Ano 9 • Nº 9 • Dezembro • 2011 o conhecimento liberta e responsabiliza Em encontros casuais que venho mantendo com ex-alunos, muitos me dizem o quanto a Móbile foi decisiva na vida deles. Sempre pensei que fosse uma expressão retórica, um misto de elogio e de nostalgia dos muitos anos passados na escola. Não é. Eles argumentam, incisivos, e insistem que não falam por devoção paroquial: “diante das mais variadas situações, percebemos o quanto nós nos distinguimos; comparados aos nossos amigos ou aos nossos a p r e s e n t a ç ã o pares profissionais, percebemos que temos mais ‘densidade’”. Afirmam: “sabemos nos localizar no tempo, interpretamos textos e vídeos, enfrentamos problemas sem medo, não nos perdemos diante das novidades, temos curiosidade e método e, sobretudo, conhecemos os porquês”. Ora, penso eu, isso é formação consistente, saberes concatenados, lógica científica. Haveria melhor prêmio do que este? Afinal, são indicadores de que o projeto pedagógico está no caminho certo da excelência, de que o planejamento das atividades e a orquestração da equipe operam sintonizados. A Revista da Móbile está em sua nona edição e está cada vez mais alentada. Qual é o propósito da publicação? Manter sem esmorecer o nosso compromisso com a transparência. Ou melhor: expor todas as informações necessárias para que pais e alunos, professores e comunidade de educadores façam uma avaliação competente do trabalho realizado. O editor da Revista, professor Wilton Ormundo, abre o número com a entrevista instigante do poeta Ferreira Gullar. Nela, temas nada triviais são abordados. O poeta se posiciona com clareza diante da recente polêmica sobre o ensino da norma culta, indica o limite das expressões comunicativas e esbarra no indizível, qualifica a arte como linguagem peculiar que transcende a realidade, revela que a poesia nasce do espanto, relata a trajetória do movimento concretista no Brasil 5 e seus impasses, fala sobre a fusão do bem simbólico e de seu suporte material no livro-poema, além de inserir nele criticamente. Serem, portanto, cidadãos em seu sentido pleno: agentes capazes de conectar nos contar sua experiência como militante político e sua amarga desilusão. Leitura saborosa. informações esparsas, articular pensamentos consistentes, elaborar as razões pelas quais se posicionam Em 2010, a V Mostra Literária e o IX Concurso Literário foram oportunidades de verificar e comparar (dois critérios constitutivos da transparência) trabalhos feitos pelos alunos da Móbile. Nessa mesma linha, na seção “Reflexões”, e com particular felicidade, temos o artigo do Permitiram compreender, sobretudo, o processo de construção de seu pensamento ao longo dos anos de coordenador e professor de Matemática do Ensino Médio, Walter Spinelli: “Alguém aí já tocou em um aprendizagem, pois a Mostra envolveu alunos do Infantil 5 ao 3º ano do Ensino Médio. O leitmotiv foi quadrado?” A contextualização das disciplinas torna-se o grande trunfo do ensino eficaz, principalmente o sonho, um tema cujo espectro encanta crianças e adolescentes, facultando-lhes inesgotáveis incursões. quando entendida como aplicação dos conceitos a situações que fazem parte do cotidiano dos alunos. Em paralelo, é interessante acompanhar a carpintaria do processo criativo a partir da perspectiva Mas o texto vai muito além: distingue o real de suas representações mentais; mostra como a essência dos professores de cada série e resgatar um fato valioso: a orientação que adotaram respeitou abstrata dos conceitos nos permite captar os padrões ocultos dos objetos concretos; e nos exorta a o desenvolvimento cognitivo e a crescente maturidade de escrita dos estudantes. Bons trabalhos foram extrapolar os contextos, alargar as fronteiras, operar em termos interdisciplinares. selecionados entre centenas inscritos, verdadeiros atestados da capacidade de fantasiar, reinventar Outro artigo, também recomendado, responde a uma indagação relativamente corriqueira: e descrever com especial acuidade. Convido a ler a bela e singela poesia do aluno Rafael Montressor “Filosofia para crianças – por quê, para quê, como?”, de Maria Cardoso e Tatiana Almendra. E isso desde Coelho (aluno do 6º ano) e compará-la à densa e instruída poesia de Caio Franco (2º ano do Ensino o Infantil 5! Ficam explícitos os objetivos: a capacidade de pensar é imprescindível, e isso se aprende; os Médio). alunos descobrem como argumentar e questionar, como desenvolver raciocínios com método e coerência, A seção “Produções em foco” nos possibilita avaliar o trabalho que os professores realizaram em conjunto e que visou alcançar complexos objetivos da formação escolar, a começar pelo alargamento dos horizontes dos alunos. A ênfase nesse caso foi o desenvolvimento do pensamento científico, viga 6 desta ou daquela maneira para, no final, responder pelas consequências das opções que adotam. como assegurar critérios que sustentem afirmações; adquirem, assim, as habilidades necessárias para pensar de forma autônoma. Por fim, não posso deixar de chamar a atenção para o exercício proposto pelo professor Wilton indispensável das mentes livres e dos espíritos críticos e, por que não dizer, dos cidadãos do século XXI. Ormundo aos formandos do 3º ano do Ensino Médio que se encontra na seção “Futuros profissionais”. Nesse sentido, é surpreendente conferir a forma original como as professoras do Infantil 3 – Andreza Numa verdadeira provocação intelectual, formula questões nada anódinas que instigam os alunos a Souza, Angela Ciupka, Daniela Rosa, Daniela Levino, Lyara Contensini e Aline Stroeh – introduziram mergulhar em seu íntimo e a revelar a si mesmos a trama complexa de suas inquietações e aspirações. crianças entre 3 e 4 anos no rico mundo das ciências naturais. E cumpre também aplaudir o trabalho Ao ler os depoimentos dos alunos, não pude deixar de ficar orgulhosa com sua articulação, a citação interdisciplinar dos professores João Carlos Micheletti e Silmara Parra que narra como alunos do dos muitos livros lidos e dos filmes comentados, a beleza de seus insights, seu afã questionador e a 8º ano do Ensino Fundamental se tornaram partes ativas de uma investigação científica. Merece também inteligência de seus argumentos. E fiquei sensibilizada com as menções elogiosas à Móbile que poderiam destaque o relato dos professores Tatiana Nahas, Carlos Godoy e João Carlos Micheletti intitulado ser resumidas numa expressão lapidar de um dos respondentes: “A Móbile me formou como ser humano, “A ciência vista como arte”, que lançou os alunos na admirável aventura de usar a fotografia como e é por esse motivo que pretendo que meus filhos, se os tiver, estudem nessa escola.” instrumento eficaz de apreensão da natureza. Quero deixar aqui meu agradecimento profundo à equipe de professores e coordenadores A seção “Especial” nos traz um importante artigo do professor Roberto Candelori sobre a que, ao longo dos 36 anos da Móbile, transformaram meu projeto de jovem professora universitária em disciplina que ministra, Ética e Cidadania. O curso que se estende pelos três anos do Ensino Médio não se uma realização feita com o barro da competência e com o generoso espírito de educadores lúcidos e resume a descrever atualidades históricas ou a discorrer filosoficamente sobre temas transversais como engajados. a intolerância, o terrorismo, a xenofobia ou a migração. Vai além, à medida que contextualiza – palavra- Boa leitura! aos alunos as ferramentas necessárias para que se sintam, e mais, que façam efetivamente parte dos MARIA HELENA BRESSER acontecimentos nacionais e internacionais – deixem de ser estranhos em seu próprio mundo para se Diretora Geral chave –, ilumina o presente com as regularidades do passado e com as potencialidades do futuro, oferece 7 O faroeste e o anti-herói. Resenha 269 Questões que (re)velam... Futuros Profissionais 250 Complexo projeto de sustentabilidade é promovido no 6º ano do Ensino Fundamental. A análise multidisciplinar como estratégia didática. Digestão: o laboratório em foco. Crianças mergulham no mundo da ciência. Crianças, índios e um universo comum. A poesia está nas palavras. Além da história: a ampliação do universo cultural nas aulas de Inglês. Alunos do Ensino Médio apresentam seus trabalhos de Iniciação Científica. Produções em foco 150 Filosofia para crianças – por quê, para quê, como? O ensino de literatura no currículo escolar Oslo 2011 – Um grito Estruturas de pensamento proporcional Pequeno ensaio sobre a importância das abstrações e da contextualização do ensino. Encontro com Profissionais. Uma reflexão acerca do papel da gramática na sala de aula. Reflexões 105 O desafio de educar no século XXI – Contribuições da disciplina de Ética e Cidadania. Especial 93 Móbile realiza em 2010 V Mostra Literária e IX Concurso Literário. Os vencedores do IX Concurso Literário de 2010. Jovens do 1º ano do Ensino Médio mostram sua compreensão teatral de textos literários. Alunos do 9º ano apresentam a peça Invencionática, parte de um projeto consagrado no Ensino Fundamental. Expressões & Impressões 29 Ferreira Gullar. Entrevista 12 í n d i c e MÓBILE Direção Geral Maria Helena Bresser Direção Educação Infantil Maria de Remédios F. Cardoso Ensino Fundamental Cleuza Vilas Boas Bourgogne Ensino Médio (Educacional) Blaidi Sant'Anna Ensino Médio (Pedagógica) Glorinha Martini REVISTA DA MÓBILE Editor Wilton de Souza Ormundo Textos Cleuza Vilas Boas Bourgogne Wilton de Souza Ormundo Preparação de textos Juliana Massoni Pereira Revisão Ricardo Paulo Novais Projeto gráfico e editoração Fernando Alexandrino www.letlive.com.br Fotografias Arquivo Móbile Clóvis Ferreira Valéria de Melo Pereira Fotolitos e impressão Gráfica Editora Aquarela Colaboradores EDUCADORES Adriana Caravieri Rosa Adriana Du Pin Galvão Adriana Ramacciotti Alexsandra Dorneles de Azevedo Aline H. I. de Castro Aline Prates Stroeh Aluani Tordin de Oliveira Ana Christina Calderelli Nebó Ana Lúcia Ribeiro de Almeida Analu G. Del Suringar Andréa G. de Oliveira Assumpção Andreza Martins de Souza Angela Ciupka Antonio de Freitas da Corte Bárbara A. Pozas Bárbara Elisa Alves Martins Blaidi Sant’Anna Carlos Eduardo C. de Godoy Cláudia Colla de Amorim Cristine Bünecker Poyares Daniela Fernandes Rosa Daniela Jaime Levino Débora M. Zardi Denérida Brás Martins Tsutsui Denise Mendes Fábia de Cássia B. dos Santos Fernanda Campanhã Rodolfo Francisco Lima Gabriela B. Makishi Hugo Carneiro Reis Iva Maria Alves João Carlos Micheletti Neto João Jonas Veiga Sobral Juliana Yoko Jussara Moreira Santana Laís L. de Carvalho Lara Portes Oliva Lívia Moreira de Oliveira Lucelena M. de Souza Lee Luciana Tomiatto de Oliveira Lyara Vilches Contensini Mara Scorsafava Márcia Juliana Santos Maria de Remédios F. Cardoso Márcia Ruiz Maria Cecília M. Suguiyama Maria L. B. de Toledo Marina Callil Voos Mônica Ferreira A. Conte Mônika Kuszka Paloma Dantas de Araújo Santos Paloma Jordão Paula Vasconcelos Paulo Rogério Rodrigues Priscila M. Ribeiro Renata Maltempi Rita Pisano Roberta de Vita Roberto Candelori Robervânia Araújo Rodrigo L. de Castro Rogério Viana Gusmão Silmara Parra Talita D. Fagundes Tatiana Almendra Tatiana Rodrigues Nahas Teresa Chaves Thaís Neves Valéria de Melo Pereira Viviane D. da Silva Walter Spinelli Wanessa Kelli e Silva ALUNOS Amanda Leal Netto Campos Ana Carolina Balam Sebe André Salem Andrea Lasevicius Moutinho Andrea Moutinho Antonio F. S. Reis Arthur Zanini de Salles Aguiar Bruno Amá Stephan Caio Cirello Rezende Caio Franco Camila Rozenblit Tiferes Camila Damião Farah Clara Sampaio Laranjeira Caroline Cury Cristiana Pietracola Daniel de Araújo Pereira Daniela Guimarães Boanova Daniela Machado Daniela Taouil Débora Duarte Nunes Leite Diogo Banzato Franco Fernanda Pontes Battaglia Gabriela Pereira Prado Gabriela Vianna Gisele da Costa Dubois Giuliana Uchôa Carrieri Gustavo Henrique S. Cezar Henrique Caldas Oliveira Henrique Ferreira Henrique Rubira Isabela de Angelis Isabella Pavani Scuotto João Frederico Paredes Jorge Luiz Moreira Silva Julia Shinohara Juliana Nakano Myazaka Leonardo Gandur Giovanelli Letícia Toldi de Carvalho Lígia G. Cossé Luana Kitagawa Cunha Soares Luisa Prado Betti Guarnieri Luísa Roman de Oliveira Toledo Luiza Bucker Luiza Fernandes Gremaud Maria Paula Rameh Guilger Mariana Marques Alves Bocuzzi Marina Antunes Kasa Mariana Araújo Mariana Stefani Maurício Gioachini Tardochi da Silva Natália Mello Nicolas Vana Santos Nina Trentini Borghi Pedro Carregã Sant’Anna Pedro Loureiro Porto Pedro de Oliveira Ribeiro Rafael Montressor Coelho Raphael Vianna Renata Batista Renata Sardenberg Rodrigo Lucas Rodrigo Miksian Magaldi Rodrigo Rossi Mora Brusco Rodrigo Siuffi Abbud Stephanie Haspo Thais Bianchini Thais Branco Victoria Liebert Piscopo Victoria Pagano Rebizzi ABCD EFGHIJ KLMN OPQRS TUV Ferreira Gullar e n t r e v i s t a Saí de São Paulo, rumo ao Rio de Janeiro, com uma lista infinita de perguntas escritas num papel e uma ideia fixa: vou entrevistar aquele que é considerado pela crítica o maior poeta vivo da língua portuguesa, o maranhense José Ribamar Ferreira, ou simplesmente Ferreira Gullar. É certo que o peso dessa responsabilidade deve-se a vários fatores: meses de tentativas vãs de agendamento (o poeta completou 80 anos e a imprensa precisa de datas), um sentimento (anacrônico) de juventude, ligado às reminiscências da Faculdade de Letras da USP (e já se vão quase vinte anos), a quase adoração do poema “Traduzir-se” (e a sensação de que seus versos foram autoescritos e não criados por alguém palpável). Tudo isso começa a se esvair quando, à porta do edifício do poeta, na ruidosa Copacabana, pergunta-se ao menino da banca de revistas: “Você tem um exemplar de algum livro de Ferreira Gullar?” (Afinal, precisava de um para que fosse autografado); e ele responde, sem cerimônias: “Não tenho não, mas você pode comprar diretamente dele. É só tocar a campainha do prédio em frente.” E a sensação de peso se dissipa quase por completo quando diante de Gullar, crítico de arte, jornalista, escritor, dramaturgo, tradutor e, acima de tudo (segundo ele), Poeta. A lucidez do homem é perturbadora. Entrevistá-lo é tarefa árdua porque ele é capaz de discorrer com fluidez sobre amor, morte, poesia, comunismo, Beckett numa frase. Tudo tratado de maneira humana e até mesmo prosaica. Num dado momento, para falar de sua incursão no Neoconcretismo (depois de sua ruptura com o Concretismo), apanhou de sua estante uma escultura de Lygia Clark e explicou-me didaticamente o conceito de “livro-poema”. (A obra de uma das artistas plásticas mais festejadas do país, Lygia Clark, estava ali em suas mãos sem nenhum pedantismo.) Nesta entrevista, não saberemos que foi em 1954 que Gullar publicou o importante livro A Luta Corporal; que em dezembro de 1956 participou da Exposição Nacional de Arte Concreta (no MAM); que discordou das ideias do grupo concretista paulista, expressas no artigo “Da Psicologia da Composição à Matemática da Composição”, redigindo em resposta ao texto dos irmãos Campos e Décio Pignatari o texto “Poesia Concreta: Experiência Fenomenológica”; que escreveu o “Manifesto Neoconcreto”, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e assinado também por Amilcar de Castro, Aluísio Carvão, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. Também não seremos informados de que foi em 1961 que o poeta dirigiu a Fundação Cultural, em Brasília; de que se filiou ao Partido Comunista em 1964, quando fundou o Grupo Opinião, com os dramaturgos Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes; de que colaborou com O Pasquim, sob o pseudônimo Frederico Marques; e de que recebeu o Prêmio Jabuti, em 1999, a indicação ao Prêmio Nobel de Literatura, em 2002, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, em 2005, e o Prêmio Camões, concedido pelos governos do Brasil e de Portugal, em 2010. Você também não será informado que, recentemente, Ferreira Gullar, depois de onze anos de silêncio poético, lançou a coletânea Alguma parte alguma. Saberemos, entretanto, o mais importante para estabelecer contato com a arte de Gullar: sua poesia nasce do espanto. (Ps.: o menino da banca de jornal estava errado. Gullar não tem suas obras para vender em seu apartamento carioca.) 16 que poderia me tornar um escritor. Eu precisava culta. O que eles estão dizendo, e é correto, é Educação, Fernando Haddad] declarou que quem saber a língua, então passei dois anos lendo que existe um sabor, uma beleza, um charme no se opõe ao livro é pior que Stalin, querendo dizer gramática, estudando para entender como a falar do povo. Dentro da literatura, esse “falar que esse ditador ainda era melhor que nós porque língua funcionava. É muito estranho que alguém do povo” é um elemento enriquecedor. Você – ele, quando criticava um livro, o tinha lido antes. venha dizer que a norma culta é aquela praticada como escritor – pode usar esse elemento, dentro Só que Stalin matou um milhão de pessoas! pela elite. Por trás de tudo isso, há um problema de um contexto determinado. Bandeira nunca Revista da Móbile – Clarice Lispector ideológico, infantil, velho. Então é assim: quem pretendeu defender que a construção “os livro” disse, certa vez: “Eu até queria não ter Revista da Móbile – A última polêmica fala certo pertence à classe dominante e quem está correta. Mas isso não significa que eu não aprendido outras línguas: só para que a envolvendo o MEC (Ministério da Educação fala errado é o povo? Então, como o povo é a transgrida, violente a língua. Em minha poesia, minha abordagem do português fosse virgem e Cultura) está relacionada à aprovação, vítima da classe dominante, temos de prestigiá-lo quantas vezes violentei a língua? Até de uma e límpida.” Como é sua relação com a língua pelo PNLD (Programa Nacional do Livro para não deixar que a classe dominante o humilhe maneira absurda, drástica demais, mas é preciso portuguesa? Didático), da obra Por uma vida melhor, dizendo que ele está falando errado... realmente haver a língua estabelecida, as normas, para Ferreira Gullar – É possível que Clarice tenha tido destinada aos alunos do EJA (Educação de isso é uma bobagem. que se possa transgredi-las. Quero dizer, esta um problema maior, talvez pelo fato de ela ter Jovens e Adultos). Nela, os autores tratam Revista da Móbile – O senhor acha que “a relação é dialética: entre aquilo que é correto e as nascido fora do Brasil. Ela aprendeu português da variação linguística como fenômeno contribuição milionária de todos os erros“, possibilidades outras que se apresentam diante depois – ainda que essa língua tenha se tornado inerente a toda e qualquer língua humana. citada pelo escritor paulistano Oswald de problema de expressão, sobretudo quando se sua língua materna. Se há uma escritora para Essa postura foi lida por muitos como um de Andrade em um de seus manifestos, ou “a trata de poesia. quem a língua é fundamental é Clarice Lispector. desprestígio do ensino da norma culta língua errada do povo/Língua certa do povo/ Revista da Móbile – Por que esse “problema” A minha relação com a língua portuguesa, nas escolas. Em um de seus textos mais Porque ele é que fala gostoso o português do se apresenta, principalmente, para a meu idioma, é fundamental. A minha poesia é irônicos, publicado pelo jornal Folha de S. Brasil”, referida pelo poeta pernambucano poesia? decorrente disso. Talvez uma das coisas que Paulo, “Alguém fala errado?”, há uma crítica Manuel Bandeira, e tudo o que o múltiplo Ferreira Gullar – Porque a poesia é uma arte caracterizem a minha poesia, diferentemente da dura aos linguistas que defendem posição escritor paulistano Mário de Andrade realizada, muitas vezes, no limite da linguagem. de outros poetas brasileiros, é a minha relação semelhante à dos autores do livro que gerou defendeu – ao lado de outros modernistas O que me incomoda nesse livro didático é a com a questão linguística, porque eu fui um a polêmica. De que maneira o ensino da da fase heroica (1922-1930) – geram certa tendência ideológica, um esquerdismo equivocado poeta que questionou a construção da minha norma culta, promovido pela professora confusão de interpretação ainda hoje? que transforma defeito em virtude. Quando própria língua. Isso já aparece em meu livro A luta Rosinha, foi importante para o senhor? Ferreira Gullar – Eu, quando li essas concepções Bandeira defende a “língua errada do povo”, ele corporal. Até hoje esse questionamento se dá em Ferreira Gullar – Não é que o ensino da norma do Mário, do Oswald, do Bandeira, nunca atribuí está liberto de preconceitos; ele está revelando minha literatura. Meu último livro começa com um culta tenha influenciado diretamente a minha obra. a elas a intenção de considerar que a norma culta a sua experiência de menino pernambucano no poema que diz assim: “fica o não dito por dito”. Conhecer a norma culta, saber escrever direito, era algo que deveria ser desprezado, porque contato com aquela gente de sua terra. Trata-se A linguagem não diz tudo que quero dizer. O que corretamente, sempre foram uma preocupação esses escritores escreveram “corretamente”, ou de uma experiência saudável, bonita, encantadora. está fora da linguagem não é dito. minha, desde garoto, quando comecei a imaginar seja, dentro daquilo que denominamos norma Fico perplexo quando vejo que o Ministro [da 17 valorização de uma escultura de Rodin, de 18 A arte, além do mais, não só expressa a realidade como também a inventa. Revista da Móbile – De fato, o senhor disse Revista da Móbile – Essa discussão vai, uma pintura de Picasso. Segundo o senhor, em certa medida, ao encontro daquela que isso “deixaria perplexo o pensador alemão Clarice Lispector propunha em relação à sua Walter Benjamin, segundo o qual os produtos própria literatura. Refiro-me à insistência industriais não possuem aura, como as obras da autora ucraniana em dizer que sua de arte consagradas”. De que maneira o literatura era uma busca de aproximação, senhor discorda das ideias (e das previsões) inútil, do elemento intangível, daquilo presentes no célebre ensaio “A obra de que é “indizível”, ou seja, de impossível arte na época de reprodutibilidade técnica”, Revista da Móbile – Mais do que apresentar uma nova realidade, a arte se colocaria representação pela palavra. escrito por Benjamin? o sujeito com um ser cindido, marcado pelos distante de outra realidade (concreta)? Ferreira Gullar – Sim, essa questão existe em Ferreira Gullar – De fato, quando li a primeira vez paradoxos “ser ‘todo mundo’ e ao mesmo A chamada poesia social brasileira – que Clarice também, mas não em outros escritores esse artigo de Walter Benjamin, concordei com tempo ‘ninguém’”, “desejar ser ‘multidão’ e a crítica associa ao senhor – serviu a que brasileiros, como Graciliano Ramos, Erico ele, mas, depois de refletir mais profundamente, também ‘solidão’”, “‘pesar, ponderar’, mas propósito? O de tratar da realidade de Verissimo, Carlos Drummond de Andrade, comecei a ver que aquela concepção não era ‘delirar’”, seu poema “Traduzir-se” sugere modo a transformá-la ou o de inventar uma Manuel Bandeira. Essa questão da língua não inteiramente verdadeira. Ao contrário do que que a existência humana é caracterizada realidade que pudesse apaziguar a dor dos se colocava para os outros escritores de maneira propôs Benjamin, uma obra como a Mona Lisa pelo desejo da plenitude, pelo “to be and not leitores em um mundo submetido aos limites tão drástica. Mesmo Oswald de Andrade, Mário passou a ter sua aura ampliada justamente pelo to be”, pelo conflito. O homem, segundo o estabelecidos pela ditadura militar de 1964? de Andrade, quando propõem a mudança do excesso de reprodução dela. Quanto mais popular, senhor, busca a solidez (“almoça e janta”), Ferreira Gullar – Existe mesmo esse conceito verso, da linguagem poética, que era acadêmica, famosa, ficou a tela de Da Vinci, mais todo o mas também deseja o imponderável, a de poesia social ligado a mim na história da parnasiana, ficam apenas na forma. Esses artistas mundo queria vê-la no original, no Louvre. As surpresa, aquilo que não se pode prever, literatura brasileira. Escrevi um poema sobre da primeira geração modernista não vão à questão pessoas conhecem a cópia, mas existe o fascínio controlar, o “de repente”. O senhor Che Guevara chamado “Dentro da noite veloz”, fundamental da linguagem: a de que ela é um pelo original, pelo verdadeiro, que continua a ter a acredita que a convivência desse lado mas os versos que o compõem, por certo, não sistema que só diz o que pode dizer; há algo que tal aura de que falou Benjamin. Aquilo foi pintado humano “vertigem” (pulsional) só encontra são a realidade, não são a revelação; eles são, não se diz, porque está fora da linguagem. O que por Leonardo da Vinci no século XVI e continua a possibilidade de tradução pela “linguagem”, antes, uma invenção de determinada realidade. está fora da linguagem é indizível, e esse tema ser precioso, único no mundo. uma vez: “discordo quando dizem que a arte revela a realidade. Na verdade, a arte inventa a realidade. (...) A poesia é uma dessas criações, no terreno da fantasia, que existe porque a vida não basta. Eu escrevo para ser feliz, escrevo porque estou me inventando, para ser melhor do que sou”. Inventando pela arte? Quando criei esse poema, nunca tive a pretensão está presente em minha poesia. Ferreira Gullar – Tenho certeza de que a arte de que seus versos pudessem servir para mudar Revista da Móbile – Em outro texto publicado é capaz de expressar coisas que as outras a realidade. Escrevi-o mergulhado num “estado” pelo jornal Folha de S. Paulo, “Na prática é linguagens não conseguem fazer. A arte, além do que me permite, que me obriga a fazer um diferente”, o senhor trata da venda, por mais, não só expressa a realidade como também poema. Quando escrevo, não estou pensando 40 milhões de dólares, de um Bugatti, a inventa. em ninguém, tampouco numa finalidade, num comparando a venda desse automóvel à contexto político. 19 Ferreira Gullar – Eu faço as outras coisas com paixão, eu me entrego quando as faço. (Até mesmo quando escrevi telenovela, que era uma 20 Ferreira Gullar – Poesia é invenção. À medida que coisa que eu tinha horror...) De outras coisas, você vai inventando, vai entrando num universo como o trabalho com crítica de arte, me ocupo que é próprio do poema. Por isso, aquilo que se desde a juventude. Penso mais sobre arte em escreve não é o retrato do que aconteceu, aquilo geral do que sobre poesia. Revista da Móbile – Como foi seu processo não é um fato, uma denúncia. Você pode até, Revista da Móbile – Talvez porque poesia o de criação desse poema tão importante? conscientemente, achar que está fazendo uma senhor faça... Muitos o consideram um de seus textos mais denúncia – um lado seu pode considerar isso –, Ferreira Gullar – Eu não gosto de fazer teoria sobre políticos e engajados. mas não é o lado mais criativo. A verdadeira poesia. Dou, simplesmente, um testemunho da Ferreira Gullar – Eu vi uma fotografia de Guevara poesia é uma viagem criativa que está para além minha experiência. Sou poeta e não tenho certeza morto, publicada num jornal do Rio de Janeiro. da realidade. Você começa a escrever um poema, de que poesia é realmente literatura. Às vezes, Essa imagem, mais tarde, ficaria muito conhecida. mas, no papel em branco, não sabe aonde vai me pergunto isso. Poesia é uma aventura de tal Nela, o rosto de Guevara aparecia em close dar, não há planos. Você só tem uma intenção, ordem que nasce do espanto. É muito diferente chocante, acompanhado de um texto que explicava entretanto não sabe o que vai acontecer com de escrever um artigo sobre qualquer tema para que ele havia sido assassinado já há vários dias em ela, está condenado a todas as probabilidades. o jornal Folha de S. Paulo, porque, nesse caso, luta na Bolívia. O fato de eu ver aquele cara morto Quando se escreve a primeira palavra, reduzem- eu escolho o assunto racionalmente. Decido e ali, lutando pelo povo boliviano e completamente se as probabilidades. Você passa a ter todas as escrevo; contudo, eu jamais posso fazer isso com ignorado por esse povo (e por mim), essa soma de probabilidades menos uma, porque escreveu a a poesia. Não há a menor possibilidade... informações me levou a escrever o poema “Dentro primeira palavra, que vai determinar a segunda... da noite veloz”. Ele não era abertamente político. aí o acaso começa a ser reduzido e surge uma Esse poema nasceu de um espanto, de algo que, nova verdade, um texto. Se você escrever a naquele momento, me surpreendeu; quero dizer: palavra “x” em vez da “y”, o poema vai ser de um Guevara estava lutando sem ninguém saber disso, jeito. Trata-se de uma mistura de acasos. nem o povo por quem ele achava que lutava, nem Revista da Móbile – O senhor já se aventurou eu... então considerei isso uma coisa maluca! por muitos ramos da escrita: crônicas, Escrevi, dessa forma, um poema que não se ensaios, artigos de opinião, crítica de arte, seriado de TV (Carga pesada), telenovela restringe a descrever somente o que aconteceu de fato. Há nele uma série de elementos inventados Revista da Móbile – Nesse sentido, poesia (Araponga). De que forma se autodenomina? por mim: uma floresta, árvores... é invenção? Poeta? 21 apaixonado por poesia. Publiquei meu primeiro Revista da Móbile – O que significa pensa também é o osso? Começa uma indagação livro, Um pouco acima do chão (1949), quando “verdadeira atividade como poeta”? que eu jamais fizera antes. Daí vem a poesia, tinha 18, 19 anos, mas a minha verdadeira Ferreira Gullar – Aos 20 anos, já havia lido [TS] Revista da Móbile – Os gregos antigos determinada por um estado, desencadeado por atividade como poeta começa mesmo com a Elliot, [Rainer Maria] Rilke. Li, de Rilke, o poema reservavam um espaço bastante especial fatores aleatórios. publicação de A luta corporal. “O torso arcaico de Apolo”, traduzido por Manuel para seres Revista da Móbile – Mas há uma magia Bandeira, e descobri o que era poesia, ou seja, a “entusiasmados” (tomados pela força nisso. Não me refiro à magia no sentido poesia que eu queria fazer. Um amigo me mandou divina) – por meio dos quais os deuses esotérico... As Elegias de Duíno, de Rilke, e descobri que aquilo falariam. Platão chegou a sugerir a expulsão Ferreira Gullar – Claro que é mágico. Se digo que que eu estava fazendo não era poesia (pelo menos deles numa cidade-estado que fosse ideal nasce do espanto, eu tenho que estar num “estado (em A República). João Cabral de Melo especial”, ou não escrevo. Tanto é que escrevo Neto se posiciona de maneira oposta a essa poesia muito raramente. concepção. Com qual concepção o senhor Revista da Móbile – As pessoas muito se identifica? racionais não conseguem compreender que Ferreira Gullar – Evidentemente, eu não acredito “poesia não se faz por vontade. O poema que seja inspirado por nenhum deus. Minha não é uma coisa nascida por nossa decisão. poesia nasce do espanto. Preciso estar num A poesia nasce do espanto”, concepção “estado” determinado para escrever poesia. Eu defendida pelo senhor em mais de uma não posso escrever simplesmente pela minha ocasião. Seu último livro, Alguma parte vontade. Escrevo uma crônica, mas o poema alguma, levou onze anos para ser escrito. não escrevo. Esse “estado” é determinado por Isso não parece uma visão um pouco mágica fatores aleatórios. Não posso provocá-lo. Um dia, do fazer poético, bem diferente da concepção eu estava assistindo à televisão aqui, sentado na de João Cabral de Melo Neto? O senhor já poltrona, e tocou o telefone. Eu me levantei e o disse que se nasce poeta. Como começou a a refletir: “Será que a literatura tem sentido? É osso do meu fêmur bateu na minha bacia, fazendo poesia na vida do senhor? para isso que se escreve, para terminar num sebo um som, um “crac”. Fui atender ao telefone e, Ferreira Gullar – É claro que, quando comecei cheio de fungo?” Concluí que só haveria razão de quando voltei, pensei: eu tenho um osso. Quero a escrever, tinha como referência os poetas ser se a poesia pudesse mudar a vida. Mudar o dizer: eu sou um osso. Claro que sei que tenho um parnasianos que lia nos livros da escola: Olavo autor, mudar o leitor. Ela não pode só ser palavra esqueleto, mas uma coisa é saber disso, a outra Bilac, Raimundo Correa. Antes deles, Gonçalves e letra num papel. Corri para minha escrivaninha, é “sentir” o osso, materialmente, bater no outro Dias, de quem eu sabia de cor, todinho, o poema abri minha gaveta, tirei meus poemas, comecei a e perceber que sou isso. Então, me vieram outras “I-Juca Pirama”. Nessa época, eu já estava lê-los e rasgá-los. “Esse não muda nada, rasgo; os poetas. Eles seriam Minha poesia nasce do espanto. 22 questões correlatas: mas esse osso pensa? Quem não a que eu achava que deveria fazer: uma poesia que me fizesse entrar em outro mundo, outra dimensão). Depois, descobri Carlos Drummond de Andrade e fui tomando conhecimento do que era a poesia. Assim começou para mim. Eu me lembro do dia em que comprei, num sebo, a obra Contos Fantásticos, de Hoffmann. Cheguei em casa e percebi que o tal livro estava todo manchado, com fungos, e pensei: “Poxa! Mas o autor escreveu esse livro para virar essa coisa toda manchada de fungo? A literatura dele virou fungo. Hoffmann escreveu a obra na Alemanha há tanto tempo e está aqui, no Brasil, traduzida para o português e toda manchada!” Então comecei 23 esse também não muda, rasgo”. Rasguei tudo. Depois disso, fizemos os primeiros poemas. Eu ‘verde’?” Ele não notara nada daquilo porque não tinham mais relação com o Concretismo. Eles Somente do último fiquei com pena e, por isso, criei, por exemplo, o “Mar Azul”: não havia lido o poema em voz alta. Concluí, eram neoconcretos. Foi quando surgiu o projeto não rasguei, mas ele também não mudava nada. por isso, que o poema estava errado. Comecei do “Poema Enterrado”, um poema feito para o Esse foi um momento de mudança, de tomada de a me questionar de que maneira poderia fazer corpo entrar nele. Levei esse conceito às últimas um poema com resultado visual que obrigasse consequências quando o [artista plástico carioca] meu receptor a lê-lo palavra por palavra. Criei, Hélio Oiticica construiu o “Poema enterrado”, um então, uma estrutura nova, que denominei “lugar arquitetônico” composto de um alçapão, “livro-poema”, ou seja, poemas que existiriam com uma escada que dava acesso a uma sala toda consciência de que poesia era outra coisa. Revista da Móbile – Dia desses, perguntei em uma aula, a um aluno do 3º ano do Ensino Médio, após ter lido um de seus mar azul marco azul mar azul marco azul barco azul mar azul marco azul barco azul arco azul mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul artigos publicados no jornal, quem era somente num determinado livro. Esses poemas preta; dentro dessa sala havia um cubo vermelho Ferreira Gullar. Um aluno que adora sua obra Assim nasceu o Concretismo no Brasil. não poderiam, por exemplo, ser publicados em que, aberto, dava acesso a outro cubo verde, me respondeu: “Ferreira Gullar é poeta, um Revista da Móbile – Em que momento o senhor um jornal. O suporte era o próprio poema, um dentro do qual havia outra estrutura, menor ainda, dos criadores do Concretismo, depois um passou a não caber mais no movimento objeto manuseável. [A artista plástica mineira] branca. Finalmente, dentro do cubo branco estava dos detratores desse movimento, criador concretista? Lygia Clark, que vivia um impasse em sua pintura, a palavra escrita. Percebi, então, que meu poema do Neoconcretismo e o escritor do ‘Poema Ferreira Gullar – O Concretismo teve em mim também percebeu que o manuseio poderia ser o era uma sala no fundo no chão! Composto de sujo’, de 1967.” O senhor se identifica com um desdobramento diferente do que teve em caminho para sua arte. apenas uma palavra! Comecei a me perguntar se esse perfil traçado pelo nosso aluno? artistas como Augusto, Haroldo e Décio, em razão Revista da Móbile – E Lygia Clark reconhecia eu estava certo, se deveria seguir naquele rumo. Ferreira Gullar – Está certo, sou isso mesmo, em da descoberta que fiz ao começar a utilizar a essa influência do conceito do “livro- O que aconteceria comigo se continuasse naquele linhas gerais. linguagem sem o discurso. Publiquei, por exemplo, poema” (obra de arte manuseável) em suas caminho artístico? Eu viraria um arquiteto? Um Revista da Móbile – De que maneira sua no Jornal do Brasil, um poema assim: esculturas? construtor de coisas? Inviável, não é? Imagine: Ferreira Gullar – Tampouco eu reconhecia a o “Poema Enterrado”, que foi feito na casa do importância daquilo... nem eu sabia direito o valor Hélio Oiticica, foi comprado pelo Museu de Arte do que estava fazendo. Somente mais tarde é que Moderna de São Paulo, que, até hoje, nunca o fui tomar consciência – e ela também. Éramos um refez. Trata-se de uma coisa complicada... se eu grupo de amigos. tivesse seguido esse rumo, teria me destruído Revista da Móbile – E a história do “Poema como poeta. Claro que foi interessante ter feito enterrado”, que envolveu a participação do e proposto tudo isso, mas eu nunca quis ser obra A luta corporal já dialogava com o movimento concretista? Ferreira Gullar – Augusto de Campos, Haroldo de 24 Campos e Décio Pignatari leram A Luta Corporal e me procuraram para dizer que eu havia destruído a linguagem e que, por isso, era necessário verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde erva criar outra. Desse nosso diálogo, nasceu o Concretismo. Da troca de correspondências entre Depois da publicação, um amigo me telefonou artista Hélio Oiticica? arquiteto ou artista plástico. Sou um poeta. Entrei mim e Augusto de Campos, nasceu a ideia de dizendo que havia lido o poema e achado Ferreira Gullar – Ao criar meu terceiro livro-poema, em crise naquele contexto. criar outra sintaxe para a poesia. Eles, então, interessante a produção. Perguntei a ele: “você houve uma mudança e percebi que a obra havia se sugeriram a sintaxe visual, o poema visual, um notou que a repetição da palavra ‘verde’ faz nascer transformado num objeto (já não era, portanto, um código que não necessitava do discurso verbal. a ‘erva’? Notou que a ‘erva’ explode da palavra livro). Comecei a inventar uma série de poemas que 25 26 Revista da Móbile – Foi isso que ocorreu Como não acreditava naquilo, rompi com o grupo. mas o tal equipamento disponível pesava cinco com Décio Pignatari? Ele se transformou Eles publicaram o manifesto no Jornal do Brasil e quilos! Uma amiga minha foi para a Alemanha num artista gráfico distante da poesia? eu publiquei outro, no mesmo jornal, defendendo visitar a família, na Berlim ocidental, e eu pedi a Ferreira Gullar – A poesia concreta entrou num justamente o contrário. Para mim, como a poesia é ela que comprasse o gravador. Recebi o gravador impasse. Brinco que ela deveria se chamar uma experiência fenomenológica, ela é o contrário lindinho, pequenininho, belíssimo. Então percebi “poesia abstrata”, porque ela não tem discurso, da matemática. Um ano depois dessa polêmica, eu que na União Soviética só se faziam armas, e o que dá concretude para a fala é o discurso. trabalhava num jornal e Décio Pignatari procurou- “Pera” é algo abstrato. Somente passa a ter me para dizer que eles tinham um novo documento Revista da Móbile – O senhor foi defensor do coisas da vida, da televisão, da comodidade da sentido quando a fruta se transforma “nessa” para ser publicado, dessa vez sobre “poesia comunismo durante uma época e mergulhou existência, das roupas, tudo era de pior qualidade. pera, “naquela” pera, localizada “naquele” prato de base”. Segundo eles, a indústria brasileira nisso, foi exilado em Paris, Moscou, Eles não se incomodavam com isso. Em outra “ali”, “na cozinha”. Isso é que é concreto. Eu não era de consumo e estava se transformando Santiago, Lima e Buenos Aires e até preso ocasião, fui à Ucrânia com um grupo de brasileiros teria alcançado a densidade e riqueza do “Poema numa indústria de base; do mesmo modo, a em 1968 junto com o jornalista Paulo Francis e de latino-americanos visitar o chefe do partido Sujo” – aliás, ele jamais teria sido escrito – se eu poesia brasileira, que também era de consumo, e os músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso. ucraniano. Reunimo-nos com a direção do partido tivesse continuado no caminho do Concretismo. deveria ser transformada numa poesia de base. Quando o comunismo morreu definitivamente e o chefe falou: “A economia da Ucrânia só existe, “Traduzir-se” teria sido escrito? As coisas que uso Imediatamente, pedi que ele me trouxesse algum dentro do senhor? só se desenvolve, graças ao partido. Somos nós para me comunicar, me expressar, que me fazem “poema de base” para eu ler, mas só havia um Ferreira Gullar – Eu comecei a perceber que algo que fazemos tudo.” Então pensei: “Mas são esses inventar, me reinventar como ser humano, não documento anunciando o que seria feito. Retomei estava errado na minha primeira viagem à União quatro caras que fazem funcionar a economia teriam acontecido se eu tivesse me transformado a história da poesia matemática: “Cadê o poema Soviética. Lá, muitas coisas eram interessantes: da Ucrânia? Esse troço não vai dar certo.” Em num artista plástico. matemático? Vocês nunca fizeram. Só escreveram não havia mendigos nas ruas, eu não via ninguém qualquer cidade de qualquer país capitalista há Revista da Móbile – Depois que rompeu com um documento. O mesmo se dará com a poesia morando na sarjeta, nem nada disso. Todas as milhares de pessoas inventando o que fazer, o o grupo concretista, o senhor nunca mais de base.” Com exceção de Augusto de Campos, pessoas estavam vestidas direito, sem luxo, mas que criar, pequenas empresas, comércios etc. teve contato com seus membros? Com Décio que sempre foi um bom poeta, Décio Pignatari e todo mundo estava bem alimentado, contudo... Fui Como é que esses quatro caras vão disputar com Pignatari, Augusto de Campos... Haroldo de Campos sempre foram teóricos. a uma loja comprar um gravador de fita cassete, milhões de pessoas, com a iniciativa de milhões foguetes para guerra, mas, do ponto de vista das Ferreira Gullar – Depois que eles inventaram a tal poesia matemática, telefonei para o Augusto de Campos e disse a ele que não havia relação “causal” entre matemática e palavra, pois eles pregavam que um cálculo matemático determinaria que uma palavra deveria entrar no poema em detrimento de outra. Eles queriam que eu assinasse um manifesto defendendo essas ideias absurdas. Para mim, como a poesia é uma experiência fenomenológica, ela é o contrário da matemática. 