O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem Eduardo Lourenço Mundo Árabe em Revolta Joaquim Jorge Veiguinha Tunísia, Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe? Virginie Collombier O Desastre da LSE Hermínio Martins Portugueses, Só Mais um Esforço! Fernando Pereira Marques Do Estado Social ao Estado Assistencial Joaquim Jorge Veiguinha Precisamos de mais Europa contra a Crise Guilherme d’Oliveira Martins Uma Nova Política Pedro Miguel Cardoso A Constituição e o Futuro: Revisões Constitucionais Inconstitucionais? Paulo Ferreira da Cunha Mediocridade, Partidocracia, Mérito e Democracia Fernando Mora Ramos Shakuntala Irreconhecível João Soares Santos Os Indignados e a Crise da Liberal Democracia Joaquim Jorge Veiguinha “Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico” de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010 Pedro Miguel Cardoso Portugal como Problema: Que Soluções? Joaquim Jorge Veiguinha AS REBELIÕES ÁRABES A Dança Clássica Khmer João Soares Santos A Honra Perdida do Major Silva Pais Fernando Pereira Marques ISSN 0871-7982 Fundação Res Publica Preço: 20€ Árabes as Rebeliões O Trágico Regresso das Direitas Alfredo Margarido 71 72 O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem Eduardo Lourenço Tunísia e Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe? Virginie Collombier Do Estado social ao Estado Assistencial Joaquim Jorge Veiguinha Precisamos de mais Europa contra a Crise Guilherme d’Oliveira Martins Director: Eduardo Lourenço 1 DIRECTOR Eduardo Lourenço DIRECTORES-ADJUNTOS António Reis Fernando Pereira Marques COORDENADOR Joaquim Jorge Veiguinha CONSELHO DE REDACÇÃO Alberto Martins, Diogo Moreira, Eduardo Geada, Glória Rebelo, Guilherme D’Oliveira Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires CONSELHO EDITORIAL André Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis, Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha, Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 71/72 – Outono/Inverno 2010 Design e Produção: Garra Publicidade, SA Apoio à Redacção: Sofia Nascimento Registo de Título nº 113 463 Depósito Legal nº 43 418/91 Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009 Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1400 Lisboa Telfs.: 21 301 39 09 | Fax: 21 301 59 56 E-mail: [email protected] 1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A4 de 25 linhas. 2. A revista não se compromete a devolver textos não solicitados. 3. Os artigos assinados são da responsabilidade dos seus autores. 4. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem. 2 ÍNDICE AS REBELIÕES ÁRABES O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem Eduardo Lourenço 7 Mundo Árabe em Revolta Joaquim Jorge Veiguinha 11 Tunísia, Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe? Virginie Collombier 41 O Desastre da LSE Hermínio Martins 59 PARLAMENTO Portugueses, Só Mais um Esforço! Fernando Pereira Marques 63 Do Estado Social ao Estado Assistencial Joaquim Jorge Veiguinha 75 IDEIAS Precisamos de mais Europa contra a Crise Guilherme d’Oliveira Martins 87 O Trágico Regresso das Direitas Alfredo Margarido 93 Uma Nova Política Pedro Miguel Cardoso 99 A Constituição e o Futuro: Revisões Constitucionais Inconstitucionais? Paulo Ferreira da Cunha 107 CULTURA Mediocridade, Partidocracia, Mérito e Democracia Fernando Mora Ramos 127 Shakuntala Irreconhecível João Soares Santos 133 3 SOLTOS 181 A Dança Clássica Khmer João Soares Santos 187 A Honra Perdida do Major Silva Pais Fernando Pereira Marques 191 Os Indignados e a Crise da Liberal Democracia Joaquim Jorge Veiguinha LIVROS 201 “Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico” de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010 Pedro Miguel Cardoso 215 Portugal como Problema: Que Soluções? Joaquim Jorge Veiguinha 4 COLABORAM NESTE NÚMERO Eduardo Lourenço – Ensaísta Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta Virginie Collombier – Investigadora Hermínio Martins – Professor Universitário Fernando Pereira Marques – Professor Universitário Guilherme Oliveira Martins – Jurista Alfredo Margarido – Professor Universitário (A título póstumo) Pedro Miguel Cardoso – Formando da Fundação Respublica Paulo Ferreira da Cunha – Professor Universitário Fernando Mora Ramos – Encenador João Soares Santos – Ensaísta Carlos Brito – Cartoonista 5 6 AS REBELIÕES ÁRABES O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem Eduardo Lourenço Com força não, com manha vergonhosa A vida lhe tiraram, que os espanta; Que grande aperto em gente, ainda que honrosa, Às vezes leis magnânimas quebranta. T Lusíadas, Canto VIII udo que é necessário para compreender a saga ‘redentora’ e maldita que culminou no ataque às torres de Nova Iorque e fechou provisoriamente com a morte sem julgamento de Bin Laden tem a sua bíblia portátil no livro de Lawrence Wright, a “Torre do Desasossego”. Economiza a proliferação automática de centenas de comentários que a insólita comemoração do espectacular acontecimento do 11 de Setembro suscitou e continua a suscitar. O mais empolgante dos romances empalidece ao lado dessa espécie de reconstituição na melhor linha do grande jornalismo americano. Lendo-o, pelo menos, esse acontecimento deixa de ser percebido como um fenómeno quase ‘sobrenatural’ ou sem causa, expressão do ‘mal absoluto’ de novo género, e sobretudo mais inexplicável que o do Holocausto. Lendo Lawrence Wright compreendese, se já não se supunha, que o sacrílego ataque não foi um acontecimento irracional, opaco, contingência pura da ordem da loucura, mas a peripécia de um combate bem anterior ao gesto ou à gesta de Bin Laden que tem como actores – e isso é que é novo – dois actores de destino interligados e até cúmplices e aliados, os Estados Unidos no seu novo papel hegemónico sem antagonista depois da queda do Muro de Berlim (e até antes) e do outro, o mundo árabe, não como inimigo potencial por motivos religiosos ou culturais, mas como objecto privilegiado dos interesses americanos (e latamente ocidentais) que desde os tempos de Mossadegh e do Xá da Pérsia são ‘vitais’ para os Estados Unidos. Bin Laden é o herdeiro directo e o concentrado consciente e assumido não apenas de um histórico ressentimento do Islão contra o Ocidente, mas igualmente de contradições pessoais e políticas que na primeira parte da sua acção anti-imperialista se articulou com o combate anticomunista dos Estados Unidos. Como ‘saudita’, e até a título familiar, o seu destino 7 O FANTASMA DE BIN LADEN OU O EIXO DO BEM está ligado ao do imperialismo económico sem fronteiras dos Estados Unidos. Mas cedo se deu conta que esse aliado privilegiado na luta contra o comunismo como ideologia ateísta incompatível com o Islão era também e sobretudo não só o aliado mais que privilegiado do jovem Estado de Israel, como, de algum modo, o Grande Israel. A luta de morte contra um deles implicava, na sua nova opção de ‘converso’ que o seu combate ideológico, cultural e religioso se polarizasse contra o que já era, há muito, para uma grande parte do mundo islâmico, o Grande Satã. Sob este pano de fundo, a idade ideológica que dominou o combate político do Ocidente desde a Revolução de Outubro (para não falar da herança reciclada da Revolução Francesa) mudou de paradigma. Não o de um muito sofisticado conflito entre ‘civilizações’, mas o de uma leitura mais arcaizante, aquela que convém às oposições ou detestações que relevam da esfera mais decisiva da crença. Com a queda do Muro de Berlim e o enfraquecimento da tradição iluminista, o recalcado por ela volta outra vez sob a forma de ‘fundamentalismo’, não à moda medieval puramente religiosa e condicionante das práticas de uma sociedade, sobretudo na ordem ética, mas como referência identitária servindo de pedestal à autonomia política. Paradoxalmente, o episódio, na aparência anómalo e fantástico do 11 de Setembro – que a dez anos de distância tem sido evocado por gente responsável (Miliband entre outros) como uma espécie de não-acontecimento – não tem leitura significativamente histórico-mítica, enquanto improvável ‘clash’ entre dois fundamentalismos. O assim nomeado e que seria (ou é) por excelência o que tem neste momento no Islamismo a sua encarnação histórica, e o americano, de raiz messiânico-bíblica, na sua essência ideal e que é pura e simplesmente o ‘modelo americano’ vivido como as tábuas da lei em todos os domínios na ordem da realidade. Não é por acaso que o imaginário actual é literalmente de ordem fantástica e fantasmagórica reciclando um pouco cansativamente o eterno cenário do combate entre o Bem e o Mal nos termos arcaicos e mágicos dos eternos contos infantis. Ou até deslocando para espaços extraterrestres os mais que terrestres conflitos entre dominados e dominantes (de dominadores da nova espécie sobre os canónicos dominados). Ao apocalíptico ataque às Torres o traumatizado – e com razão – Presidente dos Estados Unidos vai conferir, a exemplo de Reagan, uma dimensão imediatamente 8 EDUARDO LOURENÇO místico-mítica desse combate entre o Bem e o Mal. Ainda não saímos desse contexto da ciência-ficção, com a América como o império do Bem e Bin Laden no papel assumido de mau da fita, enquanto, ou antes, de anjo do Mal. De um ‘mal’ que, como no caso paradigmático do Diabo (ao menos no Ocidente), convém não evocar porque ele comparece sempre. No tempo da Ideologia, tempos de Che Guevara, o cadáver do adversário foi ‘cristãmente’ integrado na sua humanidade. Desta vez, o que esteve (ou está em causa) é de outra ordem. Bin Laden morto não terá imagem para adorações futuras. Será reenviado ao nada expulso da ordem humana. As exigências do eixo do bem são tão implacáveis como as do Mal. Mas é uma ilusão imaginar que o mistério à luz do dia da tenebrosa epopeia ou anti-epopeia de Bin Laden e o que nela o ultrapassa como em tudo o que conta no que chamam História (ou contra-História) terminou. Li há dias que Francis Ford Coppola, em Veneza, ousou sugerir que por detrás desse atentado satânico não haveria uma tenebrosa pulsão maléfica digna dos cenários apocalípticos que tanto sucesso e dinheiro trazem a Hollywood, mas certamente “algumas razões”. E que seria necessário não só para a América, mas para o mundo que ele fascina ou esmaga ter a audácia de contemplar – até para realmente a exorcizar – essa nova imagem de Medusa da História. Durante séculos o Ocidente – então quase só a Europa – viveu numa espécie de guerra intermitente com o mundo islâmico com que desde o início da sua expansão se defrontara. Sobretudo como se fossem dois planetas que mutuamente se desconheciam mais até do que se temiam. Com a ascensão da Europa a ‘rainha do mundo’ e luz da História, pensava ela quando era do género de Montesquieu, começa uma época de fascínio – sobretudo da parte da Europa como é nossa tradição – entre ambos. A Europa e as suas invenções suscitam a curiosidade e interesse do ‘extático’ mundo islâmico. Com a época imperialista da Modernidade o fascínio converteu-se pouco a pouco em desconfiança. Não está feita para uso comum a história desta paixão assimétrica entre Oriente e Ocidente. E fascinado o mais deslumbrado não é o D. João da História que nós somos como europeus. Bin Laden é um entre os milhares de muçulmanos para quem o encontro com a cultura europeia, a acção da Europa, em vez de deslumbrar, lhes revelou a sua irredutível originalidade e reforçou a sua consciência identitária e o orgulho e dignidade de antiga e brilhante civili- 9 O FANTASMA DE BIN LADEN OU O EIXO DO BEM zação marginalizada – ou auto-marginalizada relativamente à omnipresente Europa. Não foi na América e em relação à América (ou só tardiamente em relação a uma nova América hiperimperialista) que os reflexos do ressentimento ganharam consistência e se converteram em imperativos de acção. No seu livro fascinante Lawrence Wright evoca o percurso desses ‘deslocados’ do Islão que em contacto com a cultura europeia se transformaram nos fundamentalistas que não precisavam de ser mais nas suas pátrias de origem. Descobriram ao mesmo tempo que os ‘ocidentais’ não nascem tão ‘superiores’ como eles imaginavam, mas sobretudo que eles, islâmicos, tinham a sua identidade, valores, uma religião que os vestia e compensava de tudo. E mais do que tudo, que este Ocidente, senhor do mundo era vulnerável. Que se fosse preciso podia ser ferido no seu coração. Este simples pensamento vivido com convicção gerou os aviões (sintomaticamente americanos) que no espírito de Bin Laden deviam punir a arrogância do povo de deuses, sobretudo senhores que não eram os deles. Recentemente um dos mais brilhantes cronistas europeus, Timothy Garton Ash, escreveu que o 11 de Setembro pareceu “um desvio” na História. Será. Até porque tudo é desvio ou nem isso na estrada mais que tortuosa e enigmática da História que não esquecerá tão cedo. E mudaram, mais do que se diz, os tempos que nos foram dados a viver. Que mais não fosse Bin Laden pôs o Islão no ecrã do mundo como actor de uma História onde até então figurava mais como fantasma do que como referência tão mítica como as outras. E também a esse título o 11 de Setembro não seja como muitos naturalmente desejavam um mero ‘fait divers’ do nosso tempo tenebroso mas um sinal ambíguo endereçado ao futuro como escreveu Vasco Pulido Valente. Lisboa, 12 de Setembro 2011. 10 Mundo Árabe em Revolta Joaquim Jorge Veiguinha A explosão democrática iniciada na Tunísia e no Egipto com os seus ‘dias de raiva’ e a queda dos regimes republicanos autoritários de Ben Ali e Hosni Mubarak está muito longe de se converter numa apoteose triunfal da democracia e dos direitos humanos, e ainda menos dos direitos sociais. É certo que a Tunísia e o Egipto preparam a transição política com eleições para a Assembleia Constituinte, em Novembro no país dos Faraós e em 23 de Outubro na nação onde se desencadeou a revolução dos jasmins, que será o ponto de partida para a institucionalização da democracia, a que se seguirão, em Dezembro, no Egipto, eleições presidenciais. Também é verdade que em Marrocos foi aprovada uma nova constituição que diminuiu os poderes do monarca Mohamed VI e reforçou a esfera de acção do primeiro-ministro proveniente de um parlamento eleito. No entanto, poderemos considerar estes três casos relativamente excepcionais e não totalmente isentos do risco de regressão. Ao contrário das reacções embevecidas da imprensa e de inúmeros opinion makers que, de uma forma simplista, já vaticinavam que a maré da democracia inundaria o mundo árabe e faria entrar em cena novos protagonistas, os jovens das redes sociais num ambiente inédito de apoteótica ‘ciber-revolução’, o pesado fardo da realidade tem-se encarregado de desmentir os primordiais excessos de optimismo. Na Líbia, apesar da queda do regime de do coronel Khadafh e a formação de um governo provisório que representa as forças do Conselho Nacional de Transição apoiadas pela intervenção ‘humanitária’ da NATO, estalaram conflitos internos entre grupos que participaram na rebelião contra o coronel deposto e barbaramente executado relativamente à futura chefia militar do país. A Síria, chave da estabilidade do Médio Oriente, vê-se confrontada com uma revolta generalizada da população a que o partido Baas de Bashar al-Assad, o exército e os serviços de segurança respondem com uma repressão brutal que já fez milhares de vítimas civis. Com o pretexto de 11 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA uma insurreição xiita, A petromonarquia do Bahrein recusa transformar-se em monarquia constitucional e aceita a intervenção da Arábia Saudita e dos seus aliados para restabelecer o statu quo ameaçado. Por fim, o Iémen, santuário da Al-Qaeda na península arábica, corre o risco de implodir num ambiente em que se combinam conflitos tribais e confessionais e onde o extremismo islâmico se aproveita do caos generalizado para o qual muito tem contribuído o presidente Ali Abdulah Saleh que persiste em manter-se no poder que detém há 31 anos. O triunfo da democracia no mundo árabe é possível, pois, ao contrário do que defendiam os partidários do “Choque das Civilizações”, não depende de uma espécie de propensão genética e cultural que apenas o Ocidente judaico-cristão possuiria. No entanto, ao que tudo indica, esta apenas poderá concretizar-se como fruto de um longo e atribulado processo. Da mesma forma, como nada indica que a História tem um sentido em que as soluções políticas e sociais progressistas possuem, à partida, a garantia da irreversível vitória, a implosão e o caos de países que até há bem pouco tempo constituíam aparentes oásis de estabilidade sob o comando de ferozes ditaduras, constituem também um cenário possível. Não é verdade que a História, como disse o filósofo alemão Walter Benjamin, no seu Angelus Novus, poderá ser uma “progressão imparável”, mas de “catástrofe em catástrofe”? Os dados já estão lançados. No entanto, para evitar as ilusões e os excessos de optimismo é cada vez mais necessário analisar o enquadramento económico, social, político e estratégico em que se move a revolta do mundo árabe. E esta análise apenas nos permitirá fornecer algumas pistas que nos ajudarão a desvendar não tanto as incógnitas do futuro, mas a evitar que o pior dos cenários possíveis, a hobbesiana guerra de todos contra todos, acabe por triunfar numa região tão conturbada. A questão económica Se tomamos como referência o Egipto e a Tunísia, focos das revoltas no mundo árabe, verificamos, antes de tudo, que os primeiros seis anos do século XXI registaram taxas de crescimento médio de 5% com