial anexa ao Palácio de São Bento. E continuemos a descrever o meio que rodeava o Doutor Oliveira Salazar. No habitual gabinete de trabalho, Salazar tinha vários retratos de Chefes de Estado. E daqueles que mais apreciava por diversas razões. Um retrato grande em moldura de prata, que lhe foi oferecido por sua Santidade o Papa Pio XII. E com expressiva dedicatória. Os retratos do rei Jorge VI e da Rainha-Mãe, também com as respectivas e expressivas dedicatórias. Um retrato do Generalíssimo Franco, Chefe do Estado Espanhol, igualmente com a dedicatória adequada. Um retrato da actual rainha Isabel II da Grã -Bretanha e Irlanda do Norte. Um retrato do príncipe Filipe Mountbatten. Estes devidamente assinados. Um retrato do Marechal Óscar Fragoso Carmona, com dedicatória. Devo dizer que todos estes retratos estavam contidos em molduras de prata armoriadas. O do Papa Pio XII estava sobre uma mesa grande à parte. O dos reis de Inglaterra estava no armarinho de um dos cantos da sala, bem iluminados por duas janelas, armário onde se guardavam os «Diários» da capa vermelha. Marechal Carmona e o Chefe do Estado Espanhol, Generalíssimo Franco, estavam sobre a secretária. Na mesa do Papa, no armarinho dos reis de Inglaterra e sobre a secretária, encontravam-se sempre jarras grandes com flores exóticas que lhe eram enviadas da Ilha da Madeira. Na antecâmara, gabinete dos secretários, havia também flores. Sobre a pequena secretária destes viam-se três «macacos». O «macaco» que não via, o «macaco» que não ouvia e o «macaco» que não falava. Era sobre a secretária com os «macacos» que se colocava a pasta-saco de fecho de correr, pasta que trazia o «despacho» diário da governação e os telegramas e outros «despachos» que vinham do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos Serviços da NATO. Uma estante-cantoneira estava no canto da mesa dos secretários. Nela, encontravam-se os telefones. Mas também se viam, perfilados, livros. Era a colecção dos Clássicos Sá da Costa em edição especial. Havia outros, como por exemplo o que eu muito cobiçava - o magnífico exemplar facsimilado do Codex Manesse - como se sabe, o mais famoso Cancioneiro dos Trovadores do Santo Império. Códice iluminado que foi oferta do Governo Alemão. Sobre o sofá onde nos costumávamos sentar e que estava entre as duas portas que davam para o Gabinete do Presidente do Conselho, haviam mais livros. Os Sermões do Padre António Vieira e a Obra de Manuel Bernardes... Salazar tomava o pequeno-almoço no largo vão da escada que dava para o corredor, onde costumava fazer a leitura atenta dos jornais da manhã, e lia algumas cartas particulares... Subindo a escada estávamos junto aos aposentos privados. O quarto de Salazar com mobília que era própria dele. Um «D. João V» autêntico. E, dentro da mesinha de cabeceira, estavam os telefones. Na sala de lado, a Capela. Aos domingos e dias de Preceito, o Presidente assistia à Missa celebrada por Monsenhor Carneiro de Mesquita, o então Vigário-geral do Patriarcado. Mais adiante, em direcção ao lado da Calçada da Estrela encontrava-se a ampla sala privada do Conselho de Ministros - o mundo oficial que penetrava no ambiente mais íntimo da casa onde dominava e era a esfera de acção da Maria. A governanta que Salazar «herdou» do seu grande amigo, Cardeal Cerejeira. Uma antiga «tricana»... Aquele mundo tinha o seu quê de muito especial. O mundo da Maria de Jesus e das criaditas de serviço... Um mundo que estava sempre na benevolência de Salazar contra as investidas exageradas de uma governanta zelosa... Um outro aspecto do temperamento de Salazar... Desça-se a escada principal. Rés-do-chão. Exactamente no extremo oposto à Sala do Conselho de Ministros do primeiro andar, está a Sala de Jantar, nobre. Abre duas portas para o terraço que dá para o jardim. Entre as duas portas, um aparatoso fogão de mármore. Era aí que Salazar dava certos almoços aos seus antigos Ministros, acompanhado pelo Governo. Mesa abundante e requintada. Abundância que nós, os secretários, também participávamos, não ao almoço, e não nos restos, mas na própria vitualha, nos doces e nos vinhos. Já se sabia que a carrinha de serviço ia a nossas casas levar a parte comparticipada, parte de um grande salmão, espécies de caça das mais apetitosas, doces... Havia nestes almoços aos antigos Ministros e ao Governo, um momento: a fotografia nas escadas do terraço. Um grupo de senhoras, muito reduzido, arranjava e ornamentava a mesa. No fim, Salazar inspeccionava e via se estava tudo nas condições exigidas pelo seu espírito... E, às vezes, não estava... As «galas» do Presidente do