27 28 de pessoas? Fui percebendo, aos poucos, que Samuel Beckett; depois, dá uma gargalhada alguma coisa estava muito errada. O capitalismo sonora ao se lembrar de Vinicius. O eu lírico selvagem do século XIX, que tirava crianças do do “Poema sujo” diz: “eu não sabia tu/não orfanato e as colocava para trabalhar nas fábricas sabias/fazer girar a vida/com seu montão até ficarem tuberculosas, era indiscutivelmente de estrelas e oceano”. O homem Gullar, aos uma indignidade. Esse capitalismo não dava 80 anos, sabe “fazer girar a vida”? nada a ninguém. As pessoas chegavam aos 60 Ferreira Gullar – A poesia não é a vida e a vida anos, morriam miseráveis na sarjeta porque não não é a poesia. Ninguém pode viver em estado de tinham aposentadoria. Foi contra um capitalismo poesia 24 horas por dia ou por 70 anos, por isso eu que não tinha jornada de trabalho estabelecida, digo que a poesia nasce porque a vida não basta, aposentadoria, ajuda de custo para saúde... que a arte nasce e foi inventada porque a vida não Marx se revoltou. Ele era um homem com sentido basta. Eu não sou poeta 24 horas por dia e nem de justiça e um grande espírito, por isso revoltou- ninguém o é, mas, no momento em que leio Elliot, se contra esse capitalismo. Evidentemente, em Drummond, Borges... nesse momento, a minha nome dessa mudança, Marx mudou o mundo vida se amplia, ela fica mais rica, ela fica mais e lutou contra o capitalismo e suas relações bela, mais misteriosa, mais fascinante. É o que perversas de trabalho. Agora, me dizer que quem procuro. Beckett é altamente destrutivo porque cria a riqueza é o operário e que o patrão é reduz a existência a nada. desonesto porque simplesmente gasta o que o Revista da Móbile – Beckett e o teatro outro faz e que ele não faz nada é uma bobagem! do absurdo não são definitivamente para o Um empresário pode também ser um intelectual, senhor... um criador de uma coisa chamada empresa, um Ferreira Gullar – Não. Fico chocado com [a sonhador. Quando um cara como Henry Ford cria peça] Esperando Godot. Beckett é brilhante, uma fábrica de automóveis, ele também está inteligentíssimo, um talento extraordinário, mas sonhando. a cabeça dele é torta! Que a existência não tem Revista da Móbile – No documentário que sentido, isso nós já sabemos, o problema é dar Miguel Faria Jr. fez sobre a obra de Vinicius de sentido à vida. Beckett fica zangado porque a vida Moraes, o senhor exalta a vida presente nos não tem sentido, então vamos tentar dar algum poemas desse escritor e compositor. Exalta sentido a ela! seu mergulho na intensidade, no otimismo, e critica a posição do dramaturgo irlandês e x p r e s s õ e s & i m p r e s s õ e s Literatura: O sonho sempre foi motivo de encanto. Filósofos, psicanalistas, poetas, romancistas nunca esconderam seu fascínio pelo universo onírico. Inspirados na temática dos sonhos e no aforismo do crítico literário Antonio Candido (“A literatura é o sonho acordado das civilizações”), os alunos da Móbile, da Educação Infantil ao Ensino Médio, produziram trabalhos para a V Mostra Literária, orientados por seus professores de Língua Portuguesa. Neste ano, em sua quinta edição, além das discussões sobre literatura nas aulas, os alunos tiveram a possibilidade de assistir a espetáculos teatrais e a filmes baseados em obras literárias, conhecer e adquirir novos e velhos títulos na feira de livros montada especialmente para a Semana Literária, além de conhecer os trabalhos dos colegas de outros anos. A Mostra constitui uma oportunidade para que os professores da área de Língua Portuguesa tragam a público parte do trabalho realizado por eles com os alunos no dia a dia da sala de aula. “Respirar” literatura e “organizar o caos” por meio das palavras são necessidades humanas. Além da fruição de bons textos de autores consagrados, a Mostra Literária permite aos alunos o exercício da capacidade criativa e da sensibilidade, porque convida para o “risco” da criação. Nos dizeres de Antonio Candido: “Não há povo e não há homem que possam viver sem ela [a literatura], isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabuloso.” Parte integrante da Mostra Literária é o concurso de textos, promovido pela equipe de professores do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. Em sua nova edição, o Concurso Literário da Móbile premiou dezoito alunos entre os 194 que inscreveram seus textos nas categorias poesia e prosa (ficção e não ficção). Os ganhadores tiveram seus textos lidos numa encenação teatral, baseada em Alice no país das maravilhas, no poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, A metamorfose, de Franz Kafka, entre outras obras, especialmente preparada pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio. Para conhecer um pouco sobre os trabalhos expostos na V Mostra Literária, leia os textos de apresentação dos projetos elaborados pelos professores da Móbile. Os trabalhos propostos respeitam o estágio de desenvolvimento cognitivo dos alunos, transcritos a seguir. sonhar acordado... Móbile realiza em 2010 V Mostra Literária e IX Concurso Literário O sonho: de Alice, de Pedro, de Isabela, de Laura, de Eduardo... e refletir sobre o que é possível ou não na realidade e na fantasia. “Certa noite, a menina sonhou. Assim que acordou, desenhou seu sonho. Aquele era um desenho diferente. Por isso, foi guardado em um lugar especial, como se guarda um tesouro.” (MORICONI, Renato. O sonho que brotou. Difusão Cultural do Livro, 2010.) Mas a história de Alice e seu sonho não desapareceram da rotina dos alunos! O enredo continuou presente por meio de várias releituras do conto, da sessão do filme original, a que todos assistiram com interesse e encantamento, das conversas 32 O livro Alice no país das Fantasia, sonhos, maravilhas, de Lewis Carroll, é a diferenciação entre o real extremamente intrigante e capaz e o imaginário são temas presentes de mexer com a imaginação de na infância, assim como seus leitores. Os elementos típicos o encantamento pelas histórias dos contos de fada – animais que e suas personagens. Pensando falam, reis e rainhas, mudanças nisso, escolhemos as aventuras de tamanho em um passe de dessa menininha que persegue mágica, personagens enigmáticos um coelho branco e embarca que aparecem e desaparecem num mundo fantástico como eixo de uma hora para outra –, além de nosso trabalho. do fato de a história se passar Nas aulas de Filosofia, cada dentro de um sonho, tornam tudo turma do Infantil 5 foi instigada muito instigante e curioso para a refletir sobre questões como: as crianças. O que é sonho? Todo mundo Essa história narra o sonho sonha? É possível você saber de uma garotinha. Todas as suas o que vai sonhar antes de sonhar? aventuras, dúvidas e descobertas O sonho pode ser real? Essas acontecem de forma bastante discussões possibilitaram a cada natural, pois no universo dos criança pensar sobre seus sonhos, sonhos tudo é possível. compará-los com os dos colegas sobre as personagens e principais acontecimentos da narrativa. O grande desafio da personagem principal, Alice, é desvendar as regras do jogo para que encontre o caminho de volta ao mundo real. A brincadeira entre sonho e realidade serviu de inspiração para cada sala elaborar um jogo baseado na história, no qual a leitura, a escrita, o desenho e a pintura se fizeram presentes. Mª Cecília M. Suguiyama, Andréa G. de Oliveira Assumpção, Paloma Dantas de Araújo Santos, Mônica Ferreira A. Conte, Fernanda Campanhã Rodolfo e Ana Christina Calderelli Nebó são professoras do Infantil 5. 33 A cada sonho, um novo conto! maravilhas, pelas características principais dessa obra e por haver nela uma personagem muito próxima aos alunos – uma garotinha que se Alice lia um livro, com sua irmã, à margem de um rio. De repente, surge a figura do coelho, curiosamente vestido e portando um relógio de 34 envolve em uma aventura repleta de magia e seres fantásticos. Essa personagem inspirou cada aluno do 1º ano do Ensino bolso. O coelho some em um buraco e, ao segui-lo, Alice, em queda livre, Fundamental na elaboração de sua primeira narrativa. A criação de um entra em um mundo desconhecido. conto é o projeto final da série, pois, com domínio maior da escrita, cada Ela embarca nessa aventura, tornando a viagem pelo País das um tem a possibilidade de embarcar no mundo da fantasia, registrando, Maravilhas um sonho. Uma vez que se trata do enredo de um sonho, de próprio punho, suas ideias. Assim como a ousada personagem da universo em que as coisas mais incomuns são aceitas como naturais, história, todos mergulharam em um mundo onde tudo é possível: o da tudo pode acontecer... imaginação. O ato de sonhar é inerente ao ser humano, mas, apesar disso, não é Como escrever um texto não é tarefa fácil, muitas etapas foram tão simples de ser entendido ou explicado, principalmente quando se é primordiais para favorecer o processo de criação individual: pensar em criança. características físicas e psicológicas de cada uma das personagens, criar Para entender um pouco mais o que o sonho significa, iniciamos uma série de discussões sobre o tema. A partir das falas de nossos alunos, trouxemos várias histórias em que o sonho aparecia com seus diferentes significados: sonhos relacionados ao sono (bons e ruins) e aos desejos. um cenário para a história, pensar em possíveis conflitos ou situações assustadoras e, principalmente, em formas de vencer todos os perigos... Depois de algumas leituras e correções, cada conto tomou forma e se tornou único, como um sonho. Abram os olhos e deixem-se levar... Optamos pela leitura da obra de Lewis Carroll, Alice no país das Analu G. Del Suringar, Wanessa Kelli e Silva, Viviane Domeneguetti da Silva, Maria Luiza Britto de Toledo, Gabriela Bernardes Makishi e Lívia Moreira de Oliveira são professoras do 1º ano do Ensino Fundamental. 35 Sonhar, imaginar, querer 36 o sonhar. Cada etapa do existem pessoas que trabalho esteve não sonham nunca? entremeada por O que é um sonho de reflexões, debates e verdade? Quando um propostas de produção sonho se realiza, deixa escrita. de ser sonho? Essas são algumas das questões sobre as quais os alunos O convite a falar de si fluiu naturalmente: O que é sonho? Quem eu sonho ser? do 2º ano do Ensino Quando espio pra Fundamental se dentro, imagino que... debruçaram ao longo deste trabalho. O resultado desse percurso são Instigados pela textos curtos em leitura dos livros O que experiência, príncipe sem sonhos, pensamento e de Márcio Vassallo, e sensibilidade se O menino que espiava pra dentro, de Ana entrelaçam para Maria Machado, todos tempo, a leveza e puseram-se a pensar a profundidade que sobre as inúmeras cercam os sonhos na formas pelas quais as infância. traduzir, ao mesmo Entre as décadas de 1970 e 1990, o Profeta Gentileza perambulava com seus estandartes, barba longa e túnica, pelas cidades do Brasil, espalhando suas mensagens de “AMORRR”, como um verdadeiro cavaleiro andante contemporâneo. Mas foi no Rio de Janeiro, precisamente nos pilares do viaduto do Caju, que José Datrino registrou suas ideias sobre a beleza, a liberdade, o amor, a religião, a natureza e, claro, a gentileza, que, para ele, era “o remédio de todos os males”. Assim, o “UNIVVVERSO GENTILEZA”, como um autêntico livro urbano, e Talita Fagundes são professoras do 2º ano do Ensino Fundamental. nós sonhamos ou pessoas compreendem Priscila Mayumi Ribeiro, Aline H. Iozzi de Castro, Débora Manzano Zardi, Bárbara A. Pozas É possível sonhar de olhos abertos? Todos Poesia com Gentileza ficou imortalizado em 56 murais ao longo do viaduto. Hoje, seus poemas viraram lemas, seus murais ficaram famosos, inspiraram músicas, teses e tornaram-se poemas-sonhos realizados pelos alunos dos 6os anos. “Gentileza gera gentileza.” Esse foi o mote para o trabalho. Primeiro, os alunos precisaram entender a dimensão da frase do profeta: do espírito de cordialidade e de gentileza dependerá o futuro da Terra e da humanidade. A tarefa da nova geração será construir um novo paradigma civilizacional, outro tipo de ciência que cuide da subjetividade, da compreensão do sentido da vida e da benevolência nas relações humanas. Aprender alguns recursos poéticos e a estética muito particular do Profeta Gentileza foi o segundo passo. Para quem precisa mudar o mundo, nada melhor do que começar criando poemas-sonhos. Os alunos escreveram suas palavras poéticas com a energia de quem busca a transformação necessária do nosso modo de habitar o mundo, mais sensível e gentil, e devolveram a mim, professora, uma utopia positiva diante da vida. Valéria de Melo Pereira é professora de Português do 6º ano. 37 gaiola presa na cabeça. Acho que ele não sonhava mais, igual às pessoas da cidade da menina... Ele me examinou, mas nem olhou na minha cara. Sonhos. Esse seria, então, o tema da Mostra Literária de 2010. Ele nos despertou uma Fazia tudo assim, de maneira mecânica” – afirmou questão importante: até onde os alunos de 3º ano uma das crianças. - - - - - - - Ótimo! Os alunos já estavam sensibilizados pelo conseguiriam caminhar dentro desse tema? Será tema e mostravam a abstração que desejávamos. - tiveram a possibilidade de revê-la sob um novo - - aventura. Mais uma vez nosso foco seria não o - - - - - as inúmeras possibilidades trazidas por uma - - - - ua n d o desses sonhos, as crianças puderam contar com - personagem criada por elas. Tornou-se mais fácil - - vestido de sonhos, de Alexandre Rampazo. Sensível Quais serão os sonhos que habitam crianças tão pequenas? -q - - - - -- - - e simbólico. As imagens encantadoras permitiram que as crianças mergulhassem na história e Adriana Caravieri Rosa, Aluani Tordin de Oliveira, Cristine traçassem relações com suas próprias vidas. Bünecker Poyares, Lara P. Oliva e Marina Callil Voos são “Eu fui a um médico que vivia assim, com a professoras do 3º ano do Ensino Fundamental. - - - - Partimos para a leitura do livro A menina e o - - imaginação. - - falar de sonhos e da busca, podendo contar com a significativo): a menina sonhava em conseguir se - seu grande sonho (que não poderia ser mais lembrar de seus próprios sonhos. - - - - Aos poucos, Aurélia, a personagem principal, revelou sua incrível trajetória em busca de percorrer. Para tornar mais fácil a exposição - enredo selecionando os principais acontecimentos da história. sobre seus próprios sonhos e caminhos a - - -m - co o - Por fim, todos estavam prontos para pensar - mais simbólicas. Coletivamente, registramos o levaria até ele. - o vocabulário juntos e interpretamos as partes 39 sonho em si, mas o caminho transformador que - - - e- reviravoltas fantásticas. Discutimos, desvendamos - possibilidade de as crianças viverem uma sensível - - Iniciamos o trabalho com a leitura do livro denso. Aventura cheia de seres mágicos e que r o p d on - - e Russel, o menino solitário, ampliaram a Sonhos de Aurélia, de Eduardo Marquez. Texto - - - - olhar. Carl Fredericksen, o velhinho rabugento, O tema é, sem dúvida, de grande sensibilidade. Traçamos o projeto. - - - - 38 - - aventuras. Mesmo os que já conheciam a história teríamos de permanecer mais presos a ideias concretas e palpáveis? - Após essa leitura, assistiram ao filme UP – altas abstração, trabalhar com o sensível, ou será que - que poderíamos trabalhar exigindo uma maior - - - - Os caminhos que nos levam aos sonhos novos mundos, internos Luciana Tomiatto de Oliveira, Denérida sempre precisaria rever o seu e externos. Viajaram para dentro Brás Martins Tsutsui e Bárbara Elisa Alves ponto de vista acerca do assunto, e para fora. Martins são professoras de Português do Para tanto, logo percebeu que já que todos os conhecimentos estão em constante evolução foi o encontro, a oportunidade e a natureza nunca deixa de de deslizar por novas surpreender a todos. possibilidades de mundos e seres. Tal fascínio tem perambulado pelas mais diversas expressões humanas. Na literatura, 40 Uma viagem por dentro e por fora Desde primórdios, o ser humano se interessa pela vastidão do a compartilhar o universo criado apresentar narrativas envolvidas e vivido pelos nossos pequenos nos conceitos científicos. cientistas-astronautas por meio Neste ano, os alunos do tema. Sondaram várias leituras vontade de compreender o que está envolvendo ficção espacial, tanto ao seu redor e o sonho, desejo de literárias quanto informativas, realização, como suas principais desvendaram o Sistema Solar molas propulsoras. e o Universo também a partir de outros gêneros (palestra e os ritos ancestrais até as mais filme), imaginaram e criaram um elaboradas equações matemáticas ET e seu planeta e compuseram para tentar explicar as nossas várias produções, explorando origens e a do Universo. algumas situações desse ET Coube à imaginação humana confrontar o desconhecido, Estão prontos para uma missão científica, o qual tem por base Criação, tendo a curiosidade, a delinear os caminhos para não importou tanto. espacial? Convidamos vocês 4° ano tiveram contato com esse com o seu criador – cada aluno, especificamente. Nesse processo, puderam sonhar, expressando-se de maneira repleta brincar com a imaginação e ir de simbolismos e metáforas. além das fronteiras. Estabeleceram 4º ano do Ensino Fundamental. Sonho ou realidade? Isso, no final, concretiza-se no gênero ficção Universo e pelos mistérios da Esse maravilhamento perpassou Por fim, o mais importante de suas histórias. 41 Os sonhos mobilizam as ações Sabia-se exatamente 42 (...) Metade da arte movimento migratório, Durante as aulas, o significado narrativa está em a expectativa dos a adaptação ao da experiência: evitar explicações. alunos em conhecer novo ambiente e as ela sempre fora O ouvinte é livre mais a fundo o seu conquistas obtidas. comunicada aos jovens para interpretar a passado, despertam a passado fomentou as cultural dos alunos, Apropriar-se das com a autoridade história como quiser, imaginação criadora discussões nos últimos mas também trouxe vivências familiares da velhice, em e com isso o episódio de meninos e meninas. meses. Eles refletiram mais clareza às possibilitou que os provérbios, em narrado atinge uma sobre os desejos suas histórias. As alunos se tornassem histórias; muitas amplitude que não os diferentes relatos que motivaram seus experiências narradas os próprios atores vezes como narrativas existe na informação. de migrantes que familiares a buscar pela autora, desde sua dessas histórias e deixaram sua terra um novo destino, infância na Rússia e se reconhecessem natal e vieram as dificuldades na Letônia até a vinda como o fruto do Que foi feito de tudo para São Paulo, enfrentadas longe da para o Brasil, com sonho daqueles que isso? Quem encontra imbuídos de sonhos família, a adaptação 10 anos, descrevem venceram obstáculos, ainda pessoas que e expectativas de um às diferenças culturais poeticamente como alcançaram saibam contar futuro promissor, e o sentimento de se constrói um seus objetivos e histórias como elas os alunos do 5º ano pertencimento à cidadão brasileiro, constituíram uma devem ser contadas? reviveram as histórias cidade de São Paulo. exemplificando o grande família. de países longínquos, diante da lareira... Que moribundos dizem (Walter Benjamin) Como nos tempos Deleitando-se com de seus familiares. Revelar uma que ocorreu com os hoje palavras tão decorridos, a arte O processo dessa duráveis que possam de contar e ouvir descoberta teve início mundo e dar forma ser transmitidas de histórias continua com entrevistas com aos sentimentos a produção de uma geração em geração? exercendo um papel parentes – avôs, avós, são algumas das narrativa em primeira importante na nossa pais, mães, tias, tios funções da literatura. pessoa, em que os cultura, uma vez que – que compartilharam Nesse sentido, o alunos escreveram possibilita resgatar suas lembranças, livro Transplante de suas histórias como a memória daqueles fotografias e objetos, menina, de Tatiana se fossem os próprios que, emprestando o revelando experiências Belinky, não só antepassados, Ana Lúcia R. Almeida, Márcia seu olhar sobre o inesquecíveis e ampliou o repertório possível visão de migrantes aqui. Essa leitura originou contando ao leitor Ruiz e Luciana Tomiatto são transformadoras que as dificuldades professoras de Português do trouxeram consigo. enfrentadas durante o 5º ano. 43 Por entre os sonhos de Van Gogh Desejos, loucura, imaginação. Esse foi o caminho percorrido pelos alunos do 7º ano em busca de novas perspectivas sobre a vida e a obra de Van Gogh. Por meio da análise dos quadros do pintor, os alunos puderam conhecer sua genialidade artística. Já a partir da leitura de sua “biografia romanceada”, Sonhos em amarelo, de Luiz Antônio Aguiar, entraram em contato com a história do homem Vincent e com uma vida repleta de desejos não realizados, angústias e solidão. As discussões sobre a vida do artista trouxeram importantes reflexões acerca de sua tão conhecida loucura e do modo como esta surge representada em suas pinturas e/ou desejos pincelados sobre a tela. Inspirados pela experiência cinematográfica de Akira Kurosawa, os alunos foram instigados a invadir as telas de Van Gogh, procurando dentro delas (e em sua própria imaginação) representações “escondidas” sob as pinturas e criando, assim, novas perspectivas sobre a obra do pintor. Essa viagem onírica que invadiu a obra do artista foi, mais tarde, transformada em palavras, relatos difusos de uma experiência imaginada. Foi assim, a partir de uma figura tão emblemática, que os alunos do 7º ano entraram em contato com o mundo dos sonhos, não apenas aqueles que surgem enquanto dormimos, mas, principalmente, aqueles que sonhamos acordados. Juliana Yoko é professora de Português do 7º ano. 45 Em 1605, Miguel de Cervantes publicava a primeira parte de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. A preciosa obra mostra as aventuras de um herói que aspirava tornar-se um renomado Cavaleiro Andante. Quixote realiza seu desejo, ao mesmo tempo que os leitores do 8º ano — compadecidos e sensibilizados com a coragem e a resistência à dor do nosso cavaleiro da triste figura — indagam: “A que preço?” Durante a leitura desse clássico da literatura mundial, os alunos discutiram a presença de aspectos trágicos e cômicos, ao lado de personagens que conversam sobre sua própria história. Diversão e reflexão permearam a escolha de uma cena da obra, 47 que registrada como linguagem não verbal, juntamente com um recorte da atualidade, representaria o SONHO de Quixote e do homem contemporâneo — seria o mesmo? Os textos verbais que acompanham cada conjunto de imagens contextualizam os fragmentos do livro selecionados pelos alunos. Harold Bloom, crítico literário norte-americano do século XX, elevou Cervantes a um dos dois maiores escritores de sua época até hoje. O cavaleiro da triste figura ontem e hoje E quanto ao sonho de Quixote? É legítimo nos dias atuais? Dom Quixote de La Mancha Adriana Ramacciotti é professora de Português do 8º ano. Pesadelo acordado Você abre o livro e lê o primeiro parágrafo. Nele, fica sabendo Se você gosta de histórias de terror e espera que ele vá aterrorizar a em inseto para lutar contra as cidade, entrando nas casas e raptando pessoas para levar a uma toca injustiças, você errou... escura, você errou mais uma vez... Se você gosta de histórias Nenhuma explicação. Nada. Após o primeiro parágrafo, a narrativa que o protagonista se transformou românticas e espera que ele se continua com um realismo inesperado e absolutamente angustiante para em um inseto monstruoso após apaixone por uma linda donzela, quem aguarda uma resposta plausível. acordar de um sono agitado. que no começo o achará horrível, O que você espera da sequência mas aprenderá a enxergar sua concretizar, porque a metamorfose em questão não é um pesadelo do da história? beleza interior, e eles serão felizes qual se possa acordar, é uma condição permanente. Nos dizeres de para sempre, apesar Modesto Carone, principal estudioso brasileiro da obra de Kafka, resta- de aventura e espera que ele seja das diferenças de aparência, você nos, então, o incômodo de deparar com uma narração transparente um novo tipo de super-herói, com também errou... sobre como a família do inseto Gregor Samsa lidará com a questão, mas Se você gosta de histórias 48 a capacidade de transformar-se Nenhuma possibilidade de resolução que o leitor levante irá se que é ao mesmo tempo uma narração cujo início permanece opaco. O “pesadelo acordado” de Gregor Samsa foi, assim, o ponto responsável por inquietar os alunos do 9º ano. A fim de melhor compreender a inverossimilhança da história, discutiu-se, a partir de elementos do texto, a vida familiar e a vida social do protagonista antes de sua metamorfose e durante ela, e constatou-se: simbolicamente, ele já era um inseto, um ser insignificante, apenas mais uma peça na engrenagem repetitiva de um cotidiano massacrante e de uma relação familiar pautada pelo oportunismo e pelas conveniências, e não pelo afeto verdadeiro. O processo resultou em trabalhos que buscam captar poética e visualmente a incômoda trajetória do protagonista Samsa, dandolhe, talvez pela primeira e única vez, voz para mostrar-se e gritar silenciosamente para você, que verá os trabalhos: “Aprenda comigo e tome cuidado para que a sua vida não se torne um pesadelo do qual seja impossível acordar...” Rogério Viana Gusmão é professor de Língua Portuguesa do 9º ano. 49 Ao acordar naquela manhã gráfico; arriscamos dizer também que nenhum leitor é o mesmo após de sonhos perturbadores, a leitura de A Metamorfose. A impotência de Gregor Samsa, diante Gregor Samsa viu-se de ações tão rotineiras, alude às fraquezas humanas perante as pressões transformado... sociais; denuncia uma sociedade que restringe o valor do ser humano às aparências. Em um inseto! Mas o fato Nesse processo de reflexão e de interiorização dos temas da obra, aterrador, vivenciado pela os alunos se metamorfosearam. Primeiramente, como leitores: tomando personagem, não assombra consciência do eu, do outro e do mundo. E, a partir dessa apreensão, ninguém. Esse é o paradoxo transformaram-se em escritores, traduzindo em minicontos – textos crucial que persegue as reflexões curtos e densos – as questões suscitadas pela leitura. do leitor de A Metamorfose, obra Com suas produções, esses jovens escritores hoje realizam uma de Franz Kafka e adaptada, em das funções primeiras da literatura: despertar no leitor sua dimensão HQ, por Peter Kuper. humana, tornando-o mais compreensivo com a sociedade e com seu A angústia da personagem 51 semelhante. kafkiana também foi experimentada pelos alunos do 1º ano do Ensino Médio, nos fragmentos revisitados da obra Mara Scorsafava é professora de Língua e Produção de Texto do 1º ano do Ensino Médio. integral e na adaptação em HQ. Reconheceram, na releitura de Franz Kuper, as mesmas questões existenciais presentes na narrativa original: Quais as escolhas certas? Qual o objetivo de vida? Como lidar com a solidão? Kafka nunca permitiu a seus personagens voltar à normalidade depois de sonhos perturbadores, segundo o artista hora de acordar!!! Sala onírica “Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar.” (Paul Ricoeur, Da Interpretação) 52 dantes navegados”. Os escritores ingleses William os escapismos, os amores possíveis e impossíveis, Blake e Lewis Carroll submergiram um mundo a utopia, o pesadelo e o sonho sempre foram de sonhos e de fantasia em Terras do sonho matéria-prima para a literatura. Desde a Grécia e Alice no país das maravilhas e trouxeram antiga, os sonhos personificados em oráculos à tona a alma humana desnuda. O romântico e os pesadelos, em destinos, deram asas à Álvares de Azevedo e o simbolista Cruz e Souza imaginação de escritores. desfilaram imagens nebulosas e escuras Cecília Meireles, poeta modernista, em seu e retrataram como poucos o universo tênue poema “Reinvenção”, preconiza: “A vida só entre o real e o imaginário que circunda é possível reinventada.” Ao longo de todo seu a atmosfera do sonho. percurso na Terra, o homem tentou traduzir Instigados pelo mote da Mostra Literária em palavras os seus assombros. Por meio de deste ano – “A literatura é o sonho acordado diversos recursos linguísticos, como metáforas, da civilização” – e por textos ficcionais, os personificações, hipérboles, antíteses, sinestesias, alunos do 2º ano do Ensino Médio reproduziram entre outros, a literatura buscou a tradução mais uma “sala onírica” em que as sensações próxima dos sentidos provocados pelo universo múltiplas, desconexas e alinhadas do sonho são onírico, a fim de oferecer ao leitor experiências representadas por meio de sugestões auditivas, nunca antes vividas. táteis e olfativas. E o visitante, de olhos vendados, Dante, em A Divina Comédia, alerta-nos à porta é convidado a mergulhar nesse universo de do inferno: “Deixais toda esperança, ó vos que sugestões que é a literatura para enxergar o que entrais.” A esperança, uma espécie de sonho está sentindo, como nos versos de Chico Buarque acordado, é posta em xeque pelo bardo italiano. e Edu Lobo: “Saiba que os poetas, como os cegos, Camões, por sua vez, em Os Lusíadas, desafia sabem ver na escuridão.” a desesperança e o medo com “Por mares nunca João Jonas Veiga Sobral é professor de Estudos Literários do 2º ano do Ensino Médio. As angústias, os desejos, os devaneios, 53 Brincadeira de criança Os vencedores do IX Concurso Literário de 2010 Hoje fui brincar de roda Na calçada pular corda E também de amarelinha Eu, a Paula e a Julinha Lá no muro, contei até dez Todo mundo se escondeu Corre aqui, corre pra lá E o João Pedro se perdeu Nossos “escritores”, selecionados por quatro profissionais que não fazem parte do quadro de professores da Móbile, têm agora suas produções publicadas nesta 9ª edição da Revista da Móbile. Boa leitura. Todas essas brincadeiras Que as crianças sempre gostam Com carinho e alegria Seus sorrisos sempre mostram Rafael Montressor Coelho (categoria poesia – 6º ano) 55 O Assassinato de Mrs. Dobbon Eu estava a assim que ela havia ido fazer sua havia sido assassinada no lugar pelo travesseiro. Aquele vermelho, reclinável caminhada. Pensando em se juntar à onde em mesmo levemente desbotado, era de meu modesto escritório na Rua mulher, Arthur se dirigiu ao parque, outro lugar e levada até o parque. reconhecível: só podia ser sangue. Bolton, número 9, Londres, quando onde a encontrou estirada no chão, Eu já fazia ideia do lugar; porém, Agora não havia dúvida: o crime um estranho sujeito bateu à porta e, com os lindos olhos azuis abertos, a faltavam provas. havia sido cometido na casa e o sem esperar por resposta, irrompeu camiseta que antes combinava com Com base em minhas hipóteses, cadáver, levado para o parque, pois na sala. Ofegante, ele balbuciou as a cor destes agora tingida de um pedi a meu cliente para fazer uma assim haveria um maior número quatro palavras que me fizeram vermelho profundo. Ao terminar o visita à sua casa e assim ocorreu. de suspeitos, levando em conta perceber que teria muito a fazer relato, o triste homem com os olhos No dia seguinte à minha primeira que qualquer um que estivesse no nas minhas próximas semanas: recobertos de lágrimas mal podia descoberta, fui até a habitação de parque poderia tê-la matado. enxergar. confortável 56 sentado poltrona sobre – Minha esposa foi assassinada! fora encontrada, mas Dobbon e fiz uma busca minuciosa Ao sair da casa, a noite já Pedi calma ao homem que, após Após algum tempo pensando, por todos os cômodos, me detendo no caíra e, ao observar atentamente conter-se, explicou que se chamava decidi ver o cadáver pessoalmente; quarto do viúvo. Nessa dependência a rua, percebi um vigia noturno. Arthur Dobbon e que sua esposa, entretanto, meu da morada de Arthur observei, com Sem Anny, havia sido assassinada ao ir cliente de mais sofrimento. Assim o auxílio de minha lupa, todo o chão perguntando: fazer seu passeio diário no parque. pensando, liberei Arthur e me dirigi à procura de outro fiapo semelhante – Por um acaso alguém passou Além disso, o homem falou que ao parque onde supostamente o ao que eu encontrara na camiseta aqui com um grande saco nas costas precisava de minha ajuda, já que crime ocorrera. Chegando lá, não de Anny. Nessa busca, eu não obtive nas últimas noites? eu era o melhor detetive de toda a tive sucesso. após – Sim – respondeu o vigia –, uma Grã-Bretanha. Obviamente, aceitei o o corpo da recém-falecida. Retirei procurar qualquer vestígio que me mulher, mas, todo o dia ela passa trabalho, solicitando detalhes sobre uma amostra da roupa com sangue servisse de prova no armário e nas por aqui com um saco, e, além dela, o crime recém-praticado. e levei-a para meu escritório, para gavetas, iniciei uma busca na cama não me recordo de ninguém. O nome dela é Jan Dobbon. queria dificuldades poupar para encontrar Entretanto, logo hesitar, me dirigi a ele O Sr. Dobbon disse que na noite poder estudá-la. Depois de um tempo do casal. Ao retirar as cobertas do passada ele havia feito uma viagem observando a prova, descobri um leito pude observar no canto do Levei um susto com a palavra a Paris, para tratar de negócios. Ao fiapo de outro tecido, provavelmente colchão uma pequena mancha de “Dobbon” na fala do segurança e chegar em sua casa por volta das usado na confecção de um saco (já coloração vermelha levemente mais voltei correndo à casa de Arthur sete horas da manhã, constatou que que era bastante resistente). Com forte do que a utilizada na estampa perguntar quem era essa pessoa. sua esposa não estava lá, achando esse indício concluí que a moça não do colchão, parcialmente encoberta Obtive a seguinte resposta: 57 – Jan é a ex-mulher de meu irmão. Ela quis manter o sobrenome. – Por que eles se separaram? – perguntei, com o crime quase desvendado. pouco. – Eles se separaram porque meu irmão achou que ela me amava secretamente, porém eles ainda moram juntos. 58 Restava apenas perguntar se o irmão do Sr. Dobbon tinha a chave da casa de Arthur. A essa pergunta, tive uma resposta afirmativa. O crime estava desvendado! Jan havia matado Anny para ter uma chance de ficar com o ex-cunhado. Ela havia pego a chave da casa de Arthur, entrado nela durante a noite e cometido o crime. Ela levava o saco todos os dias para iludir o policial, fazendo com que ele não desconfiasse. A criminosa foi presa no dia seguinte e mais um crime desvendado foi colocado em meu currículo, o que fez com que mais pessoas viessem O sonho ou pesadelo? – Bem... – Arthur hesitou um Estava andando em uma escada Não sabia se era dia Não sabia se era noite Não havia mais nada, só havia a escada De carpete vermelho e de madeira entalhada. Subia, subia Descia, descia Passos rangiam Vozes surgiam Rostos riam A coisa mais horripilante O medo a todo instante Não sentia mais o chão E no meio da escuridão Um passo fora Uma vida vai embora De repente na imensidão Estou ali em meu colchão ao meu modesto escritório da Rua Bolton, número 9, Londres. Pedro Carregã Sant’Anna Luiza Fernandes Gremaud (categoria prosa – 6º ano) (categoria poesia – 7º ano) Para sempre, sempre e sempre Era mais uma noite exaustiva de agosto. O vento uivava, abafando o barulho da TV. A pequena Carlinha estava deitada em sua cama, – Bem legal aqui, não é? – uma moça murmurou. – Me chamo Chantal, venho sempre à velha feira de Notre-Dame! abraçando seu ursinho chamado Panqueca. Ao seu lado, encontrava-se uma – É realmente fantástica! – Carlinha respondeu, educadamente. reprodução do quadro “Les Parapluies” que havia ganhado de aniversário. Chantal era pálida, mas linda. Vestia um longo vestido preto e segurava Ela o encarava intensamente, explorando cada centímetro da tela, cheia uma bela cesta marrom, ainda vazia. Seus lábios eram vermelhos e de mulheres maravilhosas em um lugar chuvoso, empunhando grandes carnudos, o que fazia seu sorriso ficar estonteante. guarda-chuvas pretos. De repente, a luz do quarto se apagou. Carlinha via apenas um vulto, – Tem de tudo aqui! – disse, pegando uma flor e entregando-a para Carlinha. – Tome, Margherite, leve à sua mãe. dançando pelo lugar. Em instantes, a luz se acendeu, revelando uma – Mas... Eu não sou Margherite! – Carlinha respondeu, atordoada. garotinha pálida, com olheiras e olhos grandes e intensos, fixos em Carla. Chantal não ouviu nada, em poucos segundos ela já estava longe de – Venha brincar comigo! Para sempre, sempre e sempre. – A garotinha Carlinha, deixando a feira apressadamente, arrastando a cauda de seu sibilou, tenebrosamente. Carlinha piscou, assustada. E, em segundos, a menina sumiu. A garota suspirou aliviada, virando-se para o lado, tentando dormir. Devia ter sido apenas uma alucinação, criada pelo sono. Mal conseguiu dormir, foi acordada pelo pedido insistente da menina. Cansada, ela cedeu. A garotinha sorriu, colocando o bambolê em frente ao quadro, indicando através de um gesto que Carlinha devia pular. Ela vestido. – Filha, vem cá! – uma moça disse, andando em direção a Carla. – Eu não sou sua filha! – Carlinha respondeu, cada vez mais confusa. A mulher ruiva, de chapéu florido e baixa estatura em nada lembrava a Senhora Silva, a alta e loira mãe de Carlinha. – Venha, Margherite! A lua já vem, seu pai deve estar morrendo de fome! – Ela repetiu. obedeceu o pedido da criança. Instantaneamente, ela se viu em outro lugar, Carlinha estremeceu. Virou-se e nada da francesinha. Ao longe, como cercada por lindas mulheres. Olhou ao redor, era o mesmo lugar que estava se fosse uma visão através de uma janela embaçada, estava seu quarto, retratado em seu quadro! Ela ficou impressionada, sentindo-se naqueles com as altas paredes brancas, os bichos de pelúcia dispostos em prateleiras filmes fantásticos a que adorava assistir. e a cama. A cama, com Margherite dormindo, abraçada ao pequeno urso – Sou Margherite! – a menina pálida disse. – Bem-vinda a Paris, nossa casa! Panqueca. Carlinha se sentiu tonta e mole. Estava presa no quadro. Sem seu pai Carlinha sorriu, virando-se de um lado para o outro. O local em que nem sua mãe, apenas com franceses que não conhecia. Lágrimas caíam estava parecia uma feira, com barracas cheias de frutas e flores. Muitas de seus olhos. Mas não eram lágrimas, eram rápidas pinceladas, assim pessoas seguravam guarda-chuvas. Logo, ela percebeu que as mulheres como seu pequeno corpo e o local em que viveria para sempre, sempre e também eram as mesmas do seu quadro. sempre. Luisa Prado Betti Guarnieri (categoria prosa – 7º ano) O despertador tem duas caras O despertador é um ditador, Controla nosso tempo com clamor. 