um máximo de 7% para o Egipto em 2007-2008. Com a crise de 2008-2009 houve uma desaceleração, já que a evolução do PIB caiu para 4,6% no Egipto e para 3,1% 12 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA na Tunísia. Tudo aponta para que este movimento declinante se reforce, já que o FMI estima que no país regado pelo Nilo o produto aumentará apenas 1% em 2011, após a leve recuperação de 2010 em que atingiu 5,1%. Segundo a mesma organização, o maior país da região verá não apenas o seu défice público aumentar para 9,7% do PIB, mais 1,9% do que em 2008, podendo atingir 11%, mas também registará uma quebra drástica de 5% das receitas turísticas, uma das principais actividades económicas do país1. Outra das características do mundo árabe e muçulmano é a elevada taxa de crescimento demográfico que superou a do PIB anterior a 2009. Se é certo que tanto na Tunísia como no Egipto a primeira tem revelado tendência para desacelerar – na Tunísia existia uma média de 5 crianças por mulher em 1980 contra apenas 2 actualmente, enquanto no Egipto o número médio de filhos tinha passado de 5,5 para 2,7 no mesmo período –, pode dizer-se que esta evolução recente é manifestamente insuficiente para compensar os efeitos da explosão demográfica acumulada. Assim, na Tunísia, a população passou de 4 milhões para 10 milhões de habitantes entre 1960 e a actualidade, ou seja, um aumento de 250% em 40 anos, o que implica uma taxa anual de 6,25%. Por sua vez, o país das pirâmides viu a sua população aumentar cerca de 150% entre 1990 e 2010, passando de 58 milhões para 85 milhões de habitantes. Este fenómeno não é um fenómeno isolado, mas estende-se a toda a região do Norte de África, bem como ao Médio Oriente. Relativamente à primeira região, destacamos o caso de Marrocos, onde a população passou de 11,6 milhões de habitantes em 1960 para 32,4 milhões, da Argélia, de 10, 8 milhões para 35,4 milhões e da Líbia, o país menos povoado apesar da sua enorme extensão territorial, em que a população quintuplicou alcançando 6,4 milhões, em 2010, quando era apenas de 1,3 milhões em 1960. Relativamente à segunda região, podemos destacar os casos da Arábia Saudita e do Iémen, países exportadores de petróleo: no mesmo período, a população da primeira mais do que sextuplicou, passando de 4 milhões para 26,2 milhões; por sua vez, no país governado até aos inícios de Junho de 2010 por Ali Abdulah Saleh esta mais do que quintuplicou, atingindo 24,3 milhões em 2010 1 Fontes: Pech, Thierry – “Monde arabe: les ressorts de la révolte”, Alternatives Economiques, Paris, Março 2011, p. 30; Teson, Nuria – “La primavera egípcia se congela”, El País: Negócios, Madrid, 5.06.11, p. 24. 13 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA quando possuía apenas 5,2 milhões em 1960, o que, tendo em conta os elevados níveis de pobreza, transforma-o numa autêntica ‘bomba demográfica’. Fora do mundo árabe foi também impressionante o crescimento demográfico do Irão cujos habitantes mais do que triplicaram no mesmo período atingindo 75,1 milhões em 20102. Uma das principais consequências do elevado crescimento demográfico no mundo árabe é a elevada percentagem de jovens entre 15 e 25 anos na população da generalidade dos países tanto do norte África como no Médio Oriente. Este ‘rejuvenescimento’ foi acompanhado pela queda da taxa de analfabetismo que se tornou um fenómeno minoritário entre os mais jovens. Se Marrocos têm ainda uma taxa de analfabetismo de 30% e o Egipto de 15% nesta faixa da população, os seus valores são substancialmente mais baixos na Argélia (8%), na Síria (6%), na Tunísia (4%), e puramente residuais na Líbia, onde atingem apenas 1%. Paralelamente, cresce significativamente a percentagem das pessoas inscritas nas universidades no total da população jovem com valores que oscilam entre os 10% de Marrocos, os 30% da Tunísia, do Egipto e da Argélia e da Arábia Saudita, os 50% da Líbia, dos territórios palestinianos ocupados e do Líbano e os 60% dos Emirados Árabes Unidos. Esta explosão do ensino universitário está associada à difusão das ligações com a Internet que deram um importante contributo para a difusão das redes sociais que estiveram na origem das revoltas de que resultaram a queda dos regimes autoritários de Ben Ali e Hosni Mubarak. No entanto, esta requalificação da juventude não tem sido acompanhada pela melhoria das condições de vida, já que não apenas a taxa de desemprego dos jovens no Norte de África e no Médio Oriente ultrapassa os 30%, mas também, se exceptuarmos a Líbia, a parte da população que vive no limiar da pobreza é extremamente elevado, destacando-se Marrocos, com cerca de 25%, o Egipto e a Argélia, em que esta se aproxima dos 50% e o Iémen com mais de 50% de pobres3. Embora se possam encontrar causas específicas para explicar o aumento da pobreza nos diversos países da região, o fenómeno tem uma raiz comum 2 Pech, Thierry, ibidem, p.31. 3 Fontes: Gresh, Alain – “Ce que change le réveil árabe”, Le Monde diplomatique, Paris, Março 2011, p. 15; Sachs, Jeffrey – “Los jovenes inquietos del mondo arabe”, El País: Negócios, Madrid, 10.04.11, p. 24. 14 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA no Norte de África tanto nas repúblicas autoritárias do Egipto, da Argélia e da Tunísia, como na monarquia marroquina. De um modo geral, o crescimento económico elevado até 2008 não conseguiu compensar a explosão demográfica ‘acumulada’ nos últimos 40 anos, apesar deste fenómeno tender a esbater-se cada vez mais no futuro. No entanto, este evento não é por si só suficiente para interpretar adequadamente o aumento das desigualdades sociais. O maior país da região, o Egipto, continua a ser o modelo e paradigma de um processo de liberalização económica que, iniciado pelo presidente Anwar al-Sadat nos anos 80, acabou por estender-se a outros países da região, de que se destacou, por exemplo, a Argélia, em que o modelo económico desenvolvimentista das chamadas ‘indústrias industrializantes’ se revelou um fiasco total. Este processo assinalou, como refere Hazem Kadil, a ruptura com o ‘contrato social’ nasseriano dos anos 50 do século passado em que “o regime oferecia educação gratuita, emprego num sector público em expansão, tratamentos de saúde a preços acessíveis, habitação a baixos preços e outras formas de protecção social, em troca de obediência”4. A infitah [abertura económica] sadatiana, apesar de fomentar o investimento estrangeiro no país e romper com o nacionalismo económico pan-arabista do regime do coronel Nasser, iniciou um processo, a que Hosni Mubarak deu seguimento, caracterizado pela subida da taxa de desemprego acima da média mundial, fuga de cérebros, fluxos emigratórios crescentes, manutenção de elevadas taxas de analfabetismo na população rural, gigantescos bairros de lata, baixo poder de compra e aumento das camadas da população que não beneficiam de nenhuma espécie de protecção social. O fenómeno da infitah não foi, porém, uma característica específica do Egipto, mas um fenómeno transversal que, com a excepção da Líbia de Khadafi, influenciou o Norte de África e as petromonarquias do Golfo Pérsico, tanto mais que o Egipto, pela sua dimensão e o seu enorme peso simbólico no mundo árabe e muçulmano, foi, é e continuará a ser a nação precursora das grandes transformações económicas, sociais e políticas na região, seja qual for o sentido destas. Tanto os países produtores de petróleo, como os outros apostaram num modelo económico liberal em 4 Kandil, Hazem – “Revolt in Egipt”, New Left Review, Londres, Março/Abril 2011, p. 17. 15 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA que não apenas a intervenção estatal na economia foi drasticamente reduzida, mas também em que as funções sociais do Estado nasseriano foram desmanteladas. Este modelo económico foi sustentado pela aposta no imobiliário de luxo e no turismo, na grande distribuição comercial e na banca, ou seja, pelo investimento em sectores improdutivos. Os anos 90 do século passado assistiram à difusão do telemóvel, ao investimento nas telecomunicações, a uma vaga de privatizações de serviços públicos e à difusão de parcerias público-privadas, de que se destacam os contratos tipo BOT [Build Operate Transfer], um contrato de locação que permite delegar concessões a investidores privados por um determinado período de tempo5. Apesar da aposta na telemática, de resto um pouco a reboque do que se passava no resto do mundo, se ter virado inesperadamente contra os regimes ditatoriais, em consequência da difusão das redes sociais que estiveram na origem da mobilização dos jovens opositores aos regimes de Ben Ali e de Hosni Mubarak, bem como das grandes manifestações da praça Tahrir que precederam a queda do regime autoritário egípcio e cujas repercussões ultrapassaram a capital cairota, influenciando movimentos juvenis nos países da Europa do Sul, o modelo económico dominante é, fundamentalmente, um modelo ‘rentista’ centrado numa oligarquia financeira que utiliza as receitas provenientes do petróleo ou de outras fontes para aplicá-las em operações imobiliárias, comerciais e bancárias, de que o chamado ‘milagre do Dubai’ com as suas mega-extravagâncias imobiliárias constitui o exemplo paradigmático. Um modelo deste tipo não apenas não gera emprego qualificado, o que explica a fuga de cérebros e o descontentamento dos jovens licenciados relativamente às suas perspectivas de emprego futuro, mas também acaba por reproduzir-se tanto à custa de um sector informal de ‘pequenos trabalhos’ que emprega cerca de um terço da população activa, como na base de contratos de trabalho precário sem segurança social e sem direitos sindicais. Apenas no sector público e na administração existe uma certa estabilidade de emprego e é preservado um mínimo de direitos sociais. No entanto, este sector tem tendência a restringir-se cada vez mais em consequência do reforço das políticas neoliberais. Uma das principais consequências destas 5 Ver: Corm, Georges – “L’unité retrouvée des peuples arabes”, Le Monde Diplomatique, Paris, Abril 2011, pp. 17 e 22; Aita, Samir – “Abattre le pouvoir pour libérer l’État”, Le Monde Diplomatique, Paris, Abril 2011, pp. 20-21. 16 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA políticas é a redução e mesmo o desmantelamento do embrião de Estado social construído na época de Nasser. Muitas das suas funções passaram a ser desempenhadas pelos grupos islamitas que criaram uma espécie de ‘sociedade-providência’ que substituiu um Estado cada vez mais autoritário e corrupto nos apoios sociais aos mais desfavorecidos. Eis a razão pela qual a economia no mundo árabe acaba por se transformar em política. A questão política As repúblicas autoritárias do Norte de África e do Médio Oriente, que já foram designadas perspicazmente pelo termo ‘repúblicas hereditárias’, com a Síria e o Egipto como exemplos emblemáticos, têm o seu contraponto nas monarquias absolutas, de que se destacam as petromonarquias do Golfo Pérsico e a monarquia marroquina, que atravessa um processo de reforma constitucional. Nas segundas não existe separação entre poder religioso e poder político. Basta pensar que o rei de Marrocos, Mohamed VI, antes da aprovação da nova Constituição era considerado pessoa sagrada – passará apenas a ser ‘inviolável’ –, mas permanecerá líder espiritual e principal responsável pela política religiosa. Na Arábia Saudita existe uma polícia de costumes dependente do monarca que aplica os preceitos rigoristas da sharia, de modo que, ao contrário do que já sucede em Marrocos, não existe autonomia da esfera privada relativamente à hegemonia da esfera religiosa que é ‘pública’. Todas as tentativas de criação de monarquias constitucionais e de partidos políticos têm sido reprimidas nas monarquias do Golfo – a invasão consentida do Bahrein pela Arábia Saudita é uma prova disso –, de modo que estas se mantêm como tiranias toleradas pelo Ocidente e pelos Estados Unidos, tendo em conta a sua importância estratégica para a preservação do acesso a essa fonte de energia fundamental que continua a ser o petróleo6. 6 Relativamente à Arábia Saudita, chave da Pax Americana na região, o conservador Center for Strategic and International Studies não revela a menor dúvida. Pouco importa a natureza do regime desde que os interesses estratégicos norte-americanos sejam assegurados no xadrez político regional em que o Irão se está a transformar numa potência emergente ‘ameaçadora’: “Este país [Arábia Saudita] é tão indispensável à estabilidade da região como à economia mundial. Ryad desempenha um papel de contrapeso essencial perante um Irão radical e agressivo; está na origem do plano de paz da Liga árabe com Israel; e tornou-se um parceiro vital na guerra contra o terrorismo. A estratégia americana no Médio Oriente repousa inteiramente na presença de um regime benevolente na Árabia Saudita” (Cordesman, Anthony – “Pourquoi le royaume est stable”, Courrier International, Paris, 10.03.11, pp. 18-19. 17 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA Em Marrocos, a revisão constitucional aprovada em 1 de Julho com uma esmagadora maioria de 98%, apesar de reforçar os poderes do presidente do Governo [primeiro-ministro] na determinação da política de um Executivo com base parlamentar, na convocação e presidência do Conselho de Ministros por delegação do rei e na partilha com o monarca do direito de dissolver o Parlamento, mantém ainda em mãos de Mohamed VI, importantes poderes: para além do ‘poder espiritual’ de Comandante dos Crentes, cabe ao monarca a gestão da política dos negócios estrangeiros, a autoridade sobre as forças armadas e o aparelho de segurança e a possibilidade de poder decretar unilateralmente o estado de emergência7. Nas primeiras eleições legislativas após a aprovação da nova constituição, a vitória coube aos islamitas do Partido para a Justiça e Desenvolvimento (PJD) que obtiveram 27% dos sufrágios, seguindo-se-lhes o Istiqlal, centrista nacionalista, com 15,18% e o Agrupamento Nacional de Independentes, partido laico, com 13,16%. À esquerda, a União Socialista das Forças Populares conseguiu apenas eleger 39 deputados em 395, o que equivale a 9,8% dos votos expressos. As repúblicas autoritárias, que têm estado na origem do tsunami social e político que submerge o mundo árabe, centram-se, com a excepção da Líbia do coronel Khadafi, como veremos mais à frente, numa estrutura triangular de poder que, no Egipto e na Tunísia, começa a ser posta em causa com a queda dos presidentes Ben Ali e Mubarak, mas que ainda se mantém na Síria de Bashar al-Assad: o partido único – casos do Partido Nacional Democrático (PND), no Egipto, do Rassemblement Constitutionel Democratique (RCD), na Tunísia, e do Partido Baas, na Síria –, o exército e os serviços de segurança. Os chefes de Estado, que são simultaneamente líderes do partido único, delegam nos militares de alta patente a direcção dos serviços de segurança que desempenham as missões de ‘intelligence’ e controlam diariamente as actividades dos cidadãos. Quando os serviços de segurança entram em crise, como aconteceu no caso do Egipto e da Tunísia, os outros dois pilares do poder instituído são arrastados, com particular destaque para o partido único 7 Ver: Cembrero, Ignacio – “El rey Mohamed VI de Marrocos deja de ser ‘sagrado’ en la nueva Constitución”, El País, Madrid, 11.06.11, p. 6; Lorena, Sofia – “O palácio está a ouvir a rua?”, Pública, Lisboa, 12.06.11, pp. 36-44. 18 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA e a oligarquia privada dos negócios que entretecem relações que tornam muito ténue a distinção entre riqueza pública e enriquecimento privado. No entanto, com as revoltas populares o exército tende a destacar-se dos serviços de segurança e a transformar-se em garante da transição para uma nova ordem em que seja preservada a laicidade do Estado, não havendo, portanto, um isomorfismo entre estes dois vértices do ‘triângulo’ tradicional do poder8. Uma das consequências mais importantes da dissolução do ‘contrato social’ nasseriano e da política de liberalização mercantil encetada por Sadat foi o esvaziamento das políticas sociais que teve como contrapartida a difusão do islamismo político que substituiu o nacionalismo laico pan-arabista que, após a morte de Nasser, entrou numa decadência irreversível. Enquanto o laicismo era representado pelos partidos únicos das repúblicas autoritárias e pela Frente da Libertação Nacional (FLN) argelina, organização envolvida na luta de libertação nacional contra o domínio colonial gaulês, a Organização da Conferência Islâmica (OCI) nos anos 70 do século passado foi a principal incentivadora do islamismo na sua vertente mais conservadora, o wahabismo, a que se juntou a ditadura militar paquistanesa de Zia ul Haq que derrubou e executou o Presidente Ali Bhuto. Nos finais dos anos 80, estas duas fontes do islamismo político na sua versão mais tradicionalista e intolerante foram particularmente activas, juntamente com os Estados Unidos, no financiamento e no apoio aos jihadistas contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Paradoxalmente, são estas correntes que, com a derrota das tropas soviéticas no Afeganistão e o derrube do regime militar afegão apoiado pela ex-União soviética retomam, sob uma linguagem islamizada, a retórica anti-imperialista do ‘socialismo árabe’ do período precedente, pretendendo retirar dividendos políticos das revoltas no mundo árabe, como é confirmado por esta passagem de um artigo do Inspire, jornal jihadista on line em língua inglesa, eventualmente ligado à organização da al-Qaeda da Península Arábica (AQAP) com sede no Iémen: “As revoluções que estão a abalar os tronos dos ditadores são boas para os muçulmanos, boas para os mujahideen e más para os imperia8 Ver: Kawakibi, Salam; Kodmani, Bassma – “Les armées, le peuple et les autocrates”, Le Monde Diplomatique, Paris, Março 2011, pp. 11-12. 