Conselho, em refeições de Estado, eram geralmente realizadas no Palácio Real da Vila de Sintra. Em frente do terraço da Sala de Jantar, o jardim mostrava um grande e belo espelho de água, com plantas aquáticas. Árvores frondosas e de espécies bem definidas emolduravam o quadro exuberante da vegetação do parque... Uma tradição que ficou. Nas mesmas bandas do espaço ajardinado daquele parque, encontravam-se, muito discretas e dissimuladas, as capoeiras da casa onde a Maria cuidava de populosa criação doméstica que fornecia os ovos diariamente servidos às refeições do Presidente do Conselho... e o Doutor Oliveira Salazar também as visitava, na sua volta diária, nos paulitanos e meditativos passeios pelas alas do parque, ao terminar as principais refeições. Do lado da Calçada da Estrela e em simetria com o Gabinete do Presidente do Conselho, separada pelo largo corredor, vamos encontrar a então chamada «Sala das Pretas», nome familiar dado ao salão nobre e rico da Residência. Salazar recebia na «Sala das Pretas» as pessoas de grande qualidade, como os diplomatas estrangeiros ou algum português da mais elevada categoria que ele queria, de qualquer forma, distinguir. O nome doméstico de «Sala das Pretas» veio-lhe do facto de nela existirem duas figuras de pau-santo, em tamanho razoável de que serviam de enquadramento estético. Tapeçarias historiadas e mitológicas pendiam das paredes. Vasos grandes de cerâmica oriental e de porcelana ocupavam cantos. Cómodas, canapés, cadeiras de braços em estilo Luís XV e outros estilos próximos completavam o ambiente, não esquecendo um rico tapete que ocupava quase todo o chão. Pouco servia esta sala. Mas serviu algumas vezes. Uma delas ficou gravada em nossa memória. Foi em um momento histórico. Certa manhã, o Presidente, antes do «despacho», anunciou que iria receber o Embaixador dos Estados Unidos da América do Norte. Este trazia uma carta-mensagem do Presidente John Kennedy. O Embaixador chegou. Vinha acompanhado do Ministro, da Embaixada, em Portugal. Era, nem mais nem menos, que o nosso amigo Xantaky. Um helénico americano. Vinham, tanto o Embaixador como o seu Ministro, com semblante de muita circunstância e, até, de tristeza. Esta mais se evidenciava na expressão, não contida, de Teodoro Xantaky. Deu-se a entrevista que correu fora da nossa audição, como era natural. Nós estávamos «em pulgas» e, quando digo «nós», refiro-me ao meu colega José Luciano Sollari Allegro. Finda a entrevista, os diplomatas retiraram-se e notámos lágrimas nos olhos de Teodoro Xantaky... Salazar voltou ao seu gabinete de trabalho, à cadeira habitual e instalou-se. Vinha com um ar de profunda meditação... Nós calculávamos do que se tratava. Perguntámos o que queria o Presidente Kennedy. Salazar respondeu logo: que entregássemos imediatamente as nossas Províncias Ultramarinas a troco da amizade e todo o auxílio dos Estados Unidos da América do Norte. E o Presidente do Conselho entrou, novamente, em profunda meditação, meditação que não conseguia encobrir o «ar» preocupado... Não sei se a recepção dos Diplomatas Americanos em casa de Salazar, para entregar a mensagem do Presidente Kennedy, foi na véspera do dia ou depois daqueles terem sido recebidos pelo Presidente do Conselho na altura do Conselho de Ministros no Palácio de São Bento. Em certos casos, o Conselho de Ministros poderia celebrar-se na própria Residência oficial do Presidente do Conselho. Havia, para isso, uma Sala especial no primeiro andar localizada por cima do gabinete de trabalho de Salazar e dentro das mesmas dimensões. Voltada, portanto, para o parque entre a Assembleia Nacional e a Residência e fazendo esquina para o lado da Calçada da Estrela. Esta sala era incaracterística quanto ao mobiliário, sem qualquer estilo definido. Os móveis mostravam-se dentro do esquema do mobiliário oficial da Residência. O Conselho de Ministros funcionava aqui excepcionalmente. Ou quando era convocado de urgência, e fazia-se a qualquer hora, ou quando Salazar e os seus Ministros precisavam de consultar grandes mapas e esquemas. Ou quando se tratava de assuntos da NATO e seus acessórios. Era raro isso acontecer. Regressemos à nossa rotineira sala e ao gabinete de trabalho do presidente Salazar. Vejamos um elo de ligação que havia com o Arquivo particular. Esse elo de ligação do Gabinete ao Arquivo fazia-se com o conteúdo da segunda gaveta do lado direito da secretária do Presidente do Conselho. Quando a gaveta estava cheia procedia-se ao seu cronológico esvaziamento, levando o que aí se guardava, para arquivar. O que é que se guardava nessa gaveta? As cartas particulares