62 O preço da eternidade Cheguei a uma construção velha, que está aqui – exclamou UMA com paredes desbotadas pelo sol, VOZ vinda do canto do jardim. a porta da frente carcomida por Calafrios percorreram meu corpo O despertador, além de inimigo, cupins. Aquela sensação de que não ao reconhecer A VOZ. Então era Também é nosso amigo. devia estar ali apenas aumentou. pra isso que viera. Para ouvir mais Não deixamos de acordar, Apertei a bolsa contra meu corpo e uma vez o doce som de SUA VOZ. Se está a despertar. o volume que senti me acalmou. Como sentira saudade! Levantei Respirando fundo, entrei pela porta meus olhos e o vi. Não havia Aperto um botão para regular, rapidamente, antes que mudasse de mudado nada. Era como se os anos E saio de casa sem errar. ideia. não tivessem passado. Era ainda o Eu me vi numa sala de estar mesmo homem que me conquistara, Como é possível? completamente vazia, a não ser com aqueles cabelos louros e olhos Um insignificante botão por um sofá velho que algum dia já azuis penetrantes. O sobretudo dava- Regular e reduzir fora de um lindo veludo, mas agora lhe um ar misterioso, que apenas o Meu sono de montão! estava gasto pelo tempo. Continuei deixava mais interessante. andando, forçando minhas pernas a O despertador, além de inimigo, Também é nosso amigo. continuarem. Tentando esconder minha saudade, perguntei: Não tinha certeza se deveria – Guilherme? Por que me fez estar ali, mas, por algum motivo vir até aqui? Demorei muito para E depois de arrancar a minha liberdade, que ainda desconhecia, continuei. encontrar este lugar! Me presenteia com a sociedade. Deparei-me com outra porta, um Com ele, para tudo tem tempo pouco E ainda sobra horário prum “passatempo”. primeira, e entrei. mais conservada que a perto da cidade. Você sabe como Um pequeno jardim apareceu diante Rodrigo Lucas (categoria poesia – 8º ano) de mim. – Ah, querida. O que esperava? Não poderia me encontrar com você A terra seu marido é ciumento. E já que dura realmente precisava falar com você, era seca, nenhuma flor à vista. aluguei este lugar. Acho que é bom Era evidente que há muito tempo o bastante. ninguém cuidava deste lugar. – Bom dia, Elizabeth! Que bom Ele tinha razão. Se Eduardo soubesse de nosso encontro haveria 63 problemas. Estava começando a achar que isso não acabaria bem. – Então diga logo. O que quer? Por que me chamou aqui? transformando-a em um fiapo de tudo e todos, que fazia com que tudo som, em um sussurro fraco. parecesse possível. Queria isso de volta. Ele afundou a mão no bolso mais – Apenas um gole é suficiente, pudesse. Não consegui nem sair do querida. Infelizmente este é o último jardim. Rápido como um gato, ele frasco. lá um pequeno frasco, que continha ele parecia estar cuspindo essas pulou na minha frente, bloqueando Sorri com o canto dos lábios. um líquido azulado. Segurou o objeto palavras, com verdadeira raiva de a passagem. Segurou meus ombros, Enfiei a mão em minha bolsa e com as duas mãos e olhou para cada uma delas. imobilizando-me. a explicar, lendo dúvida em meus olhos. foram que tomar tudo? essas Recompondo-se, Guilherme começou Infelizmente me preparei para correr o mais rápido que conversas que nos separaram – algo magnífico. – Virei de costas e – Mas quanto devo beber? Só um golinho já me deixa imortal ou tenho profundo de seu casaco, tirando de aquilo como se fosse algo precioso, 64 Guilherme. Um amor que superava rapidamente peguei meu aparelho – Tudo que eu sempre fiz foi – Você não vai fugir. Eu consegui, de choque. Agradeci em silêncio a tentar atender aos seus desejos, aos Elizabeth. Eu consegui! – agora ele Roberto, que me obrigava a carregar seus caprichos. Mas é claro que você deliciava-se essa coisa por ai. achou que eu estava exagerando. rindo, com os olhos esbugalhados Ah. Sim. A fala de meu ex-marido com suas palavras, apontados para mim. Diante da cara surpresa de Guilherme, pressionei o aparelho – Lizzi, Lizzi. Lembra-se de nossa me trouxe de volta à realidade. Toda – Podemos viver juntos e jovens juventude? Lembra-se de quando a perfeição do noivado e do início para sempre! Nunca teremos que elétrica percorreu seu corpo, e ele costumávamos caiu no chão, se debatendo de dor. sentar sob contra sua barriga. Uma onda as de nossas vidas de casado acabou-se nos preocupar com nada! Tudo será estrelas e sonhar alto, mais alto do quando ele começou a frequentar a perfeito.Você só precisa beber isto, que qualquer um já havia sonhado biblioteca todos os dias, lendo livros e tudo ficará bem – agora ele me a chorar como uma menininha, antes? Lembra-se do que dizíamos? sobre a vida eterna, sobre poções tratava como um bebê. Sorrindo deixando toda a tristeza e o medo Do que queríamos? Você desejava ser que tornavam possível ser jovem amigavelmente, mas ainda com os sair. Corri para fora daquele lugar linda e livre de rugas para sempre. para sempre. Depois disso, começou olhos penetrados em meu rosto. maldito e peguei o primeiro táxi que Queria não ter que se preocupar com a construir um pequeno laboratório cabelos brancos e dor nas juntas. na casa e… E eu queria continuar correndo minhas continuar antes que fosse longe demais. que desabei. Comecei encontrei. costas. Tinha que pôr um fim nisso, Foi nesse momento que entendi aí Antes de ir, olhei para trás. Ainda estatelado agora chorava, no chão, a o que era aquele frasco. Entendi poder te levantar em meus braços por que Guilherme o segurava com conseguiu o que eu sempre quis! Ah, e quando íamos para a cama. tanta admiração. Ele conseguira. Ele Guilherme, muito obrigada! – disse, sussurrei um adeus ao vento. obtivera sucesso, depois de todos tentando parecer verdadeiramente esses anos. feliz. Ele sorriu e levou o frasco à maratonas, Engoli o pânico e endireitei as Foi Eu lembrava, é claro. A vontade de recuperar um pouco dessa lembrança foi o que – Viver para sempre? Você doloridas. lágrimas Entrei me – Não. Isso não. Não de novo. minha boca. Fingi estar em dúvida trouxera ali. É claro que amava meu – uma agonia que não consegui por um momento e abaixei sua Nina Trentini Borghi marido. Mas não do jeito como amei controlar mão. (categoria prosa – 8º ano) cortava minha voz, no ele gordas carro e 65 Nagô Acorde Quero parar o tempo, mudá-lo de lugar. Como se pudesse escolher apenas os trechos mais bonitos do meu filme. Como se pudesse saber qual será a próxima cena. Levanta, levanta! Ficar aí desejando não adianta. 66 Corre, anda. Faça. Nada nem ninguém te impede de tentar, procurar, se arriscar. Meu nome é Nagô, como o grande deus guerreiro dos meus ancestrais. Assim me disse minha mãe, e é só isso que me lembro dela, essas poucas palavras. Minha mãe se foi quando eu era muito criança, chorei por muitas noites, sentindo uma dor funda que parecia não ter fim. Hoje sou homem feito e minha dona, Sinhá Violeta, me chama de “nego fedido”. Seu filho, Sinhozinho Armando, me chama assim também e, algumas vezes, acrescenta “maldito” ao meu nome. Desse jeito, aqui, na fazenda Nova Esperança, sou nego, fedido, maldito, ou as duas coisas, e meu nome verdadeiro, aquele que ouço nos sonhos, guardo, pois é tudo que tenho nessa vida. Sinhá Violeta me comprou para fazer “de um tudo” na fazenda. Faço todo serviço da casa, varro, cozinho, capino o mato que teima em crescer nos arredores. Sinhá passa os dias comandando a fazenda, de cara fechada e chicote em punho, e me faz segui-la por todo canto, como um cão na coleira, para chutar quando tiver vontade. O único lugar onde nunca entrei é um cômodo pequeno, no sótão, que Sinhá mantém trancado a chave, e onde ninguém, nem mesmo Sinhozinho, tem permissão de entrar. Já ouvi ela dizer ao filho que aquele quarto ela visita pra lembrar do seu amor perdido e que não quer dividir com ninguém. O Sinhozinho já tentou de todo jeito convencer a mãe a deixá-lo espiar o quarto, tentou até encontrar as chaves remexendo nas coisas de Sinhá, mas ela as mantém bem presas, na sua cintura. Dizem que Sinhá Violeta perdeu o marido muito cedo, Sinhozinho ainda era menino de colo. Nunca mais Renata Sardenberg se casou, vestiu-se de luto e azedou a cara para sempre. (categoria poesia – 9º ano) Dizem também que é muito rica, mas se isso é verdade 67 68 não sei, porque a Sinhá vive como se não tivesse vintém. força que ela não conseguiu soltar sequer um gemido e em A comida é escassa, e os poucos escravos passam fome, segundos desabava no chão, morta. O Sinhozinho gritou, e seu único filho vive em guerra com a mãe por conta de em triunfo, dizendo: “Velha desgraçada, teve aquilo que dinheiro. mereceu, agora é tudo meu.” Correu os dedos pela cintura Sinhozinho Armando não trabalha, nem mesmo da Sinhá, encontrou a chave que ela mantinha sempre toma conta dos assuntos da fazenda, gosta mesmo é de amarrada lá, e arrancou-a. Foi então que ele me viu e seu farrear. Sai todas as noites e volta de manhãzinha cheirando olhar de ódio tresloucado me fez gelar de pavor. “É você, a bebida e perfume barato. A Sinhá se enfurece, grita com nego maldito, sempre metendo o nariz onde não deve, pois o filho, ele grita de volta, e os dois terminam por bater agora você vai morrer junto com a sua dona, para continuar em mim, sem dó, para aliviar o que sentem. Sinhozinho a servi-la no inferno”, disse isso cuspindo e se atirou em Armando só dirige a palavra à sua mãe para lhe pedir minha direção. dinheiro, sempre mais e mais, dinheiro que ela não dá, e arruma um jeito de surrupiar, revirando as coisas de lançando as mãos em garra para o meu pescoço, como tinha Sinhá, levando uma joia quando não encontra em espécie. feito com a Sinhá. Ele apertou e eu não lutei, nunca tinha Tudo que some, e some sempre, Sinhá me acusa, mesmo lutado por nada na vida. Minha vista começou a escurecer, sabendo que foi o Sinhozinho, e lá vem chicote. e eu ia indo, entregue, quando ouvi a voz da minha mãe. A Eu corri para a cozinha e foi lá que ele me alcançou, Uma noite acordei com os gritos de Sinhozinho voz que me disse tão poucas palavras, mas que eu nunca ecoando pela casa. Levantei-me e fui, silencioso como pude, me esqueci, disse: “Nagô, você é um guerreiro, escute os espiar o que estava acontecendo. O Sinhozinho gritava com tambores, lute.” E eu os escutei, soando alto, abri os olhos e a mãe, que parecia ter acabado de sair da cama, implorando agarrei com as minhas mãos duras de calos o pescoço macio que ela lhe desse dinheiro, para pagar a dívida do jogo. de Sinhozinho. O pescoço partiu fácil, como das galinhas Disse que se não pagasse seria morto, rastejou, agarrou que eu costumava matar pro almoço. Vi a chave no bolso a camisola da mãe, desesperado. Sua voz estava enrolada do Sinhozinho morto. Não quis pegar, não quis saber. pela bebida, os olhos vermelhos e injetados, fixos na mãe. A Sinhá olhava para o filho com nojo, como se fosse um inseto olhar para trás. Corri para o mato, arranquei os trapos que pegajoso, exatamente como ela costumava olhar para mim. me prendiam à minha vida de escravo, fiquei nu, mergulhei Olhava e dizia entre os dentes: “Não, não, não, prefiro vê-lo mais fundo na mata, até ficar cercado pelo silêncio das morto a assistir você levar essa vida suja e degenerada, de árvores. Sou Nagô, guerreiro, caçador, livre. Sai caminhando na noite escura, sem ser visto, sem mim você não terá vintém.” O rosto de Sinhozinho se contorceu e, de repente, ele voou no pescoço de Sinhá, apertando os dedos com tanta Antonio F. S. Reis (categoria prosa – 9º ano) 69 O e-lixo e a saúde humana O e-lixo, resíduos tóxicos provenientes de materiais eletrônicos, São Paulo É como se cada um tivesse o seu pode causar grandes problemas à saúde humana. O descarte incorreto desses objetos pode contaminar lençóis freáticos e o solo, o que, de alguma E o tudo ocupasse o todo quase infinito dessa cidade forma, pode afetar a vitalidade de homens, mulheres, crianças e idosos. É indispensável a destinação correta desses materiais, o que não vem Na bagunça das ruas acontecendo, já que os programas de reciclagem ainda são tímidos e insuficientes. 70 Luzes de semáforo colidem com fumaça de ônibus Segundo um relatório do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a quantidade de resíduos eletrônicos descartados Poluição sonora, visual e atmosférica no mundo aumenta 40 milhões de toneladas por ano. A maior parte desses materiais é depositada em aterros comuns, sem nenhum cuidado para que Coexistindo em perfeita harmonia não contaminem o solo. Isso ocorre porque as autoridades mundiais não investem e não incentivam programas de reciclagem do lixo eletrônico, o Luzes, festas, pressa, carros, morte e sangue que causa o descarte desses materiais em locais incorretos. Esse depósito incorreto do e-lixo pode causar sérios danos à saúde Dão vida a essa cidade dos seres humanos. Se esses resíduos forem jogados em aterros sanitários e lixões, o solo e a água de rios e lagos podem ser contaminados, o que Que seria tão cinza quanto seus prédios acaba afetando os alimentos que ingerimos. A radioatividade de pilhas e baterias, por exemplo, pode até causar mutações em nosso DNA, afetando Se não fosse a bagunça alegre de sua autodestruição o crescimento de futuras gerações. Portanto, é necessário que as autoridades competentes tomem Que se reconstrói a cada dia conhecimento desse gravíssimo problema, para que possam agir de forma correta para eliminá-lo. Desse modo, poderemos viver melhor com menos lixo nos aterros sanitários, com menos contaminação de lençóis freáticos e em um planeta mais limpo e saudável. Gustavo Henrique S. Cezar Fernanda Pontes Battaglia (categoria prosa/não ficção – 9º ano) (categoria poesia – 1º ano do Ensino Médio) 71 mente. Mas o amor sempre busca a matéria para se concretizar e ele não poderia deixá- Metrô la escapar novamente. 72 O trem começava a frear, os corpos Eram dezoito horas de um em inércia e ela mirava a porta, ansiosa. dia qualquer. O metrô era Desejava, acima de qualquer outra coisa, a única coisa que em sua que ele simplesmente a seguisse. Toda vez mente representava algum que se encontravam no mesmo metrô, ela avanço na sociedade. Dentre parava para observá-lo e deixava o vagão todas aquelas pessoas, era na esperança de ele seguir pelo mesmo o único que se mantinha rumo. Mas isso nunca acontecia, e ela sereno no vagão. Estava voltava para casa, só e desiludida. Caminhou sem rumo. lentamente na multidão que se formava em Seus olhos negros frente à porta do transporte. Os olhos dele a miravam o vazio até se seguiram rapidamente, o coração palpitando encontrarem com outros, alucinadamente. Tomou coragem e a seguiu. também escuros. E então A verdade é que ele não sabia o que estava seus joelhos começaram a fazendo, deveria estar ficando louco ou algo falhar. assim. Mas que é o amor se não loucura? Conhecia aqueles olhos de outras viagens. Era Seus passos eram apressados enquanto os ela. Fazia algum tempo que dela eram suaves. A paisagem cinza passava ele não a via, e lá estava embaçada pelos seus olhos e ela era seu foco. ela, parada, recostada na Por um momento as pálpebras se fecharam. parede do trem. Quando tornaram a abrir, ela não estava mais Não que ele a Onde está o povo? lá. A aura que a envolvia havia sido coberta conhecesse, nunca haviam pela imensidão de pessoas na estação. se falado, na verdade. Mas Ele só queria alcançá-la, enquanto ela queria qual é a importância das ser alcançada. palavras quando sua alma Tiririca tem mais de 1 milhão de intenções de voto para Deputado Federal em São Paulo. Essa manchete me chocou. Ela mostrou o quanto a política está conseguindo se tornar motivo de piada no Brasil. Poucas pessoas efetivamente se preocupam com o processo eleitoral, com nossos candidatos, o futuro do Brasil. As pessoas preferem votar “em qualquer um” a fazer uma pesquisa de verdade sobre os candidatos (o que para os cargos legislativos acontece ainda mais). Tiririca ter tantas intenções de voto só comprova isso. Mas não é só ele. No último dia 2 de outubro o jornal Folha de S. Paulo publicou no seu “Guia do eleitor” uma lista completa de candidatos a Deputado Federal e Estadual em São Paulo. Candidatos como “João da Vigilância”, “Donizete da Farmácia” e “Lambari” exemplificam a falta de seriedade no processo político do país. Até cargos importantes como o Senado foram atingidos. Um político deveria ter anos de experiência para poder se candidatar a esse tipo de cargo. Contudo, não é isso o que acontece. Netinho de Paula era cantor de um grupo de pagode e apresentador até pouquíssimos anos atrás. Hoje, de acordo com alguns órgãos de pesquisa das intenções de voto, chegou a liderar a já foi misturada a outra? corrida pelo Senado em São Paulo, estado que é o mais Bastou um primeiro olhar e tudo já havia sido dito, Lígia G. Cossé ela já estava presa em sua (categoria prosa – 1º ano do Ensino Médio) populoso e rico do país. Mas... quais são suas propostas? Como conseguiu subir na política tão rapidamente? Não é só o 73 fato de ser mais associado à imagem de pagodeiro e apresentador do que plano, não creio que possam acontecer outras manifestações como essas. à de político que pesa. Netinho agride constantemente as pessoas. Não é por falta de corrupção e ações vergonhosas dos políticos. Além do caso mais lembrado pelos jovens, o do soco desferido Recentemente houve o caso do mensalão, a descoberta do que os por ele contra o “repórter Vesgo” do Pânico na TV, ele ainda deputados realmente faziam com as passagens aéreas que bate em mulheres. Até onde se sabe, já agrediu uma lhes eram dadas para trabalhar, os escândalos envolvendo funcionária de uma companhia aérea e sua ex-mulher. José Sarney, Erenice Guerra, Renan Calheiros, e por O que um homem como ele quer no Senado? Acabar 74 aí vai. Os jovens de hoje em dia (como eu, inclusive) com a lei Maria da Penha? não lutam pelos seus direitos, não “suam a camisa”; A política cada vez mais deixa de ser prioridade para o povo brasileiro. Para ilustrar isso, é só lembrar que houve um debate entre os presidenciáveis no dia 05/08 transmitido pela Rede Bandeirantes. Porém, no mesmo dia a Rede Globo transmitiu a partida entre São Paulo x Internacional válida pela Taça Libertadores. A audiência do jogo foi muito superior. Não vou ser hipócrita, confesso que também preferi assistir à partida. Isso é um exemplo que mostra apenas o caso do futebol, mas outros assuntos passam a ser tratados como prioridade cada dia mais em detrimento da política. R O M E D E O S S E R G O R P estamos todos, infelizmente, conformados demais com toda esta falcatrua por parte dos políticos. Enquanto o nosso povo não perceber a seriedade dessa situação e tentar de todas as formas mudar esse terrível quadro do que se tornou a política brasileira, quem sai perdendo não é só o país. Somos nós mesmos. Inclusive financeiramente. É só constatar a “festa” que os governantes em Brasília fazem com nosso dinheiro, por meio dos impostos abusivos que nos são cobrados. Em suma, é preciso vergonha na cara para os políticos e atitudes, engajamento nas questões do país para nós, brasileiros. O povo brasileiro lutou pela volta da democracia na época da ditadura militar, depois de alguns anos foi às ruas novamente, dessa vez para lutar pelo impeachment de Fernando Collor, presidente do Brasil nesse tempo. Nos dois casos foi difícil, principalmente no caso da ditadura, mas o povo teve sucesso. Hoje, com a política cada vez mais em segundo Pedro de Oliveira Ribeiro (categoria prosa/não ficção – 1º ano do Ensino Médio) 75 O Lamento dos Poetas 76 Os olhos sinistros das ruas, Os urros de um ódio calado, Os grilhões banhados a ouro, Os punhais de ferro e asfalto. Os detalhes de cada engano. Os elos que são teu suor. O pranto que ecoa nos túneis, O acorde choroso do músico, O raio que cai dês do Douro, O grito dos loucos nos bares. O sangue nas mãos do tirano. O estrondo que assusta a nós todos. As almas cansadas dos homens, As roxas olheiras do crime, As entranhas de um corpo ímpio, As brisas de um vento gelado. As rosas já quase sem brilho. As doces mentiras dos jovens. A pomba que voa mesquinha, A fera hoje adormecida, A árdua labuta dos outros, A gente que não quer mais nada. A sina de toda uma espécie. A coisa do jeito que é. Quantos por cento de quê? Que aves gorjeiam aonde? Se coxa, bonita por quê? Qual é o sentimento afinal? Que tribo pujante afinal? Pra que o vergalho afinal? Caberá a Drummond explicar. Caberá a Gonçalves falar. Caberá a Machado versar. Os carros em cima das pontes, Os morros de pedra nos campos, Os escravos ainda cativos, Os velhos e cegos incautos. Os trabalhadores sem lar. Os santos que os vão libertar. O cheiro acre desses esgotos, O longo penar da vigília, O denso lamúrio das águas, O gosto da urina dos ratos. O preço que eu hei de pagar. O barco que irá naufragar. As horas eternas da noite, As mil e uma fases da lua, As glórias de uma bandeira, As brigas de cães insensatos. As poucas que vêm se mostrar. As filhas de um outro lugar. A vida mais negra que a morte, A vida na terra sem chuva, A desilusão passageira, A brasa de um fogo que arde. A sombra sem sol vem de lá. A esperança que já não há. São mãos espalmadas de quem? E tal latifúndio por quê? Colombo e os portões de que mares? Caio Franco Teu espanto vem de onde afinal? Que parte nos cabe afinal? Quem é este Andrada afinal? (categoria poesia Caberá a Vinicius cantar. Caberá a Cabral meditar. Caberá a Alves declamar. – 2º ano do Ensino Médio) 77 Perguntava o que tinha gerado A Cartilha da Sedução aquele barulho estrondoso. Instintivamente respondi que tacara uma pedra. Chamou-me à sala; só pode ser “De minhas lembranças velhas, uma dessas manifestações rebeldes há uma que volta porque não a de menino; mandou-me sentar e ter entendo. Faz tantos anos e eu me a lição com minha prima Isabel. Ela lembro de tudo tão bem, que penso passava férias em nossa casa como às vezes se a imaginação não andou de costume. ajudando 78 dissipada a esta quase memória. sempre Talvez A chatice da r epetição eu daquelas sílabas – be, ba – parecia embaralhe as coisas, e recordações interminável. Porém, como Isabel de outros dias chuvosos, não sei por e eu fomos à escola tarde, mamãe que sutil e incompreensível razão, insistia nisso. Em plena adolescência se acomodem nessa tarde. nada poderia ser mais tedioso para No ponto em que as lembranças ela. Até para mim, alguns anos mais desse dia se fazem mais ordenadas, novo, era insuportável. Após algum em me vejo à cozinha, sentado no tempo começamos a cruzar olhos na balcão de alvenaria, prolongamento tentativa de nos entreter. do fogão e onde se lavavam os pratos e batia-se bolo. Minha mãe, na sala, ensinava cartilha a Isabel, que repetia as palavras, submissa, com um jeito mole. Devo ter me entretido a idealizar aventuras. Tirei a baladeira do cinto, uma pedra do bolso, recuei alguns passos e alvejei o tijolo. A pedra ricocheteou, bateu na bacia. A lição foi interrompida e a voz de minha mãe veio da sala, indagadora.” As sílabas iam perdendo sentido, já não as ouvíamos mais, eram somente ecos distantes. Perdíamos, alternadamente, um nos olhos do outro. mãos Progressivamente iam sinuosos tramando para Finalmente se nossas caminhos encontrarem. entrelaçaram-se. Um 79 misto de confusão e outro sentimento se alojaram em mim; acabamos por aquilo antes. Quando me dei conta, hoje. Soltaram-se mais depressa do seu corpo estava de pé diante de mim. que se uniram. Nem tive tempo de Sua curvas se moviam no ritmo de decifrar o significado daquilo. sua pausada e lenta respiração. Ela Livres da lição fomos para o quintal, onde conversamos. Lembro- inclinou-se e deu-me um beijo terno e quente na testa. me vagamente dos assuntos. A figura “Depois disto, a memória como de Isabel me encantava e prendia; que adormece. Desperta com o vulto você está prestando atenção em de uma prima em férias, bem mais alguma coisa que eu falo?; voltava velha que eu: uma noite, pretextando a mim e respondia. Porém, o modo almas do outro mundo – que medo e como cachos, dulçor! –, levantou-se do leito e veio cruzava e descruzava as pernas, ela enrolava os abraçar-se comigo. Trazia os pés movia seus miúdos pés descalços e descalços.” gargalhava parecia sempre muito mais interessante; assim você me encabula; desviava o olhar. Em um momento provavelmente me perdi em meus devaneios com a beleza de Isabel. Nunca sentira Victoria Pagano Rebizzi (categoria prosa – 2º ano do Ensino Médio) Mídia Impressa XMídia Digital Com os avanços da intemet e a maior popularização desta, o The New York Times, um dos jornais de maior circulação mundial, anunciou que diariamente o jornal em sua casa, com as notícias mais relevantes já irá se digitalizar, o que não significa que irá parar de produzir e vender impressa de grande circulação, é a visualização mais rápida e eficaz das o jornal impresso, e sim que irá dispor muito mais conteúdos em seu informações, basta virar as páginas, enquanto que na internet o leitor é site. Diante disso, iniciou-se uma discussão em torno do que seria mais dependente da velocidade da conexão. interessante, a mídia impressa ou a mídia digital. selecionadas. Outra vantagem dos jornais e revistas, exemplos de mídia Assim, ambas as formas de mídia possuem qualidades e defeitos, e por Há os que defendem que a mídia impressa deve ser extinta, dando isso é interessante que ambas continuem a coexistir e a se desenvolver lugar à mídia digital. De fato, os arquivos eletrônicos possuem muitas cada vez mais. Dessa maneira, o leitor pode tirar proveito dos benefícios vantagens, como a diminuição dos custos pela informação. O capital gasto de ambas e não é tão prejudicado pelos malefícios. com papel, impressão e distribuição encarece muito o produto final; assim, a mídia digital seria muito mais barata, uma vez que não precisaria gastar com esses processos. Além disso, as informações eletrônicas podem ser complementadas e atualizadas diversas vezes, o que não seria possível na versão impressa, pois se teria que gastar ainda mais para reimprimir os exemplares. Outro ponto importante, principalmente nos contextos atuais, é o compromisso ambiental. A mídia digital é muito mais ecológica do que a impressa, uma vez que não precisam se derrubar árvores para produzir o papel utilizado. Outro beneficio possibilitado pela digitalização da mídia é a globalização da informação. Intenautas de todo o mundo podem ter acesso aos arquivos e ainda têm a possibilidade de interagir e colaborar com as publicações ou então discutir temas com os demais leitores através de fóruns abertos ao público. Além disso, o acesso à informação torna-se mais fácil, uma vez que hoje, com o desenvolvimento da tecnologia, pode-se acessar a intemet de qualquer lugar e a qualquer momento, até mesmo de um pequeno telefone celular. Apesar de todos esses benefícios, ainda há aqueles que continuam preferindo a mídia impressa por sua maior comodidade e praticidade, Julia Shinohara no sentido de que a informação vai até o leitor, uma vez que ele recebe (categoria prosa/não ficção – 2º ano do Ensino Médio) Ao Guto dos Anjos No horizonte, A bela abóbora Que jantei anteontem Massa Submerge do profundo Oceano gástrico. Reabre o céu Lá se vai o pobre caminhoneiro. Da boca sem fôlego Sozinho, transportando algo que não é Abarrotado pelo Sol seu, muito menos de seu interesse. Do anti-ontem. Resolve parar para dormir, num posto no meio da estrada. Está Reminiscências flutuantes na memória interina, dirigindo há longas 21 horas. Restos, arraigados na profunda víscera interior. seu fedorento chapéu. Ressurgem regurgitados assumindo a forma do Escarro dos Anjos. Um vaso não se quebra quando abrigado pelos tubos intestinais. Mantém em conserva sua sopa glutinosa como uma fonte e a goteja (Eterna amargura para algumas bocas e para todos os outros lábios) Gota a gota Sob a garganta estreita que se abre rugosa para que suba À boca uma ânsia análoga à dos Anjos... Mas não devo vergonha ao catarro nem lástima ao vômito, Em todo meu ser há uma gratidão por aflorarem em mim, Superando a luz cega do presente e lembrando-me da Quimera imortal que permanecerá sempre enterrada, Na forma de verme operário das terras do alegrete, Construindo (simples reconstrução) a aurora biliar. Náusea, do sacrificado anjo único ressurreto, Digna de ser amada, Pois é ela o agregado abstrato das saudades. Ao acordar, percebe que nada tem. Só lhe resta sua velha carreta e Ressentimentos estomagados, mutilados, que Diogo Banzato Franco (categoria poesia – 3º ano do Ensino Médio) 82 Mas, mesmo assim, ele continua. E continuará. Dirigirá por horas e mais horas, e descansará novamente. E, ao acordar, perceberá uma vez mais que nada tem. E que nada terá. Só lhe resta dirigir, sem ao menos perceber que a direção de sua própria vida está quebrada. Rodrigo Rossi Mora Brusco (categoria prosa – 3º ano do Ensino Médio) 83 Nada Além da Verdade 84 A criação de imagens como forma de organização do conhecimento remete uma retrospectiva desde sua infância até a idade adulta, a fim de “atar aos primeiros grupos humanos, dos quais os registros remanescentes são as duas pontas da vida”. Bento, portanto, reconstrói todos os eventos e pinturas rupestres. Símbolos representativos nada mais são que uma pessoas. O leitor, todavia, fica sujeito a um só ponto de vista: como o interpretação subjetiva de um período e situação. A literatura, nesse narrador-personagem enxerga sua realidade. Logo, pressupõe-se que contexto, sobressai-se como um importante canal para o registro histórico, exista manipulação do caráter dos fatos para que convirjam aos interesses uma vez que evidencia tendências e costumes de seu tempo. Um livro, de Bento. Machado, com isso, explora a essência da comunicação, que é a contudo, não pode ser adotado como única fonte do conhecimento do falha. passado, porque sempre carrega traços e críticas de seu autor, ou seja, toda a história é comprometida porque carrega indícios de autoria próprios. Essa discussão sobre interpretação do mundo exemplifica o amplo processo de construção da verdade, a articulação de símbolos imagéticos Platão, em O Banquete, expõe o cerne dessa tese subversiva da realidade que intermedeiam os dois mundos descritos por Platão. Deve-se, portanto, ao argumentar que existem dois mundos: o das ideias, perfeito, que agir com cautela ao submeter-se a informações das mídias e também corresponde à verdade plena; e o dos sentidos, que é captado pelas pessoas, ao sujeitar-se à opinião de outros. Da mesma forma, a visão própria é o qual é uma reprodução mal formulada do primeiro. Um livro, de acordo tampouco confiável e não corresponde ao conjunto das verdades imutáveis. com o viés filosófico do grego, seria então a cópia da cópia, distanciando- O questionamento da realidade é o viés mais sóbrio de aproximar-se da se ainda mais da essência do real. Isso acontece porque a informação essência concreta. Apenas se aproximar, pois penetrar no campo das ideias percorre dois canais depreciativos: a interpretação da realidade por quem torna-se inconcebível pela construção de símbolos. escreve o livro e a visão de quem o lê. Essa subjetividade, dentro do universo dos livros, pode se exacerbar ainda mais quando o ensino acadêmico é mal formulado. Sílvio Romero foi o primeiro, no Brasil, a subdividir a literatura em períodos de produções semelhantes, os quais são a base atual da disciplina nas escolas. Quando, dentro das salas de aula, o aluno emerge-se em descrições didáticas, que foram elaboradas por outra pessoa, e não toma contato direto com a produção, ele submete-se a mais um canal que o distancia da realidade e o aproxima de uma imagem. Esse fenômeno seria, então, a cópia da cópia da cópia. O maior clássico da literatura brasileira, Dom Casmurro, de Machado de Assis, ilustra como a mensagem pode ser contaminada ao extremo Henrique Rubira pelo emissor e canal. Por meio do próprio livro, o narrador Bento faz (categoria prosa/não ficção – 3º ano do Ensino Médio) 85 Do TExto ao TEatro “O fazer artístico e a apreciação estética são inerentes ao ser humano; só um fazer consciente e informado torna possível a aprendizagem em arte.” (Ana Mei Barbosa, 1991) O pensamento de Ana Mei sobre o fazer Contamos com uma equipe de alunos artístico é um bom ponto de partida para muito motivada e pudemos desenvolver um tratar do trabalho em Artes Cênicas do 1º ano trabalhoso (e prazeroso) processo de criação em 2010. O curso de Artes teve uma proposta que, além da montagem propriamente dita, pedagógica e formato artístico novos. Sob a teve em todo o seu percurso rodas de coordenação do professor Wilton Ormundo, indicações de atividades culturais para que Guilherme Yazbeck e eu, ficamos no comando todos pudéssemos nos inserir de maneira das turmas para uma nova (e sempre ativa na diversa programação artística da desafiante) experimentação cênica. Nosso cidade e nos utilizarmos dela como repertório desafio foi transpor para o teatro quatro para a construção das cenas. narrativas curtas e independentes e trabalhálas com os alunos de maneira coletiva, O projeto teve três etapas de desenvolvimento, focando, basicamente, alguns elementos da previamente planejadas: linguagem teatral, como o trabalho em coro e a construção de dramaturgia. 1ª) Cada uma das quatro turmas de teatro foi separada em dois grandes grupos, que se Jovens do 1º ano do Ensino Médio mostram sua compreensão teatral de textos literários. Para o desenvolvimento do trabalho com revezavam com os professores da área, a fim de os grupos curriculares do Ensino Médio, que pudéssemos conhecer melhor o perfil de partimos do entendimento de que o fazer cada grupo, reconhecer o que cada um trazia teatral, por si, ensina sobre expectativas, de bagagem cultural e repertório de teatro, conflitos, objetivos e de que é na atmosfera além de possibilitar uma experimentação do trabalho e na vivência em grupo que uma livre de exercícios teatrais. Esse primeiro experiência se torna de fato significativa. momento de conhecimento mútuo foi muito 88 importante para que pudéssemos definir os E foi justamente a partir desses desafios que festividades religiosas e das representações Houve a compreensão de que é possível contos que trabalharíamos com os grupos: começamos nosso processo de ensaios. teatrais. Na tragédia clássica, o coro é uma fazer a transposição da narrativa para o “A quinta história ou Como matar baratas”, A ideia foi justamente escapar do padrão personagem coletiva que tem a missão teatro sem precisar de um texto dramático ou “Cem anos de perdão” e “Felicidade teatral dramático que parte do conflito entre as de cantar partes significativas do drama. de personagens definidos e diálogos rígidos. clandestina”, todos de Clarice Lispector, e personagens. Queríamos discutir e trabalhar Na origem, representa a polis, a cidade- “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan. a ocupação do espaço, a explosão de um estado, ampliando a ação para além Por fim, as apresentações geraram em Após a definição dos contos a serem personagem num grupo, usar o corpo como do conflito individual. toda a equipe do 1º ano – alunos-atores trabalhados, Guilherme e eu começamos a elemento fundamental na ‘contação’ de uma elaborar um roteiro para a montagem teatral história e, principalmente, trabalhar o coletivo Brincar, experimentar a explosão dos dever bem cumprido, proporcionando-nos de cada grupo e os apresentamos para as como parte estratégica (pedagógica e cênica). personagens em diversos coros, foi a outra dimensão do fazer teatral na escola: turmas, iniciando assim a segunda etapa do Teatro não se faz sozinho. Nunca. Trabalhar principal descoberta de criação de cena e, teatro de qualidade com alunos motivados processo de trabalho. a interdependência de todos os envolvidos consequentemente, de dramaturgia nessa e senhores do que faziam no palco. Todos no processo, seja em cena, diretamente, ou etapa do processo. esses ganhos tornam a disciplina de Artes e professores-diretores – a sensação de 2ª) A entrega dos textos gerou uma discussão na construção da dramaturgia, foi um dos teórica sobre a temática de cada conto, objetivos que nortearam nosso trabalho a fim 3ª) Aqui, partimos para a direção propriamente à pesquisa de linguagem, à comunicação, ao sobre as imagens que eram sugeridas pelas de que os alunos se sentissem autores dos dita. A maior parte da experimentação trabalho coletivo e à sua função numa escola narrativas, e algumas indagações práticas exercícios que estávamos desenvolvendo. Os já estava levantada (embora a criação que preza a formação acadêmica integrada à surgiram pelas mãos dos alunos quando improvisos foram dirigidos coletivamente para continuasse até o final) e os professores arte e à cidadania. questionados sobre a adaptação para o as cenas que queríamos levantar a partir dos desenharam as cenas que se tornaram parte teatro de textos literários com tão poucos roteiros previamente criados por nós. Nesta da apresentação final. O percurso do trabalho personagens. As perguntas: “Mas somos 40 etapa, o trabalho com o coro foi central. ganhou um sentido concreto nesta etapa. Foi e no texto só há duas personagens, como coerente e significativa no que diz respeito um momento bastante intenso e “focado”, vamos fazer?”; “Mas esse conto curtinho A palavra Coro vem do grego chorós, que, pois os alunos passaram a visualizar as cenas Rita Pisano é atriz e professora de Teatro pode virar uma peça?”; “Não há diálogos, na Grécia antiga, designava um grupo prontas e, com isso, entenderam melhor os do 1º ano do Ensino Médio. como vamos transformar isso em cena?”. de pessoas que participava ativamente das exercícios e improvisos propostos até então. 89 Sonhar-se! Alunos do 9º ano apresentam a peça Invencionática, parte de um projeto consagrado no Ensino Fundamental. 