19 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA listas do Ocidente e os seus homens de mão no mundo muçulmano”9. Entre as organizações islamitas destaca-se a Irmandade Muçulmana egípcia que se estendeu também à Síria de Hassez al-Assad. Opositora do regime laico de Nasser que a reprimiu ferozmente, esta foi essencialmente construída como um movimento conservador em que a política surgiu subordinada à religião e que visava a islamização das instituições culturais egípcias e a defesa da sharia como princípio orientador da legislação. O seu programa resumia-se na palavra de ordem “o Islão é a solução”. No entanto, por razões tácticas ou por um desejo efectivo de mudança ou de adaptação aos novos tempos, parece ter iniciado um processo de renovação ideológica que culminou, em finais de Abril de 2010, na constituição do Partido da Justiça e da Liberdade que concorrerá às eleições para a Assembleia Constituinte egípcia. Apesar de não esclarecer se abandonava a sua posição sectária e misógina sobre a proibição da candidatura de um cristão e de uma mulher à Presidência da República, nem se exigirá a aplicação da sharia, não se considera um partido religioso, mas uma organização política “civil com uma referência religiosa”10, comprometendo-se a respeitar a Constituição egípcia que proíbe slogans religiosos. Na Tunísia, destaca-se o partido islamista En Nahda (Renascimento), dirigido por Rachid Ghannouchi. Ilegalizado por Ben Ali, o seu líder, que o fundou há 30 anos com outro nome, sofreu duas penas de prisão e trabalhos forçados – a primeira e a segunda em 1987 – que lhe valeram mais de três anos de cárcere. Exilado em Londres em 1991, Ghannouchi estudou teologia na universidade de Tunes, filosofia em Damasco, frequentando também a Sorbona, em Paris, apesar de ter escolhido, como outros adversários do regime de Ben Ali, a capital londrina como local que lhe permitiu escapar às perseguições da ditadura do RCD. Retornado à Tunísia após a 9 The Economist, Londres, 2. 04. 2011, p. 22. Os partidários de Zia ul-Haq no Paquistão alinham pelo mesmo diapasão como se pode depreender por estas declarações de Hamid Gul, o homem que chefiava os serviços secretos paquistaneses durante a ditadura militar. Em entrevista ao jornal El País, quando lhe perguntam se a morte de Bin Laden vai enfraquecer a al-Qaeda responde: “Podem dizer que conseguiram [os Estados Unidos e a NATO], mas na minha opinião apenas reavivaram a lenda de Osama. O jihadismo internacional não vai desaparecer. Por detrás dos levantamentos árabes – que o mais provável é conduzirem a um sentimento de frustração –, vai retornar a filosofia da al-Qaeda. Já se sente a sua presença na Líbia, Chade, no Magreb, no Iémen, na Somália e estão a avizinhar-se de Israel e do Egipto. Agora a Al-Qaeda vai conseguir mais seguidores em todo o mundo” (Espinosa, A – “«Mientras sigamos sometidos a EEUU, continuará la violência»”, El País, Madrid, 14.05.11). 10 Tesón, Nuria – “Los islamistas de Egipto forman un partido politico”, El País, Madrid, p. 11. 20 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA queda da ditadura, onde foi calorosamente recebido pelos militantes da sua organização política, tem dado diversas entrevistas a publicações europeias de referência e participado em congressos sobre o islamismo. Numa entrevista ao jornal El País de 29 de Maio de 2011, Ghannouchi considera o Partido turco da Justiça e da Liberdade como sistema de referência. O líder islamita afirma respeitar o “estatuto pessoal” que consagra desde 1956 uma certa forma de igualdade entre homens e mulheres na Tunísia, condena a tortura, o extremismo e o terrorismo. O seu objectivo é “converter Tunes num modelo que conjugue Islão e modernidade”, pois “o exemplo que não deve ser seguido é a Argélia com todos os erros que foram cometidos há 20 anos”11. No entanto, esta ‘conjugação’ levanta algumas dúvidas, se tivermos em conta outra entrevista concedida ao jornal suíço Le Temps em 6 de Fevereiro de 2011 onde considera que “a laicidade pretende que estamos ligados às coisas deste mundo cá de baixo e apela a um desenvolvimento económico e da equidade que não tem em conta a religião”. Esta observação, apesar de aparentemente ser uma crítica ao modelo económico dominante que tem multiplicado as desigualdades sociais, revela que o islamita tunisino continua, se bem que de forma mais sub-reptícia que no passado, a rejeitar, de certo modo, a laicidade e o secularismo. De resto, o En Nahda está a confrontar-se actualmente com uma corrente salafista muito activa entre os jovens, o partido Hiz al-Tahir, que não foi legalizado e cujos dirigentes defendem a criação de um califado islâmico e a abolição dos partidos políticos. Segundo o semanário Courrier International de 12 de Março de 2011, os salafistas têm desenvolvido uma intensa actividade centrada em slogans sectários e anti-semitas e atacado os estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas e as mulheres que não usam véu12. No Egipto, o salafismo político é representado fundamentalmente pelo Al-Gamaa al-Islamiyia e Al-Jihad. Estes dois grupos optaram pela luta armada contra o regime político egípcio deposto e uma brigada da Jihad esteve envolvida no atentado de que resultou a morte do presidente Sadat. A sua ideologia original é fundamentalista, já que consideram que a democracia é incompatível com o Islão, defendem a abolição da Constituição, 11 Cembrero, Ignacio – “Mi sueño es conjugar Islam y modernidad”, El País: Domingo, Madrid, 29.05.11, p. 8. 12 Basly, Rajaa – “Jusqu’où iront les islamites”, Courrier International, Paris, 12.03. 11, p. 38. 21 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA do Parlamento e das eleições e visam restabelecer um Califado que reúna todos os muçulmanos. No entanto, os militantes dos dois grupos que se encontravam nas prisões de Mubarak fizeram um acordo com o regime deposto em que se comprometiam a renunciar à violência, o que lhes valeu a libertação. Actualmente, o seu principal dirigente, Abboud Al-Zumar, um coronel dos serviços secretos egípcios que foi um dos principais responsáveis do planeamento do atentado contra Saddat, o que lhe valeu uma pena de trinta anos de prisão, declarou à imprensa que o salafismo político aceitará a democracia e respeitará os compromissos internacionais do Egipto13. Inflexão táctica ou conversão real à democracia dependerão da correlação de forças políticas e, particularmente, do sucesso das forças laicas e sobretudo de um modelo de desenvolvimento orientado para a redução das desigualdades e iniquidades sociais, fontes do extremismo e da violência política. A característica política comum dos dois países que iniciaram a ‘Primavera árabe’ é a grande debilidade dos partidos laicos, a qual, se estende, de resto, à generalidade das nações islâmicas, com particular destaque para a Síria, em que a principal força de oposição ao regime de Bashar al-Assad é a Irmandade Muçulmana. No Egipto, destaca-se a Frente Democrática dirigida por Mohamed el-Baradei, organização política de inspiração liberal que tem como sistema histórico de referência o Wafd, o partido do nacionalismo liberal sob a monarquia egípcia. Os partidos de inspiração socialista e social-democrática são praticamente inexistentes, enquanto as organizações de inspiração comunista, de que se destaca o Partido Nacional Progressista Unionista ou Tagammu, fundado por Khaled Mohieddin, seguiram, nos últimos anos, principalmente sob a liderança do seu novo líder, Refat al-Saed, uma política de acordo tácito com o regime de Mubarak com o argumento de que os islamitas constituíam o inimigo comum, o que contribuiu para o seu enfraquecimento. Na Tunísia, foi lançado o movimento Pólo Democrático Modernista (PDM), em que se integra o Partido Comunista tunisino, que tem como objectivo formar uma frente de partidos laicos para enfrentar o En Nahda de Ghannouchi nas eleições para a Assembleia Constituinte. De um modo geral, apesar da ‘Primavera 13 Fonte: Kandil, Hazem, New Left Review, Londres, Março/Abril 2011, pp. 52-53. 22 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA árabe’ se ter iniciado como um movimento laico, o islamismo político tem recuperado posições e desmentido as previsões de todos os que – e não foram poucos – previam que seriam ‘varridos’ da cena política14. Prova disso é que no referendo organizado pelo Conselho Militar supremo para alterar a Constituição egípcia legada pelo regime de Mubarak, mantém-se o artigo 2º em que a sharia continua a ser a base da legislação. Na primeira volta das eleições egípcias para a câmara baixa (Assembleia do Povo), que abrangeu as principais zonas urbanas do país, os islamitas obtiveram uma vitória esmagadora repartida pelo Partido da Justiça e da Liberdade, braço político da Irmandade Muçulmana com 36,68% dos votos e pelos integralistas salafistas do Al Nur que obtiveram 24,36% dos sufrágios. Por sua vez, na Tunísia nas eleições de Outubro para a Assembleia constituinte, o En Nahda conseguiu obter 41,7% dos sufrágios, o que equivale a 90 deputados em 217, o triplo da formação política que ficou em segundo lugar, o Congresso para a República (CPR), partido laico que representa a esquerda nacionalista. A grande distância ficaram os restantes partidos laicos: o Ettakol, de esquerda, com 21 deputados, a Petição Popular (PP) de Hechmi Haadami, figura ligada ao anterior regime, com 19 deputados, o Partido Democrático Progressista (PDP), centrista, com 17 deputados e o PDM que obteve apenas 5 deputados. Isto significa que a estratégia do PDM falhou, pois o voto nos partidos laicos acabou por se pulverizar, o que contribuiu necessariamente para a vitória dos islamitas do En Nahda. Tudo aponta para que as ‘revoluções árabes’ tenham contribuido efectivamente para o ‘tsunami’ islamita. A questão étnico-confessional: da Síria ao Iémen No mundo árabe podemos distinguir dois tipos de nações: as nações com uma forte unidade nacional, de que se destacam o Egipto, a Tunísia e Marrocos, e as que se caracterizam por divisões étnico-confessionais, como o Iraque, a Síria, a Líbia, o Iémen e o Bahrein. Com a excepção do Iraque invadido pelos Estados Unidos e transformado num Estado formalmente democrático com uma componente étnico-confessional aparentemente 14 “Post-revolutionary Tunisia: Moving ahead”, The Economist, Londres, 16 de Julho de 2011, p. 41-42. 23 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA estabilizada, mas que pode ‘implodir’ em qualquer momento, este segundo grupo de países está actualmente no centro das insurreições contra os governos autoritários republicanos e monárquicos no Norte África e no Médio Oriente. Entre eles, destaca-se a Síria que é, simultaneamente, a chave da estabilidade e do statu quo no Médio Oriente, pelo que o estabelecimento da democracia no país governado pela família Assad constitui um processo complexo que deverá ter em conta uma multiplicidade de variáveis que nada tem a ver, como alguns apressadamente adiantaram quando os efeitos da ‘Primavera’ tunisina e egípcia começaram a repercutir-se noutros países das duas regiões, com a desagregação, seguida de uma rápida conversão à liberal democracia, dos Estados da Europa de Leste que se integravam na esfera de influência da União Soviética. Após a queda do regime de Hosni Mubarak, a Síria constitui o modelo e paradigma das repúblicas autoritárias do mundo árabe. Todos os elementos que no Egipto e na Tunísia foram derrubados pelos movimentos pró-democracia permanecem incólumes ainda na Síria: o partido único, o Baas, um presidente, Bachar al-Assad que sucedeu ao pai Hafez al-Assad, o exército, cujas cúpulas são controladas por elementos próximos do presidente ou pelos seus aliados, e a polícia secreta, a Mujabarat, dividida num complexo sistema de departamentos e subdepartamentos que exerce um controlo minucioso sobre a sociedade civil síria. Este aparelho de segurança é, de certo modo, omnipresente, já que uma rede de agentes cobre todo o país. Tal como sucedia nos países da Europa de Leste e no Portugal do pré-25 de Abril, uma parte desta rede é constituída por ‘profissionais’ especializados na repressão, com um estatuto de ‘funcionários públicos’, enquanto a outra parte consiste em informadores contratados, ou seja, em mercenários pagos para delatar o mínimo sintoma de descontentamento e oposição ao regime. Segundo as organizações defensoras dos direitos humanos, a Síria é um dos países em que mais se pratica a tortura, estimando-se que em 30 anos teriam desaparecido dezassete mil pessoas. O país constitui também um mosaico étnico-confessional. Governado pela minoria alauita, de confissão xiita, a que pertence o grupo dirigente, 75% da população síria é sunita. A Síria possui ainda minorias cristãs, drusas e curdas cujos direitos têm sido preservados, por razões tácticas, pelo regime da família Assad, como contraponto ao predomínio social do sunismo. 24 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA Alguns dados podem fornecer-nos um retrato do regime sírio. O pai de Bashar al-Assad, o coronel Hafez al Assad, conquistou o poder em 1971, derrubando um frágil regime derrotado pelas tropas beduínas do rei Hussein da Jordânia após o ‘Setembro Negro’ que tinha culminado com a expulsão da OLP da Jordânia. Em 1979, o tratado entre o Egipto de Anwar al-Sadat e Israel rompeu a unidade pan-arabista. Apesar de ser um regime laico, a Síria de Hafez al-Assad aliou-se ao regime teocrático de Khomeini, que tinha derrubado o Xá Reza Palavi. Formou-se assim um novo eixo contra Israel e os Estados Unidos que destronou a hegemonia de um Egipto cada vez mais dependente da ajuda norte-americana no mundo árabe. Durante a invasão israelita do Líbano nos anos 80 do século passado, a Síria não apoiou, porém, a OLP, mas o Hezbolah, o Partido de Deus, que resultou de uma cisão do partido xiita libanês Amal. Actualmente, este é uma força hegemónica no seio da população muçulmana do Líbano, partilhando o poder político com os representantes de outras confissões e sendo patrocinado pelo Irão e pela Síria. O conflito com o ramo sírio da Irmandade Muçulmana marcou a primeira metade dos anos oitenta do século passado. A lei 49 de 7 de Julho de 1980 estipulava a pena capital a todos os que não renunciassem por escrito à sua filiação na Irmandade Muçulmana. Em Fevereiro de 1982, um levantamento na cidade de Hama foi ferozmente reprimido. A cidade foi arrasada pelos tanques e artilharia sírios que fizeram entre 15 e 20.000 vítimas. Segundo o jornalista britânico Robert Fisk, a intervenção do exército foi precedida por actos de violência dos islamitas que massacraram famílias inteiras de responsáveis do Partido Baas15. Outra característica do regime sírio foi o longo estado de emergência. Estabelecido pelo golpe de Estado militar de 1963, foi levantado em 19 de Abril de 2011. Na prática, foi imposto por uma ordem militar decretada pelo Conselho Nacional de Revolução e não pelo Conselho de Ministros. Durante mais de 30 anos, o Governo impôs o controlo da correspondência, das publicações e de todos os meios de expressão antes da sua publicação, a evacuação ou isolamento de determinadas regiões, a limitação dos horários de abertura dos locais públicos ou o seu encerramento, a confiscação de bens mobiliários e imobiliários, a restrição da liberdade de reunião, residência, circulação e de passagem de pessoas em determinados lugares e em determi15 Ver: Fisk, Robert – “Trente ans de terreur”, Courrier International, 31.03.11, Paris, pp. 17-18. 25 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA nadas horas, a prisão preventiva de suspeitos ou de indivíduos considerados uma ameaça à ordem e seguranças públicas e a autorização para investigar todas as pessoas suspeitas em qualquer lugar e em qualquer momento. Como a prisão preventiva não estava submetida a nenhum limite temporal, multiplicaram-se os tribunais de excepção em que os cidadãos, para além de não conhecerem o conteúdo das acusações, não tinham direito a organizarem a sua defesa e a recorrerem das decisões. O estado de emergência pôs em causa o artigo 3º da Constituição da Síria que declara que “ninguém pode ser torturado física ou mentalmente ou ser tratado de forma humilhante”16. Apesar do levantamento do estado de emergência, a insurreição contra o regime alauita de Bashar al Assad generalizou-se praticamente a todo o país. Iniciada na cidade Síria de Deraa, esta estendeu-se até á fronteira norte do país com a Turquia, com particular destaque para a martirizada cidade sublevada de Jisr al Shugur, violentamente reprimida, tal como Hama, pelo exército e a artilharia síria. A rebelião síria já provocou milhares de vítimas, aumentando dia após dia o número de refugiados que atravessa a fronteira síria em direcção à Turquia. A repressão brutal, apesar das usuais reacções de indignação da comunidade internacional, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, não suscitou, como na Líbia, nenhuma ‘guerra humanitária’ contra o regime sírio, o que mais uma vez demonstra que não são, de facto, as intenções humanitárias que estão na origem das intervenções bélicas das potências ocidentais, mas o peso estratégico de um país no contexto regional. Neste sentido, a Síria de Bashar al-Assad não se pode comparar à Líbia do coronel Khadafi, apesar desta ser uma grande produtora de petróleo. De facto, o risco de fragmentação e desmembramento da Síria17 pode desencadear uma situação incontrolável de guerra de todos contra todos e 16 Ver: Raee, Al – “Quarante-huit ans d’état d’urgence”, Courrier International, Paris, 31.03.11, p. 18. 