de ministros e outras pessoas e as notas de Salazar estranhas aos processos em curso. Também se colocava o ordenado do Presidente que todos os meses recebia, e era a «importante» quantia de 25 contos mensais. Dinheiro utilizado nas despesas da casa e conforme fosse necessário fazer qualquer despesa particular no decurso do mês. O parque automóvel do Presidente do Conselho consistia no carro do Presidente, no carro dos secretários e na carrinha da Residência. Além do carro habitual do Presidente, um Cadillac, havia um carro extraordinário a que chamávamos o «Trono» ou «Andor», por ser um grande Mercedes à prova de bala. Este Mercedes raramente se utilizava e no uso raríssimo dos secretários. Nunca tive a oportunidade de ver Salazar ser transportado nesse Mercedes. Mas, no Cadillac, tive a alegria de ser o primeiro que telefonou para casa do próprio carro, a pedir que pusessem o almoço na mesa. Transportando os carros, Salazar com ou sem secretários, para qualquer cerimónia ou qualquer fim, nunca o Presidente do Conselho levava aparatosa sinalização sonora. Tudo deslizava sempre deliciosamente. Um ou dois carros da Segurança acompanhavam o Cadillac que transportava o Doutor Salazar, quer fosse na curtíssima viagem da Residência oficial para o Palácio de São Bento na altura dos Conselhos de Ministros, ou noutra ocasião e fosse para que distancia fosse. Para nós, secretários, o momento mais solene seria, certamente, o de serem autotransportados no «Trono» ou «Andor», transportados no Mercedes blindado. Sentíamo-nos como «santos patronos», para que todos vissem, no seu alto andor. Dávamos nas vistas e não gostávamos nada disso. Isto acontecia quando o nosso carrinho se avariava. Bem sei que havia a carrinha de serviço da Residência. Essa, porém, estava sempre mobilizada. Esta carrinha era conduzida por um sempre bem-disposto senhor Furtado. Personagem que mais conhecia todas as «historietas» que circulavam em torno da Residência. Um dia, fora da hora de serviço, Salazar à noitinha e depois do jantar, saiu, sem dar cavaco a ninguém. Foi um alarme geral nas hostes dos Serviços de Segurança... Nunca nós soubemos onde ele tinha ido... Quando o Presidente do Conselho, no Verão, estava a residir no Forte de Santo António da Barra e havia Conselho de Ministros em Lisboa, eu, que me encontrava a passar o Verão em Cascais, acompanhava-o depois na sua viagem de regresso. E então é que eram elas!... Sem darmos por isso, o Garcia, motorista do Presidente, dava velocidade ao carro, por causa da sua hora de jantar, velocidade que com o Presidente ou sem Presidente, chegava aos 130 km à hora ou mais... Mas também havia a oportunidade de longas conversas sobre os casos mais vulgares da vida de cada um, quer do Presidente quer do secretário... e eu aproveitava, no bom sentido anedótico do termo. Por exemplo: uma noite contei-lhe o que se passara com o meu avô Simões de Almeida, quando ele logo nos começos da gerência do Ministério das Finanças pelo Professor de Coimbra, foi recebido pelo então ainda jovem Ministro das Finanças. Nós, em casa, ao jantar, estávamos cheios de curiosidade e bisbilhotice. Perguntámos ao avô como é que ele achara Salazar. Ele disse: «É uma pessoa muito sabedora, que conhece de finanças e seria capaz de resolver todos os problemas... se o deixassem, o que eu não acredito»... Salazar respondeu-me: «É verdade! Seu avô é que tinha razão... Este país era considerado ingovernável...». Durante o tempo estival o despacho da manhã corria sempre no Forte de Santo António da Barra... ali perto de São João do Estoril... Ora, era exactamente em São João do Estoril e logo à beirinha da Estação do Caminho de Ferro, que tinha o seu chalet o antigo político e ministro, Dr. Cunha Leal. Adversário de Salazar, admirava-o, no entanto. E várias vezes se correspondiam. E isso, em geral, acontecia quando estava para sair alguma publicação ou livro de maior tomo que Salazar acabasse de publicar. Foi o que aconteceu neste tempo de verão em pleno Santo António da Barra. Feita a devida dedicatória no livro, este foi enviado ao seu destino com uma carta autógrafa. E eu fui o portador da carta e do livro... Cunha Leal veio abrir a porta do seu chalezinho, e, ansiosamente, tomou conta do que lhe era dirigido. Outra vez aconteceu levar uma outra encomenda de Salazar, mas esta oferecida a um hóspede ilustre que se encontrava em São Julião da Barra - o Marechal Montgomery. Sempre que este vinha a Portugal nas suas funções de Comando da NATO, sabido era que Salazar lhe oferecia um presente de belas e frescas Portuguese sardines... Aproveitando os