90 Completando anos de O espetáculo – O subtítulo da No bloco 1, na própria matéria Projeto de peça (“a vida inde”) pode ser onírica, Teatro do 9º ano, o espetáculo livremente traduzido como “a humano, que mistura lugares, Invencionática – a vida inde vida sob outra perspectiva” pessoas não poderia ter tratado de ou, ainda, “a vida vista sob proporcionando-nos os mais uma temática melhor: o sonho! outro ângulo”. A expressão, diferentes sonhos. No bloco Sonho de fazer – como nos nove retirada de um poema do poeta 2, anos anteriores – 120 jovens e compositor Arnaldo Antunes, postura passiva diante do atores subirem ao tablado e se serviu de mote para o nosso mundo, questionamento esse expressarem poeticamente por espetáculo. representado pelo pensamento existência 10 do meio de diversas linguagens, no do e inconsciente sensações, questionamento da utópico enquanto motor que, se como a dança, a música e o Vivemos no mundo regido não nos faz chegar a um lugar teatro. pela lógica, em que muitas ideal, ao menos nos põe em coisas só possuem “valor” se movimento em direção a um O processo – Como em toda comprovadas cientificamente, futuro sempre possível de ser criação artística, o processo se validadas por especialistas, mudado para melhor. Por fim, no foi longo e trabalhoso. Sob se bloco 3, surge a poesia, espaço a coordenação geral dos objetivas... professores forem impecavelmente Contudo, há inventivo por excelência, Rogério Viana uma bastante prenhe de significados, com e Guilherme Yazbeck, foram potente do ser humano que é seu vaivém na (re)criação de cerca de 15 semanas entre deixada à margem, devido à linguagem. leituras do roteiro, ensaios de preponderância desse discurso cenas e ensaios gerais. Quinze cartesiano: a dimensão do semanas de esforço e parceria sonho, da criação inventiva. É transformadas em intensa hora dela que tratou Invencionática e meia de espetáculo. Intensa – a vida inde. dimensão hora e meia de um sonho coletivo no tablado. Essa inventividade foi mostrada na peça sob três formas: 91 É evidente que a racionalidade e a lógica têm seu lugar de destaque e uma grande importância na trajetória humana. Invencionática, no entanto, não negou isso, mas propôs um acréscimo de outras maneiras de ver o mundo: visões poéticas que assegurem a nossa chance de ser pessoas com capacidade de se sensibilizar, com capacidade de criar novas perspectivas 92 para além das obviedades... Enfim, com capacidade para preencher a folha branca e limpa da vida com múltiplas cores e formas, e não apenas com frases feitas e tons de cinza. Rogério Viana Gusmão é professor de Artes Cênicas e de Língua Portuguesa do 9º ano. e s p e c i a l O desafio de educar no século XXI Contribuições da disciplina de Ética e Cidadania “Educação é um processo de vida e não uma preparação para a vida futura, e a escola deve representar a vida presente tão real e vital para o aluno 94 que algo muito importante e substancioso está acontecendo (a inovação) e o medo de saber que não conseguiremos compreender a plenitude dessas mudanças. Mas precisamos começar a exercitar essa compreensão. E a escola é um caminho. Nessa trilha, surgem questões relativas ao exercício do magistério, o papel do professor como a que ele vive em casa, no bairro ou no pátio.” e a metodologia na formação do (John Dewey, pedagogo norte-americano) não é demais questionar se a aluno. Em relação aos métodos, tradicional aula expositiva ainda tem lugar nessa nova conjuntura Período de inúmeras e velozes transformações, as últimas décadas do século XX e os tecnológica? Há necessidade de primeiros anos do XXI não serão lembrados exclusivamente pela crescente globalização uma nova dinâmica na relação da economia ou pelo advento do terrorismo em escala planetária, mas pelos marcantes professor-aluno para que esta não avanços tecnológicos, principalmente na área da comunicação. Para alguns, estamos vivendo se esgote na exposição de temas não apenas uma época de grandes mudanças, mas uma mudança de época, que implica e na cobrança dos conteúdos nas redefinição dos paradigmas a partir dos quais pensamos o mundo. avaliações aplicadas posteriormente? Afinal, o que se pretende construir nesse Essas transformações que anunciam um novo tempo ou uma nova era, sem dúvida, avançam encontro litúrgico que chamamos de aula? sobre os indivíduos e seus valores. Talvez, por essa razão, o cidadão que experimenta essa transição perceba-se invadido por uma forte sensação de que algo está “fora de lugar”. Sente Em princípio, pode ser o desenvolvimento das a presença do novo, sem que o antigo o tenha abandonado. Observamos isso ao presenciar habilidades operatórias, tais como: relacionar, um indivíduo de meia-idade tentando manusear um aparelho de alta tecnologia. Um diálogo comparar, analisar, resumir e posicionar-se criticamente quase impossível que gera uma sensação de desconforto. Ao mesmo tempo, a certeza de diante dos fatos sociais. Mas é necessário ir além. Educar é atribuir sentido ao mundo Em um mundo no qual a informação é farta e de fácil acesso, a tarefa essencial da educação dispõe, está sendo bombardeado – ou quase afogado! – pelo excesso de informação. Como passa a ser educar o olhar, apurar o gosto, decifrar os fatos, procurar atribuir sentido à nem sempre possui referência histórica, acaba perdido em meio a um tiroteio. Aqui entra a realidade, incluindo toda a complexidade e enriquecendo seus significados. Algo como contribuição do educador, mostrando ao aluno que sem História o conhecimento torna-se um melhorar o paladar, conforme constatamos nestas deliciosas palavras de Bertrand Russel, em refém do presente, dado único ou “verdade” incontestável. seu Elogio ao ócio: “... apreciei os pêssegos e os damascos muito mais do que os apreciava antes de saber que seu cultivo iniciou-se na China, no princípio da dinastia Han; e que os chineses capturados como reféns pelo grande rei Kaniska os introduziram na Índia, 96 de onde se difundiram pela Pérsia, alcançando o Império Romano no primeiro século da nossa era. Tudo isso tornou esses frutos muito mais doces para mim.” Aqui cabe um parêntese importante. Quando a notícia aparece como “verdade” única destituída da sua história, significa que ela não está submetida ao passado nem mantém relações com o futuro. Aparece como suspensa, ancorada em si mesma, destituída do tempo que define sua relevância no quadro das experiências humanas. Sem história, ficamos sem referências. E o que parece mais grave é que sem uma avaliação precisa Assim, o ato de educar vai além de colher e/ou repassar informações. É compartilhar experiências, contextualizar, buscando a conexão com outros fatos, outros momentos históricos. Organizá-las – as informações – de modo a mostrar sua relevância e sugerir análises acerca do alcance de suas consequências. Para isso, precisamos recorrer à História. Não se compreende um fato atual na sua plenitude se prescindirmos do seu contexto histórico. Portanto, faz-se necessário apanhar o acontecimento aparentemente isolado e estendê-lo no varal da História. Talvez este seja o grande segredo da atividade docente hoje: perceber a importância da conexão temporal entre o fato estudado e sua totalidade, pois o aluno, com toda disponibilidade tecnológica de que do painel histórico, a intervenção humana reparadora fica comprometida. Logo, sustentados por uma compreensão superficial do nosso momento histórico, ficamos impossibilitados de traçar um futuro mais próspero. Presos ao aqui e agora, e reféns do instantâneo, acabamos abrindo mão do nosso direito de sonhar, de idealizar novos projetos ou de edificar outras utopias. Assim, vamos abandonando nossa humanidade. Afinal, se não há futuro, não há nada a conquistar e quase nada a fazer para a construção de um mundo melhor. Se o presente ganha status de valor absoluto, nossa militância existencial deixa de existir; convertemo-nos em meros espectadores de uma lógica dogmática a qual nos cabe apenas obedecer e seguir. O Kadafi é “do bem ou do mal”? Em tempos de “Primavera árabe”, manifestações por toda parte, Tunísia, Egito, Iêmen, “A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe.” (Jean Piaget, pedagogo suíço) Bahrein, Líbia e outros, uma aluna pede a palavra e pergunta: “Esse tal de Kadafi é do bem ou é do mal?” Questão que, pela sua simplicidade ou inocência, acabou provocando risos em toda a turma. Por outro lado, é inegável que houve uma tentativa de classificar um personagem que havia recentemente invadido não apenas o noticiário e a mídia em geral, mas, sobretudo, o universo dos nossos jovens recém-egressos do Ensino Fundamental II. A indagação se justifica. Afinal, para os mais jovens, é como se estivessem dizendo: “Quem é esse ‘cara’ esquisito que eu nunca vi e que agora não sai da TV? Professor, é verdade mesmo tudo que estão falando dele?” É inegável que a pergunta suscita certa sabedoria metodológica, sobretudo se considerarmos que o autor dessa pergunta está tendo seu primeiro contato com o universo da política internacional. Que bom seria poder responder à aluna utilizando simplesmente as opções “do bem” ou “do mal”, mas, como veremos, o mundo é bem mais complexo do que sugere a TV; afinal, a mídia em geral afirmava, no contexto da aula que suscitou a pergunta da aluna, categoricamente, que Muammar Kadafi era um verdadeiro monstro, não sem razão. Mas a verdade vai mais além de estereótipos de qualquer natureza. Em linhas gerais, poderíamos dizer que é assim, no Ensino Médio, que acontece o primeiro contato com os temas de política internacional. Para a maioria dos alunos, o conteúdo da disciplina de Ética e Cidadania se apresenta como elemento novo, objeto nunca antes investigado. Falar de Muammar Kadafi, Hugo Chávez ou Nicolas Sarkozy não está associado necessariamente à história política da Líbia, Venezuela ou França apenas. São personagens presentes na mídia, praticamente desconhecidos, pelo menos para a maioria daqueles que ingressam no Ensino Médio. 99 O líder líbio é do bem, do mal e muito mais! Estamos assentados sobre a premissa de que a construção de um projeto de futuro, seja no Embora tenhamos a preocupação de ampliar o repertório do aluno, mostrando que há relações plano pessoal ou profissional, passa obrigatoriamente pela reflexão não apenas do mundo em mais complexas que ultrapassam o “bem” e o “mal”, procuramos garantir outros elementos, que vivemos, mas também daquele que desejamos compartilhar. Por essa razão, o conteúdo talvez tão relevantes quanto a ampliação do conhecimento sobre os temas da atualidade. O de Ética e Cidadania tem como objetivo propor aos jovens discussões sobre o Brasil, seu trabalho em Ética e Cidadania busca promover o diálogo, diante da diversidade de referências futuro e perspectivas, sua organização política e também sobre os grandes temas e desafios e experiências presenciadas na sala de aula. nacionais. Também abordamos o mundo, seus principais conflitos e suas grandes questões 100 contemporâneas, como terrorismo, xenofobia, intolerância e migração. A ampliação da consciência do aluno em relação às diversas contradições presentes no convívio social – sejam elas culturais, econômicas, políticas ou sociais –, o estímulo ao Uma das preocupações curriculares, desde que se iniciou o Ensino Médio da Móbile, foi espírito crítico do educando, diante da realidade em que ele vive e também daquela que a criação de uma disciplina que pudesse contemplar temas da contemporaneidade. No desconhece, são apenas alguns dos objetivos básicos, traçados pelo Colégio Móbile, que decorrer de uma década, a dinâmica das aulas foi adaptada às inovações tecnológicas. Em norteiam o trabalho da disciplina de Ética e Cidadania. textos “datilografados” ou impressos de imediato em alta resolução, temos acompanhado as facilidades proporcionadas pela democratização e acesso à informação. Isso faz a diferença Assim, começamos a exercitar o diálogo e a democracia na vivência em sala de aula. em nosso trabalho. Estamos falando de um planejamento de aula que tem como ponto de Constroem-se, por meio do trabalho coletivo e individual, referências de respeito, solidariedade partida, muitas vezes, um fato ocorrido no dia anterior. e responsabilidade, buscando superar a tradicional dicotomia reflexão teórica/prática social. Esses ensinamentos vão além do espaço escolar. No cotidiano das relações sociais, é imprescindível que o jovem argumente, questione, respeite e identifique a diversidade de opiniões presentes no mundo que o cerca. A charge a seguir ilustra uma das estratégias utilizadas cotidianamente nas aulas de Ética e Cidadania (ou EC, como gostam de falar os alunos). 101 Charge, uma estratégia bem-humorada As ilustrações, os jornais e outros recursos, muitas vezes, são o ponto de partida para O personagem central que aparece na charge e circulou pela mídia por muito tempo foi uma auxiliar na identificação da natureza dos conflitos abordados em aula, embora somente a das personalidades mais polêmicas da política internacional. Cenário que já contou, entre apresentação desse material não seja o suficiente para a discussão crítica de um tema. seus estranhíssimos frequentadores, com Osama Bin Laden, Saddam Hussein e, agora, ganha a companhia de Anders Behring Breivik, o jovem norueguês de 32 anos, extremista de olhos Preste atenção no texto não verbal reproduzido a seguir. azuis, “islamófobo” e responsável pelo mais recente massacre na ilha de Utoya. Kadafi, como é conhecido o personagem que abraça o barril de petróleo na charge, era o líder da Líbia, país localizado no norte da África, e que tem como base da sua economia o petróleo, responsável por 90% das suas exportações. Acusado de patrocinar ações terroristas pelo mundo, sofreu uma série de bombardeios que abalaram Trípoli, a capital da Líbia, em 1986. O coronel Muammar Kadafi, por um período, foi condenado ao isolamento e às rígidas sanções econômicas impostas por Washington. 103 Mais tarde, no início da década de 2000, empenhado em mudar a imagem do seu país, o velho coronel mudou sua estratégia. Anunciou sua disposição em interromper seu programa nuclear, tornar-se signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e abrir o país para fiscalização das Nações Unidas. Essa relação pode ser feita na charge, após a identificação, pelo leitor, do barril de petróleo utilizado pelo líder líbio como “refém”, para chantagear os países que estão bombardeando a Líbia. Esse foi um exercício de análise, feito a partir dos dados sugeridos pela charge e relacionados ao histórico que envolvia a Líbia governada por Muammar Kadafi. Para isso, foi imprescindível levar em conta os elementos explícitos, nas imagens em geral, além de identificar os aspectos www.lutecartunista.com.br “ocultos”, implícitos propositalmente, para aguçar a curiosidade do intérprete. No entanto, não basta saber ler superficialmente o texto não verbal, é importante ter domínio sobre uma série de informações para explicar as mensagens, o conteúdo e as referências políticas expressas. Como em qualquer meio de expressão, o conhecimento proposto pela charge reflete um ponto de vista subjetivo, o que não é um detalhe. s e Amparado por esses elementos, o educando amplia a sua capacidade de entendimento dos temas abordados na atualidade. A charge estimula os sentidos para uma observação ampliada õ – e crítica – das notícias que estão em destaque na mídia, além de auxiliar o desenvolvimento x do senso crítico e a sistematização oral e escrita de argumentos consistentes e não de e constatações. A compreensão do caso da Líbia por meio da charge não constitui atividade isolada x l de descrição “fria”. Nosso objetivo vai além. Trata-se da apropriação de um “olhar” que possibilitará ao educando assumir a difícil tarefa de traduzir um mundo ambíguo, onde e e x õ Roberto Candelori é professor de Ética e Cidadania do Ensino Médio. (A professora Márcia Juliana Santos, que integra a equipe de EC, colaborou neste texto.) e r e f l r 104 r e f r e l f e l as sociedades em várias regiões, agora, neste instante. E nossos jovens não estão isolados e cidadã. e s f os jovens, sobretudo, estão clamando por mudanças dos paradigmas que regem dessa problemática. Eles têm voz e precisam aprender a utilizá-la de maneira responsável õ s e x s õ e Encontro com Profissionais – “Estar pronto” Para possibilitar uma discussão mais consistente a respeito da escolha da carreira universitária e com o intuito de proporcionar informações relevantes sobre os cursos oferecidos pelas universidades de excelência, o Colégio Móbile realiza, bienalmente, o Encontro com Profissionais, evento que compõe uma das ações do projeto de Orientação Profissional (OP). Esse encontro – aberto a alunos e famílias – possibilita reflexão e fornece informações preciosas para a posterior escolha consciente de nossos alunos por um curso superior e por um “desenho” de seu projeto de vida profissional. Terceira versão do Encontro com Profissionais subdivididos em oito grupos e discorreram Quantos estudantes, ao final do Ensino Médio, não gostariam de estar prontos na Móbile, o III Encontro com Profissionais. sobre para se decidir por uma carreira universitária? Quantos profissionais que desenvolveram As três atividades, distintas e complementares, seus cursos universitários e suas áreas consistentemente suas carreiras e que hoje portam currículos de excelência não sofreram no que compuseram esse evento estão descritas de atuação. Os alunos do Ensino Médio, momento em que foram obrigados a escolher seu curso universitário? Quantos pais e mães a seguir: separados por carreiras de interesse, puderam não esperam, como a mãe de Calvin, personagem da tirinha de Bill Waterson, ter uma “roupa” Mesas-redondas – Os componentes participar de até duas mesas-redondas. que os deixem preparados para acolher as muitas dúvidas que serão trazidas por seus filhos dessas mesas das A lógica que regeu a organização das mesas na fase de decisão por um curso superior? universidades convidadas, pais de alunos foi baseada no agrupamento de carreiras e ex-estudantes da Móbile que tenham com algum tipo de afinidade; por exemplo, Perguntas semelhantes a essas afligem estudantes e pais ao longo do Ensino Médio, finalizado sua graduação no ensino superior no mesmo grupo ficaram profissionais de fase escolar em que o jovem finaliza o ensino básico e que o prepara para a graduação e já se encontrem inseridos no mercado de Direito, Economia e Relações Internacionais. universitária. trabalho. Cinquenta e dois profissionais foram 106 Em agosto de 2010, realizou-se, são professores suas escolhas profissionais, 107 Convite do evento Num mundo que valoriza o Móbile têm a possibilidade de refletir sobre conhecimento, os profissionais precisam os relatos de profissionais com os quais profissionais em mesas-redondas, reunindo convidados ser capazes de inovar para que possam mantêm contato efetivo. Não se trata de uma pessoas por áreas de atuação afins, o grupo atualmente universitários, para conversar alcançar sucesso em suas carreiras, por isso fria consulta a sites ou a guias especializados de orientadores profissionais da Móbile com nossos alunos a respeito de seus cursos é de fundamental importância que o jovem em carreiras; o encontro real com os proporcionou aos seus alunos mais uma e das instituições em que estão matriculados. tenha espaço para buscar informações com profissionais humaniza as relações e torna oportunidade de discussão acerca dos Esclareceram dúvidas e deram informações pessoas éticas, experientes e competentes viva a ideia de que a escolha profissional desdobramentos decorrentes das escolhas relevantes em suas áreas de atuação. Ao participarem é um projeto de vida que envolve escolhas e sobre as condições concretas do mercado universitárias e faculdades. desse tipo de evento, os estudantes da (perdas e ganhos, portanto). de trabalho em que atuarão futuramente. “Esta é uma oportunidade que eu não tive: a de discutir aspectos da carreira universitária e poder conhecer previamente um pouco daquilo que será o exercício da atividade profissional.” (Dr. Ricardo Magaldi, médico, participante do III Encontro) Ao estruturar os encontros com Diálogo com ex-alunos – Foram 78 a ex-alunos respeito da de Móbile, carreiras “O amor que criei pela Faculdade de Medicina é enorme. É realmente incrível perceber que todos que por ali passam amam a instituição e se dedicam a ela. São muitos médicos que mantêm seus vínculos com a Pinheiros e com suas extensões: Adib Jatene, Dráuzio Varela, Euryclides Zerbini e tantos outros.” (Eric Curi Silveira cursa Medicina na USP) 111 110 “Considero muito interessante a iniciativa do colégio de proporcionar este encontro, pois aos 17, 18 anos todos temos muitas dúvidas. Eu gostaria de minimizar as chances de erros de vocês. No entanto, todos vocês têm o direito de errar na escolha e, mais do que isto, têm o direito de mudar.” (Dr. Carlos Serrano, médico, participante do III Encontro) O processo de escolha profissional, profissional. Para nossos estudantes, é muito as disciplinas mais importantes da grade significativo ouvir de ex-alunos da Móbile curricular dos cursos, a relevância deles e quanto pode ser recompensador o esforço das instituições, bem como as perspectivas de feito para conquistar uma vaga em um trabalho futuro e as possíveis áreas de atuação curso universitário conceituado e quanto de de determinadas carreiras foram alguns dos dedicação é necessário quando se ingressa aspectos explorados pelos ex-estudantes em efetivamente na universidade. suas falas com os alunos em fase de escolha Representantes de universidades professores, ou ainda por alunos em fase convidadas – Além das mesas-redondas e de graduação. As conversas estabelecidas do encontro com ex-alunos, 20 instituições entre nossos estudantes e os representantes de pela das instituições proporcionaram informações Móbile, estiveram presentes no evento e se importantes sobre cursos de graduação fizeram representar por funcionários e/ou conceituados. ensino superior, convidadas (João Alberto Pezarini cursa Direito na USP) “Estar pronto...” Na tirinha de Calvin que abre este texto, a roupa que o personagem veste sugere que ele está preparado para enfrentar os percalços da vida. A mãe de Calvin acaba assumindo que também deseja possuir o mesmo recurso na esperança de estar preparada para eventuais novidades. Fazendo um paralelo entre a tirinha e a escolha profissional, sabemos que, infelizmente, a garantia de total segurança não existe no mundo real, daí a importância da informação dada a nossos alunos. (Vamos dar um salto do popular Calvin para o erudito universo do teatro elisabetano.) O mais atormentado dos personagens shakespeareanos, Hamlet, no ato V, cena II da peça homônima, profere o conhecido aforismo: “Estar pronto é tudo.” Para o momento em que os estudantes precisam ter a coragem de fazer escolhas por uma carreira universitária, a 112 imagem de “estar pronto” nos parece pertinente, mas em outro sentido: o de estar disponível para fazer a melhor escolha possível. Os encontros com profissionais buscam possibilitar aos alunos prontidão para fazer escolhas responsáveis. Consideramos que as informações oferecidas pelas universidades sobre seus cursos não garantem uma escolha acertada por uma carreira; contudo, o conhecimento acerca de histórias (reais) das escolhas, das trajetórias profissionais, do mercado de trabalho e das Convite aos ex-alunos áreas de atuação pode reunir elementos preciosos e eficazes para que um estudante reflita a respeito de seu projeto de vida. Médio e organizou o III Encontro com Profissionais da Móbile. Blaidi Sant’Anna é diretor educacional do Ensino Médio; Adriana Du Pin Galvão é coordenadora educacional do Ensino “No âmbito estritamente acadêmico, basta ressaltar a força da USP que, por si, já serviria de estímulo para a busca por formação e boa colocação profissional. Mas o Direito, como estudo de uma técnica social específica, possui charme particular. Estudar Direito é estudar a convivência humana. Com que gramática eu vou? ou Que gramática é essa? ou Desmistificando a gramática Uma reflexão acerca do papel da gramática na sala de aula. 114 As discussões a respeito da Ao buscar a descrição No geral, essa parcela da abordagem da gramática da língua sem reduzir sua sociedade pensa que um na sala de aula geram, já análise ao que seria “certo” dos objetivos primordiais há alguns anos, bastantes ou “errado”, a Linguística da disciplina de Língua polêmicas. De tempos em vai de encontro àquilo que Portuguesa seja “o ensino tempos, surgem na mídia grande parte da sociedade da gramática”. Sem dúvida, ou nos meios acadêmicos entende como o ensino da a novos debates sobre o língua materna. papel primordial num curso gramática ocupa um assunto. O problema é que, de Língua Portuguesa. No no geral, tais polêmicas entanto, a discussão que se devem não a uma sadia se impõe é: o que se deve multiplicidade de pontos de entender por “Gramática”? vista, mas a uma defasagem entre a concepção de ensino de Português cultivada pelo senso comum e um método pedagógico desenvolvido com base na Linguística. As várias gramáticas Quando se fala em gramática, ralmente posterior a duas tes da língua, naturalmente regência (quando o contexto o que costuma vir à mente outras atividades muito mais já conhecem ao chegar ao o exigir), mas também – e é o chamado “Português urgentes para que um aluno Ensino Fundamental. sobretudo – de modo claro, correto” só dominado por se torne um usuário compe- aqueles que conhecem uma tente da língua: a linguística Ler e produzir textos é, sem profusão de nomenclaturas: e a epilinguística. dúvida, muito importante, Para isso, tornam-se essen- mas uma aula de Língua ciais exercícios em que o adjuntos adnominais, super- 116 expressivo e eficiente. (1) “Assim, o esgoto corre livremente pelas ruas, provocando enormes riscos de doenças infecciosas.” lativo absoluto sintético, ora- A atividade linguística con- Portuguesa não pode limitar- aluno ção subordinada substantiva siste na utilização plena da se a isso. É necessário reser- expressões, transformá-las e subjetiva, terceira pessoa do linguagem de modo intencio- var tempo para as atividades experimentar novas formas pretérito imperfeito do indi- nal e em situações significa- epilinguísticas, que criam de construção a partir de cativo... A lista é realmente tivas e contextualizadas. É o condições para o aluno, modelos fornecidos. Enfim, A partir dessa frase, uma abordagem retrógrada da extensa e certamente causa exercício presente nas ativi- como diz o linguista Evanildo uma “brincadeira” constante gramática, baseada apenas na metalinguagem e na arrepios a qualquer aluno dades de leitura e produção Bechara, tornar-se “um poli- com a linguagem para que memorização de nomes, poderia esperar do aluno diferentes que já tenha se defrontado de textos. Nesse sentido, glota em sua própria língua”. o aprendiz, além de ampliar elaborações, como: com ela! os debates sobre diversos Para alcançar o status de seu repertório linguístico, temas, as discussões coleti- poliglota, é evidente que não saiba selecionar nele aquilo Podemos chamar de “meta- vas de exercícios ou textos basta conhecer tão somente que for mais eficiente para linguística” essa atividade e as rodas de leitura devem a modalidade escrita culta, determinado contexto. • “o esgoto” é sujeito simples da primeira oração; de observação do caráter ser valorizados como verda- aquela que muitos consi- sistemático das construções deiros momentos de inter- deram “a gramática”, única Observe-se, como exemplo, • “livremente” é um adjunto adverbial de modo; da língua, acompanhada da câmbio de linguagem, a partir correta e válida. Há que ser uma proposição de análise atribuição de nomes a elas. A dos quais se cria a condição capaz, isso sim, de percorrer a partir de um fragmento de • “corre” é verbo intransitivo e significativo, de modo que metalinguística é, no entan- para os alunos exercitarem as diferentes variedades da carta redigida por um grupo o predicado da oração 1 é verbal; to, apenas uma das facetas e, principalmente, diversifi- língua, a fim de conseguir de moradores, a fim de exigir da gramática – e justamente carem o “saber linguístico” escrever não apenas com do vereador mais votado no • “enormes” e “infecciosas” são, no plano morfológico, aquela que deveria sur- que já possuem, ou seja, a adequação às regras de bairro obras de saneamento adjetivos que qualificam, respectivamente, os substantivos gir como uma etapa natu- gramática que, como falan- ortografia, concordância e básico: simples “riscos” e “doenças”. possa comparar • trata-se de um período composto por duas orações; 117 Já uma abordagem epilinguística do flexibilidade na produção e na intelecção de textos, certamente sem que ele conceba a enunciado não atribuiria tanta importância gramática como um “bicho de sete cabeças”. aos nomes que recebem as estruturas nele presentes, mas provocaria o aluno a refletir A partir disso, então, será muito mais natural e “indolor” promover as atividades metalinguísticas sobre ele de maneiras as mais diversas; por junto a um aluno que, usuário mais maduro da língua, conseguirá propor e compreender exemplo, ao solicitar conclusões a respeito hipóteses sobre as regularidades (ou as irregularidades) morfossintáticas em um texto, bem da comparação com a seguinte adaptação como sobre os efeitos que elas produzem. do trecho: possibilitaria uma importante discussão não (2) Assim, o esgoto corre pelas ruas, provocando riscos de doenças. Consegue-se, a partir desse cotejamento, discutir com os alunos a maior eficiência argumentativa que as estruturas omitidas em (2) atribuem ao enunciado (1). Em seguida, poder-se-ia solicitar-lhes outras maneiras de desenvolver o trecho “o esgoto corre livremente pelas ruas”, de modo a explorar suas possibilidades vocabulares. Uma série de respostas como: (3) a rua vira um esgoto gigante a céu aberto (4) o esgoto infesta as ruas (5) é esgoto pra tudo que é lado apenas sobre as estratégias linguísticas adotadas em cada uma das tentativas, mas Concluindo... principalmente sobre a variedade linguística mais adequada se se levar em conta que é A ideia de que falta Reduzir a gramática a um Rogério Viana Gusmão a um vereador que a carta se destina, numa aos alunos saber gramática pífio conjunto de “pode” é professor de Língua situação formal de solicitação. para escrever e ler bem só e “não pode” ou a um rol Portuguesa do 9º ano pode ser considerada válida infinito de nomes é, além de e coordenador da área Não se trata de afirmar ao aluno que (4) se esse “saber gramática” um equívoco absoluto, um de Língua Portuguesa está “correta” e que as demais proposições estiver sendo entendido de perigoso passo para afastar do Ensino Fundamental II. simplesmente estão erradas, mas de analisar maneira mais ampla: como o aluno de sua própria lín- qual alternativa é mais adequada neste caso. o intercâmbio constante de gua, o que só pode resultar Isso porque (3) e (5) seriam muito mais linguagem em situações sig- em uma acumulada dificul- eficientes, por exemplo, em um panfleto nificativas de comunicação; dade de comunicar-se com o publicitário distribuído pelo governo para como o exercício frequente outro e, consequentemente, incentivar crianças a cuidarem da limpeza de de comparação e transforma- de se postar de maneira seu bairro ou de sua cidade. ção de enunciados seguida consciente e crítica no da discussão de resultados; mundo. A utilização de abordagens como essa de e, finalmente, num momento maneira frequente e sistemática por parte posterior, como a proposição do grupo de professores, sem dúvida, e a compreensão de hipóte- possibilitará a um aluno – ao longo de ses sobre as regularidades seus anos de escolarização – uma imensa da língua. 119 Conheça mais: FRANCHI, Carlos. “Criatividade e Gramática”. Em: Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas: IEL/ Unicamp, 1987. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortês, 1996. Filosofia para crianças – por quê, para quê, como? “Constituir o sentido (na dupla acepção de direção e significado) é uma tarefa fundamental a que o ser humano não pode se recusar, sob pena de perder a si mesmo e ao seu mundo, pois a produção do mundo e a produção do sentido dessa produção são uma única tarefa: o mundo não seria mundo humano se não tivesse o seu sentido e, por outra, não haveria lugar para o sentido se não houvesse mundo humano.” (Lorieri e Rios, Filosofia na escola) 120 Desde muito pequenas, as crianças buscam sentido diante do mundo que se apresenta. A incessante curiosidade natural delas e a ansiedade por significar e ressignificar esse mundo levam-nas a questionar todos os porquês e razões de ser: Como surgiu o homem? E o mundo? O que é o tempo? Essa busca por compreender a existência, os valores, o verdadeiro, o justo, o belo e o bom aproxima as crianças dos filósofos – ainda que “o modo de pensar” os diferencie! De que maneira a escola pode favorecer a compreensão dos aspectos da realidade e da existência humana buscada pelas crianças? Os significados não podem ser transmitidos, pois não são simples Isto posto, fica evidente que ao falar de Filosofia para crianças não informações. Quando os tratamos como tais, cerceamos a capacidade nos referimos aos conceitos produzidos pelos grandes filósofos, mas de pensar de nossas crianças, contribuindo para formar sujeitos tomamos como objeto de ensino a ação de filosofar. Kant afirmava capazes apenas de responder a algumas perguntas e não de analisar, que não se aprende e não se ensina a Filosofia, mas que se aprende a refletir e, sobretudo, de questionar. Os significados são adquiridos filosofar. Ele queria chamar a atenção para o fato de que filosofar implica pelo processo do pensar por si mesmo; logo, o pensar é a habilidade uma ação: a do pensar reflexivo, nosso objeto de ensino. por excelência, que nos permite significar o mundo e a nós mesmos. Alguns podem alegar que a capacidade de pensar é inerente aos Em princípio, muitos ficam intrigados sobre a possibilidade de crianças seres humanos e, realmente, isso é fato. No entanto, pensar com das séries iniciais filosofarem, pois, culturalmente, tem-se a ideia qualidade é algo que pode ser estimulado, portanto, aprendido. Trata- estereotipada de que esta tarefa cabe aos mais velhos e experientes. se de um dos principais objetivos da educação e da matéria-prima da Esta é apenas mais uma das ideias constituídas por um pensamento filosofia: pensar de modo reflexivo, crítico, metódico, abrangente. Está pouco crítico. E como as crianças são capazes de pensar filosoficamente aí a diferença entre as crianças e os filósofos. Esses últimos significam quando estimulados! e ressignificam o mundo por meio do pensamento reflexivo; nossos pequenos, por sua vez, precisam da ação educativa para que o pensar Estratégias – É por meio da comunidade de investigação, mediada pelo ganhe qualidade. professor, que os alunos discutem questões filosóficas. Nessa discussão, são motivados a apresentar seus pensamentos ao grupo, reconhecendo 122 A Filosofia no currículo das séries iniciais da Móbile (a partir do Infantil 5) ideias nas quais não haviam pensado anteriormente. Além disso, o evidencia a intenção de formarmos sujeitos que sejam capazes de pensar professor intervém na discussão, não para apresentar uma verdade, mas autonomamente, de modo reflexivo e crítico. É importante frisar que para fazer com que os alunos realizem um grande número de atividades esses objetivos levaram em consideração a faixa etária das crianças. mentais nas quais não teriam se envolvido se o diálogo não tivesse O que significa esse pensamento? Qual critério utilizado para definir a ocorrido. Trata-se de uma habilidade que está intimamente atrelada ao qualidade de um pensamento? Como alcançar esse objetivo? pensamento filosófico. Os alunos aprendem a argumentar, a defender um ponto de vista, a se expressar com clareza, a definir conceitos, a Um pensamento filosófico implica o ato de pensar sobre o próprio fundamentar o seu pensamento, a comparar diferentes pontos de vista, pensar, ou seja, um pensamento em “crise”. Nessa “crise”, questiona-se a imaginar possibilidades, sendo sempre exigido o encadeamento lógico se as ideias são coerentes, bem fundamentadas e se as razões de ideias, a busca pela coerência e a preocupação com a validade dos e argumentos são fortes o suficiente para tê-los como certos ou julgamentos que se faz, afastando-se do senso comum. aceitáveis. Em outras palavras, o pensar precisa ser depurado para evitar possíveis equívocos em relação à busca pela verdade (esta sempre histórica e passível de ser questionada e modificada). Para que esse caminho seja percorrido, a lógica passa a ser o critério que valida o pensamento. Immanuel Kant Na iniciação aos procedimentos da investigação filosófica, buscamse, coletivamente, formas de pensar acerca de temas, perseguindo os critérios e as razões que os sustentam. Numa discussão filosófica do 1º ano do Ensino Fundamental, por exemplo, o grupo iniciou um diálogo sobre a existência. Diante de uma experiência de Ciências em que tentavam provar a existência do ar, uma questão filosófica veio à tona: só existe aquilo que vemos? Parte do resultado desse diálogo travado por crianças de 6 anos pode ser lido a seguir: (...) 124 PROFESSORA ALUNO PROFESSORA ALUNO PROFESSORA ALUNO ALUNO PROFESSORA ALUNO PROFESSORA ALUNO PROFESSORA ALUNO ALUNO PROFESSORA ALUNO PROFESSORA E só existe o que a gente pode ver? Não, tem coisa que existe que a gente não vê. Todo mundo concorda? Eu concordo! Você pode então dar um exemplo do que o amigo disse. As bactérias. A gente não vê, mas elas existem. Mas com microscópio dá pra ver. E pra sentir, porque a gente fica doente. O que mais não vemos, mas existe? O vento. A gente não vê, mas sente. Por isso a gente sabe que existe. Então só existe o que a gente pode ver ou sentir? Eu sei uma coisa que a gente não pode ver e nem sentir, mas existe: o futuro! Nossa! É mesmo! Todo mundo concorda? Todo mundo sabe o que é futuro? Futuro é o que vai acontecer depois, presente é agora e passado é o que já passou. Eu sei uma coisa que não existe: as bruxas. As bruxas não existem? Elas existem só nas histórias e na imaginação. Elas não são reais. Então só existe o que é real? O que é da imaginação não existe? Observa-se, pela leitura desse diálogo, que, além de desenvolver uma série de habilidades, os alunos aprendem a questionar as ideias dos outros, posicionando-se criticamente em relação ao que os demais dizem. Não se trata de um debate, mas, sim, de um esforço coletivo de tornar o pensamento o mais “verdadeiro possível”, colocando-o “em crise”. É no diálogo com o outro que o processo de investigação e, consequentemente, o de maturação do pensamento ocorre. Nesse esforço coletivo, tanto os alunos quanto o professor podem finalizar uma aula de Filosofia com seus pensamentos iniciais transformados. Uma ou mais ideias são ressignificadas. Em Filosofia, não há respostas definitivas, pois, apesar de se encontrar uma resposta, a pergunta que a gerou poderá sempre ser analisada sob outro aspecto, em outro contexto ou ainda baseado em outros fundamentos, o que faria com que precisasse ser investigada novamente. Além disso, as questões filosóficas levam a respostas que mudam conforme o homem muda dentro de sua cultura. 125 O desenvolvimento das habilidades do pensar é também acompanhado por um trabalho metacognitivo, tornando cada vez mais explícitas e conscientes as ferramentas que permitem a constituição dos alicerces do pensamento. A análise feita pela comunidade de investigação sobre o caminho percorrido contribui para que, paulatinamente, os membros dela O ensino de literatura no currículo escolar passem a gerenciar os próprios pensamentos. Segundo os órgãos oficiais, o ensino de literatura, assim como o de filosofia e outras Além de promover o desenvolvimento do pensamento e de estimular a artes, visa, sobremaneira, ao cumprimento do Inciso III da LDBEN (Leis de Diretrizes e Bases curiosidade diante do mundo, uma comunidade de investigação filosófica da Educação Nacional), cujo foco é: permite o trabalho com atitudes e princípios. É condição fundamental para qualquer construção coletiva de conhecimento que os membros O aprimoramento do educando como aprendam a ouvir e não apenas a falar, a respeitar as ideias diferentes pessoa humana, incluindo a formação das suas, bem como a valorizar as diferenças e a diversidade. ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico (1996). Diante do exposto, ficam claros os motivadores para a presença da Filosofia no currículo das séries iniciais da Móbile. Quanto mais cedo nossas crianças puderem desenvolver as habilidades que permitem pensar com qualidade, mais aptas estarão para lidar com as aprendizagens características de escolas literárias, que, da maneira como se apresenta nos livros didáticos, futuras. Ou, nas palavras do filósofo Matthew Lipman: “A criança que não levaria a tais objetivos. De fato, a memorização mecânica de características de determinado adquiriu a proficiência nas habilidades de pensar não é simplesmente movimento literário não fomenta a autonomia e a formação de um pensamento crítico. O que uma criança que cresceu, mas uma criança cuja verdadeira capacidade se pretende neste artigo é descrever o processo de apresentação da historiografia literária e, de crescer foi ampliada.” de forma simplificada, apresentar uma alternativa a esse modelo. 126 O que se vê, no entanto, é uma sobrecarga de informações sobre épocas, estilos, Constata-se que há um paradigma único de história da literatura brasileira para alunos de Ensino Médio, o assim chamado paradigma estético. Por ele, dispõem-se e inseremse as obras individuais em períodos sucessivos – Barroco, Neoclassicismo, Romantismo, Modernismo –, por vezes seculares, segundo uma norma essencialmente poética, quer dizer, que objetiva os elementos imanentes (modos de ficção e de dicção) à obra de arte literária. Considerar historicamente um objeto como a literatura significa unir individualidades diversas por meio de um valor ou norma relacionando-os no tempo, diacrônica ou Maria de Remédios F. Cardoso é diretora da Educação Infantil sincronicamente, com outros blocos igualmente normativos. Uma história interna da e Tatiana Almendra é coordenadora do 1º ano do Ensino Fundamental. literatura liga os diversos acontecimentos literários individuais por meio de uma perspectiva 127 necessariamente estética. Algo como “a literatura brasileira do século XVI” nada diz porque a expressão “século XVI” é esteticamente neutra. Algo como “a literatura brasileira na época imaginar de que maneira atingiremos os objetivos de formar um aluno com autonomia colonial” tampouco serve, já que “época colonial” tem significado essencialmente político. intelectual e pensamento crítico da forma como os livros didáticos descrevem a literatura, Já “a literatura barroca brasileira” é mais coerente, pois “barroco” é norma estética e como apenas mostrando uma história literária, cujos parâmetros estão distantes de desenvolver período “é uma seção de tempo dominada por um sistema de normas, padrões e convenções essa “quota de humanidade” que nos “torna mais compreensivos e abertos para a natureza, literárias, cuja introdução, difusão, diversificação, integração e desaparecimento podem ser a sociedade e o semelhante”. acompanhados”. Nesse sentido, dialogando com os objetivos acima apresentados pelas LDBEN, consideração no ensino de literatura é o questionamento sobre o modo de ensino da história consideramos pertinente citar as palavras de Antonio Candido sobre a literatura como fator literária. Devemos questionar se a descrição desses movimentos nos leva efetivamente a uma indispensável de humanização: experiência estética de saber ler e escrever, apropriando-se das práticas literárias que dotem Pensando nas palavras do mais respeitado crítico literário brasileiro, pode-se O que pressupomos aqui, desse modo, é que o primeiro fator que deve ser levado em o estudante da capacidade de se apropriar da literatura. 