17 Apesar da violenta repressão do regime militarista centrado no Partido Baas de Bashar el Assad e da guerra civil, que é actualmente uma triste realidade, a situação na Síria não pode ser analisada de modo simplista. De facto, o exército, tal como no Egipto, continua a ser a única instituição que garante a laicidade, enquanto a Irmandade Muçulmana síria, financiada pela Arábia Saudita, tem contribuído decisivamente para polarizar as tensões e para alimentar a guerra civil. Defendendo, tal como a sua homóloga egípcia, um Estado islâmico centrado na sharia, não pode jamais ser considerada uma alternativa ao regime de Bashar el Assad. Se é verdade que o regime tem apresentado a ameaça islamita como pretexto para o desencadeamento da repressão e do morticínio, também é verdade que, para alguns, o perigo da constituição de um regime teocrático islamita seria catastrófico tanto relativamente ao respeito dos direitos das minorias étnicas e confessionais, como representaria uma regressão brutal do modo de vida na Síria. Prova disso são as considerações de um analista político pertencente à minoria drusa, recolhidas pela jornalista Angeles Espinosa, enviada especial do jornal El País em Damasco: “Certamente que é necessária uma mudança política. Necessitamos de liberdade de imprensa, de partidos políticos para acabar com a corrupção”. Acrescenta, porém, que o islamismo político não é a solução, já que “sob este regime posso beber uma cerveja numa esplanada, ter uma namorada e declarar-me ateu sem que ninguém me possa fazer nada” (El País, 20. 11. 2011). 26 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA pôr em causa o statu quo numa região em que uma nova potência, o Irão, tende a aumentar a sua influência e em que os Estados Unidos, apesar dos esforços do Presidente Obama, se revelam cada vez mais impotentes para gerir os tradicionais equilíbrios centrados na Arábia Saudita e no Egipto de Hosni Mubarak, principal destinatário da ajuda norte-americana no mundo árabe. A Líbia é um país com uma organização política significativamente diferente do Egipto, da Tunísia e da Síria. O regime do coronel Khadafi resultou de um golpe de Estado militar que, em Setembro de 1969, derrubou a monarquia. Nesta data, o país, apesar da sua extensão territorial, possuía apenas 2 milhões de habitantes – actualmente tem cerca de 6 milhões – e era uma sociedade tribal constituída por 75% de beduínos. Num congresso realizado em Maio de 1973, Os novos dirigentes instauraram uma República árabe que tinha como objectivo consagrar o “poder do povo”, apesar de um ano antes, graças à lei nº17, ter sido abolido o pluralismo, condição fundamental da democracia, já que foi proibida a criação de partidos políticos. Nasceu assim a autodenominada União Socialista Árabe que visava constituir uma espécie de ‘terceira via’ entre o capitalismo e o comunismo. Ao contrário do que acontece no Egipto, na Tunísia e na Síria, o Presidente da República deu lugar ao ‘guia’, representado pelo coronel Khadafi. Os partidos políticos são substituídos pelos comités populares que dirigem a administração. Em 1977, a direcção colegial do Conselho de Comando da Revolução foi abolida. Em 2010, o coronel nomeou o filho Saïf al-Islam ‘coordenador dos poderes populares’ preparando a transformação da Líbia numa república hereditária, à semelhança da Líbia de Hafez al- Assad e do Egipto de Hosni Mubarak. Na prática, a Líbia permaneceu uma sociedade arcaica, composta por 140 tribos – 85% dos habitantes pertence a uma tribo, enquanto 15% não tem filiação – em que não existe verdadeiramente uma sociedade civil e um Estado, como sucede no Egipto, na Tunísia e também na própria Síria. O poder do ‘guia’ tinha como centro a cidade de Sirte, a 500 quilómetros de Tripoli, a capital, e como base a tribo Khadafia e a região da Tripolitânia. Em contrapartida, os Zuwayya, uma das principais tribos da outra região líbia, a Cirenaica, constituíram o núcleo da revolta contra o regime autoritário tribalista do coronel Khadafi e da sua prole18. 18 Fontes: Khechana, Rachid – “Soulèvement contre la bedouinocratie et son chef”, Le Monde diplomatique, Paris, Abril 2011, pp. 18-19; Friedaman, Thomas L. – “L’eterna guerra tra clan rivali dietro la rivolta contro il colonello”, La Repubblica, Roma, 24.03.11, p. 19. 27 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA A intervenção da NATO na Líbia, apesar dos seus pretensos argumentos humanitários, correu o risco de provocar a fragmentação do país, incentivando a secessão da Cirenaica, numa situação que apresenta grandes semelhanças com o Kosovo, actualmente modelo e paradigma do que se poderia designar por ‘Estado falhado’. Para além da justificação para a intervenção militar não ser convincente – O regime líbio ‘dispara sobre o seu povo’ foi o argumento central quando outros regimes, como o da Síria, o do Bahrein e do Iémen, fazem o mesmo e não são alvo do mesmo tratamento bélico ‘humanitário’ –, não se conhece ainda verdadeiramente que forças de oposição representa hoje o Conselho Nacional de Transição (CNT), apoiado pela NATO e que hoje é a base do governo provisório líbio, presidido por Abdel Rahim al-Kib. É, no mínimo, bizarro que em 17 de Junho de 2010 o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Franco Frattini, tenha assinado com o anterior presidente do CNT, Mustafá Abdel-Jalil, um acordo para prevenir a imigração ilegal para Itália, quando este personagem não dispunha ainda de nenhuma legitimidade política, já que não poderia ser considerado sequer chefe de um governo provisório no exílio. De resto, a própria legitimidade da intervenção militar ocidental foi posta em causa por personagens insuspeitas, de que se destaca Michael Walzer que, juntamente com outros intelectuais norte-americanos, de que se destacaram Fukuyama e Michael Novak, apoiou a doutrina da ‘guerra contra o terrorismo’ de George W. Bush numa “Carta da América, as razões de uma luta”, publicada no jornal gaulês Le Monde de 14 de Fevereiro de 2002. Para este filósofo norte-americano, autor de uma distinção pouco convincente entre ‘guerras justas’ e ‘guerras injustas’, não é respeitada a “primeira regra do intervencionismo democrático” que consiste em “não tentar ressuscitar um movimento de oposição que é incapaz de suportar autonomamente os seus objectivos no terreno”19. A queda e a execução sumária do coronel Kadhafi não se pode dizer que tenha aberto ainda perspectivas para o estabelecimento da democracia na Líbia. Antes de tudo, o próprio CNT é não apenas esmagadoramente composto por membros provenientes de uma das regiões do país, a Cirenaica, mas também, de certo modo, atravessado pelas divisões políticas, étnicas e tribais que caracterizam 19 Walzer, Michael – “«Questa volta è un errore»”, La Repubblica, Roma, 24.03.11, p. 45. Resta perguntar, se a doutrina da ‘guerra contra o terrorismo’ também não foi um erro ainda maior. 28 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA o país. A principal é, certamente, a que opõe os democratas laicos aos islamitas, de que se destacam os jihadistas, como o Grupo Islâmico dos Combatentes Líbios e a própria Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI). O armamento dos revoltosos por parte da NATO tem contribuído para favorecer estes grupos que poderão contribuir para a desestabilização da Argélia, que sofreu uma violentíssima guerra civil, mas também da Tunísia, se o conflito durar muito mais tempo ou se conseguirem, apesar da probabilidade não ser muito elevada, conquistar o poder. Outro perigo é a divisão do país que poderá ter consequências funestas sobre outros países limítrofes, em particular no Chade e no Níger, muito dependentes do regime do coronel Kadhafi, mas também na Mauritânia, em que os tuaregues poderão seguir o ‘exemplo líbio’ e rebelar-se contra os respectivos governos centrais com o objectivo de exigirem a sua autodeterminação. O CNT, apesar do reconhecimento da chamada ‘comunidade internacional’ e sobretudo da Grã-Bretanha, França, Itália e Estados Unidos, países que apoiaram a intervenção da NATO, já revelou a sua impotência no caso do assassinato do chefe militar do Estado-Maior das forças rebeldes, Abdel Fattah Younes, que continua envolto no mais denso mistério. Não se sabe ao certo qual a representatividade efectiva deste órgão e existem sérias dúvidas, apesar das promessas tanto do Presidente Abdel Jalil como do anterior primeiro-ministro Mahmoud Jibril, de que não haverá retaliações e execuções sumárias, tal como as que foram cometidas pelas tropas do coronel Kadhafi. Como se verificou, estas promessas foram desmentidas na prática pela bárbara execução do coronel filmada em directo pelas câmaras dos telemóveis dos ‘justiceiros’ islamitas. Por fim, não restam dúvidas de que a ‘variável’ petróleo teve um papel determinante no desenlace do conflito. Apesar da retórica humanitarista das potências intervenientes, o primeiro acto do novo regime líbio, que adoptou a bandeira da monarquia derrubada pelo coronel como símbolo da nova nação, foi a distribuição pelas grandes companhias petrolíferas britânicas, francesas, italianas e norte-americanas das concessões para a exploração do ouro negro na Líbia pós-kadhafiana, como moeda de troca do apoio militar concedido aos rebeldes pelos seus países de origem20. 20 A propósito desta vergonhosa hipocrisia que, sob a retórica humanitarista, esconde poderosos interesses económicos, são válidos os argumentos do dramaturgo austríaco Peter Handke: “As democracias actuais podem comportar-se, para além das suas fronteiras, como se fossem ditaduras. As democracias actuais, na realidade, são as novas ditaduras, as ditaduras humanitárias e económicas: o mais hipócrita que existe. Vivemos numa época de hipocrisia total, antes era a violência pura e dura que dominava, mas agora estamos perante uma violência açucarada, não menos brutal” (“El País”, Babelia, 5. 11. 11, p. 4). 29 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA Outro país em revolta é o Bahrein. Esta monarquia do Golfo Pérsico que é governada pela família real Al Khalifa de confissão sunita e pertencente à tribo dos Anizah e dos Utub tem, no entanto, uma população maioritariamente xiita, o que a torna um peão no jogo geoestratégico da região. Prova disso, foi a intervenção de tropas da Arábia Saudita no país com o argumento de que a insurreição da população contra a monarquia absoluta tinha sido promovida pelo Irão. No entanto, este argumento não tem nenhuma legitimidade, já que a revolta popular não é de natureza confessional, pois junta tanto xiitas como sunitas na reivindicação de reformas que acabem com o monopólio do poder da família reinante e conduzam à realização de eleições democráticas. Deve ter-se em conta que os Al Khalifa são proprietários privados de uma grande parte do país, não existindo verdadeiramente distinção entre domínio público e domínio privado. De facto, num país constituído por 33 ilhas não existe livre acesso ao mar, porque a maior parte das zonas costeiras são de domínio privado. Vinte por cento do território conquistado ao mar resultou de investimentos em empreendimentos imobiliários no comércio e no turismo uma grande parte dos quais pertence à família reinante. Condição necessária para a formação da democracia é não apenas a transformação desta monarquia absoluta em monarquia constitucional, mas o fim da promiscuidade pré-moderna entre domínio público e domínio privado21. Outro foco de rebelião no Médio Oriente é o Iémen do Presidente Ali Abdulah Saleh. Esta república situada no sudeste da península arábica, delimitada a norte pela Arábia Saudita e a oeste pelo Oman, é uma sociedade tribal e um dos santuários mais importantes da Al-Qaeda. Apesar de ser um exportador de petróleo e de gás natural, o Iémen é o país mais pobre do Golfo Pérsico com quase 40% da população situada abaixo do limiar de pobreza. O presidente Saleh, que é membro da tribo Hashed, a mais influente, governou o país durante mais de 30 anos. Uma rebelião xiita a norte e uma insurreição separatista a Sul, promovida ao que tudo indica sob a influência da AQPU, o ramo da Al-Qaeda na península arábica, corre o risco de contribuir para a desintegração do país. As forças do xeque Sadeq al Ahmar, que pertence à mesma tribo de Saleh, 21 Ver: Hadidi, Shobi – “Un problème de corruption avant tout”, Courrier International, Paris, 12.03.2011, p. 36. 30 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA revoltaram-se contra o presidente que, ferido nos combates, se refugiou na Arábia Saudita, sendo substituído pelo Presidente interino Abd-Rabbu Mansour Hadi, em 5 de Junho de 2011. Apesar deste ter solicitado uma trégua à oposição com a promessa de retirar as tropas das ruas de Sanaa e de se ter comprometido a negociar uma transição política que ponha termo ao longo consulado de Saleh, a situação de guerra civil está longe de se encontrar resolvida. O retorno de Saleh ao Iémen após o seu curto ‘exílio’ na Arábia Saudita, reforçou a reivindicação de eleições democráticas, que, como nos outros países submersos pela ‘Primavera Árabe’, esteve na origem da rebelião. O Presidente iemenita não hesitou em ordenar às forças repressivas sob o seu comando que disparassem sobre os manifestantes num conflito em que se combinam divisões tribais e o aproveitamento da situação de iminente caos político pela Al-Qaeda. O Iémen pode transformar-se num ‘Estado falhado’ com o risco de uma parte do país poder vir a ser controlada por esta organização extremista. Eis como a queda de Ben Ali e de Hosni Mubarak desencadeou no mundo árabe e muçulmano um conjunto de transformações que pôs em causa os equilíbrios estratégicos em que se baseavam os regimes autoritários. No entanto, o estabelecimento da democracia, sobretudo nos países em que existem divisões étnico-confessionais e em que o extremismo islamita procura uma oportunidade para se reforçar cada vez mais e ensaiar experiências de instituição de califados, é um problema muito mais complexo do que se pensava quando a ‘revolução dos jasmins’ estalou na Tunísia. O plano estratégico As revoltas árabes e a exigência de democracia que lhes está associada não podem ser separadas de um triângulo geostratégico que define a sua especificidade relativamente a outros eventos, como a queda do Muro de Berlim, onde alguns, numa primeira abordagem apressada, insistiram em tentar descobrir analogias sem nenhum fundamento, tanto mais que a transição para a democracia dos países europeus integrados na esfera do ‘socialismo real’ se realizou, com a excepção da Polónia, de forma relativamente pacífica. Os vértices deste triângulo são constituídos pelas reservas de petróleo no norte de África e sobretudo no Médio Oriente, pelo 31 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA conflito israelo-palestiniano e pela emergência do Irão como potência regional. As relações que se estabelecem entre estes três vértices tornam a situação na região particularmente delicada e, sobretudo no caso da Síria, mesmo explosiva, sendo os resultados imprevisíveis, se tivermos em conta a ascensão das organizações e movimentos islamitas na Tunísia e no Egipto. As reservas petrolíferas transformam a Arábia Saudita e as outras monarquias do Golfo Pérsico a que se juntou o Iraque pós-Saddam Hussein em centros estratégicos prioritários para os Estados Unidos e a Europa Ocidental que, apesar da difusão de outras fontes de energia, continuam com economias fortemente dependentes do consumo intensivo do ‘ouro negro’. Isto explica que os Estados Unidos, que são ainda os maiores consumidores mundiais de hidrocarbonetos, embora a China diminua cada vez mais a distância procurando parcerias em outras zonas do globo ricas em petróleo, possuam no Golfo Pérsico uma grande multiplicidade de plataformas estratégicas, de que se destacam bases aéreas, navais e de informação, postos avançados no Iraque e uma forte influência nos aparelhos de segurança no Egipto, na Jordânia, em Marrocos e mesmo no Iémen, em consequência da forte presença da Al-Qaeda neste país. A estabilidade dos fornecimentos de petróleo e também de gás natural constitui, por conseguinte, uma necessidade imprescindível para o funcionamento das economias capitalistas desenvolvidas que já enfrentaram nos anos 70 do século passado dois choques petrolíferos e se encontram actualmente imersas numa crise global em que o aumento dos preços do petróleo, como consequência inevitável da especulação no mercado das matérias-primas alimentada pela instabilidade na região, constitui uma importante variável geoestratégica. O dado novo é que o apoio aos regimes tirânicos do Golfo Pérsico, de que se destaca a Arábia Saudita, já não é por si só suficiente, pois um novo actor, o Irão, ameaça romper os equilíbrios tradicionais que garantiam a hegemonia norte-americana na região. A emergência do Irão e a difusão do xiismo, paradoxalmente potenciada pela invasão norte-americana do Iraque, país cuja população segue maioritariamente esta confissão, dividiu a região em dois grandes blocos: dum lado, os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), de que fazem parte a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo; do outro, o eixo hegemonizado pelo Irão, a que se juntam o Iraque xiita e sobretudo a Síria. 