dias mais longos de Verão e, portanto, um anoitecer tardio, muitas vezes regressava-se do Conselho de Ministros com claridade suficiente para se poder avaliar perspectivas daquilo que víamos. Em uma tarde dessas, de volta a Santo António da Barra passámos, como era inevitável, pelo já abandonado gasómetro que durante dezenas de anos perturbou a visão da Torre de Belém. E atrevi-me a dizer: «Senhor Presidente, já que o gasómetro é hoje uma inutilidade, porque é que não o manda tirar dali?». Em outra altura e passando pelo mesmo local, ou antes, mais em frente do Palácio de Belém e tendo à vista a silhueta, iluminada pelo poente, do Palácio Real da Ajuda verificando que este estava por acabar, comentei: «Senhor Presidente, o Palácio da Ajuda, completa a paisagem monumental que nós, sob tantos ângulos, albergamos daqui. Porque é que não o manda concluir?». E a resposta foi esta: «Assunto estudado. Não podendo já agora fazer o que falta ao Palácio, que é metade, vai rematar-se, ao menos, a obra, construindo os torreões correspondentes, que estão projectados». Sempre com boas palavras de explicação e de justiça, Salazar paciente e apto, respondia... E eu ficava na dúvida se as perguntas feitas não estariam já na mente do Presidente do Conselho... A histórica e antiga Casa dos Césares, de Santo Amaro, e a construção da Ponte sobre o Tejo, deram motivo a novas perspectivas da visão de Salazar. Fui procurado, no Palácio de São Bento, pelo Marquês de Sabugosa, a solicitar os bons ofícios do senhor Presidente sobre a velha Casa dos Césares de Santo Amaro, em frente da Estação dos Carros Eléctricos. Casa a muitos títulos, tanto históricos como literários, digna de ser preservada. Esteve sempre na posse da mesma família desde o século XV. Salazar ponderou. E comentou: «É bom que estas velhas casas se conservem tanto quanto possível. Mas qual a pretensão?» Os possuidores da Casa dos Césares de Santo Amaro pediam, apenas, fosse desviada, um pouco, a implantação de um dos pilares da Ponte que estava a ser construída em Alcântara: o pilar, segundo planta original, coincidia com a referida Casa. E, na verdade, assim foi feito e tudo acabou bem. Quem nos havia de dizer que ao passarmos tantas vezes por aquela casa de Santo Amaro, Os Maias, de Eça de Queiroz... Um modelo de ficção baseado na realidade... A inauguração da Ponte sobre o Rio Tejo de Vila Franca de Xira foi o primeiro acto oficial a que assisti como secretário do Presidente do Conselho. Lembro-me como se fosse hoje. Estava uma linda manhã soalhenta de 21 de Dezembro de 1951. E a ponte ia ser, oficialmente, aberta ao público. Enquanto se esperava por este acto inaugural, fiz o percurso sobre o tabuleiro da ponte, a pé, tanto para lá como para cá. Estava presente, entre outras pessoas, o Governador Civil de Santarém, Doutor Abílio Tavares. Disse várias frases de circunstancia e, dirigindo-se à minha pessoa: «Afinal ainda somos primos por afinidade porque primos dos nossos primos, nossos primos são...». Perante trocas de palavras mais ou menos amáveis, fizemos a inauguração peripatética e particular do tabuleiro da Ponte de Vila Franca, antes de os Estados-Maiores procederem com as solenidades devidas. Seguiu-se o estritamente oficial. Salazar, acompanhado pelos técnicos das Obras Públicas e das Pontes e pelo séquito dos Protocolos que então tiveram de actuar, inaugurou, solenemente, a Ponte denominada então Marechal Carmona. Surgem as figuras típicas que rodeavam Salazar nestas circunstancias: o sempre diligente Coronel Esmeraldo de Carvalhais, os secretários do Presidente, que eram dois - um deles o meu querido amigo Doutor José Luciano Camões Sollari Allegro e o outro, o autor destas linhas - , e um ou dois inspectores dos Serviços de Segurança. Haviam mais e de outros serviços. Mas o que me ficou na lembrança foi o sol daquela manhã... e o eco das palavras não oficiais dirigidas pelo Doutor Abílio Tavares na nossa primeira travessia do Tejo, em frente da famosa Recta do Cabo... Travessia que me fez lembrar outras travessias, então sem a ponte, em que os carros eram transportados de uma margem para a outra por meio de batelões, ou então, como aconteceu alguns anos antes, quando fiz a travessia a bordo de uma fragata típica daqueles tempos que penosamente bolinava e punha em risco de transbordar o carro que ia atravessado de borda a borda. Travessia realizada no Verão, por volta do longínquo ano de 1922... Estávamos em pleno Inverno, e Salazar de volta à Residência de São Bento. O «despacho» processava-se na sua forma mais habitual e clássica. Pequena troca de impressões entre o