128 Em outras palavras, decorar Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, suas Entendo aqui por humanização (...) características e outros “ismos”, não levaria à ampliação de horizontes, ao questionamento, o processo que confirma no homem ao encontro com a sensibilidade e a reflexão. Tal aperfeiçoamento só é atingido com o contato aqueles traços que reputamos, como efetivo com o texto. Quando se fala de texto, lembremos que discutir um texto de Machado de o exercício da reflexão, a aquisição Assis pode ser tão importante quanto discutir um bom filme, a letra de um rap ou um poema de do saber, a boa disposição para cordel. com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar deve passar pelo mesmo crivo de reflexão. Mas não nos iludamos. Sempre haverá em muitos nos problemas da vida, o senso da casos uma boa margem de dúvida nos julgamentos dos textos, dúvidas dos critérios de beleza, a percepção da complexidade aferição, que são mutáveis por serem históricos. do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós estanque e, desse modo, acrescenta-nos pouco àquilo que se quer de um aluno. Só com a a quota de humanidade na medida em superação dessa perspectiva é que conseguiremos o que Carlos Drummond de Andrade nos que nos torna mais compreensivos e diz sobre a função da literatura e outras artes: “Creio que a literatura, assim como as artes abertos para a natureza, a sociedade, plásticas e a música, são uma forma de elevação do ser humano diante da precariedade de o semelhante (“Literatura e Direitos sua condição.” Sendo assim, qualquer que seja o texto, erudito ou popular, canônico ou massificante, Não é, no entanto, o que se apresenta na história literária, cuja metodologia é Humanos”, 1995, p. 249). Francisco Lima é professor de Língua e Produção de Texto do Ensino Médio. 129 “subtribos”, prejudicando, assim, o desenvolvimento equilibrado da Europa. Num manifesto Oslo 2011 – Um grito escrito em inglês, ele citou o Brasil como exemplo de um país disfuncional prejudicado pelo multiculturalismo e que, por esse motivo, está condenado a jamais alcançar o mesmo nível de produtividade e desenvolvimento europeu ou asiático. Há algo de podre no reino da Noruega, mesmo com seus fiordes, florestas, lagos de águas A Noruega é um país pacífico. Não é à toa que o prêmio Nobel da paz é entregue em Oslo. cristalinas, mar, cachoeiras e sinceras preocupações ecológicas. Mesmo com educação, É perceptível que lá as pessoas se relacionam pelo princípio da confiança. Não há controle saúde, transporte e moradia para todos. Mesmo com cidades organizadas, calçadas e para saber se você pagou a passagem do ônibus; os policiais, em tempos normais, andam ruas com acessibilidade nas quais as bicicletas e os pedestres são soberanos. Mesmo desarmados e ninguém mexe na bolsa que ficou no banco da praça. E foi nesse lugar que um com um imaginário repleto de Munchs, Ibsens, trolls, fadas, ninfas e vikings. Mesmo sendo homem louro, culto, de frios olhos azuis e sorriso debochado teve a coragem de matar seus considerado o melhor país para se viver e com o maior Índice de Desenvolvimento Humano próprios compatriotas em nome de um ideal macabro, no qual se exclui o diferente por medo do planeta. do outro, por medo de perder a identidade e de ter o padrão de vida rebaixado. Cheguei a Oslo em 23 de julho, um dia depois do atentado que matou pelo menos 76 pessoas. E pensar que em nome de valores culturais importantes como a beleza e a identidade O clima era muito tenso. O centro da cidade estava fechado e havia muitos soldados nacional já se cometeram tantas atrocidades! Homens cultos, louros ou morenos, de bigode armados nas ruas. Ainda não se sabia direito o que havia acontecido, mas já era quase ou imberbes, planejaram e executaram friamente os piores atos contra seus semelhantes certo que aquele horror havia sido provocado por um único homem. E o mais inesperado: em nome de ideais como os do terrorista norueguês. E pensar que esse horror, mesmo em ele era norueguês. A NRK mostrou a foto postada no Facebook do suspeito: um homem tempos de globalização, se mantém em diversas culturas se renovando permanentemente louro, de olhos azuis, rosto de príncipe (pelo menos para o meu olhar estrangeiro, originário para espanto até das pessoas mais crédulas. Diante disso, entendi que a única coisa de um país moreno). Seu nome: Anders Behring Breivik. Ultradireitista, contra a imigração realmente globalizada e igual para todos é o gosto do Big Mac. muçulmana e a miscigenação. Foi preso na ilha de Utoya, depois de explodir os prédios de um quarteirão inteiro no centro de Oslo e de atirar durante quase duas horas em jovens O fato é que depois da certeza de que o atentado fora cometido por um norueguês, o centro, indefesos. Tinha mais de 600 seguidores na rede social. os prédios, museus e monumentos foram reabertos e, então, pude presenciar as primeiras flores depositadas na praça em frente ao Duomo, as primeiras homenagens aos mortos, as Havia uma espécie de silêncio no ar, uma perplexidade expressa no rosto de todos. Confirmado: o terrorista era mesmo Breivik. Não era, como se esperava, alguém de fora, de alguma máfia estrangeira ou ainda representantes da Al-Qaeda. Era um norueguês louro, alto, culto e de frios olhos azuis. Justificou o massacre como uma ação contra uma Europa marcada pela imigração, principalmente a muçulmana, e a consequente mistura racial. Além disso, afirmou que o atentado foi seu sacrifício pessoal pela completa mudança da sociedade norueguesa e europeia, livre de estrangeiros que, afinal, só servem para gerar expressões de revolta e de dor daquelas pessoas. A identificação foi imediata. Pensava nas famílias que perderam seus filhos tão jovens. E fui acompanhando, comovida, as flores e velas tomando toda a praça. Na segunda-feira, dia 25 de julho, parecia que Oslo estava voltando ao Estruturas de pensamento proporcional normal e eu, como boa turista, fui ao Museu Nacional para ver os quadros do Munch, especialmente “O Grito”, que, como expressão de tempos bicudos, permanecia mais atual do que nunca. Quando saí, percebi que havia um movimento diferente. As pessoas caminhavam todas na mesma direção carregando rosas nas mãos. Era gente de todo tipo: executivos, jovens, famílias, idosos, cadeirantes, bebês, hindus, muçulmanos, judeus... Resolvi seguir o fluxo. Até que cheguei em frente à prefeitura de Oslo, que fica numa praça imensa na beira do mar do Norte. Nunca vi tanta gente. Acho que havia umas 200 mil pessoas. Ainda sem entender direito o que estava acontecendo, recebi uma linda rosa vermelha de um jovem para quem perguntei que evento era aquele. Ele me respondeu que era a Marcha das Rosas, organizada para celebrar a paz e homenagear os mortos. Logo depois, a multidão, emocionada, fez um minuto de silêncio no qual todas as pessoas levantaram bem alto suas rosas. Nesse momento, me senti norueguesa, me senti brasileira, me senti cidadã do mundo. Valéria de Melo Pereira é professora de Português do 6º ano do Ensino Fundamental. (Colaboraram preciosamente as professoras de História do Ensino Fundamental Denise Mendes e Mônika Kuszka). Uma das prioridades que se estabelecem, Colocando essas estruturas de pensamento em qualquer nível de ensino ou de formação, no mesmo grau de importância, sem qualquer é a melhoria e ampliação do sucesso dos hierarquização, podemos citar o pensamento alunos nas situações de aprendizagem. proporcional como um tipo de raciocínio Trata-se, em outras palavras, de fazer essencial, que permite interpretar fenômenos com que cada vez mais alunos realizem, e integrar conteúdos da Aritmética, da na escola, aprendizagens mais profundas, Álgebra e da Geometria. É uma forma de eficazes e duradouras, permitindo que, raciocínio bastante utilizada no trato de independentemente dos conteúdos que questões de outras áreas do conhecimento, sejam ensinados, determinadas estruturas como a Física, a Química e a Geografia, por de pensamento possam ser desenvolvidas exemplo. com o objetivo de se tornarem ferramentas na resolução de problemas nas diferentes O raciocínio que envolve proporcionalidade, áreas do conhecimento. de maneira equivocada na maioria dos cursos de Matemática, é relegado a um estudo Na Móbile, na área de Matemática, as escolhas muito específico no 7º ou 8º ano do Ensino didáticas se pautam no desenvolvimento de Fundamental. Na Móbile, acreditamos que conceitos e procedimentos relacionados ao ideias de proporcionalidade devem percorrer desenvolvimento de determinadas estruturas os planejamentos de Matemática desde as de pensamento. Acreditamos que essas séries inicias para que os alunos resolvam escolhas devam considerar a formação do problemas que envolvam estruturas de pensamento numérico/algébrico, proporcional, pensamento proporcional, considerando geométrico e combinatório/probabilístico, diferentes além de tratar de conteúdos que tenham respeitando relação com a competência métrica. construído. níveis o de complexidade, repertório matemático 133 De fato, considerando que em cada área do como uma grande estrada da qual derivam No 3º ano do Ensino Fundamental, por no estabelecimento de generalizações. conhecimento é possível identificar ideias inúmeros caminhos para todos os lados, exemplo, os alunos são colocados diante Nesse momento, as crianças começam a principais sobre as quais se estrutura um caminhos esses que, adiante, voltam a se de problemas que pretendem estabelecer tomar contato com importante significado corpo considerável de conceitos, podemos, encontrar em pontos de significados comuns. relações aritméticas de alto nível, ou seja, conceitual: a tradução de padrões de sem dúvida, no caso da Matemática, destacar Se as ideias são variadas, o são também as eles passam a observar relações com base regularidade por intermédio de sentenças a proporcionalidade como uma dessas estradas principais e os caminhos que delas na observação de padrões numéricos e matemáticas. grandes ideias, geradoras de boa parte das derivam. A vista superior de todo o esquema relações significativas que são estabelecidas nos mostra imagem semelhante a uma enorme no processo de aprendizagem. Outras ideias, rede de significados, que se entrelaçam, no mesmo sentido, são a equivalência, a se complementam, se projetam, cabendo dependência, a variação, a aleatoriedade, ao professor determinar o percurso mais entre outras. Com base no reconhecimento apropriado para a aprendizagem dos alunos, do destaque dessas ideias, os cursos de segundo os objetivos de seu curso. Priorizar Matemática podem ser organizados de a proporcionalidade permite valorizar um modo a percorrerem caminhos estruturados dos percursos mais longos e expressivos pelas diversas relações de significado que no que tange à qualidade e à quantidade de se traduzem por tais concepções. Numa significados. Um exemplo elucidativo é o que apresentamos a seguir: Colocada a seguinte situação: duas latas de goiabada custam R$ 7,00. A partir dessa informação, complete a tabela abaixo com outros valores. Quantidade de latas de goiabada Preço total a pagar 2 4 5 R$ 21,00 imagem: para cada ideia, imaginamos algo 10 R$ 42,00 Alguns significados 134 7 Notória é a importância da exploração de vulgar dessa exploração é conhecida As situações de proporcionalidade como esquema instrumental utilizam basicamente quatro situações de aprendizagem que garantam ao por “regra de três”, algo que não passa tipos de técnicas fundamentais: aluno observar a variação entre grandezas, de um algoritmo eficaz para a resolução estabelecendo elas, de problemas típicos e que, se não for • redução à unidade; construindo estratégias não convencionais profundamente compreendido à luz da • modelagem proporcional; e convencionais para solucionar problemas proporcionalidade, remeterá o estudante a • modelagem fracionária; que tratem de grandezas diretamente ou inúmeros equívocos de interpretação dos • modelagem algébrica. inversamente proporcionais. A tradução resultados que obtém. relações entre 135 Evidentemente, nesta etapa de aprendizagem, Mais adiante, os alunos começarão a traduzir Medidas – Para compreender a importância a presença da Estatística, seja na Economia, não tratamos de todas essas técnicas, mas em sentenças matemáticas genéricas os da proporcionalidade no estudo das medidas, na Moda, no Direito, na Psicologia ou na evidenciamos relações que envolvem, por padrões de proporcionalidade que observam. basta nos lembrarmos de que toda medida Gastronomia. A Estatística também se exemplo, redução à unidade: se duas latas No caso do exemplo analisado, tal abordagem é realizada com base em comparação a alicerça no raciocínio proporcional, seja para custam R$ 7,00, então uma lata custa R$ 3,50, permitiria questionar os alunos sobre, por determinado padrão. Assim ocorre com o o cálculo e a análise da Média Aritmética, portanto quatro latas custam R$ 14,00. exemplo, o preço P de x latas de goiabada, se metro, com o quilograma, com o sistema seja para as projeções realizadas a partir cada unidade custa R$ 3,50. Tais procedimentos monetário, com o litro etc. O resultado de das probabilidades de acertos ou erros em Nesse problema, torna-se necessário o caracterizam a iniciação do estudo do bloco uma medida nada mais é do que a aplicação resultados de pesquisas. estabelecimento de outras relações, tais de conteúdos conhecido normalmente por de uma multiplicação com a ideia da como: se duas latas custam R$ 7,00, quatro “Álgebra”, que, mais tarde, conduzirá às proporcionalidade. Se o padrão de medida de É também no percurso organizado sobre latas representam o dobro do número de equações e às funções de todo tipo. certa grandeza é x, o resultado da medição a ideia da proporcionalidade que os alunos dessa grandeza, na unidade padrão, será no Ensino Médio começam a representar latas, portanto o preço será R$ 7,00 x 2. O preço de R$ 21,00 corresponde à compra de O conhecimento algébrico, portanto, exige sempre y.x, qualquer que seja a grandeza ou graficamente seis latas de goiabada, uma vez que R$ 7,00 a mobilização do raciocínio proporcional; o padrão. estabelecem para as relações entre as corresponde ao preço de cada duas latas todavia, a Matemática compõe-se, para além e 2 x 3 = 6. Podemos, ainda, realizar outras da Álgebra, de outros campos de conceitos, Tratamento de Informação – Um dos campos Médio os alunos passam a estudar operações, como descobrir que dez latas como a Geometria, as Medidas e o Tratamento da Matemática em que mais se nota sua concentradamente as funções e a representá- custam R$ 35,00, cinco latas representam a da Informação. relação com as experiências cotidianas, las em gráficos cartesianos. Nesse momento, metade dessa quantidade, portanto custarão 136 as generalizações que grandezas. Em outros termos, no Ensino além das quatro operações fundamentais, os conceitos matemáticos ganham ampliação R$ 17,50. Problemas dessa natureza, quando Geometria – Em Geometria, apresenta- é o da Estatística, que compõe o grupo do de significados que jamais se descolará de tratados nas séries iniciais, são resolvidos, se fortemente outra ideia fundamental: a Tratamento da Informação. Em praticamente toda a aprendizagem futura, seja no decorrer muita vez, pelos alunos por meio de recursos semelhança. Sem entrar em detalhes, todas as áreas do conhecimento, e não do Ensino Médio, seja na universidade. aditivos, como no caso de descobrir quantas o apenas nas áreas ditas Exatas, verifica-se latas compro com R$ 21,00 (recorrendo a diferentemente do senso comum, exige que R$ 7,00 + R$ 7,00 + R$ 7,00 – cada R$ 7,00 as dimensões correspondentes entre as representa o preço de duas latas –, conclui- figuras guardem evidente proporcionalidade. se que serão seis latas). Independentemente Por isso, todos quadrados são semelhantes dos recursos utilizados, é importante que embora nem todos os retângulos o sejam, os alunos se aproximem de uma ideia e o mesmo se aplica aos triângulos. Temos, fundamental: o pensamento proporcional nesse caso, situação clara em que duas associa-se às operações de multiplicação e ideias matemáticas se unem para fortalecer divisão. a base de significados conceituais. conceito de figuras semelhantes, 137 Alguns significados Uma das funções do conhecimento matemático, mas não a única, consiste em estruturar conceitos de outras áreas, como, por exemplo, a Física ou a Geografia. Especialmente nesses casos, podemos notar a clara presença do raciocínio proporcional, seja na análise Alguém aí já tocou em um quadrado? Pequeno ensaio sobre a importância das abstrações e da contextualização do ensino. da dependência entre grandezas físicas, como velocidade e tempo ou peso e massa, ou na composição cartográfica com suas escalas e orientações. Em Química, a proporcionalidade embasa praticamente todo o estudo das reações e o respectivo balanceamento energético, de fundamental importância interna e externamente aos limites disciplinares. Sem dúvida, escolhas didáticas que favorecem o desenvolvimento de conceitos e procedimentos relativos à formação de determinadas estruturas de pensamento matemático contribuem de maneira decisiva para uma aprendizagem significativa. A pergunta do título deste texto, feita inúmeras vezes em aulas de Matemática a alunos pequenos, médios ou grandes, gerou sempre a mesma resposta: – Claro que sim! Aqui mesmo, nesta página do livro, estou vendo um. Vou tocá-lo, quer ver? Ao professor, nessas horas, coube sempre a árdua tarefa de distinguir o objeto concreto de sua representação, mostrando aos Antonio de Freitas da Corte é professor de Matemática do Ensino Fundamental e Walter Spinelli, do Ensino Médio. alunos a incorreção de suas respostas. – Quadrados são figuras planas, apenas com duas dimensões, largura e comprimento. Qualquer coisa que toquemos terá sempre mais uma dimensão, a profundidade. Quer dizer, ninguém jamais tocou ou tocará em um quadrado, pois eles existem apenas no plano de nossas ideias ou, na pior das hipóteses, nos desenhos em que 138 os representamos. O leitor poderá perguntar o que essa história de quadrado, real ou não, pode interessar para o cidadão comum. Afinal, a vida de todos nós continua bastante indiferente aos quadrados e, para além deles, às circunferências, aos círculos, aos retângulos, aos losangos... De certa forma, desejamos demonstrar, por meio deste texto, que o tema tem, sim, relação com nosso cotidiano e que o tangenciamos sempre que pensamos sobre algo; isto é, todo o tempo. Voltando à sala de aula, se questionarmos os alunos a respeito do tipo de quadrilátero que consideram o mais complexo dentre todos, dificilmente responderão que é o quadrado. De modo 139 140 geral, consideram o quadrado o mais simples, pois ele é tão regular, chegamos assim a uma das perguntas que traduzem nossa tese (e que “tão certinho” e tão fácil de representar. Mas se enganam! Não há convenientemente escondemos por detrás da questão do quadrado, quadrilátero mais complexo do que um quadrado. Vamos, pois, utilizar que “se toca” ou “não se toca”): o que permite que galguemos os o modelo da construção do conhecimento dos alunos sobre o que seja degraus do conhecimento sobre algum objeto? Ou, dito de outra um quadrado para explorar nosso objetivo. forma, o que precisamos mobilizar para ampliar o feixe de relações que elaboramos sobre aquilo que desejamos conhecer? Resposta nos No início, as crianças reconhecem um quadrado apenas pela medida de seus lados: se forem iguais, é um quadrado. Quando próximos parágrafos. crescem um pouco, são estimuladas a considerarem também a medida dos ângulos internos, todos retos. Mais tarde, percebem voltemos à sala de aula e ao professor perguntando aos alunos: que há propriedades que apenas as medidas dos quadrados obedecem, especialmente as que envolvem suas diagonais e as um na mão, podemos afirmar que ele é um objeto abstrato? circunferências que podem inscrevê-lo ou circunscrevê-lo. Em síntese: as características de uma forma geométrica qualquer – o pouco mais os alunos, e também muitos de nós. Afinal, o quadrado quadrado é apenas um exemplo – são construídas pouco a pouco é abstrato ou, se não, é concreto? Sim, porque abstrato e concreto pelos estudantes, ampliando constantemente uma espécie de feixe de se colocam em oposição, pelo menos na concepção espontânea que relações de significados sobre o objeto. Não há nada de mais nisso, temos sobre essas palavras. nem de menos, uma vez que é assim, nesse processo de identificar, classificar, ampliar, que aprendemos quase tudo em nossas vidas, até em Matemática, como se poderia supor, deu uma resposta convincente mesmo no campo de nossas relações pessoais, sejam elas de amizade, quanto à questão proposta acima. Ela disse: trabalho ou amores. (Os mais céticos chegam mesmo a relacionar a tal processo o desgaste de muitas relações amorosas que, inicialmente importando se podemos ou não tocá-lo. intensas, pouco a pouco vão se revelando e amortecendo, como se a ampliação do conhecimento de uma pessoa sobre a outra conduzisse de que Alexandre Magno é concreto da mesma forma que o é um ao isolamento.) predicativo do sujeito ou um átomo de hidrogênio. Ou alguém vai dizer Ah! Esse quadrado – Continuando no mistério do quadrado, – Se ninguém jamais tocou em um quadrado, jamais pegou Essa é uma questão complexa que costuma confundir um Uma aluna, apenas uma, de nome Isabela, nem tão brilhante – É concreto! Pois concreto é aquilo que conhecemos, não Na resposta de Isabela, transparece o fato, incontestável, Retomando, o conhecimento sobre algo se constrói à que será necessário, por exemplo, tocar num átomo de hidrogênio medida que o sujeito estabelece relações de significado cada vez para, por fim, acreditar que o respiramos todo o tempo, ou que esse mais amplas sobre o objeto que estuda, seja este um quadrado, um átomo desempenha papel importante na composição de certo líquido automóvel, um país ou um(a) companheiro(a). Quero dizer: é como que ocupa mais de 70% da superfície de nosso planeta? se houvesse níveis de conhecimento que precisamos galgar pouco a pouco – “step by step”, como dizem os norte-americanos – a Isabela, ou seja, há muita coisa concreta que não tocamos, tampouco fim de que seja atingido o nível ‘ótimo’ de conhecimento, nível que vemos (lembram-se do átomo de hidrogênio?). Além disso, apostamos depende do estágio de vida em que nos encontramos. Isto aceito, também na concepção de que o conhecimento sobre algo torna Daqui para frente, apostaremos na ideia desenvolvida pela 141 “esse algo” concreto, dentro da visão segundo a qual tornamos algo concreto quando galgamos os tais degraus descritos anteriormente. O quadrado, de novo ele, é um caso emblemático porque as crianças precisam recortar uma folha de papel ou manusear blocos lógicos para enxergarem essa figura, enquanto entre os adolescentes basta estimular a imaginação para que resolvam todo e qualquer problema Da abstração para a concretude São as abstrações que realizamos que permitem que nosso conhecimento sobre algo o torne cada vez mais concreto, num movimento constante de ir e vir. Simbolicamente, podemos representar em três etapas o processo descrito. envolvendo esse quadrilátero. Se existem “estágios de concretude” que os estudantes Objeto conhecido: tornado concreto (e nós todos) precisamos vencer para conhecer profundamente Objeto conhecido algum objeto, a próxima questão é: o que nos permite vencer um ao sujeito por meio das relações de significado que construiu. Tais degrau e saltar para o superior? A resposta, rápida e rasteira, é: as relações são variadas e o sujeito abstrações. identifica apenas algumas a cada momento. O concreto está no objeto e o abstrato, fora dele. Ampliação do conhecimento sobre o objeto Objeto conhecido Na ampliação do conhecimento sobre o objeto, reside a importância das abstrações. As abstrações estimulam a construção de novas relações de significado. Novas relações de significados 142 Objeto conhecido conceituais são estabelecidas; o conhecimento concreto sobre o objeto é ampliado. Novas ampliações implicam reviver o processo. Nessa visão, concreto e abstrato não se encontram em oposição como afirmamos anteriormente ser prerrogativa do senso comum. Concreto e abstrato são, como denominou Henri Lefebvre, movimentos do pensar, que possuem relação dialética e cujo movimento de um 143 144 a outro extremo exercitamos todo o tempo, mesmo que não tenhamos consciência disso. Considerando o trabalho do professor em suas do que seus filhos com a ausência da contextualização dos conteúdos salas de aula, tal movimento precisa ser estimulado com vigor para matemáticos em sua época de estudantes. Havia a “decoreba” da que seus alunos construam com firmeza o conhecimento sobre a tabuada, a simplificação dos “carroções” da álgebra, a resolução álgebra, a literatura, a química, a filosofia e até sobre o quadrado(!). das enormes equações que conduziam a resultado que não dizia Fomos evoluindo no conteúdo do texto. Começamos com nada, apenas “xis é igual a tanto”. Mas o que era esse “tanto”? Não o quadrado, passamos pelo átomo de hidrogênio, seguimos para as era cabível questionar. Numa linguagem mais próxima da pedagogia abstrações e para a concretização dos conhecimentos. Chegamos atual, o ensino descontextualizado de então não agregava significados agora ao aspecto mais importante de toda a problemática, traduzida conceituais àquilo que se estudava. Se isso é verdade, como poderia o por outra questão que referenda nossa tese: como estimular em estudante construir o feixe de relações sobre algum objeto, na forma nossos alunos o exercício das abstrações? A resposta, novamente que citamos em parágrafo anterior? Aqueles tempos eram os tempos rápida e rasteira, é dada por um verbo no gerúndio: contextualizando. do estudante “balde vazio”, metáfora para a possibilidade de alguém Os mais vividos, incluindo o autor deste texto, sofreram mais Contextos de ensino são o solo fértil do qual brotam as conhecer algo a partir do nada, em pequenas gotas que vão, pouco necessárias abstrações. Abstrair algo do nada cabe apenas a vãs a pouco, enchendo um reservatório único e limitado, em desprezo teorias, avessas a propósitos concretos (sem trocadilhos). completo aos conhecimentos prévios do sujeito sobre o assunto. A contextualização do ensino transparece com fervor em Não, não cremos que o conhecimento humano caiba em reservatório algumas áreas do conhecimento e é compulsoriamente escondida em único e muito menos que seja limitado. Hoje, os tempos são outros, outras. Não é possível imaginar o ensino da História sem contexto, felizmente. da mesma forma que a Física necessita dos fenômenos naturais para explicá-los. História e Física são exemplos de disciplinas nas quais escola, podemos dizer, é contextualizada. Embora fosse necessário a ausência de contexto, histórico em um caso e fenomenológico bem mais do que algumas páginas para justificar completamente em outro, conduz ao risco da completa desmoralização do saber. tal afirmativa, temos em mente a importância desse tipo de ensino Como discutir, por exemplo, a máquina a vapor sem contextualizar quando elaboramos nossos planejamentos pedagógicos e criamos as o momento histórico em que surgiu e sua importância na revolução atividades para nossas aulas. industrial? Física e História se confundem nesse caso e ambas tornam-se efêmeras se cada uma delas, por seu lado, não estimular as circunstâncias nos quais os objetos podem ser percebidos em abstrações a partir da composição do contexto em que os conceitos inúmeras relações de significado. Esses conjuntos podem ser se complementam. formados a partir de condições variadas, preferencialmente próximas A Matemática que nossos alunos constroem em nossa Contextos são caracterizados por conjuntos de Na Matemática – Queremos colocar nosso olhar sobre as da realidade dos alunos, envoltas pelos elementos característicos disciplinas nas quais a contextualização costuma passar “ao largo”, de suas culturas. Apresentar conceitos com base nas relações que mesmo em escolas ditas “de vanguarda”. Não é preciso muita reflexão estabelecem internamente a esse conjunto de circunstâncias, ou seja, para chegarmos à mais emblemática delas: a Matemática. contextualizar o ensino permite não apenas que os significados sejam 145 146 detectados com vigor pelo estudante, mas também que os conteúdos em problemas do joelho direito masculino ou o chef que cozinhe disciplinares não sejam vistos como algo criado por seres iluminados excepcionalmente bem o cordeiro e nada mais. O tempo da extrema que viveram em torres de marfim, isolados do populacho ignorante, especialização passou de mãos dadas com o tempo da tabuada do 7x8 como é comum nas falas de estudantes de Ensino Médio (de outras sem significado. O sujeito competente em nossos dias é aquele que escolas) ao se referirem a seu aprendizado da Matemática. consegue associar de modo eficaz o domínio do particular e do geral em suas fronteiras de conhecimento. Fronteiras mais largas possíveis, Na proposta de um ensino contextualizado, a memorização de algoritmos e fórmulas não é relegada a segundo plano, como é bom que se diga. alguns poderiam, preconceituosamente, imaginar. Pelo contrário, os procedimentos ganham significado quando associados aos elementos Matemática, temos a preocupação de contextualizar os conceitos constituintes do contexto. Em nosso caso, no Ensino Fundamental, que apresentamos aos nossos alunos, seja pela aplicação desses para o ensino da tabuada, por exemplo, recorre-se, com redundância, conceitos em situações do cotidiano, pela história da Matemática ou ao cálculo mental e às estratégias de obtenção de valores de compra, pela interdisciplinaridade. Mas sabemos da importância do contexto venda e troco. Nada de decorar quanto é 7x8, pelo menos inicialmente. que se constrói a partir das relações internas à própria Matemática, A memorização vem automaticamente com a compreensão, visto que que denominamos contexto intradisciplinar. É a partir desse contexto memorizar sem compreender é sinônimo de rápido esquecimento. Ou que as relações conceituais existentes permitem aos alunos extrapolar algum leitor se lembra da sequência correta dos afluentes da margem seu conhecimento matemático para outros contextos, enfrentando esquerda do rio Amazonas que tantos professores de Geografia nos com competência situações-problema advindas de outros universos impunham decorar? do conhecimento. A composição do contexto de ensino é tarefa do professor, Voltando ao âmbito de nossa escola e ao ensino da Todos os contextos especialmente elaborados para em todas as instâncias. Para o cumprimento de tão importante tarefa, ensino deste ou daquele bloco de conteúdos, de qualquer área preparamo-nos durante muitos anos, nos bancos da universidade, nas do conhecimento, são encerrados por fronteiras invisíveis. Dentro assessorias, nas reuniões semanais e nas conclusões que tiramos de dessas fronteiras, reconhecem-se, com vigor, as relações entre todas as leituras que fazemos. Mas, se contextualizar é fundamental significados associados aos objetos de estudo, enquanto, para além para o exercício das abstrações, uma vez que quem abstrai o faz sobre delas, as relações que existem, e são múltiplas, nem sempre são alguma coisa, a partir de algum contexto, é preciso que o estudante dê facilmente identificáveis. Desejando discutir aspectos de política um passo a mais, para além do contexto. Em resumo, se contextualizar internacional, um professor poderá, por exemplo, recorrer ao contexto é imprescindível, romper as amarras do contexto é mais ainda; é histórico da Guerra Fria, no período que se iniciou no pós-II Guerra preciso extrapolar. Mundial e definhou completamente no final da década de 1980. Sabemos que apresenta competência em algum assunto o Vários significados associados à conduta dos países envolvidos sujeito que, especialmente nos dias atuais, consegue enxergar para na questão, decerto, podem ser transportados para aspectos da além de seu conhecimento técnico sobre o assunto. Não é possível política internacional de nossos dias. Haverá, entretanto, uma série considerar competente, por exemplo, um médico especialista apenas de considerações específicas das crises atuais que, à primeira 147 vista, parecerão de natureza bastante diversa das que minavam no noticiário do período de Guerra Fria. A possibilidade de compreensão acerca de tais considerações exige que sejam extirpadas as fronteiras do contexto anterior para que as relações anteriormente construídas possam ser adaptadas às características desse novo contexto. Devemos, portanto, considerar a necessidade do contexto para a realização das abstrações e para a compreensão das inúmeras relações entre seus elementos, mas precisamos também avaliar que é parco o conhecimento que se constrói em um contexto e nele estaciona. Finalizando, em nossa escola consideramos a importância da contextualização do ensino e consideramos também a necessidade de o sujeito extrapolar, para múltiplos contextos, o conhecimento que constrói sobre determinado conjunto de circunstâncias selecionadas pelos professores. Não fora isto, nossos alunos estariam procurando um quadrado que pudesse ser tocado. Tarefa inglória! 149 148 Walter Spinelli é coordenador e professor de Matemática do Ensino Médio. p r o d u ç õ e s e m f o c o Projeto Água e Sustentabilidade Complexo projeto de sustentabilidade é promovido no 6º ano do Ensino Fundamental. O uso racional dos recursos naturais é um A partir de atividades de observação e análise tema que está posto como desafio para a das paisagens – realizadas desde o início do geração atual. Historicamente, a civilização ano letivo –, os alunos são convidados a ocidental propagou um modo predatório de oceanos e da distribuição das chuvas. As refletir sobre o processo de apropriação observar e comparar mapas e paisagens de exploração da natureza. Acreditava-se em possíveis consequências desse processo da água, recurso de vital importância, as importantes rios da cidade de São Paulo: o uma dicotomia entre o humano, o social, e o são assustadoras: de acordo com as disciplinas de Ciências e Geografia propõem Pinheiros e o Tietê. A comparação dessas mundo natural. Nesse contexto, a natureza previsões, esses fatos afetarão seriamente um projeto interdisciplinar. paisagens em dois momentos históricos, era vista como algo externo ao homem, algo o modo de vida de nossa sociedade, tendo que deveria ser explorado e utilizado. como consequência direta a inundação de O projeto – Inicialmente, em Geografia, os identificar as transformações que ocorreram centros urbanos litorâneos, dificuldades na alunos são convidados a aprofundar seus nesses espaços. O que se observa são duas agricultura e a propagação de doenças. conhecimentos sobre a cidade de São Paulo mudanças drásticas: a poluição causada pelo À medida que a população mundial aumenta e os avanços tecnológicos permitem a início do século XX e do século XXI, permite e sobre o local de sua fundação. O Estudo despejo, sem tratamento, do esgoto industrial apropriação dos recursos naturais de Infelizmente, as novas gerações recebem um do Meio no centro de São Paulo possibilita e doméstico e a retificação do curso original modo cada vez mais intenso, os impactos mundo intensamente explorado e precisam a descoberta de que o lugar escolhido para desses rios para que as áreas de várzea ao meio ambiente vão se fazendo perceber lidar com o imenso desafio de criar novas a formação do primeiro núcleo de ocupação pudessem ser ocupadas. e sentir. Como exemplo mais notório, formas de se relacionar com a natureza, a fim não foi acidental. Ele possuía características As transformações da paisagem são a podemos mencionar as mudanças climáticas. de garantir as condições para sua existência geográficas estratégicas. Dentre elas, a materialização, no espaço, das mudanças que O aumento da emissão dos gases de sem promover o esgotamento dos recursos proximidade do rio Tamanduateí, que fornecia ocorrem na sociedade. Tendo isso em vista, efeito estufa – em razão das mais variadas que o planeta pode nos prover. água para a dessedentação e higiene, era as crianças são convidadas a refletir sobre atividades econômicas – é apontado como fonte de peixes e – por ser afluente do como a população de São Paulo, ao longo causa da elevação da temperatura global Para que os alunos do 6° ano do Ensino rio Tietê – possibilitava a navegação e o do século XX, transformou rios de grande e da consequente mudança no nível dos Fundamental tenham a oportunidade de transporte para o interior. importância em esgotos a céu aberto. 