32 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA O confronto entre estes dois blocos é indubitavelmente o novo dado estratégico que põe definitivamente em causa todas as análises simplistas que atribuíam ao ‘imperialismo’ norte-americano, com o seu apoio a Israel e as suas bases militares e aéreas na região, a principal causa que impedia uma alternativa aos conflitos, bloqueamentos e injustiças sociais e políticas nesta região tão martirizada22. O novo contexto tem na Síria o seu núcleo. A revolta generalizada contra o regime de Bashar al-Assad desencadeou um processo de consequências imprevisíveis. Apesar da legitimidade inequívoca das reivindicações da oposição que visam acabar com o monopólio do poder do Partido Baas, a formação de um governo de transição e a realização de eleições democráticas, a divisão étnico-confessional do país torna a situação social e política no plano estratégico bem mais complexa do que na Tunísia e no Egipto. Um eventual desmembramento e fragmentação da Síria poderão criar uma situação de caos e conflito generalizados, potenciando movimentos secessionistas, tentativas de aproveitamento do CCG, com a Arábia Saudita na ‘vanguarda’, de reforçar a sua esfera de influência à custa do outro eixo e a contra-resposta do Irão que não ficará impávido e sereno a assistir à contracção do seu espaço estratégico. Antes de tudo, os curdos, minoria presente no norte da Síria, sentir-se-ão cada vez mais encorajados, como o exemplo iraquiano já o demonstrou, a realizar o sonho de formação de um Estado curdo, que a Turquia não aceitará. Os sauditas já apoiam e não deixarão de apoiar o ramo sírio da Irmandade Muçulmana e outros movimentos islamitas sunitas para tentarem alterar uma correlação de forças que lhes é cada vez mais desfavorável desde que o xiismo aumentou a sua influência na região, como o prova o falso pretexto da invasão do Bahrein. Em contrapartida, o Irão não poderá aceitar na Síria um regime de inspiração sunita que significará um recuo brutal da sua influência na região. Por fim, o triunfo de um regime sectário na Síria porá em causa os direitos das minorias cristãs, drusas, curdas e judaicas que o regime de Bashar al-Assad e do seu pai tem, por razões tácticas relacionadas com a necessidade de manter aliados contra a maioria sunita, preservado. 22 Esta é a tese de Perry Anderson. Ver: Anderson, Perry – “On the concatenation in the arab world”, New Left Review, Londres, Março/Abril, 2011, p. 7. 33 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA O conflito israelo-palestiniano completa este quadro preocupante. A intransigência israelita e dos grupos fundamentalistas islâmicos directa e indirectamente envolvidos no conflito, sobretudo o Hamas e o Hezebolah libanês que recusam reconhecer o Estado judaico, tem impedido o avanço de um compromisso político que conduza à formação de um Estado palestiniano. O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, para além de ter encarado com grande cepticismo a queda do regime de Hosni Mubarak que, apesar da sua retórica pró-palestiniana, constituía um defensor do statu quo que favorecia os interesses do Estado israelita na região, manifestou-se tanto contra o acordo de reconciliação, mediado pelo Egipto pós-mubarakiano, entre a Fatah e o Hamas, como contra a posição do Presidente norte-americano Barack Obama que, de forma inédita e corajosa, defendeu que o Estado judaico devia regressar às fronteiras de 1967, respeitando a Resolução 242 da ONU que abre perspectivas à formação de um Estado palestiniano e à resolução do problema dos refugiados. O acordo, que deverá ter como contrapartida o reconhecimento explícito do Estado de Israel pelo Hamas, constitui uma condição essencial para a formação de um Estado palestiniano verdadeiramente independente que não seja uma espécie de ‘Bantustão’ rodeado por check points israelitas por todos os lados e despojado de um mínimo de autonomia no plano económico e político. A posição do Presidente norte-americano, para além de ter suscitado uma reacção conservadora do poderoso lobby pró-israelita norte-americano que se tem caracterizado como um dos principais obstáculos ao reconhecimento dos direitos dos palestinianos na região, desencadeou um conjunto de iniciativas por parte do Governo de Netanyahu com vista ao seu boicote internacional. Em 10 de Junho de 2010, o jornal israelita Haaretz publicou uma série de mensagens secretas enviadas pelo Governo judaico aos seus embaixadores em que se defendia como “objectivo básico” persuadir o “máximo número de países” a opor-se ao “reconhecimento do Estado palestiniano”. Foi-lhes recomendado uma linha de argumentação de que um reconhecimento em Setembro deste Estado pela ONU “viola o princípio de que a única via para resolver o conflito passa por negociações bilaterais”23. No entanto, apesar das inúmeras negociações bilaterais, Israel 23 Fonte: El País, Madrid, 11.06.2011. 34 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA não tem cessado de construir novos colonatos na Cisjordânia, inviabilizando, de facto, a possibilidade de construção de um Estado palestiniano. Os cenários possíveis O futuro é imprevisível, apesar das promessas e dos bons augúrios dos primeiros tempos em que alguns pensavam que as nações árabes em revolta transitariam de uma forma indolor para a radiosa democracia. No entanto, como tentámos demonstrar, este optimismo tem sido desmentido pela incógnita que constitui hoje a Líbia pós-kahdafiana – país em que, segundo a ONU, não existe ainda nenhum controlo sobre a circulação de armas muitas das quais podem cair em mãos de grupos islâmicos integralistas –, a Síria, o Bahrein e o Iémen. Por sua vez, a crise actual das economias egípcia e tunisina constitui um obstáculo à transição democrática, já que pode contribuir para agravar os problemas sociais e defraudar as expectativas de uma melhoria das condições de existência que estiveram na origem da queda do regime de Hosni Mubarak. A vitória dos islamitas do En Nahda na Tunísia, apesar da promessa de respeitar a democracia, suscita preocupações nas forças laicas que não esquecem a sua postura intolerante no passado na esfera dos costumes e o seu desejo irreprimível de instaurar a sharia, o que contrasta nitidamente com o seu discurso moderado actual, visto por alguns como uma mera inflexão táctica24. Por sua vez, a reforma constitucional de Marrocos, apesar de reflectir a correlação de forças na região, revela-se manifestamente insuficiente. Como já 24 Em entrevista ao jornal El País, dois democratas tunisinos, Gaddes e Zhgridi, não acreditam na rápida conversão à democracia do partido islamita: “Recordo o discurso do En Nahda nos anos 80. Nada tinha a ver com o actual. Não acredito que possam mudar tão radicalmente. Procuram ser populares para conseguir mais votos. É legítimo suspeitar que quando estiverem na Assembleia se afastem do discurso moderado.” “Perante vocês, jornalistas, fazem-se passar por cordeirinhos, porém formulam os seus verdadeiros propósitos nos comícios, na sua imprensa e nos meios de comunicação em árabe. Torna-se claro que a médio e a longo prazo querem instaurar a sharia” (Cembrero, Ignacio – “Tunéz: laicos frente a barbudos”, El País: Domingo, Madrid, 29.05.11, p.9). Mais recentemente, já após as eleições para a Assembleia Constituinte, verifica-se que estas preocupações têm algum fundamento. Assim, apesar da promessa de fidelidade à democracia e à laicidade de Ghannouchi (ver entrevista ao Le Monde de 29 de Outubro de 2011), o aspirante a primeiro-ministro do En Nahda, afirmou que “estamos a viver um momento histórico, divino, entramos no sexto califado”. Mais grave ainda é o risco que correm Nabil Karui, proprietário de Nessna, a principal televisão privada do país, e os seus colaboradores, de serem condenados a três anos de prisão, por terem sido denunciados por 140 advogados que partilham a ideologia islamista. O seu ‘crime’ foi o de “atentar contra os valores sagrados, os bons costumes e alterar a ordem pública” por terem ‘ousado’ projectar o filme de animação Persépolis sobre a revolução iraniana em que Deus é representado sob a forma de um ancião de cabelo branco sem barba (Fonte: Cembrero, Ignacio – “Las provocaciones islamitas inquietan a los laicos de Tunes”, El País, 19.11.11, p. 4) 35 MUNDO ÁRABE EM REVOLTA referiram os jovens do Movimento 20 de Fevereiro, o procedimento para alterar a Constituição do reino não foi genuinamente democrático, pois resultou de uma comissão nomeada pelo rei e não da eleição por sufrágio universal de uma Assembleia Constituinte. Além do mais, exigem que “o rei reine, mas não governe”25, opondo-se ao controlo dos aparelhos de segurança por Mohamed VI e ao direito de decretar unilateralmente o estado de emergência que lhe permitirá concentrar, de novo, todos os poderes. Marrocos, apesar dos seus avanços, encontra-se ainda muito distante da institucionalização de uma monarquia parlamentar segundo o modelo europeu. Tendo em conta a imprevisibilidade da situação social e política no norte de África e no Médio Oriente poderemos distinguir três cenários. O primeiro é o cenário mais pessimista, mas que constitui, infelizmente, uma possibilidade em aberto: ‘débâcle’ das economias egípcia e tunisina, divisão da Líbia após a queda de Khadafi, implosão da Síria com a consequente guerra de todos contra todos, incapacidade dos norte-americanos gerirem os equilíbrios estratégicos na região de que resultará uma ascensão do islamismo radical, um reforço da Al-Qaeda no Iémen, uma desestabilização do Iraque, a que se juntará uma tentativa de formação de um Estado curdo a que a Turquia se oporá violentamente. Irão e Arábia Saudita tentarão neste contexto preservar ou alargar a sua esfera de influência. As soluções autoritárias reforçar-se-ão, Israel usará como pretexto a instabilidade na região e o possível reforço do eixo iraniano para impedir a formação de um Estado palestiniano independente e os Estados Unidos não terão outra alternativa senão preservar o que restar do statu quo anterior, apoiando os seus tradicionais aliados contra o expansionismo iraniano e tentando impedir o fortalecimento da Al-Qaeda na península arábica, no Iraque e a sua incursão numa Síria transformada numa espécie de novo Líbano. As intervenções militares das potências ocidentais e, em particular, dos Estados Unidos, poderão multiplicar-se em consequência do caos geoestratégico resultante da desintegração da Síria e da Líbia, o sistema de bases norte-americanas aéreas, navais na Arábia Saudita reforçar-se-á, a democracia tornar-se-á uma miragem, o fundamentalismo islamita fortalecer-se-á 25 Cembrero, El –“La protesta árabe aceleró la reforma”, El País, Madrid, 18.06.11, p.3. 36 e os palestinianos verão, mais uma vez, adiada a possibilidade de constituírem um Estado independente. As ameaças de bombardeamento das instalações nucleares por parte de Israel com o apoio dos Estados Unidos, para além de demonstrarem que os norte-americanos continuam a seguir uma política desastrosa na região, contribuem ainda mais para aprofundar a instabilidade política e social e se forem concretizadas transformá-la-ão num barril de pólvora que não tardará a explodir. O segundo cenário é um pouco mais optimista do que o anterior, mas preservará, no essencial, a situação anterior à eclosão da ‘Primavera árabe’. Este caracterizar-se-á, fundamentalmente, pela formação na Tunísia e, sobretudo, no Egipto de uma democracia tutelada pelos militares como contrapeso à ascensão do islamismo político, que obteve uma vitória esmagadora na primeira volta das eleições egípcias para a Assembleia do Povo. Neste contexto, manter-se-ão os poderes clientelares tradicionais, será reintegrada no aparelho de Estado uma parte das figuras pertencentes aos partidos dos presidentes derrubados que conseguiram oportunamente fazer o seu ‘aggiornamento’, os aparelhos de segurança, polícia e serviços secretos, adquirirão uma nova face, mas conservarão uma parte substancial do seu poder repressivo de controlo sobre a vida dos cidadãos. O modelo económico tradicional manter-se-á e as desigualdades sociais continuarão a aumentar. O descontentamento e a revolta social não cessarão, o que implicará muito previsivelmente o reforço dos movimentos islamitas e o aumento do seu peso político, o enfraquecimento das organizações políticas laicas com um programa orientado para as questões da justiça social que continuarão a ser monopolizadas pelos islamitas e o ressuscitar do estado de emergência quando a situação económica e social atingir níveis de conflitualidade que não possam ser geridos pelos tradicionais métodos policiais repressivos. O terceiro cenário – puramente hipotético – poderá ser designado por democracia alargada. No plano político, uma transição para a democracia com base na eleição por sufrágio universal de uma assembleia constituinte; formação de um sistema pluripartidário centrado na limitação do poder do Presidente da República ou do Rei e de um sistema eleitoral que garanta uma verdadeira representatividade; uma legislação baseada em princípios laicos e, complementarmente, uma distinção clara entre a esfera pública 37 e a esfera privada no que respeita à religião; institucionalização de uma efectiva liberdade de opinião e de associação, integrando-se nesta última não apenas a constituição de partidos políticos, mas também a formação de sindicatos independentes e democráticos. Este conjunto de transformações democráticas deve também estender-se ao Irão, país em que surgiu, em 2009, um forte movimento de contestação, entretanto sufocado, à reeleição do Presidente Ahmadinejad e ao regime teocrático dos ayatollahs. O plano político não pode, porém, ser separado do plano social e económico sem o qual a democracia se tornará cada vez mais formal e vazia de sentido. Tal implica, antes de tudo, o fim dos privilégios dos grupos dirigentes e da promiscuidade entre a esfera pública e a esfera privada que geram enriquecimentos ilícitos, sustentam a acumulação de uma parte significativa da riqueza nacional em clãs, famílias e clientelas em que se concentra o poder político e económico. Mas esta transformação apenas poderá ter sucesso se for construído um novo modelo económico que garanta emprego e desenvolvimento e contribua para a redução das desigualdades através do reconhecimento de direitos sociais básicos garantidos pelo Estado. Apenas uma democracia com dimensão social poderá satisfazer as expectativas geradas pela ‘Primavera árabe’ e abrir um novo capítulo não apenas na história da região, mas também na história mundial, provando definitivamente que os povos árabes estão maduros para se emanciparem das tutelas políticas autoritárias e teocráticas que condicionaram durante muitos anos a sua liberdade e autodeterminação. 38 40 Tunísia, Egipto: que modelos para as transições no mundo árabe? Virginie Collombier D esde 14 de Janeiro de 2011, parece evidente que a fuga para a Arábia Saudita do Presidente tunisino Zine El Abidine Ben Ali, expulso do poder por quatro semanas de protestos populares, terá um impacto no conjunto do mundo árabe. Pela primeira vez, o povo tunisino provou que os árabes não estão irremediavelmente condenados à apatia política, que um movimento social pode nascer e rapidamente alcançar uma extensão que lhe permita mobilizar uma grande parte da população e provocar a queda dum regime autoritário. Os tunisinos demonstraram que é possível recusarem submeter-se a dirigentes considerados ilegítimos e corrompidos, que é possível dizer ‘não, já basta’. Para todos os povos da região, mas também para os seus dirigentes, o impacto deste acontecimento é considerável, especialmente no plano psicológico: o medo acaba de mudar de campo. Para os primeiros, o que era até aqui apenas um sonho fora de alcance surge doravante na ordem do possível. Para os segundos, uma corrida contra o tempo desencadeia-se: estes vão tentar desmobilizar a contestação contra eles a montante, antes que esta se amplie e se transforme em ameaça para o seu poder. Com efeito, muito rapidamente a queda de Z. Ben Ali provoca uma vaga de imitação nos países vizinhos. No Egipto, o movimento de contestação começa em 25 de Janeiro de 2011 por manifestações organizadas no Cairo e noutras grandes cidades do país. Adquire progressivamente amplitude, o Presidente Mubarak e o seu círculo mostram-se incapazes de gerir a crise. Para os manifestantes reunidos na praça Tahrir do Cairo, transformada no epicentro da contestação no país, não se trata de obter menos do que os seus vizinhos tunisinos: Hosni Mubarak deve partir. Isso acontecerá em 11 de Fevereiro, logo que o presidente se demite e cede o poder ao Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA). Nas semanas que se seguem, será a vez da Líbia, do Iémen, do Bahrein, depois a Síria de se inflamarem. Ali, no entanto, contrariamente ao que se passou na Tunísia e no Egipto, os dirigentes resistem (por vezes com a ajuda 41 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? de regimes amigos, como por exemplo no Bahrein, em que os sauditas não hesitam em enviar as suas próprias tropas para reprimir os manifestantes) e o confronto entre as partes (manifestantes contra forças de segurança ou, em maior grau, forças favoráveis ao regime contra forças hostis ao regime) assume um aspecto particularmente violento e mortífero. A contestação dura, alarga-se, por vezes sob novas formas, sem que os opositores aos regimes instalados consigam derrubar estes últimos nem forçar a entrada na fase de transição política a que aspiram os seus desejos1. Neste contexto, seis meses após o sucesso das primeiras revoltas árabes, a evolução na Tunísia e no Egipto – e, portanto, o modo como a transição ali é gerida – servirá de exemplo na região2. Por agora ainda, em numerosos países, a ausência de alternativa clara aos regimes instituídos e o medo do vazio – a repressão levada a cabo por estes últimos conseguiu refrear grandemente a capacidade dos movimentos de oposição para se estruturarem – o medo do desencadeamento de um ciclo de violências incontrolável e o risco que uma situação de caos tenha um impacto desastroso na situação económica constituem bloqueios poderosos à acção dos que aspiram, no entanto, a uma mudança política. A capacidade das novas elites no poder em Tunes e no Cairo em estabilizar a situação e em responder às reivindicações dos cidadãos – reivindicações políticas, mas também económicas e sociais – deveria, por conseguinte, desempenhar um papel determinante no futuro das transições políticas do mundo árabe. Ora se os regimes tunisino e egípcio apresentavam importantes semelhanças na sua estrutura e no seu funcionamento logo que foram ‘decapitados’3, a mudança política iniciada nos dois países assumiu, em seguida, rapidamente formas diferentes, sob o impulso de grupos de diversos actores, mais ou menos organizados e influentes. 