Presidente do Conselho e os seus secretários, o que se tornara um hábito... Não sei a que propósito surgiu uma oportunidade única para se falar na Bandeira Nacional e em suas cores e arranjos heráldicos. Diz-se que Salazar, no seu tempo de Perfeito do Colégio de Viseu, fez uma poesia descrevendo o simbolismo e significado da velha e liberal bandeira azul e branca. Lembrarei de ter tomado conhecimento de um estudo feito pelo então operoso heraldista Afonso de Dornelas. Pareceu-me que esse estudo, demasiado prolixo, contrastava com o esforço e habilidade do grande artista Columbano quando foi encarregado de elaborar um projecto de Bandeira, dentro dos termos propostos pelos revolucionários do 5 de Outubro de 1910, pondo ao serviço da heráldica nacional os dados da sua regra que conciliasse o escudo das Armas Nacionais com as cores propostas. «O que pretende Afonso de Dornelas?», perguntou Salazar. «É modificar a Bandeira? É um assunto algo transcendente e traz muitos casos complicados... E dúvidas... E, em um ponto de vista político, tem também os seus quês». Salazar fez uma pausa como quem estava em meditação mais profunda e, depois, atirou-nos com esta: «Mudar a Bandeira?... Nem pensar nisso... Era oferecer um símbolo à Oposição...». Em dada altura, Salazar, disposto a lançar o novo Presidente, deliberou deslocar-se a Coimbra. E levando os secretários... Craveiro Lopes, General e Chefe de Estado eleito, devia anunciar, com um discurso, a sua carreira. Falaria à União Nacional... E daria o toque caracterizador de uma nova política. E assim se fez. Mas também houve a oportunidade para os secretários do senhor Presidente do Conselho saírem da sua habitual ronda entre São Bento e Santo António da Barra... Foram com Salazar para dentro do burgo onde aquele mestre de Finanças se formou e vingou. Vimos Salazar em Coimbra e o encontro do Presidente do Conselho com o seu grande amigo Doutor Bissaria Barreto. O encontro, onde? Na casa que este tinha em Coimbra e que estava desabitada. E como havia frio na casa do Doutor Bissaria Barreto, este, na falta da boa lenha de azinho, não teve outro remédio senão conseguir algumas achas tiradas de caixotes apanhados aqui e ali. Foi o cabo dos trabalhos para atiçar o lume, mas, por fim, lá se conseguiu alguma chama de calor, quanto baste. Depois, ante a nossa curiosidade, percorreram-se algumas salas e o quarto... E deu-se a grande revelação: várias pinturas a fresco, a fresco não sei se eram... Figuras de Bom Mestre e na fase mais realista de uma Arte que tendia para um impressionismo dominante de «fim de século». Contorcidas figuras femininas povoavam várias cartelas dos aposentos... Figuras galantes... e, algum tanto, provocadoras. Ficámos estarrecidos com o ambiente pictórico daquela garçonnerie do famoso Mestre de Coimbra... O pincel que tais temas tratara seria o de um grande Pintor... Possivelmente, Mestre José Malhoa. Recordo-me do casal Vieira da Fonseca. O Coronel José Vieira da Fonseca era o encarregado do Arquivo Top-Secret da NATO. Ele e a sua mulher eram umas belas figuras. Eram simpatiquíssimos. Deles me recordo com imensa saudade. E as nossas relações extravasavam a Presidência do Conselho e a Residência do Presidente. Outro casal também recordo. Casal amigo e conhecido de longa data. Tinha sido colega de Colégio e de Faculdade do Doutor António José Brandão. Este fora, igualmente como nós, em tempos remotos, secretário do Doutor Salazar. Voltemos ao Coronel Vieira da Fonseca e ao seu arquivo. O Arquivo da NATO estava instalado no Palácio de São Bento e dependia directamente da Presidência do Conselho. E a propósito deste arquivo ultra-secreto há coisas pitorescas a contar. O Top-secret era tudo quanto havia de mais relativo. Um dia demos uma espreitadela para dentro dele. E o que fomos encontrar? Despachos e telegramas «secretíssimos» e que nós, na véspera, tínhamos ouvido urbi et orbi pelos serviços da BBC, e no outro dia publicados até, na imprensa portuguesa. Tais factos insólitos mais uma vez provocaram o sempre aguçado «humor negro» do nosso Coronel Carvalhais... O «segredo» tão ciosamente guardado no arquivo do Coronel Vieira da Fonseca era, afinal, pensava com os seus botões o Coronel Carvalhais, «uma boutade que nos fez perder qualquer esperança de qualquer tentação para "vender" o Top-seçret a uma Potência Estrangeira»... «É o que se poderá chamar não termos sorte nenhuma», repetia, com graça, o Coronel Carvalhais. «Era já muito azar», repetia o protocolar Coronel. Claro está que se tratava de simples coincidências, pois o Top-secret existia na realidade dos factos. Inviolável... Nos