154 Ao mesmo tempo que, em Geografia, ocorre o que se identifique o que diferencia os variados que levou à degradação dos nossos recursos para os animais do parque. Outros fatores estudo da apropriação dos recursos hídricos tipos de solos: diferentes tipos de partículas hídricos é só o começo. É importante, sem importantes são a redução de custos com o em um espaço urbano, na disciplina de orgânicas e minerais. Essa percepção leva dúvida, conhecer alternativas que possibilitem transporte dos resíduos sólidos (pois eles são Ciências, os alunos iniciam uma investigação os alunos a concluir que a variedade de sua exploração sustentável. destinados à unidade de compostagem) e a das características químicas da água e das tipos de solo está relacionada às diferentes transformações que podem sofrer como composições da água mineral. Aprender no zoológico – Os cursos de de doenças. Além disso, a estação de decorrência da ação humana. Esse estudo Experimentos em laboratório, no qual Ciências e Geografia da Móbile convergem tratamento de água tem sido utilizada para relaciona-se ao uso da água em meio rural amostras de água são “filtradas” por diversas quando discutem o tratamento dos efluentes melhorar a qualidade da águas dos lagos que e complementa as discussões realizadas amostras de solo, simulando a infiltração (esgoto) e a utilização da água de reúso como formam o Riacho do Ipiranga, um importante em Geografia. Tal investigação baseia-se na da água da chuva, permitem aos alunos forma de preservar nossos recursos hídricos. patrimônio histórico da cidade. análise dos rótulos de diferentes marcas de perceber sua propriedade como solvente. Além disso, promovem uma visita ao Parque água mineral. Os estudantes percebem que, Cada amostra de água carrega em si os Zoológico de São Paulo para conhecer seu Essa visita, portanto, permite a concretização apesar de todas as marcas conterem água sais minerais resultantes da dissolução das programa de gestão de resíduos. daquilo que foi estudado em classe e estimula transparente, inodora e insípida, cada uma rochas que infiltrou. O Parque Zoológico possui estações de os alunos a refletir sobre as alternativas para tratamento de água e de efluentes, além o uso sustentável da água. apresenta composição química diferente. Como esse fato pode ser explicado? menor presença de animais propagadores Todo o percurso de investigação leva à de uma unidade de produção de composto seguinte conclusão: poluentes lançados orgânico. Nele, as crianças percorrem todo Certamente, essa abordagem interdisciplinar A resposta a essa pergunta surge como no solo podem chegar ao lençol freático e esse sistema e observam o emprego das contribui para a aprendizagem significativa consequência do estudo do solo, aprofundado causar problemas de saúde, assim como técnicas de floculação, flotação e remoção das crianças e as estimula a criar novas durante a viagem de estudo do meio ao agrotóxicos usados nas plantações também de flutuantes para que o esgoto gerado formas de se relacionarem com o meio Acampamento Repúbllica Lago. Ao visitar podem seguir o mesmo caminho. no parque seja transformado em água de ambiente. uma pedreira, uma plantação de cana-de- reúso e adubo orgânico. Os benefícios açúcar e uma horta doméstica, os alunos Diante do grande desafio que está colocado obtidos pelo Zoológico são inúmeros e Iva Maria Alves é professora descobrem que existem variados tipos de para as novas gerações – o uso racional dos comprovam a sustentabilidade do projeto. de Geografia e Carlos Eduardo C. de Godoy solo em cada local. Amostras de solo desses recursos naturais –, compreender o processo Dentre eles, destacam-se: a diminuição de é professor de Ciências do 6º ano gastos com o consumo de água e a compra do Ensino Fundamental. lugares são analisadas em laboratório para de adubo utilizado no cultivo de alimentos 155 Em 11 de março deste ano, humanidade pensava haver Diante de tantas dúvidas a costa nordeste do Japão se livrado desde o desastre abordadas em notícias sofreu um dos maiores ocorrido em Chernobyl, na nem sempre precisas e terremotos de sua história, Ucrânia, em 1986. apuradas (e muitas vezes o que provocou um tsunami A análise multidisciplinar como estratégia didática. A crise no Japão pós-Fukushima revisitada sob quatro olhares em aula magna proferida por professores da Móbile a alunos do Ensino Médio. sensacionalistas), como na sequência. Diversas Mas o acidente em compreender de maneira cidades da região foram Fukushima é, de fato, correta e integrada todas as devastadas pela ação comparável ao de vertentes dessa complexa desses dois fenômenos Chernobyl? É possível um situação? A Aula Magna naturais, provocando cerca projeto de usina nuclear proferida aos alunos do de 10 mil mortes, deixando imune a terremotos de Ensino Médio procurou muitos desabrigados e um grandes proporções? dar conta dessa questão. número ainda maior de A quanta radiação uma Mediados pelo professor desaparecidos. pessoa será submetida de Ética e Cidadania, se morar perto de uma Roberto Candelori, os Inicialmente focadas na usina nuclear? Atividades professores Silvia Madeira, descrição da magnitude humanas podem provocar Hugo Reis e Rodrigo do terremoto e na relação terremotos? Se nem o Mendes abordaram os dele com a formação da Japão, tido como símbolo acontecimentos no Japão onda gigante, as notícias de tecnologia avançada sob a ótica de suas veiculadas pela mídia e disciplina, está livre de disciplinas, respectivamente logo direcionaram seus acidentes nucleares, quem Geografia, Física e Biologia. holofotes para a cidade estará seguro? As usinas de Fukushima, localizada de Angra são uma boa Terremoto, tsunami e no nordeste do Japão, estratégia para completar a Japão – A professora Silvia quando um dos reatores matriz energética brasileira? iniciou sua apresentação de sua usina nuclear E os países que fizeram a recordando os conceitos sofreu uma explosão. Mais opção pela energia nuclear, geofísicos previamente rápido – e, talvez, mais seja por escassez de outros trabalhados em sala de aula danoso – que o vazamento recursos, seja por cautela ao esclarecer qual processo de material radioativo foi o em relação ao aquecimento natural desencadeia ressurgimento do “fantasma global, devem rever suas fenômenos como terremotos nuclear”, do qual a escolhas? e tsunamis. 157 Situado em uma região de encontro de três placas tectônicas, o Japão se caracteriza por ser E com relação à composição enriquecido numa usina Um reator nuclear aquece o país com maior concentração de terremotos, sofrendo cerca de 20% dos tremores anuais de sua matriz energética, nuclear pode produzir água para produzir vapor, no mundo. O epicentro desse terremoto foi bem próximo ao litoral e a poucos quilômetros o Japão fez uma escolha a mesma quantidade utilizado para movimentar abaixo da crosta terrestre. Assim, a propagação de ondas sísmicas, comum a todos os acertada ao ter 25% da de energia que várias uma turbina que produz terremotos, deslocou uma grande massa de água que constituiu o tsunami de 10 metros. energia que abastece suas toneladas de carvão mineral eletricidade. Diferentemente cidades sendo gerada a numa usina termoelétrica. do que ocorre numa usina Fonte: www.estadao.com.br de 11 de março de 2011. partir de reatores nucleares A enorme onda atingiu uma Terremotos e tsunamis como mostrou Silvia, área densamente povoada são fenômenos já bem especialmente no que diz e com alto desenvolvimento conhecidos pelos cientistas; respeito ao treinamento da industrial. E não havia porém, imprevisíveis e população e ao erguimento como ser diferente: o inevitáveis. A tarefa posta é de barreiras de proteção, relevo montanhoso e os a de sermos capazes de nos além do desenvolvimento, a 86 vulcões ativos que preparar o melhor possível partir de 1980, da tecnologia habitam o território japonês para seus efeitos, com de construção de edifícios forçaram, historicamente, a sistemas de monitoramento apoiados em sistemas concentração da população e alerta mais eficientes, hidráulicos. na costa, tornando-a mais construções mais seguras vulnerável a tsunamis. e preparo da população. É o que o Japão tem feito, termoelétrica movida a em território tão instável? Para justificar essa carvão ou diesel, não há Silvia explicou que no Japão eficiência, Hugo recordou emissão de poluentes, não abundam muitos outros os conhecimentos físicos já que o vapor d’água é recursos. Num país escasso básicos relacionados à posteriormente condensado em rios, em reservas de radioatividade. Em linhas e reenviado ao reator para carvão e em espaço para gerais, esta consiste na ser reutilizado, num ciclo usinas eólicas, o uso de uma tendência de alguns átomos fechado sem contato com o das mais poderosas fontes de liberar a quantidade ambiente externo. energéticas já descobertas de energia que os torna pelo homem é certamente instáveis. Tal liberação Esclarecidas as principais uma opção. pode ocorrer na forma de vantagens da energia partículas (radiação alfa, nuclear, Hugo se dedicou à Radioatividade, energia barrada pelos tecidos análise das características nuclear e Fukushima – A das roupas) ou de ondas da usina de Fukushima, grande eficiência energética eletromagnéticas (radiação deixando claro que não que caracteriza a tecnologia gama, muito penetrante, se pode afirmar que seus nuclear em comparação a barrada somente por reatores fossem inseguros. outras opções em uso foi chumbo). Diferentemente da maior assinalada pelo professor parte das construções Hugo em sua fala. Com À vantagem propiciada localizadas na região uma quantidade pequena pela eficiência energética atingida, como refinarias de combustível nuclear soma-se outra, de ordem de óleo, depósitos de é possível produzir uma ambiental: a energia nuclear combustíveis, usinas grande quantidade de é das mais limpas dentre termelétricas e indústrias energia. Por exemplo, as desenvolvidas até o químicas, as usinas um quilograma de urânio momento. nucleares não colapsaram. 159 160 Nas 14 usinas, distribuídas Um evento dessa natureza, do vazamento de Césio são insuficientes para Aquelas ocorridas nas Energia nuclear, matriz pelas três centrais com tal sequência de 137 em Goiânia, em 1987. causar danos, e o próprio células somáticas podem energética e economia nucleares da região, o problemas, é altamente Mas, contrapôs o professor organismo tem mecanismos ocasionar câncer, mas – Durante a mediação da sistema de segurança improvável. Considerando Rodrigo, a energia nuclear de reparo. estudos extensivos têm Aula Magna, o professor dos reatores funcionou que mesmo o altamente é, há décadas, uma das mostrado que a radiação é Candelori deu o “tom” do adequadamente, ou seja, improvável pode acontecer, mais eficientes aliadas da A radiação incide dos mais fracos elementos trabalho que continuou houve desligamento como ficou provado em medicina. igualmente sobre todas as carcinogênicos a que posteriormente nas aulas automático e subsequente Fukushima, não é desejoso moléculas que constituem o podemos ser submetidos. que ministra, de Ética e entrada no modo de que tais condições sejam Além da importante organismo dos seres vivos, Mais do que induzir Cidadania, acompanhando resfriamento, mesmo ante consideradas nos projetos aplicação na área médica – mas consequências danosas mutações pontuais, os desdobramentos o corte de fornecimento de usinas nucleares? O fato por exemplo, na radiologia advêm da interferência altas doses de radiação político-econômicos que externo de eletricidade. é que estudos de segurança e na radioterapia –, irradiar dela sobre o DNA, pois geralmente provocam se seguiram ao início da precedem construções produtos agrícolas para as demais moléculas rearranjos cromossômicos pior crise que o Japão já Contudo, cerca de 1 hora desse tipo, e atender àquilo garantir sua conservação podem ser repostas no que resultam na morte das enfrentou desde a Segunda após o terremoto, veio o que é altamente improvável também já é prática comum contínuo processo de células afetadas antes que Guerra Mundial. tsunami que colocou fora geralmente torna os e extremamente vantajosa. montagem e desmontagem tenham a oportunidade de de operação os geradores projetos muito dispendiosos que caracteriza nosso se tornarem cancerígenas. a diesel disponíveis no e, consequentemente, Após iniciar sua palestra metabolismo, mas o DNA é local, bem como seus desvantajosos. destacando o uso da energia a receita para isso. Quando Não se trata, obviamente, tanques de combustível. nuclear como fundamental o dano provocado pela de menosprezar os riscos Isso, então, abalou os Radiação, ambiente e para o desenvolvimento da radiação não é corrigido para a saúde humana e prédios onde estavam os saúde – Em se tratando de ciência e da saúde humana, de maneira eficiente pelo ambiental. Vazamentos reatores de Fukushima e radioatividade, geralmente Rodrigo lembrou ainda “maquinário de reparo” do radioativos podem atingir os interrompeu seu processo nos lembramos das bombas que a radiação é emitida DNA, mutações acontecem. seres vivos diretamente ou de resfriamento. Pouco nucleares lançadas naturalmente pela terra, depois, ocorreu a explosão sobre o Japão durante a pelo ar e até mesmo pelo Rodrigo ressaltou que nem de água, plantações etc. que vem causando todos os Segunda Guerra Mundial próprio corpo humano. (Para sempre as mutações são É preciso, porém, avaliar problemas de contaminação e dos chocantes efeitos não mencionar aparelhos prejudiciais. É importante adequadamente os riscos radioativa que os japoneses da exposição excessiva à criados pelo homem e ainda ter a informação de e proteger a população em ainda estão vivendo hoje. radiação em decorrência tão presentes em nosso que somente mutações caso de necessidade, sem dos acidentes nas usinas cotidiano, como rádios e nas células germinativas alardes descabidos. de Three Mile Island (EUA, os fornos micro-ondas). são transmitidas à 1979) e Chernobyl, além Essas doses, no entanto, descendência. por meio da contaminação 161 O clima catastrofista pós-Fukushima gerou demandas de desligamento de usinas em operação e/ou interrupção de obras de outras em construção nos 30 países que reúnem as 448 usinas do planeta. O ícone máximo disso foi o anúncio alemão de aposentadoria antecipada das usinas construídas antes de 1980 e a revisão completa de sua matriz energética. No Brasil, o debate sobre o que ocorreu em Fukushima reavivou antigas críticas à política nuclear de nosso país, especialmente após a reafirmação governamental de que o Brasil seguirá erguendo sua terceira usina nuclear, a de Angra 3. Comparações entre as usinas de Angra e Fukushima pipocaram na mídia, destacando sua diferença em termos técnicos. Há quem defenda, porém, que o principal problema de Angra está relacionado à dispersão da radiação em caso de acidente, dada sua localização próxima a áreas urbanas bastante populosas. É difícil ocorrer um acidente numa usina nuclear, pois as normas de segurança delas são rígidas e seus sistemas de segurança, robustos. Mas havendo um problema nos reatores – seja por falha humana, em decorrência de atentado terrorista ou como resultado de um terremoto seguido de tsunami –, os efeitos podem ser desastrosos. Vem daí a grande preocupação sobre o uso da energia nuclear. A rigidez das normas de segurança, após os dois acidentes nucleares históricos que Fonte: www.estadao.com.br de 5 de junho de 2011. antecederam Fukushima fez triplicar o custo de construção de uma usina nos últimos anos. Novos projetos poderão ter seus orçamentos ainda mais inflados, possivelmente afetando sua viabilidade econômica. Não seria melhor, nesse caso, optar por energia solar ou eólica? Sem dúvida, nos países que comportam tais tecnologias, deve haver investimento em pesquisa para que essas opções tenham sua eficiência energética melhorada e se tornem, em breve, economicamente competitivas com outras fontes. A solução adequada para a questão energética depende, portanto, das características de cada país em termos geofísicos, econômicos, de espaço, de demanda energética etc. 163 História, ciência e saúde. planejamento estratégico seus alunos, os gestores, Geografia, política e de um país. Ciente de que engenheiros, economistas e economia. De fato, são os cidadãos devem ter ecólogos de amanhã. muitas as vertentes a papel ativo nesse processo, serem consideradas no a Móbile busca preparar Digestão: o laboratório em foco Alunos do 5º ano do Ensino Fundamental aprendem como funciona o corpo humano. Para saber mais No 5º ano do Ensino Fundamental, propomos, como conteúdo da disciplina de Ciências, o estudo do corpo humano, composto por diferentes sistemas e aparelhos que apresentam funções específicas e contribuem para a Apostila sobre radioatividade da Comissão Nacional de Energia Nuclear: manutenção do todo. Para isso, selecionamos estratégias que <http://www.cnen.gov.br/ensino/apostilas/radio.pdf>. favoreçam a compreensão desse complexo funcionamento. Apostila sobre energia nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear: Ao estudarmos o aparelho digestório, perguntamos <http://www.cnen.gov.br/ensino/apostilas/energia.pdf>. inicialmente às nossas crianças, por exemplo, o que acontece com o alimento que ingerimos. As hipóteses por A energia nuclear e seus usos na sociedade: elas levantadas revelam ideias simples, concretas e até <http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2005/220/pdf_aberto/nuclear.pdf>. ingênuas, como, por exemplo: “A comida vira cocô e a bebida vira xixi” ou, ainda, “O que é bom fica no corpo e o que não Infográfico que indica os efeitos da submissão a diferentes doses de radiação: presta vira cocô e sai”. <http://www.informationisbeautiful.net/visualizations/radiation-dosage-chart/>. De que maneira ajudar os alunos a compreender como Mapa interativo da geração de energia nuclear no mundo: realmente ocorre a digestão? As atividades realizadas no http://www.economist.com/blogs/dailychart/2011/03/global_nuclear_power laboratório de Ciências auxiliam os alunos a fazer analogias entre os experimentos e o funcionamento do aparelho digestório. Depositar bolinhas de isopor com dois tamanhos diferentes em Tatiana Rodrigues Nahas é professora de Biologia do 2º ano do Ensino Médio. um funil, acrescentar um pouco de água e observar que as menores passam, ao contrário das maiores, sugere aos alunos que algo análogo a um funil está contido em nosso corpo e que o alimento, para passar por ele, precisa ser dividido E o intestino grosso? Relaciona-se sua função à ação de um pano fino coando massa de em partes menores. É possível também fazer os alunos compreenderem que o alimento cenoura misturada a água. O registro realizado no laboratório comprova a compreensão do mastigado é mais facilmente digerido quando vivenciam uma situação de laboratório em aluno: “A parte sólida da mistura de cenoura com água ficou no pano. Essa parte representa que um comprimido efervescente intacto demora mais tempo para se dissolver do que outro as fezes. A parte que passou pelo pano ficou cor de laranja e representa a água e os nutrientes triturado, por exemplo. que são absorvidos nos intestinos.” Todas as observações e registros individuais feitos após cada procedimento proposto são Aprender esses e outros conceitos da disciplina de Ciências por meio das estratégias socializados e discutidos, favorecendo a construção dos conhecimentos pelos alunos. apresentadas aqui favorece a compreensão dos conteúdos, pois, apropriando-se dos conhecimentos científicos, os alunos desenvolvem uma autonomia no pensar e no agir. 166 Em outro momento, os alunos percebem a reação do amido dos alimentos quando em contato Desenvolvem um olhar atento, curioso e investigativo e aprimoram algumas das habilidades com a saliva. Para isso, pingam solução de iodo em batatas cozidas, carne e óleo e observam fundamentais para um “comportamento científico”: identificar elementos e suas funções, o aparecimento de coloração diferente na batata pelo fato de ser a única que contém amido. levantar hipóteses, relacionar variáveis, comparar elementos e situações e concluir com base As crianças se surpreendem quando colocam saliva sobre ela e descobrem que a mancha em dados observáveis. clareou. Podem, então, concluir: “Que função importante tem a saliva! Transforma o amido dos alimentos!” E ao amassarem a batata: “A ação das enzimas da saliva é ainda mais eficiente!” As aulas planejadas para o estudo do corpo humano são, além disso, muito prazerosas, o que torna a busca pelo conhecimento e compreensão do funcionamento do corpo muito Outra descoberta a ser feita está relacionada à função do suco gástrico. Para facilitar essa mais envolvente, além de despertar nos alunos uma atitude de respeito e cuidado consigo compreensão, os alunos observam as mudanças ocorridas na carne moída quando se pingam mesmos. gotas de limão (fruta ácida) nela: “A carne mudou de cor e ficou mais mole!”, relatam. Uma nova etapa do processo ainda é ilustrada: a ação da bile sobre as gorduras é compreendida depois de se usar um procedimento no qual se mistura detergente com óleo. Os alunos observam uma transformação: “Ficou com várias gotinhas bem pequenas!” Alexsandra Dorneles de Azevedo, Jussara Moreira Santana e Laís L. de Carvalho Na discussão, comparam essa ação à que ocorre no intestino delgado. são professoras do 5º ano do Ensino Fundamental. 167 Crianças mergulham no mundo da ciência Investigar mecanismos para trazer a ciência para o dia a dia, para a prática, de forma concreta e lúdica, foi outro O mar e seus ricos elementos são mote para trabalho desafio. Para dar conta disso, com Ciências com as crianças do Infantil 3. aproveitamos o final das férias de verão e trouxemos para a sala de aula um assunto rico, familiar e, provavelmente, naquele contexto, ainda “fresco” na memória das crianças: a praia e “Terei sempre amado o mar. o ambiente marinho. Ele terá sempre apaziguado tudo dentro de mim.” (Albert Camus) O mar e seus mistérios – Iniciamos o trabalho com rodas de conversa sobre experiências pessoais e, com isso, sondamos o conhecimento prévio das crianças sobre o assunto. A partir daí, montamos uma série de atividades diversificadas que A criança se apropria ativamente da cultura do seu grupo e, por meio da vida social, contemplam todas as exigências da proposta idealizada por da comunicação com outras crianças e com os adultos, assimila as experiências que nós, incluindo a comunicação da ciência com outras áreas do tem com o ambiente em que vive e forma seu pensamento. conhecimento. O ensino de Ciências, especificamente para crianças na faixa etária dos 3 anos, deve O assunto foi tão envolvente e suscitou uma série de acontecer de forma prazerosa e significativa, de maneira que aquilo que se pretende ensinar considerações das crianças: “Meu pai já foi no fundo do esteja vinculado à realidade de vida de cada aluno. A ciência deve constituir uma ferramenta mar!”; “Meu pai tem um aquário que tem moreia”; “Eu importante de compreensão e interação das crianças com seu mundo. Teoricamente, essa tenho um livro cheio de tubarões”; “Eu já fui com a abordagem parece simples, clara e objetiva, no entanto é um dos maiores desafios para minha mãe numa praia que tinha tartarugas”... os educadores da Educação Infantil e exige deles uma constante análise e reflexão de sua prática. Desconstruir a ideia de que a ciência é um conhecimento complexo demais para A partir de relatos como esses, convidamos alguns ser ensinado a crianças tão pequenas e de que a comunicação entre esse saber e as outras pais para virem à escola dividir com nossos grupos linguagens como Artes, Música e Culinária não existe foi o nosso primeiro passo para tornar essa aprendizagem dinâmica, completa e significativa. suas experiências. Organizamos essas visitas alinhando os conhecimentos dos pais à nossa sequência didática. Afinal, para a formação de um bom aluno, a família é tão 169 importante quanto a escola. Educação não se resume concreto o estudo de Ciências é algo fundamental para ao ensino formal, mas ao desenvolvimento integral a compreensão e o entrosamento dos pequenos, por em que a participação dos pais é necessária e isso recorremos às tartarugas que vivem na escola a fim colabora para o processo. de promover momentos de observação, comparação e descrição desses animais com seus “parentes” marinhos. Foi Atravessamos a praia e fomos para o um sucesso! Trazer o animal para a sala de aula, observar suas mar encontrar ondas nas explicações características e aprender palavras para descrevê-lo foi um dos pontos apresentadas por um pai praticante de altos do nosso projeto. surfe. Do topo das ondas, mergulhamos para o fundo do mar na companhia de um pai Para fechar nossa pesquisa, nada melhor do que ir a um local onde se mergulhador, com todos seus equipamentos poderia observar o que, até então, os alunos viam somente em fotos ou especiais. Na profundidade do oceano, vídeos. Realizamos uma saída pedagógica ao Aquário de São Paulo. Mais Andreza Martins de descobrimos muito! Descobrimos até que do que um passeio, essa visita proporcionou momentos de conversa e Souza, Angela Ciupka, animais marinhos viram frutos do mar num troca de informações. Essas experiências não só enriqueceram o projeto Daniela Fernandes Rosa, delicioso prato. Essa descoberta foi facilitada como proporcionaram aos alunos a vivência efetiva de situações de Daniela Jaime Levino e aprendizagem. Lyara Vilches Contensini pela parceria de uma mãe chef de cozinha. são professoras do Cada visita ampliou o contexto de pesquisa que estava No fim, ao analisarmos todas as etapas realizadas, as sendo desenvolvida até o aquele momento, trazendo uma respostas, o interesse e, principalmente, o abordagem diferente das fontes de informações comumente aprendizado dos alunos, observamos que utilizadas, como livros, vídeos, Internet e enciclopédias, e trouxe aos o ensino de Ciências para crianças alunos um novo olhar sobre seus pais: o de educadores. É importante as crianças pequenas não somente é possível descobrirem que o professor não é o dono do saber, que seus pais, assim como os como também deixa claro a pais dos colegas (e elas), também sabem. ideia de que tudo aquilo que ensinamos e aprendemos E as descobertas não pararam por aí! O sabor do mar e é real. Conhecer faz parte sua biodiversidade impressionaram as crianças. Em um do mundo das crianças mergulho imaginário, elas “viram” animais temidos e do Infantil 3; descobrir criaturas frágeis como um simples caramujo. Entre como faz é parte do tantos animais, um chamou especial atenção e tornou- aprendizado dos se o nosso objeto de estudo, a tartaruga marinha. Tornar educadores. Infantil 3. Aline Prates Stroeh é Orientadora Pedagógica do Infantil 3. Crianças, índios e um universo comum Alunos do Infantil 4 se surpreendem com a riqueza da cultura indígena brasileira. vivenciam o aflorar da curiosidade, do conhecer, do desvendar e do questionar. Em busca de ampliar seu repertório e conhecer mais o mundo em que estão inseridas e com o qual interagem ativamente, elas perguntam, levantam hipóteses e parecem querer decifrar todos os mistérios do mundo ou, pelo menos, aquilo que lhes parece um mistério. Visando estimular essa curiosidade natural da criança e auxiliá-la a conhecer o mundo do qual faz parte, o estudo de Ciências proporciona situações de aprendizagem que as incentivam a elaborar suposições, a apresentar dúvidas, a observar, a buscar informações em fontes variadas e a registrar suas conclusões. Dessa forma, estabelecem relações entre o que já sabem e o que aprenderam com base em pesquisas e, assim, sistematizam seu 172 Desde muito pequenas, as crianças observam, exploram e interagem com o conhecimento. ambiente em que estão inseridas. Todos os dias, elas se deparam com novos desafios, muitas novidades e conquistas. Por volta dos quatro anos, as crianças passam a ter maior domínio partir de suas próprias experiências; dessa maneira, imaginam que todos vivam como elas. motor e também um vocabulário cada vez mais rico, o que faz com que se comuniquem com Entrar em contato com uma cultura diferente da sua é importante para que desenvolvam mais facilidade e clareza. Como característica marcante dessa fase da vida, as crianças valores, posturas e atitudes em relação a si mesmas, em relação ao outro e ao ambiente. Nessa idade, as crianças ainda são bastante egocêntricas e conhecem o mundo a 173 “Um índio descerá de uma estrela” – Como a curiosidade abrange os mais diversos assuntos, escolhemos um tema que desperta o interesse das crianças, fornece respostas a uma série de questões que apresentam e proporciona situações nas quais elas também ampliam sua visão de mundo: culturas indígenas. 175 174 Os povos indígenas fazem parte de nossa história, da origem de nosso país, nos influenciaram em vários aspectos, e sua arte e música são muito próximas do universo infantil. O Brasil abriga ainda hoje centenas de povos indígenas que guardam semelhanças com nossa cultura. No entanto, apesar dessas semelhanças, cada etnia tem suas especificidades culturais. Variam as línguas, as formas de organização social e política, os rituais, os mitos, as formas de expressão artística, as habitações, as maneiras de se relacionar com o ambiente em que vivem. Admiti-los como iguais seria um desrespeito à riqueza cultural dos povos. Assim, cada turma do Infantil 4 conheceu e estudou uma etnia diferente: Munduruku, Xavante, Kuikuru, Karajá e Guarani. O estudo durou um semestre. Primeiro, fizemos um levantamento do que as crianças sabiam e obtivemos respostas mais próximas do senso comum: “Os índios ficam pelados, isso é muito diferente da gente!; Os índios usam flechas para matar os animais!; Eles se pintam com tinta, mas os índios não têm tinta! Então, eles pegam as flores coloridas, colocam na água do rio, depois eles fazem uma tinta e se pintam!; Os índios falam chinês!; Eles matam os bichos com as flechas pra comer!; Eles bebem água do rio!” Desconstruir essas ideias e descobrir que os índios apenas se organizam socialmente de forma diferente, mas mantêm vínculos familiares, trabalham e festejam como todas as pessoas, é o grande desafio desse trabalho. Utilizamos mapas para localizarmos as aldeias dos povos estudados, o que despertou um grande interesse e também surpresa nas crianças, pois elas souberam que, em São Paulo, no estado 176 em que residem, há uma aldeia do povo guarani. Mostramos fotografias de povos indígenas e alguns artefatos utilizados por eles, o que mobilizou as crianças a também trazerem materiais de pesquisa sobre o assunto. Já mais familiarizados com o tema, perguntamos o que gostariam de saber a respeito das etnias, e elas levantaram questões como: “As crianças brincam de bola?; Os índios andam de barco?; A mamãe índia trabalha? E quem cuida do bebê?; Os índios têm dinheiro?; Eles vão na escola?; Eles têm brinquedo?; Eles choram?”; essas perguntam revelam uma busca de identificação, a partir de suas próprias vivências. Fomos, então, em busca de respostas para as perguntas e, para isso, pesquisamos em diversos livros, muitos deles dedicados ao público infantil, escritos pelo indígena Daniel Munduruku. Buscamos informações no site do ISA (Instituto Socioambiental), que desenvolve pesquisas criteriosas a respeito dos indígenas brasileiros e nos fornece dados bastante confiáveis. Abordamos, principalmente, os temas: moradia, alimentação, brincadeira e arte. A arte, a música e a dança indígenas são muito próximas do universo infantil, Ao estudarem as moradias, as crianças descobriram a riqueza e pluralidade das casas e nossos alunos puderam fazer muitas experiências nesse sentido. Entraram em contato indígenas, existentes em todo nosso território, e desconstruíram a ideia de que toda casa de com materiais naturais, como argila, penas e sementes, produziram artefatos indígenas, índio se chama oca, como popularmente ouvimos falar. Elas descobriram que nem todas as aprenderam canções de várias etnias e dançaram acompanhando os ritmos dos índios. aldeias são iguais e que cada uma se organiza de uma maneira distinta. Ao compararem a Também fizeram tintas naturais, conheceram e reproduziram grafismos indígenas. moradia indígena com aquela em que vivem, as crianças foram levadas a pensar em que lugar cada uma está inserida e como isso se relaciona com o material utilizado em cada construção. há uma réplica de uma aldeia indígena. Lá, puderam conhecer representantes de Assim, o olhar que estava inicialmente voltado para o índio começou a ampliar-se para o alguns povos e vivenciar um dia na aldeia, com atividades organizadas pelos próprios ambiente em que as crianças vivem. indígenas. Por meio dessas vivências, as crianças foram se apropriando de realidades e valores importantes, como o respeito à diversidade. A partir daí, abordamos o tópico da alimentação entre os índios. Frutas e caças Para enriquecer ainda mais o estudo, foram visitar o Sítio do Sol, local onde foram as hipóteses levantadas pelas crianças, embora também tivessem trazido elementos de sua rotina, como refrigerante e bolacha, por exemplo. Os alunos ficaram muito satisfeitos ao do que aprenderam. compararem a alimentação indígena com a delas e descobrirem que ambas se assemelham em muitos aspectos. de observar, conhecer, estabelecer relações e fazer comparações entre a nossa cultura e a desses povos; contudo, mais importante do que buscar as diferenças foi reconhecer As brincadeiras indígenas despertam interesse especial. Nesse momento, as crianças fizeram um levantamento das brincadeiras que conhecem e se surpreenderam ao Para finalizar o estudo, montaram uma rica exposição com seus trabalhos, resultado Ao travarem contato com a cultura indígena, as crianças tiveram oportunidade as semelhanças, de modo que se estabelecessem a empatia e o respeito pelo diferente. descobrir que as crianças indígenas têm brincadeiras parecidas com as delas, mas adaptadas ao seu meio: assim como elas, brincam bastante e experimentam uma série de brincadeiras, como o revezamento de tora e de chocalho, peteca, cama de gato, tiro ao alvo e brincadeiras Paula Vasconcelos, Renata Maltempi, Roberta de Vita, Robervânia Araújo e Thaís Neves são de roda. professoras do Infantil 4. Flávia Duran é orientadora pedagógica do Infantil 4. Alunos entram no universo do artista plástico Luiz Hermano e produzem sua própria arte Infantil 5 constrói esculturas de arame e contas influenciados pela arte de Hermano. 180 “O ser humano é, por natureza, um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar e, nesse interpretar, já começa a criar. Não existe um momento de compreensão que não seja ao mesmo tempo criação. Isso se traduz na linguagem artística de uma maneira extraordinariamente simples, embora os conteúdos sejam complexos.” Fayga Ostrower Um dos objetivos das aulas de Artes criança na Educação Infantil se encontra na Educação Infantil é “construir um olhar” a em fase de pensamento concreto e utiliza partir do “observar”, “sentir”, “expressar”, seus “fazer” e “refletir” dos alunos. A criança, experiências. Nessa etapa, as atividades dessa forma, ressignifica seu mundo interno artísticas propiciam ricas oportunidades para e externo. E como o mundo é repleto de o desenvolvimento dos alunos, uma vez que significados e cheio de descobertas nessa colocam ao seu alcance os mais diversos fase da infância! tipos de materiais para manipulação. O ensino de Artes investiga o senso estético, a sensibilidade e a criatividade. A sentidos para enriquecer suas Quando as habilidades infantis são estimuladas, ajudam no processo de “O que em mim sente está pensando.” 182 aprendizagem, pois desenvolvem a percepção exposição Templo do corpo, na Pinacoteca e a imaginação – habilidades indispensáveis de São Paulo, quando também lançou seu para a compreensão de outras áreas do livro Luiz Hermano, pela Imprensa Oficial. conhecimento humano. John Dewey, em sua Suas obras ainda fazem parte de acervos obra Arte como experiência, defende que e coleções de prestígio – Coleção Gilberto a subjetividade é inerente à arte e que, Chateaubriand, Rio de Janeiro; Biblioteca por esse motivo, por meio da técnica e da Nacional de Paris, França; e, em São Paulo, mediação de uma linguagem, ela se torna Masp, MAM, Pinacoteca do Estado, entre também objetividade, algo sobre o qual outras. podemos partilhar sensações e reflexões efetivas. Expressar uma experiência é de vídeos da vida e obra do cearense, leitura qualificá-la; logo, é também exercer, por meio de trabalhos desse artista e conversas dela, a inteligência, no esforço elaborado da com nossos alunos sobre suas percepções comunicação. A arte, diz Dewey, depende da e sensações. Posteriormente, levamos as “completa interpenetração” entre o sensorial crianças a uma exposição de Luiz Hermano e o intelectual. intitulada Rio de Contas, na Galeria Nara Para que a criança possa fruir Roesler. Lá, tiveram a oportunidade de ver a arte de maneira mais plena, o estudo bem de perto algumas obras em que – repletas da vida e obra de artistas contemporâneos de contas de formatos e cores diferentes, em é imprescindível. Um dos artistas que resina, plástico, acrílico e madeira, moldadas escolhemos como foco de estudo em 2010, por arame – continentes, rios, caravelas e no Infantil 5, foi Luiz Hermano. luas eram retratados magicamente… Além Nosso Hermano – Nascido no da beleza e da arte, puderam perceber Ceará, em 1954, Luiz Hermano Façanha também a matemática presente em cada Farias veio morar em São Paulo, quando obra, pois todo o trabalho de Luiz Hermano foi convidado a realizar uma exposição envolve relações e sequências lógicas na de desenhos no Masp, em 1979, e outra sua elaboração. de gravuras, em 1981. Desde então, vem construindo uma respeitável trajetória no estrutura de conjuntos, como Continentes e circuito das artes, com inúmeras exposições Caravela, cujo princípio de organização de individuais e coletivas nas principais capitais alguns volumes configura o todo. Já as outras brasileiras e no exterior. Em 2008, realizou a se estabelecem pela unidade, como Rio das Iniciamos o trabalho com a análise Luiz Hermano criou obras com Contas, com suas correntes que formam Fernando Pessoa rodamoinhos; Artifícios, na qual peças pretas e brancas listradas provocam ilusão de movimento; além de Sudário, Lua Cheia, Trombetas e as demais obras que compõem a exposição. Em todos esses trabalhos, o favorecer o aumento e maior qualidade artista utilizou materiais prontos, aliados a da observação de nossos alunos e, um fazer artesanal. consequentemente, ampliar seu repertório Por meio desse trabalho, pudemos A cada obra observada, era visível cultural, pois, ao aproximar-se do objeto a admiração por parte de nossos alunos. estético, a criança comunica-se com Eles discutiam cada pequeno detalhe e não ele, reflete sobre sua opinião com outra se privavam de fazer comentários sobre as pessoa e com o mundo e estabelece novas obras de que mais gostavam. Além disso, perspectivas. vibravam ao encontrar no espaço da galeria algumas das obras estudadas em sala de esse mergulho no universo de Luiz Hermano aula e discutiam, orgulhosos, cada detalhe e em seu “rio de contas”, cada turma, em um apresentado, como a sequência de cores ou trabalho coletivo, colocou em prática tudo formas, tamanhos e repetições, sensações o que aprendeu com esse estudo: a partir provocadas, pensando sempre em qual seria da imaginação criadora e da expressão de a intenção do artista ao produzir cada peça. cada elemento do grupo, a turma produziu, Hora de produzir, reproduzir – Após coletivamente, sua própria escultura, usando arame, contas e materiais diversos. O trabalho com essa linguagem possibilita e provoca o encontro das crianças com dimensões e representações do mundo, do espaço e tempo, do movimento, bem como a experiência sobre o próprio corpo no espaço. Essa linguagem convida ao brincar, ao jogo lúdico com o vazio e o cheio, com o duro e o mole, com o áspero e o liso, com a mistura de cores e formas, com o ar e 183 sua apreensão. Convida ainda a estabelecer relações entre repouso e movimento, entre espaço e tempo, capturados e expressos na linguagem da escultura. Ao realizarem esse trabalho, nossas crianças vivenciaram todas as possibilidades que a linguagem da escultura oferece, e o resultado dessa experimentação pôde ser apreciado numa bela exposição que realizamos no início de agosto de 2010. Ana Christina Nebó, Andréa Assumpção, Fernanda Campanhã, Monica Conte e Paloma Jordão são professoras do Infantil 5. Maria de Remédios F. Cardoso é diretora da Educação Infantil e coordenadora do Infantil 5. 185 A investigação científica no Ensino Fundamental Alunos do 8º ano do Ensino Fundamental aventuram-se em pesquisa científica. Assim, além de conhecer Iniciar-se nas ciências – O trabalho de Iniciação Científica uma série de conceitos, do 8º ano do Ensino Fundamental estruturou-se nas bases os estudantes também apresentadas anteriormente e permitiu uma experiência precisam entrar em investigativa bastante importante para nossos alunos. contato com determinado A ideia foi proporcionar uma sistemática de trabalho similar procedimento investigativo ao cotidiano dos cientistas, considerando o contexto escolar, para, então, compreender de forma que os estudantes vivenciassem diferentes etapas uma atividade que ocupa do ato de investigar. grande parte do tempo dos Formar cientistas mirins A ciência é uma forma de A maneira particular não é, definitivamente, um compreender o mundo, pela qual a ciência se dos objetivos do ensino de de explicar a natureza. faz, com o método de Ciências Naturais da Móbile. Ciências são óculos que, produção e validação do Mas isso não quer dizer uma vez colocados por conhecimento científico, que, ao longo do Ensino sobre os olhos, possibilitam permite agrupar disciplinas Fundamental, nossos alunos enxergar o mundo de outro tão diferentes, como não possam ser iniciados modo. Naturalmente, há Química, Biologia, Física nas ciências. outros óculos, além dos e Geologia em um único científicos, que podem grande grupo denominado também nos mostrar tudo à Ciências Naturais. Uma das nossa volta, mas é por meio características centrais da dos “óculos da ciência” produção do conhecimento que os fenômenos naturais, científico é a investigação, como os trovões, por que deve ser considerada exemplo, ganham dimensão como conteúdo estruturante mais complexa. A ciência na formação fundamental entende o mundo buscando dos alunos. explicações passíveis de testes e validações e, por isso, confiáveis. cientistas. Tudo se iniciou com a definição dos grupos de trabalho e a proposição de um desafio único para a série: realizar uma pesquisa sobre saúde e alimentação na adolescência que contemplasse, no mínimo, uma amostra de 100 pessoas. Num primeiro momento, o tamanho dessa amostra pareceu assustador ou impossível para os alunos, todavia percebeuse que, na verdade, isso se constituiu num dos fatores de motivação para a realização do trabalho. A partir de um grande tema vinculado à vivência dos alunos (saúde e alimentação), oito subtemas foram escolhidos e distribuídos entre as classes: “Consumo de fast food”; “Alimentação e mídia”; “Consumo de doces”, “Uso da cantina”; “Prática de atividades físicas”; “Alimentação diária”; “Cuidados básicos com a saúde”; “Alimentação no recreio”. Partindo dos subtemas, cada quarteto de alunos elaborou duas grandes “perguntas de investigação” (perguntas científicas). Essas questões seriam respondidas apenas na etapa final do trabalho, após uma coleta de dados que contemplasse entrevistas com os adolescentes da escola e pesquisa bibliográfica. Para cada “pergunta de 187 investigação”, o grupo ainda elaborou uma metodologia da metodologia adotada, dos resultados obtidos e das conclusões elaboradas, assim como adequada à sua resolução, e todas essas informações foram a replicação do estudo por outros pesquisadores – característica fundamental no processo reunidas num produto intermediário denominado “Projeto de validação do conhecimento científico. de Pesquisa”. A etapa seguinte do trabalho envolveu orientação, o que se deu nas correções comentadas de cada projeto de pesquisa e nas conversas entre os professores e os grupos de trabalho. A orientação, com base na correção dos projetos de pesquisa, permitiu ajustes na metodologia de cada “pergunta de investigação” e, assim, os grupos estavam preparados para iniciar a coleta de dados. Cada classe do 8º ano ficou responsável por analisar uma O que leva os adolescentes à pratica de atividades físicas? série que compõe o Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano). 