1 Apenas em Marrocos, em que a contestação ameaçava igualmente ampliar-se, parece ter sido encontrado um compromisso entre o poder e a maioria dos manifestantes. O rei Mohamed VI, iniciando uma reforma significativa da constituição, parece ter conseguido, por agora, jugular a crise. 2 Isto é particularmente verdadeiro para o Egipto, em consequência do seu peso demográfico e político, mas também simbólico. 3 Logo que a crise se desencadeia, nos finais de 2010 – inícios de 2011, o “sistema Ben Ali” e o “sistema Mubarak” assentam globalmente nos mesmos principais pilares: a presidência, isto é, o próprio presidente e algumas personalidades de confiança que o rodeiam, as forças do ministério da Administração Interna, em particular a polícia, bem como os principais dirigentes do partido presidencial (o Partido Nacional Democrático no Egipto o Agrupamento Constitucional Democrático na Tunísia). Um certo número de homens de negócios, entre os mais poderosos, adquiriram, por outro lado, um papel central no dispositivo do poder, seja pelas suas ligações pessoais com o presidente (por exemplo, Belhassen Trabelsi na Tunísia) ou pelas responsabilidades que lhes foram confiadas no seio do partido presidencial (por exemplo, Ahmad ‘Izz no Egipto) ou no governo. Ora tanto em Tunes como no Cairo, nenhuma destas três instituições se mostra capaz de gerir a contestação. 42 VIRGINIE COLLOMBIER Forças ‘revolucionárias’ pouco estruturadas mas poderosas Um movimento largamente espontâneo As revoluções tunisina e egípcia apresentam características comuns, tais como o lugar central ocupado no desencadeamento das manifestações por uma juventude até então não politizada, a relativa ausência de forças políticas estruturadas, ou ainda a utilização da Internet enquanto instrumento principal de mobilização. Assim, na Tunísia, o movimento contestatário é em grande parte espontâneo. As organizações políticas4, sindicais e associativas são surpreendidas pelo arranque do movimento, mas sobretudo pela sua amplitude e extensão rápida ao conjunto das regiões do interior do país. Inicialmente, as manifestações inscrevem-se mais no registo da contestação social do que no registo propriamente político; estas adquirem frequentemente uma forma próxima do motim. Como sublinham Vincent Geisser e Amin Allal, “os manifestantes são maioritariamente «jovens» dos bairros populares, animados por um profundo sentimento de desclassificação e de indignidade. São estes últimos que são os motores dos movimentos contestatários”5, à imagem de Mohamed Bouazizi, que se suicida pela imolação em 17 de Dezembro de 2010. A politização apenas intervém progressivamente, à medida que a contestação aumenta e que é ‘enquadrada’ por ‘profissionais’. Os partidos tradicionais desempenham um papel real, mas limitado: os militantes da Ettajdid e do Partido Democrata Progressista (PDP), por exemplo, participam nas manifestações, mas não têm um papel de direcção política. Os advogados, em contrapartida, que insistem na defesa das liberdades e denunciam as exacções cometidas pelas forças de segurança, e sobretudo o sindicato único, a União Geral dos Trabalhadores Tunisinos (UGTT), tornam-se rapidamente actores-chave do movimento6. Assim, logo que a UGTT declara a greve geral em todo o país em 14 de Janeiro, várias centenas de milhares de pessoas juntam-se em Tunes e gritam “Ben Ali, vai-te embora!”. Na mesma noite, o presidente foge para a Arábia Saudita. No Egipto, as considerações propriamente políticas desempenham provavel4 Nomeadamente as principais formações da oposição legal: Ettajdid (Renovação), o Partido Democrático Progressista (PDP) e o Fórum Democrático pelas Liberdades e o Trabalho (FDLT). As formações islamitas nem sequer estiveram presentes no arranque do movimento. 5 Amin Allal e Vincent Geisser, “Tunisie. Révolution ou intifada populaire?”, in Mouvements, Junho 2011, acessível em http://www.mouvements.info/Tunisie-Revolution-de-jasmin-ou.html. 6 Sobre o papel da UGTT na revolução tunisina, ver nomeadamente Allal et Géiser, artigo citado. 43 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? mente um papel mais importante a partir do desencadeamento da contestação. Esta última intervém num contexto muito específico, pouco mais de um mês após as eleições legislativas marcadas por uma vitória esmagadora do Partido Nacional Democrático (PND), e a alguns meses apenas das eleições presidenciais de 2011. As eleições de Novembro/Dezembro de 2010 arrebatadas com mais de 86% pelo PND, constituíram uma afronta demasiado grande para muitos egípcios, particularmente os jovens das classes médias e superiores, que suportam cada vez mais dificilmente a humilhação que o regime lhes faz sofrer através destes resultados7. A perspectiva da eleição presidencial fomenta, por outro lado, a cólera dos que receiam que esta ocasião permita a Gamal Mubarak, o filho mais novo do Presidente, suceder ao seu pai. Estes dois elementos, combinados com a forte degradação da situação económica sentida por uma parte importante da população, formam um terreno já muito propício à conflagração8. A revolução tunisina forneceu a centelha. Como na Tunísia, porém, o desencadeamento do movimento não é obra de partidos ou de grupos verdadeiramente estruturados. A primeira manifestação é assim organizada em 25 de Janeiro de 2011 em resposta ao apelo de uma coligação de jovens bloguistas, muitos dos quais provêm do Movimento dos Jovens de 6 de Abril9 ou do grupo Facebook ‘Nós somos todos Khaled Saïd’10, mas que não estão envolvidos em partidos políticos. A confraria dos Irmãos Muçulmanos também não está na origem do levantamento e não participa enquanto tal neste desde o início11, mesmo se a sua decisão de juntar-se ao movimento tem imedia7 Enquanto a maior parte dos observadores esperavam que determinados partidos da oposição não islamita, nomeadamente o Wafd, obtivessem um número significativo de mandatos no decurso deste escrutínio, o PND arrebata 420 mandatos em 508 a atribuir. Apenas 15 mandatos retornam à oposição, dos quais 1 aos Irmãos Muçulmanos (que tinham obtido 88 nas eleições de 2005). A atribuição de alguns mandatos é contestada perante a justiça, e os 70 mandatos restantes vão para candidatos eleitos enquanto candidatos ‘independentes’, mas, na realidade, também estes frequentemente ligados ao PND. Para mais pormenores sobre os resultados, ver, por exemplo, http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/0/1321/Egypt/0/ Official-rsults---opposition,---NDP,---independents.aspx ou http://www.ahram.org.eg/The-First/News/52164.aspx. 8 A partir da eleição presidencial de 2005, marcada pelas manifestações da plataforma de oposição Kefaya (‘Já basta’), a contestação política foi quase permanente, apesar da sua baixa intensidade (as manifestações apenas juntam raramente mais de algumas centenas de pessoas). Paralelamente, a partir de 2007, o país conheceu uma vaga sem precedentes de greves e de movimentos sociais. As reivindicações políticas e sociais não se tinham contudo verdadeiramente reencontrado, apesar das tentativas feitas neste sentido pelo Movimento de 6 de Abril. Ver infra. 9 Coligação de grupos de oposição, o Movimento dos Jovens de 6 de Abril nasceu em 2008 sob a forma de um grupo Facebook apelando a uma greve nacional em 6 de Abril para apoiar os operários da cidade industrial de alMahala al Kubrâ. Desempenhou igualmente um papel importante na campanha de Mohamed al-Baradei. 10 Gupo criado no Facebook em homenagem a um jovem bloguista morto pela polícia em Alexandria em Junho de 2010. 11 Um certo número de Irmãos Muçulmanos fazem, em contrapartida, parte de diversas coligações, nomeadamente de bloguistas, que estiveram na origem da mobilização iniciada em 25 de Janeiro. 44 VIRGINIE COLLOMBIER tamente um impacto decisivo sobre a amplitude da mobilização. Por outro lado, se o epicentro da contestação é a praça Tahrir do Cairo, o movimento não se limita à capital. Nesta última, as classes médias são o seu motor principal, mas a composição sociológica dos manifestantes varia em função dos locais de contestação. Outras grandes cidades, tais como Alexandria, Mansoura no delta, ou ainda Suez, são com efeito o teatro de manifestações maciças, em que os operários se revoltam em massa e são objecto de uma repressão feroz. Uma tomada de consciência de alcance considerável Nos dois países, a contestação assume grandemente a forma de uma busca, nomeadamente da parte da juventude, para recuperar a dignidade e a sua honra ultrajadas. A cólera dos ‘diplomados desempregados’ tunisinos repercute-se na revolta dos jovens egípcios provenientes das classes médias que não suportam mais serem humilhados pelo regime (tanto no que respeita às suas condições de vida quanto ao funcionamento do sistema político). A maior parte dos jovens que estiveram na origem do movimento de contestação não pertencem a nenhum partido, não se envolvem em nome de uma ideologia ou de uma pertença política específica. Para estes, a participação na contestação é o resultado duma tomada de consciência: cabe-lhes a responsabilidade de tomar o seu destino em mãos, de tomar a palavra, de não deixarem mais que lhes sejam impostas decisões tomadas por outros. Para eles, manifestarem-se, é participarem, tornarem-se parte activa na decisão, e não apenas concordarem com o que foi decidido por outros. Esta tomada de consciência, que se manifesta em pleno dia no mês de Janeiro, terá consequências políticas importantes para o futuro, tanto no Egipto como na Tunísia. Os cidadãos sabem a partir de hoje que são capazes de dizer ‘não’, de recusar que lhes sejam impostos ‘chefes’ ou decisões. E é esta a sua grande conquista política. Em todos os sectores da sociedade manifesta-se a mesma revolta contra os chefes, superiores, os mais velhos… Testemunham-no – por exemplo – tanto a legitimidade posta em causa permanentemente pelos actores da transição política da Tunísia, como a rebelião de inúmeros jovens membros dos Irmãos Muçulmanos perante a direcção da confraria12. Nos dois países, este novo estado de espírito não 12 No mês de Julho, diversos jovens membros dos Irmãos Muçulmanos foram excluídos da organização depois de terem decidido não se integrarem no partido da Liberdade e da Justiça, proveniente da confraria, e criarem o próprio partido, a Corrente Egípcia. 45 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? deixou de ter consequências, nomeadamente em termos da capacidade dos cidadãos em manter a pressão sobre as autoridades encarregadas da transição política. A resignação já não é aceitável: os manifestantes estão firmemente decididos a não abandonar as ‘conquistas’ da sua revolução, a não renunciar aos seus objectivos. Assim, é porque estes são capazes de (se) mobilizarem de novo logo que a necessidade se faz sentir que obtêm a mudança do primeiro-ministro e do governo de transição (este foi o caso da Tunísia e do Egipto), ou a abertura de processos contra os altos responsáveis do regime. O papel determinante dos ‘pilotos’ da transição Todavia, se a capacidade dos manifestantes em pressionar o poder desempenha um papel central no desenvolvimento da transição, a identidade dos actores que se colocam como ‘pilotos’ desta última revela-se igualmente determinante. Assim, se nos dois países as forças armadas são os actores principais da revolução – a sua passagem para o lado dos manifestantes torna-se, com efeito, determinante para a queda de Z. Ben Ali e de H. Mubarak –, estas distinguem-se pela sua atitude e a sua estratégia diferentes na fase de transição (ilustrando desta forma o papel muito diferente desempenhado pelos militares nos dois países antes da revolução). Enquanto o exército tunisino regressa às casernas logo após o estabelecimento das estruturas encarregadas da transição, os militares egípcios perfilam-se como protectores dos interesses do país e como responsáveis em última instância pela condução dos acontecimentos, e tal antes mesmo que o Presidente Mubarak seja forçado a abandonar o seu cargo. Isto teve um impacto decisivo no modo como as forças políticas e sociais que foram motores da revolução se associaram ao processo de transição. Na Tunísia, a difícil procura de um consenso político Na Tunísia, não há inicialmente nem ruptura institucional nem ruptura constitucional. No dia seguinte à partida de Ben Ali, o Conselho Constitucional nomeia, com efeito, o presidente da Assembleia Nacional, Fouad Mebazaa, presidente interino da República (em conformidade com o artigo 57º da Constituição, que não foi suspensa). Em 17 de Janeiro, um governo de união nacional é investido. Dirigido por Mohamed 46 VIRGINIE COLLOMBIER Ghannouchi, que ocupava o cargo de primeiro-ministro desde 1999, este é composto por personalidades provenientes de dois partidos da antiga oposição (PDP e Ettjadid), mais seis ministros de Ben Ali são igualmente reconduzidos nas suas funções (nomeadamente, os da Defesa, dos Negócios Estrangeiros, das Finanças e da Administração Interna)13. A ideia consiste em apoiar-se nas instituições existentes para evitar o vazio, associando simultaneamente a sociedade civil ao novo poder sob uma forma consultiva. A partir de meados de Janeiro, três comissões abertas à sociedade civil e, em princípio, compostas por personalidades apolíticas são destes modo criadas por Ghannouchi: a Comissão Superior da Reforma Política, a Comissão sobre as Exacções e a Repressão e a Comissão sobre os Desfalques Financeiros. Esta estratégia choca com a oposição das forças que permanecem fora do governo, em grande parte reagrupadas no interior do Conselho Nacional para a Protecção da Revolução (CNPR). Este último apoia-se em particular na central da UGTT, na Ordem dos Advogados, na Frente de 14 de Janeiro14, mas também na Frente Democrata para o Trabalho e as Liberdades (FDTL) e no movimento islamita An-Nahda. Reclama um papel deliberativo no período de transição, insistindo no facto de que a sociedade civil e a rua devem ser consideradas não um simples contrapoder, mas parte integrante do poder. A oposição que contesta a legitimidade do governo em tomar decisões e se prevalece de uma legitimidade revolucionária, reclama que ao CNPR é atribuído um papel quase legislativo durante a fase de transição, da mesma maneira que ao governo. Este último é finalmente obrigado a ceder depois de que uma manifestação convocada pelo Facebook juntou perto de 100.000 pessoas contra o governo de transição. Em 27 de Fevereiro, a demissão de Ghannouchi assinala a falência da ideia de uma transição baseada na continuidade constitucional: em 3 de Março, a Constituição de 1959 e a eleição de uma Assembleia Constituinte anunciada para 24 de Julho. A Comissão Superior da Reforma Política, ampliada 13 A partir de 27 de Janeiro, Ghannouchi deverá por isso proceder a uma remodelação. Este abrir-se-á aos ‘tecnocratas’ e reduzirá consideravelmente o número de ministros membros do RCD no seu seio. 14 Situada à esquerda do xadrez político, a Frente de 14 de Janeiro é maioritariamente composta por membros do Partido Comunista e pelo Movimento dos Patriotas Democratas, que agrupa diversas organizações de esquerda e nacionalistas árabes. 