serviços da Presidência do Conselho atendia-se às particulares aptidões de cada um para o desempenho dos objectivos a atingir. O que de resto seria natural para a eficácia dos trabalhos a realizar. O Coronel Vieira da Fonseca foi escolhido por ser uma pessoa de especial preparação pelo conhecimento que tinha da língua alemã. Durante a Segunda Guerra Mundial foi várias vezes encarregado como observador e visitou a frente Leste. Dando cumprimento ao tratado do Atlântico Norte e organizadas as forças militares da República Federal da Alemanha, a aptidão do Coronel Vieira da Fonseca voltou a ser necessária. Este um dos motivos por se encontrar no Arquivo especial da NATO da Presidência do Conselho. Um belo dia pregou-me uma surpresa. E foi surpreendente, na verdade... Aparece no gabinete dos secretários com duas «bisarmas» imberbes, com mais de dois metros de altura, que me fizeram lembrar logo querubins do mais afamado barroco germânico - os tetranetos do príncipe Otto von Bismarck. Salazar, quando veio do Ministério das Finanças, trouxe a sua dactilógrafa de serviço para a Presidência do Conselho. E trouxe-a para fazer certos trabalhos que ela estava particularmente habituada. Esta senhora tirou um curso superior e fez-se licenciada em Ciências Económicas e Financeiras. Ainda a conheci na Presidência do Conselho encarregada do arquivo dos documentos do Conselho de Ministros que costumava efectuar-se na própria residência oficial do Presidente do Conselho. Não vinha sempre. Aparecia quando havia documentos para arquivar ou fazer qualquer trabalho dactilografado que exigisse maior sigilo e cuidados de elaboração. Esta senhora era a Doutora Adelaide Ferreira. Peres Rodrigues, depois de eu estar na Presidência do Conselho, pouco tempo lá se manteve. Transitou para o Secretariado Nacional de Informação, pois, segundo julgo, estaria muito ligado ao então secretário nacional, o Doutor José Manuel da Costa, que foi Chefe de Gabinete da Presidência do Conselho. O Doutor Peres Rodrigues, dactilógrafo e encarregado do Arquivo Geral da Residência, tinha, como imediato, o dactilógrafo profissional, senhor Pacheco. Este sempre prestável funcionário manteve-se no exercício das suas particulares funções até mesmo depois da morte do Doutor Oliveira Salazar e durante o consulado do Doutor Marcello Caetano. Foi o senhor Pacheco quem dactilografou o original do livro, editado pelo SNI, As Mais Belas Páginas de Salazar, livro que foi largamente ilustrado por esse belíssimo artista e desenhador Júlio Gil. A casa da residência oficial estava bem provida de flores provenientes de várias origens e quase sempre ofertas de agradecidos admiradores e, em especial, de admiradoras do senhor Presidente. Mas havia, entre estas, uma que merece especial referência. A inglesa Mrs Garden, que vivia na Ilha da Madeira. Era de lá que costumava enviar, por avião, as belas e exóticas Orquideas catelyas, antúrios e estrelícias muito do agrado de Salazar e outros frequentadores da casa. A Aquila Airways era uma empresa que fazia carreiras de hidroaviões entre a Inglaterra e a Ilha da Madeira. O empresário era um filho de Mrs Garden. Mrs Garden interessavase pelo empreendimento do filho, que procurava, quanto possível, aguentar e manter. Enquanto a Ilha da Madeira não teve aeroporto privativo, mantiveram-se as ligações aeronavais para o turismo anglo-saxónico. A empresa do filho de Mrs Garden teve fases altas e baixas conforme a afluência e ânsia dos Ingleses pelo calor e sol daquela ilha do Atlântico. E Salazar teve de intervir algumas vezes para resolver certos problemas da Aquila Airways... Uma justificação mais do que suficiente para as flores oferecidas por Mrs Garden. Se não estou enganado, ou me falha a memória, Mrs Garden costumava escrever cartas ao Doutor Salazar usando uma tinta arroxeada. Outros enviavam também as suas missivas para o Presidente do Conselho, escritas em tintas de intensidade maior ou menor de um colorido fora do habitual. Escreviam a roxo mais carregado que o de Mrs Garden, e o curioso é que um dos que escrevia assim era o então Major Humberto Delgado. Essa correspondência intensificou-se sobretudo a partir do último período da estadia deste oficial como Adido Aeronáutico junto da nossa Embaixada dos Estados Unidos da América do Norte. Um outro epistológrafo correspondente de Salazar usava tinta verde. O Coronel Santos Costa como Subsecretário de Estado, Ministro do Exército, e depois Ministro da Defesa Nacional, usava a escrita verde nas suas abundantes e sensatas, ainda que, por vezes, divertidas mensagens, dirigidas ao Presidente do Conselho de Ministros. Escrevia muitas vezes enquanto esteve no Governo e depois como Conselheiro de Estado ou simples amigo pessoal de Salazar. Nestas extravagantes cartas escritas com tinta pouco usual havia outros correspondentes. Por exemplo, o Eng. Henrique Chaves, que foi autarca na vestuta e afamada câmara eborense. Pertencia ao grupo que escrevia as suas missivas, de queixume e reclamação, em tinta de tom bem arroxeado. E havia mais. Aqueles que o faziam caligrafando a tinta castanha, a imitar tinta descolorida pela acção do tempo. Fazendo autógrafos de traço algo envelhecido.. Pura poesia caligráfica... 