70 60 Para tabular e analisar estatisticamente os dados coletados, inicialmente os alunos 50 participaram de duas oficinas para tratamento de dados fictícios, utilizando-se do programa Excel. Durante as aulas destinadas à análise das informações, os grupos de trabalho puderam discutir e decidir, com maior embasamento, as melhores estratégias gráficas para 58 número de adolescentes 40 30 representar seus objetos de estudo. Todo o trabalho de investigação foi finalizado na forma 20 de um “relatório científico”, gênero textual trabalhado, em Língua Portuguesa, ao longo 10 de todo o 8º ano, que permitiu, de uma maneira objetiva, o registro escrito da descrição 0 22 3 obrigação diversão outros A Iniciação Científica do 8º ano proporcionou o aprofundamento de conteúdos específicos estudados nas disciplinas de Ciências Naturais e Matemática e, acima de tudo, fez com que nossos alunos pensassem cientificamente sobre um tema. Além disso, o mote que sustentou todas as pesquisas possibilitou discussões e reflexões sobre comportamentos e hábitos pessoais e de grupo, atitudes preciosas para a manutenção do bem-estar individual e coletivo. Para que o aprendizado de Ciências ocorra, não basta construir um acesso aos conceitos e fenômenos, é também necessário formar o aluno para que ele possa se expressar e pensar cientificamente. É nesse sentido que o trabalho de Iniciação Científica do 8º ano se justifica e passa a ser fundamental. A poesia está nas palavras Alunos do 2º ano do Ensino Fundamental estudam poemas, enquanto brincam com as palavras Palavra: unidade da língua formada por um ou mais fonemas, matéria-prima do poeta, pedra valiosa em estado bruto. O ofício daquele que exerce a arte de dizer muito em poucas palavras não é fácil, mas uma prática engenhosa, de muita pesquisa e reflexão. Ele faz com que seres inanimados tornem-se animados, transpõe o sentido objetivo de um termo a outro, figurado; cria musicalidade combinando sons, une, enfim, todos esses elementos para formar um poema que, como uma janela aberta, evoca realidades por vezes inimagináveis, reveladas somente àquele que “penetra surdamente no reino das palavras”, como disse Drummond. Valorizar o texto poético como uma forma artística de expressão escrita é o que faz a disciplina de Língua Portuguesa na Móbile. Como é possível ensinar João Carlos Micheletti Neto é professor de Ciências e Silmara Parra é professora de Matemática, ambos do Ensino Fundamental II. tal gênero de tamanha complexidade a crianças de apenas sete anos? Quem responde a isso é o poeta José Paulo Paes em sua obra Poemas para Brincar, adotada pelo 2º ano. Ao receberem o segundo livro de poemas, Rimas animais, de César Obeid, os alunos já estavam familiarizados com a Convite organização gráfica do texto formado por versos e estrofes, bem como já sabiam reconhecê-lo devido ao ritmo Poesia é brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pião. característico do gênero. Contudo, as criações de Obeid reforçaram o caráter oral da poesia por tratar-se de uma literatura de cordel, profundamente ligada à cantoria dos repentistas que usam a viola para embalar seus versos improvisados. Os poemas escritos em forma rimada e metrificados em sextilhas, setilhas, oitavas 192 e décimas apresentavam alguns animais, suas Só que bola, papagaio,pião de tanto brincar se gastam. características, seu modo de vida e curiosidades acerca deles. Além disso, o escritor registrou em seu livro palavras ligadas ao universo da ciência para que o leitor tivesse mais informações sobre o tema. As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam. Após lerem os poemas em voz alta nas rodas de leitura e se divertirem com as descobertas sobre os animais, os alunos, que há pouco haviam passado pelo processo de alfabetização, elaboraram, em duplas, os seus “ensaios” na arte Como a água do rio que é água sempre nova. Como cada dia que é sempre um novo dia. Vamos brincar de poesia? de fazer poesia. As produções sobre os animais surpreenderam pela O envolvimento com esse gênero literário foi diversidade de imagens criadas. estimulado nos alunos pelo prazer de recitar Também não faltou criatividade os poemas em voz alta – guiando-se pela para fazer as ilustrações utilizando musicalidade dos versos –, pelos jogos de a técnica da colagem, a partir memória (troca-letra, adivinha-onomatopeia), da referência de Andréia Vieira, entre outras possibilidades relacionadas ao ilustradora do livro Rimas rico universo da poesia. animais. 193 Clara Sampaio Laranjeira e Camila Rozenblit Tiferes. 194 195 Arthur Zanini de Salles Aguiar e Luana Kitagawa Cunha Soares. 196 197 Juliana Nakano Myazaka e Mariana Marques Alves Bocuzzi. 199 Amanda Leal Netto Campos e Gisele da Costa Dubois. 201 Visita poética – A última palavra do projeto ficou com o poeta César Obeid. Em um animado encontro com os alunos da Móbile, ele mostrou que a poesia está no dia a dia. Rimando, brincou com as palavras, ao cantar repentes a partir dos nomes das crianças, e criou histórias usando barbantes. Ao final da reunião, César foi presenteado com os ensaios poéticos feitos pelos alunos. 202 Os olhos vibrantes, as risadas escancaradas, os ouvidos atentos foram traços de uma experiência única entre o poeta, a palavra e o leitor. Sem mais palavras. Márcia Ruiz é assessora de Português do 2º ano e trabalhou em conjunto com a coordenadora Lucelena M. de Souza Lee e com os professores do 2º ano Bárbara A. Pozas, Débora M. Zardi, Priscila M. Ribeiro, Rodrigo L. de Castro e Talita D. Fagundes. Entes mágicos e histórias fantásticas 3º ano do Ensino Fundamental trabalha com universo imaginário nacional. Quem nunca ouviu histórias sobre as estripulias do Saci-Pererê e sobre a maldição da Mula-sem-Cabeça? Quem nunca sentiu 204 medo do Lobisomem, aquele ser estranho, metade homem e metade lobo? Quem nunca se encantou com o Boitatá e com seu corpo flamejante? Esses e outros seres fantásticos que povoaram o imaginário infantil brasileiro durante décadas são reavivados nas aulas de Português do 3º ano. Com o objetivo de ampliar o universo cultural de nossos alunos e de aprofundar o contato com histórias da tradição oral, que constituem a identidade de um povo, trabalhamos com as narrativas mitológicas, gênero que procura explicar a existência do mundo e seus mistérios. Inspirados pelas histórias e pelas ilustrações de Marcelo Xavier, organizadas no livro Mitos (Editora Formato), os alunos se encantaram pelo universo mítico e rechearam suas mentes de histórias protagonizadas por seres fantásticos, repletos de poderes e transformações. O encantamento se estendeu para o campo de outras sensações ao experimentarem os sons produzidos por esses seres enigmáticos cercados pela natureza e seus mistérios. Mestre André – Embalados por Mestre André, um contador de histórias típico do interior brasileiro, as crianças percorreram diferentes cenários e conheceram diversas narrativas fantásticas de nosso folclore. As ações das personagens e as características físicas e psicológicas de seres singulares e fascinantes foram exploradas nas discussões em sala e nas rodas de leitura promovidas pelas professoras. Do primeiro contato com o livro, passando pelas sessões de “contação de histórias”, os alunos vivenciaram a experiência de explorar o exercício de autoria e utilizaram os conhecimentos adquiridos no decorrer do trabalho, além da intuição, para criar as características de seus 206 próprios seres. 207 O exercício de inventar, de dar existência ao que não existe, coaduna-se, portanto, no processo de produção, com capacidades artísticas e intelectuais que o aluno, no decorrer das situações de aprendizagem, tem a oportunidade de desenvolver e aprimorar. Ana Lúcia Ribeiro de Almeida é orientadora do 3º ano do Ensino Fundamental. Adriana Caravieri Rosa, Aluani Tordin de Oliveira, Fábia de Cássia B. dos Santos, Lara Portes Oliva e Marina Callil Voos são professoras do 3º ano do Ensino Fundamental. Há muito tempo, aprender uma língua estrangeira deixou de Atualmente, passou a incorporar em seu processo de ensino contextos sociais que permeiam o uso do idioma e a herança cultural que faz da língua um objeto de estudo vivo e dinâmico. O ensino da literatura busca retratar e recriar as questões humanas universais, numa linguagem esteticamente trabalhada e transgressora que possibilita ao aluno, entre outras coisas, descobrir-se e reconhecer-se. Por essa razão, o uso de recursos literários no ensino de línguas estrangeiras (em nosso caso, mais especificamente da língua inglesa) vem ganhando espaço na sala de aula, pois eles aproximam os alunos das múltiplas faces da linguagem, colocando-os em contato com diferentes aspectos de uma língua. Os textos literários são, por natureza, um recurso vasto e muito rico que abarca uma diversidade de manifestações culturais, sociais e histórias específicas de uma sociedade. Quando inseridos no processo educacional, possibilitam que o aluno desenvolva uma leitura crítica e transfira para a sua realidade, eventualmente, os valores veiculados nas obras. Dessa forma, é possível desenvolver uma consciência crítica que permitirá ao C.S. Lewis our lives have already become. and provides; and in this respect, it irrigates the deserts that It enriches the necessary competencies that daily life requires Literature adds to reality, it does not simply describe it. ser o simples estudo de códigos e treino de habilidades específicas. educando avaliar, julgar e ler o seu próprio mundo, tornando-se assim um sujeito pensante, questionador e reflexivo, com espírito crítico e ativo em aspectos sociais, políticos ou emocionais. contextos de comunicação e expansão do conhecimento sobre a língua estrangeira aprendida. Por meio da literatura, possibilitam-se discussões, troca de experiências e opiniões. Ao examinar os valores contidos nos textos literários, leitores estabelecem conexões com o mundo fora da sala de aula e ampliam seus universos culturais. Os autores Carter e Long (1991) desenvolveram três modelos de abordagens para a inserção da literatura nas aulas de línguas estrangeiras. No modelo cultural, a literatura é vista como fonte de informação, pois ela é capaz de aproximar o leitor de diferentes culturas e ideologias contidas nas obras literárias. Esse modelo parte do estudo de aspectos biográficos, sócio-históricos e culturais presentes nos textos literários. No modelo de linguagem, a literatura é abordada como instrumento de aprendizagem da língua estrangeira. É a partir desse modelo que acontece a aquisição de vocabulário e novas estruturas linguísticas que se fazem presentes no texto literário. Já o modelo de crescimento pessoal propicia a apreciação da literatura como forma de compreensão de nossa sociedade e cultura. Esse modelo permite que o leitor se aproprie do texto literário e estabeleça conexões entre a obra e o seu próprio mundo. Oscar Wilde A inserção de literatura nas aulas de língua inglesa propicia contato com materiais autênticos, observação da linguagem em diversos “Literature always anticipates life. It does not copy it, but moulds it to its purpose.” 208 Por que usar textos literários nas aulas de língua estrangeira? Além da história: a ampliação do universo cultural nas aulas de Inglês por meio da literatura Nas aulas de Inglês do Ensino Fundamental II e do Médio da Móbile, propomos a integração dos três modelos teóricos propostos por Carter e Long. Esse trabalho se inicia com a escolha da obra a ser lida, 209 que é feita levando-se em conta o nível linguístico e de maturidade dos alunos. Os clássicos da literatura de língua inglesa sempre encabeçam nossas opções, pois colocam os alunos em contato com um tipo de narrativa ficcional distante de seus universos, fazendo da leitura algo motivador e desafiador. Depois de feita a escolha, começamos a abordar o primeiro dos três modelos mencionados (modelo cultural), que acontece mesmo antes da leitura da obra literária. Nessa etapa do trabalho, os alunos entram em contato, por meio de uma palestra em língua inglesa, com o contexto histórico da obra para que possam estabelecer eventuais relações com a contemporaneidade, além de promover uma reflexão sobre as marcas expressivas de determinada geração. É nesse momento, também, que a biografia do autor é apresentada aos alunos. Uma vez que o conhecimento acerca do contexto de produção da obra esteja garantido, os alunos começam a sua aventura para desvendar a obra sugerida, entrando no segundo modelo, o da linguagem. Um dos objetivos, nesse momento, é colocar os aprendizes em contato com o uso da linguagem em suas diversas formas para que possam construir discursos bem elaborados estando em contato com elementos linguísticos que visam à expressão de sentimentos e ideias de maneira clara e coesa. Além disso, o contato com uma Momentos de Reflexão modalidade privilegiada de comunicação possibilita a instauração do diálogo entre textos e leitores de todas as épocas, visando à compreensão do indivíduo em relação aos valores de determinados contextos sociais. “By knowing how Edgar Allan Poe suffered in life and all he went through, it´s 213 easier to understand why he writes about death and pain. It made it easier to understand the tales.” (Thais Branco, 9º ano) Momentos de Reflexão “I understand the reason of sadness in Poe´s stories. So the stories made “With information about the author I could understand why he wrote those more sense to me, they weren´t just stories made to scare people, they were important for Poe because they helped him go through his hard life.” (Mariana Stefani, 9º ano) “The information about the author made me understand the story better because when I understand John Steinbeck´s life, I understand his opinions and consequently the book.” stories; I could understand his style of writing.” (Gabriela Vianna, 9º ano) “I could understand how the characters had been created. The characteristics of the characters were similar to people that Lewis Caroll used to know. (Daniela Machado, 8º ano) (Cristiana Pietracola, 9º ano) “The information about the author helped me read the book and understand how Lewis Carol’s characters were created.” (Henrique Caldas Oliveira, 8º ano) Alguns teóricos defendem que a literatura possibilita o desenvolvimento de habilidades de leituras de épocas e da cultura de um país. Permite também o aprimoramento da capacidade expressiva, artística e interpretativa, promovendo o diálogo entre textos de diferentes épocas e autores. Momentos de Reflexão Apropriar-se do texto literário para estabelecer conexões entre a obra e o seu próprio mundo é um dos objetivos do trabalho desenvolvido com literatura nas aulas de “I could learn the influence of Victorian era in the story.” (Stephanie Haspo, 8º ano) Inglês. Como fechamento para a análise literária, foi proposta aos alunos de 8º e 9º ano uma reflexão sobre a importância da contextualização da vida do autor, do seu estilo e dos “Now I know how Charles Dickens lived and how the social condition influenced the book.” aspectos sócio-históricos que permearam o momento de produção da obra literária. Algumas das citações produzidas, a visão sobre como cada aluno percebeu a leitura proposta e os ganhos obtidos são ilustrados a seguir: (Mariana Araújo, 8º ano) “I could deeply see the characteristics of the characters and besides that I could understand the situation of England at that time.” (Daniela Taouil, 8º ano) É sabido que o ensino da literatura contribui efetivamente para o desenvolvimento da capacidade leitora, indispensável ao exercício da cidadania. O mergulho numa boa obra literária permite a ampliação das habilidades básicas de análise e interpretação de textos (levantamento de hipóteses interpretativas, considerando os recursos, tanto estilísticos How did the information about the author and his piece of writing contribute to your reading of the book? “It contributed to my understanding of who the characters were based on.” (Henrique Ferreira, 8º ano) “By knowing the style and the birth place of Lewis Caroll, I could understand things related to the habits of his country” “You can see that many acts from the book are a kind of mirror to Poe´s life. Throughout his life, he had a lot of deaths and in his stories we can see that too.” E. M. Forster (Isabela de Angelis, 9º ano) wrote. condition of the man who who reads it towards the it transforms the man (Thais Bianchini, 8º ano) great literature is that What is wonderful about Literatura como forma de compreensão de nossa sociedade e cultura: o olhar dos alunos quanto semânticos e expressivos). 215 “The context of the story was the context of Steinbeck´s life.” (Luiza Bucker, 9º ano) “I could understand the mind of the writer better, and his thoughts when he Conheça mais wrote those tales. That helped me understand the characters’ minds too.” • Carter, R. & Long, M. (1991). Teaching Literature. Longman (André Salem, 9º ano) • Savvidou, C. An Integrated Approach to Teaching Literature in the EFL Classroom http://iteslj.org/Techniques/Savvidou-Literature.html They motivated me to read the book because I became curious. (Andrea Moutinho, 9º ano) Links - Literatura em língua inglesa • http://www.online-literature.com/ • http://classiclit.about.com/od/bycountry/By_Country_Language_Find_Writers_From 216 Esse projeto possibilitou aos alunos fazer leituras mais complexas, contextualizadas e significativas, além de ampliar seu repertório linguístico e cultural e estabelecer relações entre a leitura e seus próprios mundos. _Around_the_World.htm • http://www.classicliterature.net/ • http://www.bartleby.com/cambridge/ • http://www.classic-literature.co.uk/classic-literature.asp “I´ve tried to read the book as if I were Lewis Caroll.” (Renata Batista, 8º ano) Cláudia Colla de Amorim é coordenadora geral de Inglês da Móbile; Livros lidos pelos alunos dos 8os e 9os anos no 1º semestre de 2011: • Christmas Carol (Charles Dickens) • Through the Looking-Glass (Lewis Carroll) • The Pearl (John Steinbeck) • Tales of Mystery (Edgar Allan Poe) Paulo Rogério Rodrigues é professor de Inglês do Ensino Fundamental II e coordenador do curso opcional Inglês Móbile. 217 Prática outrora restrita Os alunos do Ensino Médio A primeira turma do projeto às boas universidades, que participam do projeto (2008/2009) produziu passou a compor o quadro de Iniciação Científica um conjunto de Objetos de projetos realizados pesquisam temas de seu Virtuais de Aprendizagem pelos alunos do Colégio interesse e de reconhecido sobre temas relacionados Móbile desde 2008. Trata- valor cultural sob a às Ciências Exatas e se do projeto de Iniciação orientação dos professores. desenvolveu blogs sobre Científica. Eles iniciam suas pesquisas importantes temas das quando cursam o 2º ano Humanas. do Ensino Médio e, depois 218 de um ano, apresentam os resultados em formato de componentes virtuais que podem vir a ser socializados a outras pessoas interessadas nos temas, sejam elas da comunidade Móbile ou não. Trens, casas sustentáveis, anarquismo, cinema e muito mais Alunos do Ensino Médio apresentam seus trabalhos de Iniciação Científica. Jogos virtuais Os alunos que fizeram parte da segunda turma do projeto de Iniciação Científica (2009/2010) produziram Jogos Virtuais sobre temas relacionados a várias áreas do conhecimento. A seguir, descrevemos os trabalhos realizados pelos alunos em Ciências e em Humanas: 219 Nas Ciências... O aluno João Frederico Paredes, interessado em aspectos de Química, resolveu aplicá- A aluna Natália Mello tinha por interesse cursar Engenharia Civil, como de fato o faz hoje. los na produção de um jogo envolvendo mistério na solução das causas de um acidente Não foi à toa, portanto, que se dedicou a pesquisar a respeito das características de automobilístico. Para tanto, o usuário precisa colocar-se no papel de um perito criminal construções residenciais que pudessem ser classificadas como “sustentáveis”. O resultado que utiliza procedimentos clássicos de Química Forense. Aliás, Química Forense é o título de sua pesquisa gerou uma simulação interativa, intitulada Construções Sustentáveis, que João Frederico deu a seu jogo. na qual o usuário projeta uma casa e, para tanto, deve escolher uma região do país, materiais e equipamentos adequados. Dependendo das escolhas que realiza, sua obra recebe uma classificação que pode ou não ser próxima, de fato, de uma construção sustentável. Trens de todos os tipos, desde as mais simples locomotivas a vapor até os modernos trens magnéticos, sempre foram tema de interesse do aluno Jorge Luiz Moreira Silva. Quando surgiu a oportunidade de estudá-los a fundo, Jorge a agarrou e realizou uma pesquisa O interesse pela Biologia fez com que o aluno Henrique Rubira resolvesse pesquisar de alta qualidade que resultou em um complexo jogo sobre o tema. Nesse jogo, intitulado as condições que permitiram o surgimento da vida na Terra. Ao final de sua pesquisa, Trens, para sair-se bem, um jogador precisa aprender um pouco do que Jorge estudou por Henrique havia produzido uma interessante simulação, A origem da vida, em que o usuário meio de interações sucessivas com as rotinas que ele mesmo programou. escolhe determinadas características e, em função dessas escolhas, a vida surge e se perpetua ou, em caso contrário, definha e desaparece. Como se vê, não foi pouco o conhecimento de Biologia necessário para que Henrique produzisse algo tão complexo. Música sempre é algo que atrai qualquer jovem, mas alguns deles, além de cantar e tocar algum instrumento, preferem estudar os princípios científicos que norteiam os fenômenos sonoros. Esse foi o caso do aluno Raphael Vianna, que pesquisou, concebeu e programou um jogo intitulado Matemática e a música do violão. Convidamos a quem desejar conhecer as regras de proporcionalidade envolvidas na construção da escala musical a interagir com o jogo que Raphael produziu. Nas Humanas... Na área de Humanidades, os projetos versaram sobre temas relacionados à História e suas O cinema sempre foi a grande paixão de Ana Carolina Balam Sebe. Ela escolheu estudar fronteiras com outros espaços de produção de conhecimento. Os três alunos pesquisadores a relação de um filme com o momento histórico em que foi produzido. Mais do que isso: a seguir aproveitaram a oportunidade oferecida pela Iniciação Científica para ampliar seus queria compreender o impacto que um filme pode ter na sociedade, assim como o retrato conhecimentos sobre temas de seu interesse que envolvessem História, Arte e Política. que uma obra cinematográfica pode fazer da sociedade na qual foi criada. Para isso, Ana escolheu como foco de sua pesquisa a sociedade norte-americana e sua produção. A partir de diversas listas feitas por críticos de cinema reconhecidos, elegeu obras representativas das décadas de 1970, 1980 e 1990, assim como momentos históricos emblemáticos de cada uma dessas décadas. O jogador transita, então, pelos diferentes momentos históricos Pedro Loureiro Porto iniciou sua participação no projeto interessado em conhecer mais e é levado a participar de cenas icônicas dos filmes escolhidos para cumprir uma missão a fundo os processos de relação entre o surgimento de um movimento literário e o momento que envolve uma máquina do tempo, testes e o resgate de um cientista maluco. histórico no qual ele aconteceu. Partiu das profundas alterações sociais e econômicas provocadas pela Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII para entender como as manifestações literárias tinham reagido a essas transformações. Encontrou não apenas uma, mas duas vertentes importantes que foram geradas pelo contexto histórico da industrialização: a literatura policial e o Romantismo. De modo a restringir sua pesquisa e estabelecer relações mais precisas, focou seus estudos em um representante de cada movimento. O poeta Lord Byron (1788-1824) foi escolhido como representante do Romantismo, enquanto o escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) teve esse papel na literatura policial. Seu jogo apresenta a cidade de Londres nas diversas fases da Revolução Industrial. O jogador, que inicia o jogo como um camponês que procura trabalho na cidade, recebe uma série de missões a serem cumpridas para auxiliar no desenvolvimento do processo da industrialização e compreender as transformações que esse processo provocou na sociedade inglesa. Para poder cumpri-las, é auxiliado pelos dois escritores, entrando em contato com suas produções literárias. O interesse de Caroline Cury sempre foi voltado para a política. Quando teve aulas sobre anarquismo no 2º ano do Ensino Médio, ficou fascinada pelas propostas dos teóricos anarquistas e sua atuação ao longo do século XIX. Porém, tinha dificuldade em imaginar como seria possível – se é que seria – o desenvolvimento de uma sociedade naqueles moldes, por isso escolheu esse tema para tratar ao longo de sua Iniciação Científica. Focou seus estudos em dois teóricos, o russo Mikhail Bakunin (1814-1876) e o francês Pierre Joseph Proudhon (1806-1865), para criar um jogo que simula uma sociedade anarquista após o processo revolucionário, orientada pelas ideias desses dois pensadores. O jogo revelou-se uma ferramenta didática extremamente interessante e funcional: os alunos do 2º ano de 2011 iniciaram seus estudos sobre anarquismo a partir dele. Puderam, assim, compreender as teorias de Proudhon e Bakunin de forma lúdica, exercitando os limites da imaginação e da construção de hipóteses. Conheça esses trabalhos acessando http://www.escolamobile.com.br/?page_id=1885 A ciência vista com arte Novas turmas: novos desafios No segundo semestre de 2010, uma nova turma de alunos ingressou no projeto de Iniciação Científica do Colégio Móbile. De 2008 – quando o projeto foi iniciado – até o final do ano passado, dobrou o número de interessados em pesquisar e construir conhecimento sobre temas que tangenciam os conteúdos curriculares, mas que não são tratados especificamente durante as aulas. Para a turma que concluiu seus trabalhos em 2011, o desafio foi a transformação de suas complexas pesquisas em vídeo-aulas dinâmicas e acessíveis ao público. Os trabalhos resultantes dessas pesquisas poderão ser conhecidos por você na próxima edição da Revista da Móbile. Walter Spinelli é professor de Matemática do Ensino Médio (e coordenador geral do projeto de Iniciação Científica) e Teresa Chaves é professora de História do Ensino Médio (e coordenadora dos projetos de Humanidades). Projeto interdisciplinar em Ciências da Natureza aproxima ciência e fotografia no I Concurso Fotográfico da Móbile. No início de 2010, os alunos do Ensino Com o retorno positivo de alunos de Fundamental II e do Médio foram instigados diferentes idades sobre as exposições Mundo a criar ângulos para retratar a ciência que Vegetal e Mundo Animal, os professores vêm conhecendo em sala de aula. De acordo e coordenadores de Ciências do Ensino com a série em que se encontravam, alguns Fundamental e Médio imaginaram um evento temas científicos foram propostos e os alunos que envolvesse do 6º ano (EF II) ao 3º ano (EM) puderam, então, representá-los por meio de de forma a estimular o registro fotográfico fotografias que foram inscritas no I Concurso dos conteúdos científicos trabalhados. Fotográfico da Móbile – Olhares da Ciência. No contexto da aprendizagem científica, A resposta foi surpreendente e gratificante: essa relação entre arte e ciência facilita a mais de 200 fotos inscritas. A comissão sistematização de conteúdos científicos e o organizadora do evento selecionou cerca exercício do uso de uma linguagem específica de 60 obras finalistas, de acordo com os possibilita a expressão dos conhecimentos critérios estabelecidos no regulamento sobre esses conteúdos. do concurso. Em seguida, dois fotógrafos profissionais, Édson Grandisoli e Deco Cury, A fotografia constitui, como se sabe, uma Espaço virtual – A comissão organizadora analisaram essas imagens e selecionaram os linguagem extensamente utilizada no fazer do concurso fotográfico reuniu informações vencedores de cada série. e no comunicar científicos: imagens de sobre o trabalho numa ferramenta satélite, imagens de microscopia, imagens complementar, o blog http://olharesdaciencia. Arte e Ciência – O concurso fotográfico de fenômenos físicos e químicos, imagens wordpress.com. Estimulando a interatividade surgiu tendo como base as experiências de seres vivos e ambientes naturais e tantas e a pesquisa em ambiente virtual, o blog serviu bem-sucedidas do projeto de exposição outras permeiam o cotidiano da produção de suporte para o concurso ao apresentar de fotografias científicas realizado pelos do conhecimento científico e de sua o regulamento, disponibilizar um espaço professores Carlos Eduardo Godoy e João aprendizagem. para que os alunos sanassem suas dúvidas, divulgar as datas das oficinas fotográficas, Carlos Micheletti Neto (Ensino Fundamental) a partir de seus acervos pessoais. Inicialmente, Com a realização do concurso fotográfico, além de hospedar o link para a ficha de as exposições pretendiam aproximar os a Móbile reafirmou seu compromisso de inscrição. Mais que isso, o blog funcionou alunos das fotografias de elementos da também formar cidadãos capazes de utilizar como um espaço virtual de aprendizado natureza, apresentando imagens de grande diferentes linguagens para interpretar ao propiciar referências aos estudantes, beleza e possíveis de serem feitas com conceitos científicos e comunicar suas ideias apresentando imagens científicas diversas, máquinas digitais simples. tendo, ao mesmo tempo, prazer na criação muitas delas participantes de concursos artística e no aprendizado dos conteúdos. fotográficos de prestígio internacional, além de fornecer “dicas” fotográficas oferecidas para outras situações, fato que e informações científicas. No período do ficou comprovado com a inscrição de muitas Fotógrafo: Leonardo Gandur Giovanelli concurso fotográfico, foram disponibilizadas fotografias, produzidas em datas posteriores Título da fotografia: Raios em dias sem chuva mais de 70 postagens divididas em 4 às oficinas. categorias (“Ciência e Arte”, “Concursos de Fotografias Científicas”, “Dicas Fotográficas” Álbum de fotos – As fotos submetidas ao e “Galerias de Imagens”). concurso foram exibidas em uma exposição 1º lugar – 3º ano – Ensino Médio Tema: Eletricidade Na foto é possível observar a presença de um raio entre os dois polos do aparelho. O aquecimento deste se dá pela rotação de uma manivela que faz com que as esferas fiquem carregadas eletricamente; quando o campo elétrico entre elas vence a rigidez dielétrica do ar, ele se torna um meio condutor e ocorre a formação do raio. Para obter a luz desejada, foi utilizado um anteparo preto. Para obter o momento exato da foto, foi utilizado o modo da câmera que tira foto-sequências enquanto o disparador está pressionado. no átrio da entrada da Diogo Jácome, a qual Oficinas fotográficas – Cerca de 150 alunos foi prestigiada por pais e alunos na segunda participaram de oficinas que ofereceram quinzena de novembro de 2010. Essas fotos a eles a possibilidade de conhecer alguns estão, agora, organizadas em um álbum de dos recursos fundamentais da linguagem fotos na Biblioteca da Móbile e disponíveis fotográfica, como enquadramento, iluminação para apreciação de todos. e movimento. As oficinas fotográficas foram divididas em duas sessões. A primeira parte versou sobre esses fundamentos básicos da linguagem fotográfica. Na segunda parte, de cunho prático, os alunos estiveram divididos em grupos que se revezaram em três estações de trabalho: fotografia still, fotografia de paisagem e fotografia macro. As estações de trabalho fotográfico foram estruturadas para que os alunos colocassem Os trabalhos vencedores e suas respectivas a “mão na massa”, ou melhor, nas câmeras! descrições Explorando os tipos de enquadramento fotógrafos podem ser contempladas aqui. elaboradas pelos alunos- mais simples, a preparação de cenários, de iluminação e fixação da câmera, os adolescentes puderam praticar e elaborar as primeiras imagens de conteúdos das diferentes ciências da natureza. A partir desses momentos de prática, muitos alunos conseguiram transferir as sugestões técnicas A flor retratada é uma típica angiosperma monocotiledônea, com 3 pétalas, 3 sépalas, anteras, filete e um estigma. A fotografia foi produzida durante uma caminhada ao Parque do Ibirapuera, em um dia de sol, com uma câmera com 10.1 megapixels. O brinquedo Katapul é um exemplo de movimento retilíneo uniforme, pois possui o looping por meio do qual podemos analisar a reação centrípeta, aceleração centrípeta e frequência, entre outros conceitos importantes desse tipo de movimento. A foto foi produzida na excursão de Física ao parque Hopi Hari. Esperei o início do pôr do sol para obter o efeito do céu colorido. A câmera utilizada foi a Sony DSC-T70. Tema: Movimento Tema: Botânica 1º lugar – 2º ano – Ensino Médio 2º lugar – 3º ano – Ensino Médio Fotógrafa: Letícia Toldi de Carvalho Título da fotografia: Fiat fiore (faça-se a flor) Título da fotografia: De cabeça para baixo Fotógrafa: Giuliana Uchôa Carrieri torná-la mais colorida? Tema: Energia nas transformações químicas Título da fotografia: Se fogo é vida, por que não Título da fotografia: À deriva 3º lugar – 2º ano – Ensino Médio Tema: Zoologia A foto mostra um dos representantes do Filo Cnidaria, a anêmona. A foto foi tirada em um aquário no Guarujá-SP com uma câmera Sony HDR-CX7. A luz não era natural. 2º lugar – 2º ano – Ensino Médio Fotógrafo : Caio Cirello Rezende Fotógrafo: Daniel de Araújo Pereira Uma boa forma de evidenciar reações de combustão é por meio da mudança de coloração da chama quando adicionamos sais metálicos, como o cobre e o estrôncio. A fotografia foi produzida no Laboratório de Química da Móbile com o uso de ácido clorídrico, um bico de Bunsen e sais contendo cobre e estrôncio que, em contato com o fogo, produziam as cores verde e vermelha respectivamente. E como o cobre estava contaminado, havia uma maior variação de cores especialmente quando as chamas coloridas entravam em contato umas com as outras. Fotógrafa: Gabriela Pereira Prado Fotógrafa: Daniela Guimarães Boanova Título da fotografia: Danúbio Azul Título da fotografia: Luz da vida 1º lugar – 1º ano – Ensino Médio Tema: Biodiversidade 2º lugar – 1º ano – Ensino Médio Tema: Luz Animal: medusa (nome popular), Cyanea lamarchi (nome científico). Ordem: Semaeostomeae. Família: Ulmaridae. de predação utilizadas contra possíveis predadores ou contra suas presas. A fotografia mostra a mais importante fonte de luz que existe, o Sol. A medusa possui tentáculos que são capazes de causar sérias queimaduras. Esse é um exemplo de estratégias A fotografia foi produzida no Aquário de Valência (L’Oceanogràfic) durante as férias de julho. A fotografia foi produzida em Minas Gerais, ao amanhecer, quando o Sol ainda estava nascendo. Utilizei uma câmera fotográfica profissional e procurei um ângulo no qual o Sol se enquadraria no espaço entre os troncos da árvore. Tema: Luz A foto representa a reflexão de uma escultura em um chão cuja superfície é quase perfeita, como um espelho. Para que essa foto fosse tirada, foi necessária uma fonte de luz, porque sem ela não haveria reflexão. A fotografia foi tirada em setembro de 2010 durante um show no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Foi necessária apenas a câmera de um celular, que tirava fotos de boa resolução. iluminada 1º lugar – 9º ano – Ensino Fundamental Tema: Luz e Calor Título da fotografia: Reflexos de uma mente Título da fotografia: Reflexão 3º lugar – 1º ano – Ensino Médio Fotógrafa: Camila Damião Farah Fotógrafa: Maria Paula Rameh Guilger A vela é um meio de luz e calor simultaneamente. Além disso, o espelho e o vidro criam um efeito de reflexão. A fotografia foi produzida com uma câmera Sony Cybershot digital. Usei uma estrutura com um espelho plano e um vidro, paralelos, com uma vela no meio. Fotógrafa: Débora Duarte Nunes Leite Fotógrafo: Rodrigo Siuffi Abbud Título da fotografia: On/Off Título da fotografia: Propagação da luz 2º lugar – 9º ano – Ensino Fundamental Tema: Energia elétrica 3º lugar – 9º ano – Ensino Fundamental Tema: Luz O botão de ligar e desligar de um aparelho elétrico se relaciona com o tema escolhido porque é ele que ativa a passagem da energia para o funcionamento do aparelho. A fotografia foi produzida em ambiente interno com iluminação natural e uso de flash embutido da câmera Canon 1000D, lente 50 mm. A foto ilustra a propagação da luz, que aconteceu por estímulo externo. A fotografia foi feita com uma câmera amadora durante a Oficina de Fotografia da Móbile. Fotógrafo: Maurício Gioachini Tardochi da Silva Fotógrafa: Isabella Pavani Scuotto Título da fotografia: Uma tigela de cereal Título da fotografia: Rochas versus Ácido para acompanhar uma noite fria 1º lugar – 8º ano – Ensino Fundamental Tema: Propriedades e transformações dos materiais 2º lugar – 8º ano – Ensino Fundamental Tema: Corpo humano Devido à urbanização, este local é muito poluído e há ocorrência de chuvas ácidas, inclusive nessas ruínas maias. As erosões são uma transformação química nas rochas. A fotografia foi produzida nas ruínas maias em Chichén Itzá, no México. Foi necessário apenas apoiar a câmera em uma rocha. A foto está relacionada ao tema da alimentação e digestão dos alimentos. A foto foi tirada em uma bancada no meu quarto. Centralizada na foto está uma tigela de cereal, leite e uma colher. Foi utilizada uma câmera Samsung WB550, ISSO 400, 4 mm, 0ev, f/3.3, 1/15. 1º lugar – 7º ano – Ensino Fundamental Tema: Vida: origem e biodiversidade A relação da foto com o tema é que a flor representa a biodiversidade. Trata-se de uma das flores dessa espécie, que tem diversas cores. A fotografia foi produzida no Jardim Botânico de Madri, em julho de 2010, com uma câmera digital Lumix Panasonic DMC-TZ10. dos materiais Tema: Propriedades e transformações Título da fotografia: Transparência e Florescência Título da fotografia: Camadas de cor 3º lugar – 8º ano – Ensino Fundamental Fotógrafa: Andrea Lasevicius Moutinho Fotógrafa: Marina Antunes Kasa Nas pulseiras e colares “de neon”, frequentemente distribuídos em festas, ocorre uma reação química que produz luz visível. O tubo plástico contém em seu interior um componente fluorescente, algum oxalato dissolvido em um líquido viscoso, como ftalatos orgânicos, além de água oxigenada, separados por um capilar de vidro. Quando esse tubo capilar é quebrado, as substâncias entram em contato e reagem liberando energia sob a forma de radiação eletromagnética visível. A fotografia foi produzida na cozinha da minha casa. Com uma tesoura, cortei as pontas de várias pulseiras neon de cores diferentes para que o líquido caísse no cálice. Usei uma tábua preta como fundo. Fotógrafa: Luísa Prado Betti Guarnieri Fotógrafo: Nicolas Vana Santos Título da fotografia: Verso Título da fotografia: Folhagem 2º lugar – 7º ano – Ensino Fundamental Tema: Vida: origem e biodiversidade 3º lugar – 7º ano – Ensino Fundamental Tema: Vida: origem e biodiversidade Esta flor é um exemplo de biodiversidade da flora e chama a atenção por não estar em seu ângulo usual. A foto foi feita no Parque do Ibirapuera. Procurei um ângulo diferente daquele em que as flores são normalmente fotografadas. Utilizei uma câmera Nikon D700 com uma lente macro. O Jardim Botânico é um lugar perfeito para vermos plantas vindas de diferentes locais do mundo. Na parte que representa a floresta tropical, encontrei esta folhagem que me chamou a atenção pela forma. Lá pude ver como existem plantas de todos os tipos, tamanhos, cores e formas e como elas podem ser incrivelmente diferentes. A foto foi tirada no United States Botanical Garden, em Washington, em julho de 2010, com uma Nikon D90. 