47 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? e transformada em instância superior para a realização dos objectivos da revolução, da reforma política e da transição democrática15, torna-se ela própria numa espécie de ‘mini-Parlamento’. Encarregada de redigir a nova lei eleitoral16 e de organizar as eleições, esta desempenha desde logo um papel importante na transição. Se este método não está evidentemente isento de imperfeições e não deixa de suscitar críticas – nomeadamente através da contestação da legitimidade dos membros da Comissão a fazerem parte desta última17 – permite a inclusão de uma grande parte das forças políticas e sociais no processo de transição, e confere uma representatividade fidedigna às autoridades de transição. No Egipto, a tutela política das Forças Armadas As coisas desenrolam-se de modo muito diferente no Egipto, essencialmente porque as forças armadas não se retiram do jogo político depois de terem intervindo para ‘defender a revolução do povo’. A partir de 10 de Fevereiro, logo que decide reunir-se em sessão permanente sem o Presidente da República, o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) dirigido pelo marechal Tantawi18 posiciona-se com efeito como responsável em última instância pela segurança do povo egípcio e a protecção dos seus interesses, anunciando assim o importante papel que se prepara para desempenhar na transição. No seu primeiro comunicado oficial, o CSFA afirma apoiar “as reivindicações legítimas do povo”, suscitando interrogações quanto ao estado das relações entre a hierarquia militar e o Presidente, e sobretudo quanto à natureza da sua intervenção (trata-se de um golpe de Estado?)19. Se Hosni Mubarak declara no próprio dia que permanecerá no poder até Setembro 15 Constituída por um conselho de peritos composto por juristas e por um conselho de instância superior juntando personalidades provenientes das forças sindicais, políticas e associativas (nele incluídas a UGTT, a Ordem dos Advogados e o An-Nahda). 16 Adoptada por unanimidade em 12 de Abril, a nova lei eleitoral prevê nomeadamente o princípio da paridade homemmulher e a inelegibilidade de personalidades com responsabilidades no seio do RCD ou nos governos do Presidente Ben Ali. 17 No decurso dos meses, os ataques multiplicaram-se contra certas personalidades liberais membros da Comissão. Verdadeiras campanhas que visavam manchar a sua reputação foram organizadas contra estas últimas, com a justificação, por exemplo, que se tinham anteriormente dirigido a Israel. 18 Hussein Tantawi ocupa então o cargo de ministro da Defesa. 19 Para a tradução em inglês dos primeiros comunicados do CSFA, ver, por exemplo, http://www.nytimes.com/interactive/2011/02/10/world/middleeast/20110210-egypt-supreme-council.html?ref=midleeast. 48 VIRGINIE COLLOMBIER (data da próxima eleição presidencial20) e que é seu dever assegurar uma “transição pacífica”, foi desmentido no dia seguinte pelo vice-presidente Suleiman21. Este último anuncia, com efeito, que “o Presidente Mubarak decidiu demitir-se das suas funções de Presidente da República e encarregou o Conselho Supremo das Forças Armadas de gerir os assuntos do país”22. No seu quarto comunicado, difundido em 13 de Fevereiro, o CSFA torna públicas as principais decisões que vão orientar a transição no período que se avizinha: 1) a constituição é suspensa; 2) o CSFA assegurará a gestão temporária do país por um período de seis meses ou até que as eleições legislativas e presidenciais ocorram; 3) o presidente do CSFA representará este último tanto internamente como externamente; 4) A Assembleia do povo e a Assembleia Consultiva são dissolvidas; 5) O CSFA governará por decretos-leis durante o período transitório; 6) um comité será formado com o objectivo de emendar um certo número de artigos da constituição e organizado um referendo popular; 7) o governo de Ahmad Shafiq continuará a trabalhar até que seja formado um novo governo; 8) serão organizadas eleições legislativas e presidenciais. O objectivo da hierarquia militar é muito claramente o retorno mais rápido possível à estabilidade e à ordem institucional. O processo de reforma constitucional desenrola-se assim a uma grande velocidade com uma grande opacidade. Em 19 de Março, foi organizado um referendo popular. Os eleitores são solicitados a aprovar oito emendas à constituição de 1971 suspensa em Fevereiro. A participação é importante e o escrutínio um sucesso para os militares (o ‘sim’ arrebata 77% dos votos). No entanto, enquanto esta votação deveria conduzir à reactivação da constituição sob a sua forma emendada, o CSFA anuncia em 30 de Março que a transição será regida por uma “declaração constitucional provisória”cujo texto se revela diferente do que foi aprovado por referendo menos de 20 À qual anunciou alguns dias antes que não se apresentaria, tal como o seu filho Gamal, até então previsto como o seu possível sucessor. 21 Omar Suleiman, antigo chefe dos serviços de informação, foi nomeado para este cargo a 29 de Janeiro. Esta nomeação foi interpretada como um gesto efectuado pelo presidente Mubarak com o objectivo de acalmar a contestação. Este tinha com efeito recusado até ao momento nomear um vice-presidente. 22 Para uma tradução em inglês da alocução de Omar Suleiman, ver http://www.nytimes.com/2011/02/12/world/ middleeast/12-suleiman-speech-text.html. 49 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? duas semanas antes23. Esta declaração constitucional enuncia em particular a repartição das competências entre o CSFA e o governo e prevê um calendário para a transição24. A eleição das duas câmaras do Parlamento é desde logo chamada a intervir nos seis meses, isto é, daqui até ao fim de Setembro de 2011. Desde o início, os militares apenas deixam um espaço relativamente limitado aos outros actores da revolução na gestão da transição. Estes estão, por assim dizer, ‘sós nos comandos’. Mesmo se o CSFA consulta diversas vezes os representantes dos partidos políticos legais e os diversos grupos mobilizados na praça Tahrir, Irmãos Muçulmanos incluídos, a partir de Fevereiro de 201125, as discussões conservam um carácter largamente informal. No início do mês de Fevereiro, um ‘Comité de Sábios’ formou-se sob a iniciativa do homem de negócios Naguib Sawiris e Ahmad Kamal Abu’l Magd, um professor de Direito Constitucional. Agrupando personalidades como Amr Moussa26, Nabil al-Arabi27 ou Nabil Fahmi28, este comité ambiciona colocar-se como mediador entre os militares e os manifestantes e apresentar um ‘roteiro’ para a transição. Apesar das tentativas encetadas neste sentido, nenhum mecanismo de consulta foi entretanto institucionalizado entre o CSFA e os diversos partidos e grupos políticos. No momento da redacção da declaração constitucional, o CSFA contenta-se em conduzir consultas ad hoc com determinados responsáveis políticos seleccionados por ele. De modo geral, ignora os apelos para institucionalizar um processo de supervisão da transição incluindo o conjunto das forças políticas ou instituir um ‘conselho presidencial’ composto por personalidades civis provenientes de todas as formações políticas para o 23 Sobre esta questão, ver nomeadamente Nathan Brown, Kristen Stilt, “A haphazard constitucional compromisse” in Commentary, 11 de Abril de 2011, disponível em http://www. carnegie.ru/publications/?fa=43533. 24 Texto disponível em http://egyptelections. Carnegieendowment.org/2011/04/01/supreme-council-of-thearmed-forces-constitutional-announcement. 25 E isto antes mesmo que Hosni Mubarak abandone o poder. Em 6 de Fevereiro, Omar Suleiman reencontra assim representantes dos partidos da oposição legal e dos Irmãos Muçulmanos, os membros do comité dos sábios recentemente e os líderes da juventude. 26 Amr Moussa é ainda secretário-geral da Liga Árabe quando se junta ao comité. 27 Antigo juiz do Tribunal Penal Internacional e representante permanente do Egipto nas Nações Unidas. 28 Antigo embaixador nos Estados Unidos. 50 VIRGINIE COLLOMBIER coadjuvar durante o período interino. Logo que um ‘diálogo nacional’ é instaurado sob a égide do novo primeiro-ministro no fim do mês de Março29, a declaração constitucional já foi redigida… e apresentada como um ‘presente’ da hierarquia militar ao povo egípcio. Nestas condições, o recurso à pressão da rua torna-se o modo de acção principal das forças políticas e sociais logo que estas desejam ser escutadas pelas autoridades de transição. Em meados de Julho, a retoma da mobilização e a ocupação da praça Tahrir pelos manifestantes desempenham um papel importante na decisão do CSFA de fazer uma concessão relativamente à constituição. Enquanto a maior parte dos partidos e das forças políticas (com a excepção das forças islamitas) reclamam há semanas uma inversão do calendário político – ou seja, a redacção de uma nova constituição antes da organização das eleições – os militares anunciam que são favoráveis à redacção de um documento que estabeleça um certo número de princípios supraconstitucionais que deverão ser respeitados no momento da redacção da nova constituição – e serão parte integrante desta última. Para as forças ‘revolucionárias’ o desafio da adaptação a uma nova ordem A capacidade dos manifestantes em permanecer mobilizados e em fazer pressão sobre as autoridades de transição não é suficiente logo que se trata de elaborar novas regras do jogo político, de construir um novo sistema. Se durante a fase ‘revolucionária’ a juventude ‘não politizada’30 desempenhou um papel central na mobilização através de estruturas fluidas tais como as redes sociais, a capacidade dos manifestantes em se organizarem, em assegurarem a sua representação e participação no jogo político segundo as modalidades ‘tradicionais’ vai constituir uma aposta importante durante a fase de transição. Tanto a Tunísia como o Egipto, entram de hoje em diante numa fase assinalada por prazos eleitorais determinantes. Na Tunísia, a eleição de uma Assembleia Constituinte, inicialmente prevista para 24 de Julho, depois adiada, é de hoje em diante marcada para 23 29 O diálogo nacional não é iniciado sob os auspícios do CSFA, mas do novo primeiro-ministro ‘Issam Sharaf. Universitário e homem político, este último foi ministro dos Transportes de 2004 a 2005. Presente na praça Tahrir durante a mais forte contestação, desfruta de uma boa imagem junto dos manifestantes, que evocam o seu nome como possível substituto de Ahmad Shafiq. Em 3 de Março, o CSFA pede-lhe para formar um novo governo. 30 No sentido de não envolvida nos partidos políticos e não ideológica. 51 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? de Outubro. No Egipto, a eleição de um novo Parlamento (Câmara de Deputados e Conselho Consultivo), inicialmente programada para o mês de Setembro, foi igualmente adiada de um a dois meses e deveria concretizar-se daqui até ao fim do ano. Os novos deputados deveriam então formar uma comissão encarregada de redigir uma nova constituição. A eleição presidencial deveria ser organizada pouco depois. Neste contexto a capacidade das forças políticas e sociais em organizarem-se e passarem de uma fase de mobilização a uma fase de ‘estruturação das apostas’ é um elemento essencial. A polarização crescente entre islamitas e não islamitas Ora nos dois países o consenso revolucionário esboroou-se um pouco no decurso das semanas. Tanto na Tunísia como no Egipto, a cena política está cada vez mais fragmentada, mas também fortemente polarizada entre as forças islamitas e não islamitas, cada uma defendendo de hoje em diante agendas diferentes. O referendo sobre as emendas constitucionais organizado pelo Egipto em Março passado fornece uma boa ilustração. Opondo-se à grande maioria das outras grandes forças políticas ‘revolucionárias’, os Irmãos Muçulmanos (e em maior medida as forças islamitas) fazem com efeito campanha a favor do ‘sim’, apresentando o voto a favor das emendas como um “dever religioso”. Analogamente, opõem-se à reivindicação formulada pelas outras forças de oposição, que reclamam a redacção de uma nova constituição antes da realização das eleições. Consideram com efeito que é necessário respeitar a vontade expressa pela maioria da população na altura do referendo sobre as emendas constitucionais, e sobretudo actuar de modo a que o Egipto encontre o mais rapidamente possível o caminho da ordem e da estabilidade31. Apesar da dinâmica de diálogo e de integração no jogo político iniciado desde as revoluções, os partidos islamitas continuam a meter medo a uma parte das elites e da população, nomeadamente porque são suspeitos de ter uma ‘agenda escondida’ e de jogarem um ‘jogo duplo’ com o objectivo de se apoderarem do poder. Assim, o movimento tunisino An-Nahda 31 Estas tomadas de posição, próximas das que foram expressas pelo CSFA, suscitaram interrogações quanto à possibilidade de que um acordo tenha sido concluído entre os Irmãos Muçulmanos e os militares. 52 VIRGINIE COLLOMBIER preocupa, particularmente os movimentos de esquerda, laicos e feministas, pelas suas posições passadas sobre o estatuto da mulher e a laicidade. Analogamente, no Egipto, a confraria dos Irmãos Muçulmanos, que criou oficialmente o Partido da Liberdade e da Justiça, suscita fortes inquietações em virtude das suas posições sobre as mulheres, os coptas e, em grande parte, pela sua concepção de democracia. Se os partidários da integração das forças islamitas no jogo político legal sublinharam a seu tempo32 os seus benefícios – que, segundo eles, obrigaria estes movimentos a adequar-se à realidade do poder e, por conseguinte, a adoptar posições menos radicais, já que mais pragmáticas – a multiplicação dos actores religiosos nos campos tunisino e egípcio leva-nos a revisitar esta análise. Os movimentos islamitas ‘tradicionais’, tais como o An-Nahda e os Irmãos Muçulmanos já não estão mais sozinhos na cena política e a emergência de movimentos mais radicais poderá conduzi-los a uma lógica de fuga para a frente, nomeadamente por razões eleitorais, por receio de serem contornados e ultrapassados pelos seus concorrentes. Tanto na Tunísia como no Egipto, com efeito, o desabamento dos sistemas de Ben Ali e Mubarak conduziu a uma liberalização do campo político-religioso e actores até então reprimidos e relegados para a clandestinidade agem desde hoje à luz do dia. Na Tunísia, enquanto os militantes do Hizb ut-Tahrir33 realizaram em várias ocasiões manifestações de rua e orações colectivas na capital no decurso dos últimos meses, o movimento salafista parece igualmente desenvolver-se. No Egipto, o partido criado pelos Irmãos Muçulmanos está de hoje em diante confrontado com uma concorrência que emana de novos partidos criados pelos dissidentes irmãos privilegiando posições mais liberais, mas também – e provavelmente sobretudo – com a irrupção da movimentação salafista na política.34 32 No contexto actual, a questão da integração dos islamitas no jogo político legal nem sequer se põe enquanto tal, é um facto. 33 O Hizb ut-Tahrir (Partido da Libertação) foi fundado em 1953 em Amã. Partido com dimensão internacional, não reconhece o princípio do Estado-nação e reclama a instauração de um califado islâmico. A secção tunisina do partido foi criada em 1980, e imediatamente submetida a uma forte repressão por parte das autoridades. Os seus membros negam toda a vontade de utilização da violência para atingir os seus objectivos políticos. O movimento não foi, porém, legalizado desde a partida de Z. Ben Ali. 34 O partido Al-Nur foi, por exemplo, criado oficialmente em Junho passado. 53 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? Os novos partidos a construir para conduzir as aspirações dos cidadãos A fragmentação da cena política ‘revolucionária’ não é, todavia, apenas o resultado de um distanciamento crescente entre forças islamitas e não islamitas. Enquanto os prazos eleitorais se avizinham, os diversos grupos e líderes políticos mobilizados para tentar influenciar o curso da transição desenvolvem de hoje em diante estratégias específicas – mais individuais – com a perspectiva das eleições. A sua capacidade em desempenhar um papel na formação e no funcionamento do novo sistema político dependerá, com efeito, da sua capacidade em obter deputados para o Parlamento (ou no seio da Assembleia Constituinte no caso tunisino). Neste contexto, estão confrontados com vários grandes desafios: o da organização, mas também os da legitimidade e da representatividade. O desmoronamento dos sistemas de poder organizados por Z. Ben Ali e H. Mubarak conduziu imediatamente a uma liberalização do campo político e, em particular à eclosão de uma multidão de novas formações provenientes de coligações, grupos políticos e indivíduos activos durante a revolução. Estas pretendem desempenhar um papel na nova configuração política em vias de formação. Para o conseguir, devem antes de tudo constituir-se como organizações estruturadas, depois dar a conhecer a sua existência e o seu direito a participar no jogo político, obtendo oficialmente o estatuto de partido, o que lhes permitirá participar nas eleições e, portanto, tentar conquistar o poder (ou, mais precisamente, uma parte do poder). A criação de novas formações muito numerosas foi desde agora anunciada. No entanto, estas últimas encontram-se na situação difícil de dever simultaneamente mobilizar os seus membros e cidadãos com o objectivo de satisfazer as condições de registo enquanto partido (no caso egípcio, por exemplo, isto significa recolher assinaturas de 5000 membros fundadores originários de mais de 10 circunscrições, com pelo menos 300 signatários por circunscrição), conceber e adoptar uma estrutura organizacional, conceber um programa político, mas também definir uma estratégia eleitoral, seleccionar candidatos e iniciar a sua campanha eleitoral… Para os movimentos que não existiam enquanto tais apenas há alguns meses e que devem, por outro lado, continuar a fazer pressão sobre as autoridades de transição para assegurar que a sua revolução não lhes será ‘roubada’, a tarefa revela54 VIRGINIE COLLOMBIER se particularmente difícil. Nestas condições, a maior parte destas novas formações farão mal em posicionar-se como verdadeiros concorrentes perante algumas organizações antigas, estruturadas e desfrutando de um determinado reconhecimento (isto é, de uma popularidade) junto da população – tais como os Irmãos Muçulmanos egípcios. A capacidade das novas organizações políticas tunisinas e egípcias em obter a confiança da população e, portanto, em posicionar-se como actores políticos e representativos constituirá um outro desafio determinante. A crise política entre as elites políticas e os cidadãos não foi, com efeito, resolvida pelas revoluções. As antigas formações da oposição legal foram frequentemente desacreditadas pela estratégia de compromisso/comprometimentos com os antigos poderes estabelecidos, e os partidos que nasceram no pós-Ben Ali e no pós-Mubarak terão provavelmente dificuldades em desembaraçar-se de alguns defeitos que caracterizavam os seus predecessores. No Egipto, do mesmo modo que a revolução foi em grande parte iniciada pelas classes médias superiores e uma certa juventude ‘globalizada’, são actualmente as elites provenientes das mesmas classes sociais (as classes médias superiores e os intelectuais) que estão mais envolvidas no processo de ‘party-building’, o que coloca a questão da sua capacidade em comunicar com – e, por conseguinte, em representar – uma parte importante da sociedade egípcia. Alguns jovens tendo-se filiado em partidos políticos novamente criados declaram terem ficado impressionados, desde as suas primeiras deslocações nos meetings organizados fora do Cairo, pela distância que os separava das pessoas a que se tinham dirigido. Para o ilustrar, basta que retomemos as palavras de um deles: “senti imediatamente que a minha aparência, o meu vestuário, o meu aspecto, tudo lhes parecia estranho… Senti-o logo de seguida nos seus olhares. Antes mesmo do começo da conferência, uma mulher dirigiu-se a mim e disse-me: «o que é que vocês sabem dos nossos problemas? Vocês nada sabem de nós»”35. Do mesmo modo, na Tunísia, as populações das regiões desfavorecidas do interior do país não se sentem representadas pelas elites políticas da capital. Os meios independentes e provenientes da oposição a Z. Ben Ali que ocupam hoje a 35 Declarações recolhidas junto de um militante do partido al-‘Adl. Entrevista com o autor, Cairo, Junho 2011. 