12 de Maio de 1961. Da parte da tarde e no gabinete dos secretários do Presidente do Conselho. Telefonou-me o General Pina (Luís da Câmara Pina meu velho amigo, que conheci estudante de Matemática na Universidade de Coimbra, onde se doutorou). Voz angustiada, anuncia-me que oficiais-generais preparam um golpe para o dia seguinte. Estão implicados dois Ministros Militares. Pede para prevenir Salazar. Sosseguei Luís Pina dizendo-lhe que o Presidente do Conselho seria prevenido. Estava o Presidente em situação de pode: aparar o «golpe»... Claro será dizer que, de imediato, Salazar foi prevenido 13 de Maio de 1961. Quando, na manhã desse dia, cheguei à casa do Presidente do Conselho, Salazar já estava de pé no nosso gabinete-antecâmara com várias cartas na mão. Despreocupado e satisfeito. Disse-nos para estarmos prevenidos, pois íamos efectuar várias diligências que metiam um horário rigoroso. Primeiro: «Os secretários devem ligar para todos os meios de comunicação, incluindo jornais, televisão e rádio, a anunciar a demissão dos Ministros da Defesa e do Exército». Segundo: «Escreverei a esses Ministros e a outras pessoas». Terceiro: «Devem ir à Cova da Moura entregar a carta dirigida ao General Botelho Moniz, carta que deverá estar no seu destino, rigorosamente, até às 13 h 30. A outra será entregue, também à mesma hora, no Ministério do Exército, ao Ministro demissionário, Almeida Fernandes». Quarto: «Outra carta vou dirigi-la ao General José Beleza Ferraz», que devia chegar, nessa tarde, ao Aeroporto da Portela, e estaria também implicado no movimento... Julgo que, na altura, este era o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas. Quinto: «Escreverei ao Major Botelho Moniz [o do Rádio Clube Português] a solicitar a sua benéfica influência junto do irmão e ao General Spínola, a agradecer as suas intenções. Recebi uma carta, sobre o mesmo assunto, do General Santos Costa, com os habituais e sensatos conselhos». Tudo se cumpriu conforme o plano elaborado por Salazar. Nós, os secretários, entregámos, pontualmente, as cartas. Em que iria consistir a tentativa de golpe dos oficiais-generais? Reuniam-se na Cova da Moura, onde se situava o Departamento da Defesa Nacional. Seguiriam, depois, para Belém onde iriam anunciar ao Chefe de Estado, Almirante Américo Thomaz, o seu intento: demitir o Governo de Salazar. Por volta das 14h, os oficiais-generais, acompanhados pelo Marechal Craveiro Lopes, chegavam à Cova da Moura. Vinham à paisana e traziam malas, que se presume, com os respectivos uniformes. A partir desse momento começaram a receber-se, na Presidência do Conselho, «notícias» vindas da Cova da Moura, dizendo o que se passava. E o movimento dos oficiais-generais estava frustrado. Um exemplo da boa informação de Salazar e do seu método minucioso - para ele, os minutos contavam... Não houve qualquer processo disciplinar. Tudo se limitou a um acto político: demissão dos Ministros Militares. Salazar, antes do começo do «despacho» da manhã, fez-me uma pergunta. Ou quase uma pergunta. Era mais tom de monólogo do que uma interrogação. «Estou preocupado por causa dos Tribunais. Julgo haver mais prejuízo do que vantagem, para nós, em manter na prisão a que foram condenados por sentença passada em Julgado, os membros do Comité Central do Partido Comunista Português. Se os libertarmos corremos o risco de infringir uma das regras do nosso sistema, a plenitude do Poder Judicial» Fiquei logo com a impressão de que Salazar tinha, em mente, a resposta. Fezme a pergunta para ver a minha reacção. E tive de pensar rapidissimamente na resposta que lhe daria. E dei-lha: «Senhor Presidente, deixei-os fugir...» Uma dúvida manteve-se: o porquê daquela pergunta baseada sobre o prejuízo, para nós, em manter o Comité Central a cumprir a pena. E, natural mente, nunca obterei resposta. Pareceu-me busca em procura da opinião de uma pessoa vulgar a um enigma que se queria esclarecer... Havia certo tempo, em alturas festivas, como por