1º lugar – 6º ano – Ensino Fundamental A Árvore da Preguiça é um ser vivo que nos mostra uma interessante relação entre os elementos da natureza: ao se alimentar dos nutrientes retirados do solo arenoso, sofreu a ação dos ventos intensos e “se deitou preguiçosamente” para admirar o mar. Fotógrafa: Luísa Roman de Oliveira Toledo Fotógrafo: Rodrigo Miksian Magaldi Título da fotografia: Árvore da Preguiça Título da fotografia: Reflexão Natural Tema: Planeta Terra: elementos da natureza Tema: Planeta Terra: elementos da natureza e uso dos recursos naturais A fotografia foi produzida em Jericoacoara-CE, pela manhã, com uma câmera DSLR-A230 com abertura f/10.0 ISO 100. 2º lugar – 6º ano – Ensino Fundamental A fotografia mostra elementos da natureza. e uso dos recursos naturais A fotografia foi produzida em Windermere, Inglaterra, em uma viagem turística, com uma câmera digital Casio EX-H10. Fotógrafa: Victoria Liebert Piscopo Título da fotografia: Antes que o céu desabe Tema: Planeta Terra: elementos da natureza 3º lugar – 6º ano – Ensino Fundamental e uso dos recursos naturais Carlos Eduardo Godoy e João Carlos Micheletti Neto são professores de Ciências do Ensino Fundamental e Tatiana Rodrigues Nahas é professora de Biologia do Ensino Médio. A relação de minha foto com o tema escolhido é que a formação de chuva é um modo de renovação do recurso natural água. A fotografia foi produzida na varanda do meu apartamento no bairro do Brooklin com um celular LG GT360. Foi em um dia antes de uma chuva, aproximadamente às quatro horas da tarde. Questões que (re)velam... “A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.” (Manoel de Barros) Foi no final da década de 1980 que caiu em minhas mãos, pela primeira vez, um “Caderno de questões”, elaborado por uma curiosa menina bastante introspectiva de minha classe do tempo do ginásio. O tal caderno continha perguntas das mais ordinárias (cor preferida, melhor dia da semana, melhor amigo) até aquelas de cunho, digamos, mais existencialista (quem sou eu, o que espero da vida, o que é o amor). Alguns (bons) anos depois, já durante o mestrado, caiu em minhas mãos – por razões bastante diversas – um texto intitulado “Perguntas e respostas para um caderno escolar”, e qual não foi minha surpresa quando descobri que a autora dele era Clarice Lispector. Deparei-me, novamente, com perguntas de toda ordem, das mais prosaicas até as mais “perigosas”. Por argumentos educacionais, literários e f u t u r o s p r o f i s s i o n a i s afetivos, propus aos alunos do 3º ano do Ensino Médio de 2010 a elaboração de respostas para algumas questões complexas. Relendo as perguntas e, posteriormente, as respostas escritas pelos nossos alunos, pude perceber a existência de alguns muitos “seres atônitos”, nas palavras do poeta Manoel de Barros, que ainda buscam um espaço no mundo por meio do qual possam exercitar a magia de transformá-lo em algo mais interessante; aliás, sensação muito próxima daquela vivida por um menino nos idos dos anos 1980 quando respondia a um questionário para o qual tinha poucas respostas. Conheça o que estava se passando na cabeça de nossos meninos e meninas ao final do 3º ano do Ensino Médio. Wilton Ormundo Coordenador pedagógico e cultural Caroline Cury O psicanalista Lacan defende que o Universo de interrompida e não concretizada imediatamente, perdura por mais de cinquenta anos. E esta é Simbólico, o das palavras, é o que nos exatamente a ideia que me conforta e organiza: os elementos da vida que de fato são importantes não “coloca” no mundo. Que palavras traduzem se esgotam, apenas se somam a novas experiências e situações. Tudo o que meu período escolar me seu momento presente? Um momento ensinou e me propiciou não vai desaparecer em nostalgia, vai sempre fazer parte de mim e da minha marcado por expectativas, sonhos, anseios, formação como cidadã. rupturas... Muitas são as pessoas que nos servem de referência ao longo A palavra que melhor se aplica a este momento da vida. A pensadora Hannah Arendt, por exemplo, teve da minha vida é sensibilidade. Deixar a escola como referência seu mestre e amor Heidegger, o filósofo envolve mais do que um simples desenvolvimento alemão; o escritor Caio Fernando Abreu tinha Clarice natural, como passar de ano, por exemplo. Esta Lispector como grande inspiradora; Platão foi um mudança é feita agora com a nossa vontade, da discípulo de Sócrates; Caetano Veloso, quando maneira que nós mesmos escolhemos, decidindo garoto, sonhava ser um pensador como “aqueles pelo curso, pela universidade, ou inclusive por dar existencialistas de Paris”, chegando a fazer um tempo nos estudos escolares e nos conhecer uma referência explícita ao filósofo Jean-Paul melhor. E é claro que para realizar esta escolha Sartre em sua canção “Alegria, alegria”, um da melhor maneira possível é importante que dos hinos do Tropicalismo. Quem seria(m) sua(s) estejamos atentos, sensíveis a nós mesmos, aos grande(s) referência(s) hoje? Por quê? nossos próprios anseios e também ao mundo ao Não possuo uma figura em especial que me inspire. nosso redor. Neste momento da minha vida, todos que estudaram, se O crítico literário Antonio Candido, num dedicaram e atingiram sucesso profissional fazendo aquilo ensaio intitulado “Direito à literatura”, credita à arte das palavras o poder de “organizar o que gostam me servem de inspiração. Não deve haver arte que melhor “imite” a realidade do que caos” que habita as pessoas. Que poema, o cinema, dada a possibilidade técnica de verossimilhança que romance, conto, crônica você acredita que a sétima arte possui, mesmo quando inventa mundos fantásticos. Qual é poderia servir como “organizador de seu o grande filme de sua vida? Por quê? caos”? Um filme que nunca me canso de pensar sobre e assistir é Diários de Motocicleta, do diretor brasileiro Acho que neste momento da minha vida, deixando Walter Salles. O filme conta uma passagem da vida de Che Guevara na qual ele faz uma viagem com seu o 3º ano, consigo pensar apenas em um livro que amigo Alberto Granado, partindo da Argentina rumo à Venezuela. O que mais me agrada no filme não é li logo no início do meu Ensino Médio, O amor apenas conhecer um lado diferente de um dos maiores líderes revolucionários da América Latina, mas, nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. principalmente, o conceito de liberdade abordado na trama de maneira nada superficial ou vazia. Dois O livro conta uma história de amor que, apesar jovens livres em um continente fascinante, perseguindo suas aspirações. É esta a ideia que me encanta. 253 254 Você hoje tem 17, 18 anos. O que imagina que não me conformar, principalmente ao pensar que sempre me toca é “Paciência”, do Lenine. estará fazendo daqui a 15 anos? que, nos dias de hoje, o saber é uma questão Esta foi uma das músicas que fizeram parte do Definitivamente me imagino realizada como socioeconômica. Depois de aprender tudo o que repertório da peça de teatro Mimesis, encenada mulher, independente, talvez casada e com filhos. aprendi em dezenas de aulas de História, Literatura pela turma da 8ª série de 2007 da Escola Móbile. Não penso na minha carreira tendo um enfoque e Filosofia, tudo o que consigo pensar é como Naquele momento estávamos em um período de corporativo ou empresarial. Pretendo me formar o conhecimento é cruelmente negado a grande transição e, hoje, estamos novamente, não para em Direito, prestar um concurso púbico e, quem parte da população, a parte que justamente mais uma nova fase escolar, mas para a vida adulta. sabe, até me envolver com política. Quero fazer precisa dele para poder fazer valer seus direitos. Em 2007 a vida não parava e, hoje, três anos alguma diferença para um número significativo Que marcas da Móbile ficam em sua vida e depois, continua, e daqui para frente continuará de pessoas. que farão parte de sua existência daqui para não parando. Em cada uma das etapas que compõem nossa frente? Que palavras você deixa para si mesmo(a) vida, prometemo-nos jamais abandonar Hoje vejo que ter me mudado para a Móbile na quando ler este livro depois de concluído determinadas pessoas que nos são caras e 7ª série foi uma das melhores decisões que já seu curso universitário e de ter ingressado que fazem nossa existência mais grandiosa. tomei, até agora, em minha vida. Depois de cinco na carreira de trabalho? Quem são as pessoas que você gostaria de anos estudando aqui, percebo que esta é uma Espero que você consiga tudo o que você deseja, levar para sua vida toda neste momento? escola que valoriza não só o ensino de todas as que sempre esteja evoluindo, que seja mais Por quê? disciplinas exigidas no vestibular, mas também madura, mais forte e lide com seus problemas Certamente quero levar comigo para sempre meus a formação de seus alunos como seres curiosos com mais qualidade do que você lidou até agora. amigos e familiares. Além disso, levaria também e questionadores, que pensam em Geografia e Mas, para isso, nunca abandone sua essência e todos meus professores da Escola Móbile. Seria Matemática tal como pensam em política brasileira seus valores para que possa, de fato, se orgulhar excelente receber por toda a vida orientações e suas relações com a comunidade internacional. de tudo aquilo que você sonhou e conseguiu com tanta qualidade como as que eu recebo hoje E é isto que vou definitivamente levar para minha construir. estudando nesta instituição. existência, um interesse no mundo e na vida O semioticista italiano Umberto Eco atrelado às habilidades acadêmicas. afirmou recentemente, após anunciar sua Os simbolistas acreditavam no poder que aposentadoria na universidade, que não a música tem de nos chegar à alma. Que acredita na felicidade, mas na inquietação. música(s) o “toca(m)” especialmente? Que inquietações o conhecimento trouxe Acho que blues e MPB são gêneros que possuem para você? um grande número de artistas de muita qualidade, Acho que a maior inquietação causada em mim que pensam em todos os aspectos de se criar uma Caroline Cury está cursando o primeiro ano pelo conhecimento é a minha capacidade de letra e uma música. Mas uma música em especial de Direito na FGV. 255 Rodrigo 256 Rossi Mora Brusco O psicanalista Lacan defende que o Universo figuras de linguagem muito bem exploradas. seus escritos influenciado diretamente os eventos Simbólico, o das palavras, é o que nos Assim, ver como o protagonista encarou todas do século XX. Ao teorizar o socialismo e o “coloca” no mundo. Que palavras traduzem as questões existenciais pelas quais passou comunismo, Marx contribuiu para dar melhores seu momento presente? Um momento me dá fôlego e calma para entender que este condições de vida aos trabalhadores, já que, com marcado por expectativas, sonhos, anseios, momento é uma grande transição, por isso traz o medo da expansão dos ideais marxistas, até rupturas... problemas, naturalmente. A passagem do campo mesmo diversos países capitalistas na Guerra Creio que uma palavra que pode traduzir meu de centeio para o abismo da perda da inocência Fria acabaram melhorando a qualidade de vida momento é dúvida. Isso porque não sei na verdade com a fase adulta tem de ocorrer, podendo ser das populações, estipulando jornada de trabalho, o que eu quero para minha vida. Somos muito novos mais complicada para alguns, como foi para o salário mínimo etc. Outro pensador que é uma para levar certezas conosco, e é nesse momento protagonista, ou mais simples. enorme referência para mim é Gilles Lipovetsky. que eu realmente começo a me perguntar qual é Muitas são as pessoas que nos servem de Suas teorias, estudadas a fundo nas aulas meu papel como ser humano aqui neste planeta. referência ao longo da vida. A pensadora de Filosofia, permitiram que eu começasse a Dúvida essa que passa desde a escolha por um Hannah Arendt, por exemplo, teve como pensar sobre o declínio social no qual vivemos e curso universitário até o ingresso numa vida de referência seu mestre e amor Heidegger, o também me fizeram perceber que precisamos de responsabilidades próprias, individuais, não mais filósofo alemão; o escritor Caio Fernando mudanças. atreladas aos pais e familiares. Abreu tinha Clarice Lispector como grande Não deve haver arte que melhor “imite” O crítico literário Antonio Candido, num inspiradora; Platão foi um discípulo de a realidade do que o cinema, dada a ensaio intitulado “Direito à literatura”, credita Sócrates; Caetano Veloso, quando garoto, à arte das palavras o poder de “organizar o sonhava ser um pensador como “aqueles caos” que habita as pessoas. Que poema, existencialistas de Paris”, chegando a fazer romance, conto, crônica você acredita que uma referência explícita ao filósofo poderia servir como “organizador de seu Jean-Paul Sartre em sua canção caos”? “Alegria, alegria”, um dos hinos Acredito que um romance que marcou muito do Tropicalismo. Quem seria(m) esse período do Ensino Médio, me trazendo sua(s) grande(s) referência(s) uma enorme reflexão, podendo então “organizar hoje? Por quê? o caos”, é O Apanhador no Campo de Centeio, Tenho duas grandes referências. de J. D. Salinger. Esse livro mostra como um A primeira é Karl Marx. Esse jovem pode ter anseios com os quais muitas pensador conseguiu mostrar e vezes são dificílimos de lidar, além de fazer propor um caminho diferente para uso de uma linguagem extremamente bela, com as sociedades do mundo, tendo 258 possibilidade técnica de verossimilhança O semioticista italiano Umberto Eco deseja, foi muito maior do que apenas as matérias obrigatórias em todas as escolas, que “caem” no que a sétima arte possui, mesmo quando afirmou recentemente, após anunciar sua vestibular. A Móbile me formou como ser humano, e é por esse motivo que pretendo que meus filhos, inventa mundos fantásticos. Qual é o grande aposentadoria na universidade, que não se os tiver, estudem nessa escola. filme de sua vida? Por quê? acredita na felicidade, mas na inquietação. Os simbolistas acreditavam no poder que a música tem de nos chegar à alma. Que música(s) Para mim, o grande filme de minha vida é À Espera Que inquietações o conhecimento trouxe o “toca(m)” especialmente? de um Milagre. Esse filme, além de ser uma obra- para você? Essa é, sem sombra de dúvidas, a pergunta que terei maior dificuldade em responder. Sou muito ligado prima, com cenas magníficas, me lembra muito de O conhecimento me trouxe diversas inquietações. ao universo musical, gosto de diversas bandas e diferentes gêneros. Vou então citar artistas, como Chico meu avô, já que assisti a esse filme com ele. Posso citar desde a Física, que me fez compreender Buarque, que, em minha opinião, é um dos melhores músicos que este país já teve. Além de Chico, uma Você hoje tem 17, 18 anos. O que imagina que melhor o funcionamento de nosso universo, até a banda que me marca muito e me transformou como gente foi os Beatles. Suas músicas conseguem ser estará fazendo daqui a 15 anos? Filosofia, que me fez compreender melhor a de diferentes estilos musicais, mesmo se tratando de uma mesma banda. Além desses, gostaria de citar Não sei, mesmo. E nem quero saber, porque complexidade humana. Mas creio que a principal o álbum de minha vida, isto é, aquele apanhado de músicas que, juntas, formaram uma obra-prima: se algo que eu quero hoje já é diferente do inquietação deixada pelo conhecimento foi a The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, que é genial porque consegue criar uma sequência entre suas que eu queria ontem, como vou imaginar o que de entender o porquê de nossa sociedade ser músicas, além de fazer uso de diversos instrumentos musicais, o que cria um som incrível. vou querer daqui a quinze anos? O meu grande organizada da maneira como é atualmente. Ainda Que palavras você deixa para si mesmo(a) quando ler este livro depois de concluído seu objetivo é estar fazendo o que eu realmente não encontrei essa resposta, e é por isso que curso universitário e de ter ingressado na carreira de trabalho? queira, independentemente das implicações que quero estudar mais e mais o funcionamento das Viva intensamente, nunca deixando para traz seus sonhos simplesmente por normas sociais. tais desejos possam trazer. nossas estruturas sociais, para que um dia seja Se quiser seguir a área do conhecimento, mesmo que isso não lhe dê muito dinheiro, siga, porque o mais Em cada uma das etapas que compõem nossa capaz de alterar, de alguma maneira, o modo importante é que, ao morrer, quero ter me realizado como ser humano por meio da concretização dos vida, prometemo-nos jamais abandonar como vivemos. meus desejos, que serão muito diferentes daqui uns anos, tenho certeza. determinadas pessoas que nos são caras e Que marcas da Móbile ficam em sua vida e que fazem nossa existência mais grandiosa. que farão parte de sua existência daqui para Quem são as pessoas que você gostaria de frente? levar para sua vida toda neste momento? Acho que a Móbile me trouxe uma enorme Por quê? bagagem em todas as áreas do conhecimento, o Gostaria de levar para toda a minha vida meus que qualquer escola deve se esforçar para fazer. familiares mais próximos, que me dão enorme Mas, principalmente, a Móbile me trouxe cultura, apoio em todas as escolhas que eu faço, e meus e isso é o que eu acho diferente nessa escola. amigos, também, que fizeram com que este último Fomos ao teatro, ao cinema, tivemos densas ano da minha vida fosse muito mais divertido e discussões nas aulas de Ética e de Filosofia. O fácil. Espero mesmo que eu mantenha todas essas que a Móbile nos passou, mesmo querendo que pessoas por perto, para sempre. cada um de seus alunos entre na universidade que 259 Rodrigo Rossi Mora Brusco está cursando o 1º ano de Ciências Sociais na USP. palavras, é o que nos “coloca” no mundo. Que palavras traduzem seu momento presente? Um momento marcado por expectativas, sonhos, anseios, rupturas... A palavra que traduz meu momento é revolução. Até hoje, nunca passei por uma mudança tão grande, significativa e rápida quanto a que passarei neste ano: tudo mudará! Em apenas um mês! A escola se tornará universidade, pessoas velhas irão embora, pessoas novas irão chegar. Sinto a alegria e a felicidade de alcançar uma nova fase: um sentimento de missão cumprida. E, simultaneamente, sinto a melancolia de abandonar uma antiga. O crítico literário Antonio Candido, num ensaio intitulado “Direito à literatura”, credita à arte das palavras o poder de “organizar o caos” que habita as pessoas. Que poema, romance, conto, crônica você acredita que poderia servir como “organizador de seu caos”? Lembro-me especialmente da série Harry Potter. Essa história marcou minha infância: eu era simplesmente viciado. Hoje já terminei a série, então a releitura seria apenas a repetição dos fatos já sabidos, mas, mesmo assim, acho surpreendente a história e sinto a necessidade de terminar a leitura quando recomeço um livro dessa série. Não sei explicar o porquê dessa identificação, mas sei que ela promove em mim uma sensação positiva, talvez a “organização de meu caos”. Muitas são as pessoas que nos servem de referência ao longo da 260 vida. A pensadora Hannah Arendt, por exemplo, teve como referência seu mestre e amor Heidegger, o filósofo alemão; o escritor Caio Fernando Abreu tinha Clarice Lispector como grande inspiradora; Platão foi um discípulo de Sócrates; Caetano Veloso, quando garoto, sonhava ser um pensador como “aqueles existencialistas de Paris”, chegando a fazer uma referência explícita ao filósofo Jean-Paul Sartre em sua canção “Alegria, alegria”, um dos hinos do Tropicalismo. Quem seria(m) sua(s) grande(s) referência(s) hoje? Por quê? Jorge Luiz Moreira Silva O psicanalista Lacan defende que o Universo Simbólico, o das Para mim, um jovem de 17 anos, é muito difícil definir uma ou algumas poucas grandes referências. Mas, neste momento, penso que tive várias nas quais me baseei e me baseio. Dentre elas, se encontram, primordialmente, meu pai e minha mãe. O primeiro, pela história de vida e inteligência, e a segunda, pela sabedoria e competência. Além deles, tenho como referência alguns professores. Estes, por motivos diversos, desde suas áreas de atuação, sua capacidade de se expressar bem em público, pelo dom de transmitir conhecimento ou pela sua enorme compreensão. Algumas das minhas amizades são também referências para mim, sendo cada uma por um determinado motivo, por uma capacidade ou habilidade específica a qual admiro. Não tomei como referência grandes filósofos, escritores ou pesquisadores, pois, até hoje, não tive um contato tão intenso com o mundo acadêmico a ponto de torná-lo um referencial. Não deve haver arte que melhor “imite” a realidade do que o cinema, dada a possibilidade técnica de verossimilhança que a sétima arte possui, mesmo quando inventa mundos fantásticos. Qual é o grande filme de sua vida? Por quê? Não tenho um grande filme, mas alguns que me fizeram compreender melhor a realidade na qual existo. Deram-me recursos para responder algumas perguntas e buscar novas respostas. Eles são As Melhores Coisas do Mundo, Tropa de Elite 2 e Na Natureza Selvagem. 261 262 Você hoje tem 17, 18 anos. O que imagina Que inquietações o conhecimento trouxe As músicas que gosto de ouvir são muito variadas. que estará fazendo daqui a 15 anos? para você? Há vários gêneros, nacionalidades, cantores, Daqui a quinze anos, já terei me graduado. O conhecimento me fez ver o mundo de forma bandas etc. Todas elas, de alguma forma, por Profissionalmente, espero estar trabalhando em diferente. De forma mais lógica e racional. Ele me algum motivo, despertam uma reação em mim que um setor relacionado às Ciências da Tecnologia fez tomar minhas decisões e meus caminhos com varia, podendo ser de tristeza a alegria, de raiva a ou à pesquisa. Paralelamente, gostaria de ser mais calma: pensando sobre eles. Isso, por um afeição e assim por diante. Uma das músicas que professor: passar conhecimento e educação. lado, penso que seja positivo, pois teoricamente considero importantes é “Disparada”, de Geraldo No âmbito pessoal, espero poder realizar meus estaria escolhendo de forma mais consciente. Vandré. Quando a ouço, penso em temas que desejos, aproveitando a vida e vivendo com Porém, simultaneamente, isso me causa uma considero áridos, que me “tocam”. felicidade e satisfação os momentos. espécie de aflição por causa da dúvida. Fico Que palavras você deixa para si mesmo(a) Em cada uma das etapas que compõem nossa pensando em uma coisa por muito tempo: isso quando ler este livro depois de concluído vida, prometemo-nos jamais abandonar ou aquilo. E, na maioria das vezes, termino onde seu curso universitário e de ter ingressado determinadas pessoas que nos são caras e comecei: sem resposta. na carreira de trabalho? que fazem nossa existência mais grandiosa. Que marcas da Móbile ficam em sua vida Jorge, viva de forma bem vivida essa vida, pois Quem são as pessoas que você gostaria de e que farão parte de sua existência daqui ninguém sabe se há outra! Aproveite todos os levar para sua vida toda neste momento? para frente? momentos, pois eles não vão se repetir! Utilize-os Por quê? A Móbile me instruiu e me passou muitas coisas para formar uma história! Uma passagem neste Se dependesse de mim, levaria grande parte essenciais para minha formação atual, que vou planeta! Se estiver insatisfeito, mude! Não tenha das pessoas que compuseram minha vida, mas levar para a vida. Ela me formou como pessoa, medo ou receio devido à comodidade – não vale infelizmente isso é impossível. Então, fazendo como cidadão. Ensinou-me o dever de agir em a pena! uma seleção, como prioridade levaria minha harmonia com o próximo, atingir meus desejos família. Ela me deu conselhos, me ajudou, me sem prejudicá-lo. Ela me fez ver o mundo através fez feliz, me fez quem eu sou. Além deles, levaria não mais somente de meus olhos, mas dos outros comigo meus amigos, pois são muito importantes também. Do mesmo modo, me ensinou a amar para mim. Eles me auxiliaram nos momentos o conhecimento, a ter interesse por aprender de necessidade e tornaram os momentos de mais, e não simplesmente visualizá-lo de forma felicidade ainda melhores e inesquecíveis. pragmática, ou seja, como uma mera garantia de O semioticista italiano Umberto Eco sucesso no mercado de trabalho. afirmou recentemente, após anunciar sua Os simbolistas acreditavam no poder que Jorge Luiz Moreira Silva está cursando aposentadoria na universidade, que não a música tem de nos chegar à alma. Que o 1º ano de Engenharia na Escola acredita na felicidade, mas na inquietação. música(s) o “toca(m)” especialmente? Politécnica da USP. Bruno Amá Stephan O psicanalista Lacan defende que o Universo O crítico literário Antonio Candido, num Simbólico, o das palavras, é o que nos ensaio intitulado “Direito à literatura”, “coloca” no mundo. Que palavras traduzem credita à arte das palavras o poder de seu momento presente? Um momento “organizar o caos” que habita as pessoas. marcado por expectativas, sonhos, anseios, Que poema, romance, conto, crônica rupturas... você acredita que poderia servir como A palavra que melhor representa meu momento “organizador de seu caos”? presente é conflito. Espiritualmente, parece- Um livro que li recentemente e que me marcou de me que estou, pouco a pouco, partindo-me ao modo profundo foi a obra-prima de Milan Kundera, meio. Uma parte de mim desesperadamente A Insustentável Leveza do Ser. A maneira pela quer se segurar aos meus valores, meus amigos, qual o autor trata da contradição mais mórbida minha rotina presente, enquanto a outra está da natureza humana – a do peso da rotina e curiosíssima com o que os anos seguintes guardam da repetição contra a leveza das escolhas e do para mim. Escrever essa mensagem já se mostra passar do tempo – me fascinou de uma forma um desafio, visto que é a prova concreta de que que poucos livros conseguem. A ideia da antítese o mundo, como eu conheço, está desabando, o no homem, apresentada no romance, realmente que catalisa a sensação de separação. Trata-se funcionou como “organizador do meu caos”, pois de uma situação insustentável: quero partir, provavelmente não compreenderia o sofrimento quero descobrir, quero apreender o mundo e, ao pelo qual passo sem essa leitura. De certa mesmo tempo, quero ficar, quero sentar todos maneira, todos nós, estudantes no fim do Ensino os dias nas grandes carteiras da Móbile (que, Médio, somos como a personagem Sabina da obra. na minha cabeça, são maiores do que todas as À medida que todos nós somos impulsionados demais) e quero contar com a segurança de que pelas nossas escolhas e determinações para sempre, sempre haverá um orientador para me locais desconhecidos e possibilidades novas e ajudar a resolver qualquer crise. A batalha entre estranhas, provavelmente muito promissoras, um futuro incerto e o presente corriqueiro é o deixamos para trás, abandonamos, sempre parte que marca o meu agora, e, talvez o mais triste, do que nos formou até então. Outras obras contudo mais belo, é que sei, apesar de tudo, que marcantes e organizadoras foram Tudo Depende o que está por vir sempre será o vencedor nessa de Como Você Vê as Coisas, de Norton Juster, guerra dos tempos. que me ensinou que há mais mistérios no mundo do que eu acreditava; os diversos romances 265 266 de Júlio Verne, pela criatividade imensurável; um objetivo nobre e um ideal que gostaria de Você hoje tem 17, 18 anos. O que imagina a pouco estou corrigindo a mim mesmo, embora Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, com sua levar comigo para toda a minha vida. Outro que estará fazendo daqui a 15 anos? “corrigindo” não seja a palavra ideal, já que não linguagem mórbida sensacional; e A Elegância do ídolo pessoal é Júlio Verne, já citado, pela No futuro, me imagino sendo um profissional estou “errado” como um todo – vou me fazendo Ouriço, de Muriel Barbery, que mostrou para mim sua criatividade e inventividade vanguardista, liberal, desvinculado de uma rotina maçante, e desfazendo. Só com esses incômodos, advindos que vale a pena viver. o valor que mais prezo em um indivíduo. Além ainda que com cargas consideráveis de trabalho. da sabedoria, é que tenho essa sensação, e é ela Muitas são as pessoas que nos servem de deles, também faço menções honrosas a Oscar Quero ser um arquiteto que tenha tempo de que me move, que me guia, e é a que considero referência ao longo da vida. A pensadora Niemeyer, George Harrison e ao duo Daft Punk. assistir a filmes e passear com o cachorro a mais bela entre todas elas. Hannah Arendt, por exemplo, teve como Não deve haver arte que melhor “imite” durante as tardes. De preferência, gostaria de Que marcas da Móbile ficam em sua vida referência seu mestre e amor Heidegger, o a realidade do que o cinema, dada a morar no exterior, de maneira nenhuma me vejo e que farão parte de sua existência daqui filósofo alemão; o escritor Caio Fernando possibilidade técnica de verossimilhança morando em São Paulo – agitado demais. para frente? Abreu tinha Clarice Lispector como grande que a sétima arte possui, mesmo quando Em cada uma das etapas que compõem A maior marca que a Móbile deixou em minha inspiradora; Platão foi um discípulo de inventa mundos fantásticos. Qual é o grande nossa jamais vida foi aprender que não estou sozinho no mundo Sócrates; Caetano Veloso, quando garoto, filme de sua vida? Por quê? abandonar determinadas pessoas que nos e que a convivência e a coexistência fazem parte sonhava ser um pensador como “aqueles Durante meus meros 17 anos de vida, diversos são caras e que fazem nossa existência de ser humano, no sentido mais pragmático da existencialistas de Paris”, chegando a filmes já são classificados por mim como os mais grandiosa. Quem são as pessoas que palavra. Foi na Móbile que aprendi a argumentar, fazer uma referência explícita ao filósofo grandes filmes da minha vida. Um que gostaria você gostaria de levar para sua vida toda discutir, debater as minhas ideias e minha visão Jean-Paul Sartre em sua canção “Alegria, de citar é, sem dúvida, 500 Dias com Ela. O filme neste momento? Por quê? de mundo, e ainda aprendi a respeitar e viver alegria”, um dos hinos do Tropicalismo. narra de maneira genial um amor de um homem Eu não levo as pessoas para a minha vida – a com aqueles que não compreendem ou não Quem seria(m) sua(s) grande(s) referência(s) apaixonado pela indecisa e, de certa maneira, minha vida que passa por cada uma delas, e concordam com ela. Foi um percurso difícil hoje? Por quê? etérea Summer. A película me marcou pelo fato prefiro que continue assim. – no começo não conseguia entender como vida, prometemo-nos Atualmente, uma pessoa que se mostra uma de usar uma boba história de amor para, na O semioticista italiano Umberto Eco poderia haver tantas diferenças em um espaço grande referência para mim é a chamada “rainha verdade, descrever como é difícil o processo de afirmou recentemente, após anunciar sua tão delimitado, não conseguia me misturar. indie”, a cantora e atriz Zooey Deschanel. Além construção de um homem como indivíduo e pelo aposentadoria na universidade, que não Hoje, vejo que foi necessário, nunca teria feito de ser deslumbrante esteticamente, tem uma modo sarcástico, e ainda assim mórbido, que trata acredita na felicidade, mas na inquietação. amigos tão divertidos de se conversar e tão belíssima voz. Ela canta o que sente, o que a questão da solidão. Um segundo filme muito Que inquietações o conhecimento trouxe diversificados caso não tivesse passado por esse pensa, sem se aliar a qualquer tendência musical interessante foi Em Busca da Terra do Nunca, para você? processo. A Móbile me tornou uma pessoa, não ou gravadora – faz suas músicas e seus filmes de um dos poucos que trouxe lágrimas aos meus Muitas inquietações... Ninguém imagina o meu um autômoto perfeito, simplesmente uma pessoa forma independente, ou seja, por outro ângulo. olhos nitidamente. Outras muitas animações da choque ao descobrir que Mona Lisa já teve melhor, um melhor cidadão, melhor filho, melhor Por meio de seus produtos culturais, conta lindas Pixar me encantaram, principalmente Toy Story sobrancelhas, ou que o verde da bandeira do amigo, melhor homem. histórias de amor ou promove um pensamento e Monstros S.A., dois filmes que nunca poderei Brasil não é a mata do país, ou ainda que Freud mais reflexivo, livre de qualquer grafia. Considero rever sem ficar deveras nostálgico. nunca curou um paciente! Parece-me que pouco 267 Os simbolistas acreditavam no poder que para ali, pois tudo parecia novo – e digno de ser a música tem de nos chegar à alma. Que tentado. música(s) o “toca(m)” especialmente? ‘Bem, até que gostaria de fazer outra viagem’, Uma música que me toca especialmente e está disse ele, pondo-se de pé em um salto, ‘mas relacionada de modo íntimo ao momento em realmente não sei quando vou ter tempo para questão é “All Things Must Pass”, de George isso. Há tanta coisa para fazer aqui mesmo!’” Harrison, na qual é descrita essa sensação (Tudo Depende de Como Você Vê as Coisas. pela qual passo no presente: a de que a beleza, Norton Juster). infelizmente, só surge porque tudo está aos poucos se deteriorando. Outras canções, como “In My Life”, dos Beatles, e “Paciência”, de Lenine, também simbolizam perfeitamente esse momento e me emocionam diversas vezes. Mas uma música que ecoa na minha cabeça como um tema de filme nesses últimos dias como estudante é “Folding Chair”, de Regina Spektor, que definitivamente para sempre me lembrará dessa época. Que palavras você deixa para si mesmo(a) quando ler este livro depois de concluído seu curso universitário e de ter ingressado na carreira de trabalho? 268 “(...) Fora da janela havia tanta coisa para ver e ouvir e tocar – passeios a fazer, morros a subir, lagartas para observar no seu trajeto deslizante r e s e n h a pelo jardim. Havia vozes para ouvir e conversas a escutar com atenção maravilhada, sem falar no cheiro especial de cada dia. E, ali mesmo no quarto onde estava sentado, havia livros que poderiam levá-lo a mil lugares Bruno Amá Stephan está cursando o 1º ano (...) Seus pensamentos saltaram ávidos daqui de Arquitetura na USP. O far 270 oeste e o an ti-he rói Quando nos referimos ao gênero faroeste, imediatamente nos lembramos das figuras do herói, o “mocinho” da história, e dos caras maus, os “bandidos” da trama, como costumávamos denominar esses personagens em nossas brincadeiras infantis de cowboy. Aliás, em épocas “politicamente incorretas”, muita vez, esse “bandidos” eram representados por povos indígenas, “os verdadeiros ocupantes da América” (que, bem sabemos, apenas reagiam à invasão do homem branco). Em filmes de faroeste, na maioria das vezes, o bem e o mal estavam muito bem caracterizados em personagens-tipo. (Tudo com o charme do preto e branco.) Coube ao diretor norte-americano John Ford mostrar uma nova face do mocinho, por meio de sua trilogia do faroeste, que se iniciou com Nos tempos da diligência, seguida de sua verdadeira obra-prima, O homem que matou facínora. Uma pequena digressão (necessária): foi nessa película que Ford cunhou uma frase representativa, em muitos contextos, do papel bastante dúbio que a imprensa pode assumir: “Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda.” (É imprescindível que o leitor assista ao filme para compreender o contexto desse verdadeiro aforismo da sétima arte.) O terceiro filme que compõe a trilogia fordiana é Rastros de ódio (obra máxima do diretor, juntamente com Vinhas da ira). No filme, o diretor apresenta o personagem Ethan Edwards (vivido por John Wayne), soldado do exército confederado que retorna derrotado para a casa fraterna. Com índios rondando os arredores da fazenda de seu irmão, Ethan e um grupo de patrulheiros do Texas decidem dar uma busca pela região para verificar onde os comanches se encontravam acampados. A saída dos patrulheiros é a oportunidade perfeita para que a família do irmão de Ethan seja massacrada pelos índios. Ele sai, então, em busca de vingança e, a essa altura, “mocinhos” e “bandidos” estão devidamente configurados. Ao contrário disso, o filme mostra, inicialmente de forma sutil, um herói com ações bastante questionáveis. Logo que Edwards retorna – cena marcada pela impressionante paisagem do Monument Valley ao fundo –, sua cunhada vai ao seu encontro e torna-se impossível não perceber a tensão presente nos olhares trocados pelos dois personagens, o que sugere uma relação mal resolvida. Ethan, então, revê o irmão (sim, a primeira pessoa a recebê-lo é a cunhada e não o irmão!) e os sobrinhos, incluindo um garoto mestiço (vivido pelo ator Jeffrey Hunter), que tem ascendência indígena, e que foi 271 272 273 resgatado de outro massacre. o preconceito e o ódio que isso se confirmar. É neste em um mundo bárbaro, habitado por diferentes povos e culturas: norte-americanos, índios, Na cena de reencontro entre Ethan nutre pelos índios. ponto que Ford mostra o mexicanos. Esse convívio com o sobrinho e com outras etnias acaba por transformar Ethan, esses dois personagens, fica Aliás, John Ford expõe para quanto o personagem de imerso numa viagem de autoconhecimento e catarse, numa espécie de Odisseia do oeste. E clara a pouca simpatia que quem quiser ver uma das Wayne está longe de ser como a Odisseia implica o necessário retorno do herói ao seu ponto de origem – transformado, Ethan nutre pelo menino. facetas mais questionáveis a figura clássica do herói, por certo, pela luta com os deuses ou consigo mesmo –, o filme termina da mesma maneira Avisados pelo pastor da 274 da história da formação do marcada pela concepção como começou: uma porta se abre, mostrando mais uma vez a paisagem belíssima, mas, ao região, que também é líder povo a de que os vilões devem ser mesmo tempo, desolada do Monument Valley, para, em seguida, fechar-se, deixando Ethan do dos patrulheiros, da presença intolerância e o racismo, punidos, embora sempre lado de fora, ao relento, e longe do convívio com o que lhe restou da família. O diretor Martin indígena, Ethan e o sobrinho motivos de guerras e conflitos exista a possibilidade de Scorsese chama a atenção para a cena final: assim como Ethan amaldiçoou o indígena morto, postiço saem à procura dos sangrentos daquele país. norte-americano: redenção deles. Para Ethan, a ele mesmo agora está condenado a vagar sem rumo, entre os ventos. É a história do cinema o única coisa que resta para os sendo feita diante de nossos olhos. a caçada, os patrulheiros rancho e encontrar a família índios é seu extermínio! Um descobrem um túmulo de morta, a vingança já está sentimento impensável para um índio comanche que definida, sendo apenas uma a figura do herói clássico Ethan faz questão de violar, questão de tempo. Apenas a estadunidense. além de atirar nos olhos do sobrinha mais nova (Natalie Ao longo de cinco longos cadáver. Na sequência da Wood, uma das atrizes anos, Ethan e o sobrinho cena, o pastor pergunta qual mais belas do cinema) não postiço buscam encontrar o sentido daquele ato, ao que é encontrada no local, o Debbye Ethan responde: “Pela sua que significa que os índios propósitos: um, de matar fé, pastor, nenhum, mas pela devem tê-la levado com vida. a própria sobrinha se esta fé comanche, alguém que Isso complica ainda mais a estiver vivendo entre os não tem os olhos não pode jornada do protagonista. A índios; e outro, de resgatá- entrar na terra dos espíritos. simples possibilidade de ter la e ainda impedir que o Terá que vagar para sempre um membro de sua família tio enlouquecido leve a entre os ventos.” Essa cena vivendo entre os índios é cabo o seu propósito cruel. serve como metonímia da inaceitável, o que faz com Durante esse tempo, os dois essência de Rastros de ódio: que ele decida matá-la, se enfrentam neve e deserto peles-vermelhas. Durante Ao retornar para com diferentes Hugo Carneiro Reis é professor de Física do Ensino Médio. 275