exemplo a Quadra Natalícia, sabíamos de «mimos» e outras atenções trocadas entre o KGB e a nossa Polícia Internacional. Caviar e vodka para cá... caixas de vinho do Porto, Portuguese sardines e ameixas de Elvas, para lá... E outras amabilidades à sombra da Interpol. Tornaram-se mais frequentes, a partir dessa altura, as idas da nossa Polícia à Rússia... Um caso de puro interesse pessoal. Julgava eu que o meu antigo companheiro de faculdade, o Dr. Álvaro Cunhal, estava na Checoslováquia ou em qualquer local do vasto território da União Soviética: em Moscovo ou na Crimeia... Só então vim a saber que ele também se encontrava, fechado a sete chaves, na Fortaleza de Peniche, com outros membros do Comité Central do Par tido Comunista Português. Este facto deu-me a conhecer o paradeiro do me condiscípulo da Faculdade de Direito de Lisboa.... E a romanesca fuga do Comité Central foi discretamente presenciada. O Doutor Azeredo Perdigão foi recebido por Salazar, em casa, e à hora do «despacho» da manhã. Tratava-se de uma visita de trabalho. Tratava-se de apresentar uma espécie de anteprojecto de fundação para dar cumprimento a um legado de rico arménio Calouste Sarkis Gulbenkian. Tratava-se, nem mais nem menos, de como constituir a base de apoio a uma parte da sua imensa fortuna deixada, em testamento, a Portugal. Azeredo Perdigão expôs o seu plano. Salazar ouvi-o atentamente. Meditou um pouco e deu o seu parecer nestes termos: «O senhor Doutor, se não quiser fazer uma singela "fundaçãozinha", terá de poupar. Terá de se limitar a viver apenas com parte do rendimento dos rendimentos legados pelo falecido senhor Gulbenkian». E depois, Oliveira Salazar acrescentou: «Deverá diversificar as fontes de todos os rendimentos de forma a não ficarem limitados na área da sua origem. Deverá investir em áreas petrolíferas pertencentes ao Ocidente, como por exemplo, na Venezuela, no México, nos Estados Unidos da América do Norte, nas plataformas marítimas do Mar do Norte e em outras partes, para que os 5 por cento do rendimento petrolífero não se limitem ao eventual e sempre precário Médio Oriente». Ouvido o programa de Perdigão e os conselhos de Salazar, mandou organizar um «processo». Arranjei a pasta respectiva e nela meti o plano do anteprojecto da Fundação Calouste Gulbenkian. Guardei-o no armário grande do gabinete de trabalho do Presidente do Conselho. A primeira «peça» de um grande e generoso empreendimento... Decorreram anos. Se não me engano, quatro anos depois daquele de 1955. Ano do falecimento do senhor Gulbenkian e abertura do seu testamento. Entretanto, circunstâncias favoráveis vieram ao encontro do meu interesse em entrar para a Fundação Gulbenkian, já constituída e em pleno funcionamento. Falei a Azeredo Perdigão. Este disse-me: «Atenderei o seu pedido mas tenho que o transmitir ao Presidente do Conselho. Não o quero roubar». Em uma das vezes que Salazar recebeu o Presidente da Fundação, este falou-lhe no caso. E o pedido foi registado, pelo Presidente do Conselho, no «Diário» referente a esse dia. No dia seguinte, falei-lhe do assunto. E acrescentei pretender um modesto lugar na Fundação Gulbenkian e sem prejuízo do serviço na Presidência do Conselho. Aguardaria fosse julgado o termo da minha missão. Setembro de 1961. Salazar estava instalado no Forte de Santo António da Barra. Quando cheguei com o «despacho», preveniu-me: «Deve falar na Secretaria da Presidência do Conselho, para que esta prepare as formalidades necessárias a sua saída». Recordo lembrando-lhe o que afirmei quando o meu pedido foi formulado para a entrada na Fundação Gulbenkian. E o «despacho» do dia continuou como era habitual. À despedida, Salazar veio, num requinte de atenções, acompanhar-me até à porta. Tinham decorrido dez anos de serviço. Inesquecíveis. Entrara em Setembro de 1951. O meu testemunho sobre Salazar poderia terminar com uma frase do Doutor Azeredo Perdigão dirigida, em um hotel do Porto, a um grupo de advogados portuenses. Em alto e bom som, quando estes perguntaram como achara a personalidade do Doutor Oliveira Salazar, disse: «Sente-se que estamos em presença de um homem superior»...! Anos mais tarde fui agradavelmente surpreendido pela oferta do último livro dos Discursos e Notas Políticas do Doutor Oliveira Salazar (volume VI, 1959-66, edição de 1967; data da dedicatória autógrafa, 31-8-1967). Corri a solicitar uma audiência. Visitei Salazar e agradeci com estas palavras: «O livro e os termos da dedicatória de Vossa Ex.a valeram, para mim, mais do que uma condecoração...». E foi a última vez que vi e falei ao Doutor António de Oliveira Salazar.