55 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? maioria dos cargos políticos no período de transição reproduzem, com efeito, muito significativamente a fractura entre as elites e uma grande parte da sociedade que predominava na época do presidente destituído. Como sublinha Vincent Geisser, “originário(a)s dos meios urbanos e da média burguesia intelectual e liberal”, estas novas elites estão “separadas socialmente das regiões do interior e dos grupos sociais que foram os principais «desencadeadores» da revolução”36. À semelhança dos seus homólogos egípcios, têm tendência para se colocarem como elites esclarecidas a quem cabe ‘educar’ o povo, torná-lo ‘consciente’ politicamente. Segundo esta perspectiva, um trabalho considerável foi empreendido no decurso dos últimos meses, tanto pelos novos partidos políticos como pelos grupos de jovens que agem pela sua própria iniciativa, para ir ao encontro dos cidadãos das diversas províncias do país. Todos reconhecem que será necessário tempo para alterar a relação que a maioria das pessoas mantém com a política: no Egipto, por exemplo, as filiações tribais e familiares, bem como os instrumentos de influência constituídos pelo dinheiro e as conexões com o aparelho de Estado permanecem elementos determinantes na filiação política. No entanto, todos insistem na grande importância das transformações em curso. Para eles, a construção de sistemas políticos ‘democráticos’ levará tempo, mas a via em que egípcios e tunisinos estão doravante envolvidos pode lá chegar. Em perspectiva: alguns grandes desafios Os cidadãos tunisinos e egípcios aprenderam indubitavelmente a dizer ‘não’. Na fase de transição actual, a capacidade que adquiriram de fazer pressão, de se opor, deve de hoje em diante ser acompanhada por uma capacidade de estruturar, de propor… e agir. As revoluções galvanizaram as populações, suscitaram formidáveis expectativas de mudança – e de mudança para melhor. Ora para muitos tunisinos e egípcios a esperança está a pouco e pouco em vias de dar lugar ao desencantamento e à frustração. A situação económica e social constitui um dos principais motivos do seu descontentamento. Enquanto nos dois países esta questão desem- 36 Vincent Geisser e Michaël Béchir Ayari, “Tunisie, une révolution attendue?”, in Futuribles, no prelo. 56 VIRGINIE COLLOMBIER penhou um papel central no desencadeamento da contestação, os principais actores envolvidos na transição consagraram por agora muito mais tempo e energia ao estabelecimento de novas regras do jogo político (eventualmente susceptíveis de lhes serem favoráveis) do que a empreender reformas significativas nos domínios económico e social. Ora se é evidentemente necessário repensar o sistema político para assegurar a saída do autoritarismo e o estabelecimento de estruturas democráticas, a ausência de resposta às reivindicações mais básicas dos cidadãos relativamente às suas condições de vida é dificilmente aceitável por estes últimos. Os ‘tempos’ políticos de uns e de outros – o calendário e a sequência das suas prioridades – não concordam, e tratar-se-á de um desafio considerável a superar para garantir o sucesso da transição em curso. Enquanto os tunisinos e egípcios receiam ainda verem ser-lhes ‘roubada a sua revolução’, o papel dos actores da segurança (polícia, serviços de informação, mas também do exército) no período de transição revelar-se-á também determinante. Antes de contribuir – positivamente ou negativamente – para a queda dos sistemas Ben Ali e Mubarak, desempenharam com efeito um papel central na manutenção destes últimos. Tanto na Tunísia como no Egipto, as forças do ministério da Administração Interna – que constituíram um dos principais actores da repressão, tanto antes como durante a contestação dos fins de 2010inícios de 2011 – são hoje objecto de uma particular atenção por parte das forças revolucionárias. Para além das sanções contra os polícias que mataram manifestantes, estas exigem, com efeito, o estabelecimento de uma reforma significativa e exercem importantes pressões neste sentido sobre as autoridades de transição. As suas reivindicações, até hoje seguidas de poucos efeitos concretos, serão, todavia, determinantes para garantir uma transformação em profundidade dos regimes tunisinos e egípcio. No Egipto, o papel específico desempenhado pelos militares na transição conduz igualmente a uma reflexão sobre o lugar que será devolvido a estes últimos no novo sistema político. Esta reflexão começou. Determinadas forças políticas receando a chegada ao poder de uma maioria susceptível de ameaçar a democracia, reclamam assim que deve ser confiado ao exército um papel específico de garante dos princípios da constituição. A alta hierarquia militar tem no que lhe respeita insistido desde já no 57 TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE? imperativo de preservar a independência completa das forças armadas, excluindo por isso todo o controlo parlamentar sobre o orçamento ou as actividades destas últimas. Neste domínio, igualmente, o caminho a percorrer será provavelmente longo, e a estratégia dos ‘pequenos passos’ sem dúvida a opção a privilegiar. (tradução de Joaquim Jorge Veiguinha) 58 O Desastre da LSE Hermínio Martins O mais notável exemplo do ‘impacto’ público exigido das universidades pelo Governo do Reino Unido foi, perversamente, a enorme publicidade mundial recentemente obtida pela London School of Economics and Political Science (LSE). Durante algumas semanas (Fevereiro-Março), a LSE foi um centro mundial de atracção mas não por boas razões. Pelo contrário, este foi o primeiro escândalo verdadeiramente global de uma corporação universitária, certamente o primeiro a afectar uma universidade com o tipo de reputação nacional e especialmente internacional que a LSE desfrutou durante várias décadas. O escândalo surgiu inicialmente com a doação pela Fundação dirigida por Saif al-Islam Kadhafi, o filho favorito do coronel, de 1.5 milhões de libras ao Centro para a Governança Global da escola. Aceite pelo seu conselho directivo em 2009, a decisão foi mais tarde revogada devido à torrente de comentários adversos e estridentes que esta aceitação provocou nos media britânicos e estrangeiros. O director da escola, Sir Howard Davis, que apoiou a decisão de aceitar a doação, foi obrigado a demitir-se em 3 de Março, devido ao “dano reputacional” infligido à escola por “este erro de avaliação’. Simultaneamente, uma investigação independente e exaustiva sobre o caso dirigida por Lord Woolf, um ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi anunciada. Desde que o Governo de Blair fez da Líbia uma nação razoavelmente respeitável, muitas universidades britânicas envolveram-se em acordos vantajosos para a educação e formação de líbios. Mas foi a LSE que, de todas as instituições académicas britânicas, sofreu a maior reacção negativa contra as suas conexões líbias. A dimensão intelectual invulgar do seu envolvimento líbio e a estatura dos professores implicados no caso podem explicar porquê. As declarações do professor Lord Giddens, o anterior director da LSE, 59 O DESASTRE DA LSE em 2006 e 2007, foram provavelmente muito surpreendentes. Num conjunto de artigos de jornal resultantes de duas visitas ao país, o sociólogo de renome mundial anunciou ao mundo que o governo de Kadhafi era genuinamente benigno à medida que as ditaduras desapareciam e expressou a sua convicção de que a Líbia poderia tornar-se a Noruega do Norte África sob a direcção do coronel. Este viu mesmo paralelismos entre a sua “Terceira Via” e os ensinamentos do Livro Verde de Kadhafi! (As visitas foram organizadas por uma empresa de consultoria americana com ligações a Harvard, que também trouxe eminências americanas, como os professores Joseph Nye, Benjamin Barber e F. Fukuyama a Tripoli, com o objectivo de melhorar a imagem da ditadura Líbia). O famoso e prolífico teórico da globalização, o professor David Held, fez a declaração absurda de que os valores democráticos estavam no cerne das convicções de Saif Kadhafi e expressou a sua convicção de que este iria conduzir a Líbia para a democracia. Também entrou no conselho de administração da Fundação da Caridade Internacional e Desenvolvimento de Kadhafi que fez a doação para o seu próprio Centro de Governança Global na LSE. Saif foi admitido na LSE como estudante licenciado, primeiro para um mestrado e depois para um doutoramento. Possuía ou não as qualificações adequadas para ser admitido na LSE como um estudante licenciado? A questão permanece obscura. Devia alguma vez ter sido admitido, fosse ou não qualificado? Ao admitirem Saif, alguns tornaram-se cúmplices do regime brutal do seu pai, deram ao clã de Kadhafi um ponto de apoio numa prestigiada academia ocidental. Foi sempre uma decisão problemática, demonstrada, por exemplo, pela sua necessidade de um ou mais guarda-costas quando assistia às aulas na universidade. A sua tese de doutoramento foi realmente escrita por si? Não está claro se o foi, e a questão pode nunca vir a ser completamente esclarecida. Um ano após a aprovação no doutoramento, a doação foi feita. Evidentemente, muitas suspeitas surgiram no pequeno intervalo de tempo decorrido entre a concessão de um doutoramento a uma pessoa e a aceitação de uma grande doação da parte desta mesma pessoa. O professor Fred Halliday, um professor de Relações Internacionais na LSE que possuía um amplo conhecimento da Líbia e era fluente em árabe, foi o único acadé60 HERMÍNIO MARTINS mico que se pronunciou contra a aceitação. Este advertiu que a Líbia era uma cleptocracia corrupta com escassas probabilidades de ser reformada pelo clã dirigente. A sua advertência foi rejeitada. Carecendo de grandes doações, com um reduzido financiamento do Estado e privadas de doações filantrópicas no interior do país, as universidades do Reino Unido podem ser forçadas a aceitar ‘presentes’ de regimes suspeitos. Mas algumas universidades, confrontadas com severas dificuldades financeiras, recusaram estas doações. A LSE estava em boa forma financeira: não precisava desta doação específica para se manter à tona. No fim de contas, eis um triste caso da incapacidade de uma universidade em resistir às tentações das grandes fortunas, supostamente sem compromissos, mas que, de facto, mancharam a LSE (até o professor Lord Desai, que tinha alinhado em tudo, fala agora de “dinheiro sangrento”). Lamentavelmente para o bom-nome das ciências sociais, foi também um caso em que teóricos sociais mundialmente famosos sucumbiram à ilusão clássica de que poderiam transformar-se em mentores de ‘déspotas iluminados’ em países que desconheciam totalmente. As universidades podem ser debilitadas tanto a partir de dentro como a partir do exterior: uma única pessoa corajosa e lúcida, como o professor Halliday, pode ser incapaz de impedir acções que abalam a credibilidade mundial na integridade de uma universidade e dos seus professores. E quando isto acontece, tudo está perdido. (tradução de Joaquim Jorge Veiguinha) 61 PARLAMENTO Portugueses, só mais um esforço! Fernando Pereira Marques N uma das suas crónicas no “Público” Vasco Pulido Valente afirmou, há tempos atrás, que talvez desde Costa Cabral nunca um político foi tão detestado quanto José Sócrates. Não será bem assim, e basta, por exemplo, lembrarmo-nos de Afonso Costa. Além de que o decorrer da campanha e os próprios resultados eleitorais demonstraram que, afinal, não era tão generalizado esse sentimento em relação ao anterior primeiro-ministro. Todavia, o que me interessa aqui sublinhar é que, ao estabelecer tal comparação – e o respeitado historiador sabe-o bem –, estava a fazer um elogio que não sei se o antigo líder socialista merece. Porque Costa Cabral foi um governante autoritário, chefe de clientelas e novo-rico do liberalismo1, mas que tentou pôr ordem num país caótico – nomeadamente do ponto de vista administrativo e fiscal – e levar a cabo um programa modernizador. Uma convergência das oposições diversificada e populista – a “Coalizão” –, acabaria por o derrubar levando a que só a Regeneração, após a “saldanhada” de Abril de 1851, tentasse concretizar esse programa, anos mais tarde, dentro dos condicionalismos existentes de atraso estrutural do Portugal oitocentista. Será que foi o que se passou com José Sócrates? Foi ele impedido de realizar a política, se não necessária, pelo menos possível na actual conjuntura, por uma coligação negativa das várias oposições e pela incompreensão de vastos estratos da população? Tentando responder a esta interrogação, seja-me permitido abordar – sumariamente – vários aspectos que são: 1 - o contexto internacional; 2 – o contexto nacional; 3 - a conjuntura actual. 1 – A partir de finais da década de 70 entrou-se num novo ciclo do sistema 1 Os seus adversários, setembristas e afins, podiam ser mais suaves quanto aos métodos de governação, no resto não eram muito diferentes. 63 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! capitalista, para o qual contribuíram factores como o choque petrolífero e a dependência quanto a essa fonte de energia. Visando manter mais-valias, que assim se viam reduzidas, sectores económicos e os seus prolongamentos políticos iniciariam o processo de desmantelamento do modelo keynesiano de Estado-Providência, adubado pelo sangue das duas guerras mundiais. Desmantelamento que hoje atinge a sua máxima expressão. Aquilo a que se chama mundialização ou globalização é a continuação desse processo, e poderemos até dizer – parafraseando o velho Vladimir – o seu estádio superior, num mundo onde se assistiu ao fim dos impérios coloniais e, consequentemente, se abriram novos mercados e se liberalizaram as transacções financeiras, se renovaram formas de dominar os países mais pobres e se afirmou a hegemonia militar e económica do Estados Unidos. Tudo isto em simultâneo com uma verdadeira revolução técnico-tecnológica na informação e na comunicação, com o fracasso do comunismo no Leste europeu, e a progressiva integração na ordem dominante das expressões ideológicas e sociais do movimento operário nascido da industrialização. Políticas, agora em crise, ao serviço do capital financeiro e especulativo, impuseram um modo de produção que tem o hiperconsumismo como motor do crescimento e se baseia na exploração da força de trabalho dos países menos desenvolvidos da Europa e de outros continentes – em particular da Ásia. Surgem, por estas razões, novas clivagens e fontes de desigualdade que contribuem para enfraquecer as bases de sustentação das democracias, na medida em que o poder político é, crescentemente, transferido para forças não legitimadas, como são os grupos financeiros, a banca e os especuladores, que constituem essas entidades mistificadas e mitificadas designadas por “mercados”. Ao mesmo tempo, no plano dos valores, banaliza-se o relativismo ético nas relações sociais, destroem-se os laços de convivialidade humana, desagregam-se formas de organização social necessárias à integração e à cooperação. Dito de forma sucinta, e porventura mais explícita, generalizou-se um estilo “hobbesiano” de vida em sociedade que conduz à supremacia do mais forte, do menos escrupuloso, do mais corrupto, pois o objectivo das economias não é o bem comum e o projecto de vida dos cidadãos reduz-se ao consumir à outrance, imbecilizados e manipulados pelo sistema espec64 FERNANDO PEREIRA MARQUES tacular de condicionamento colectivo mediático-televisivo à la Murdoch. Acarretando isto regressão quanto às conquistas sociais e políticas do pós-guerra, a fragilização da democracia representativa, a massificação cultural e, até, quanto ao meio ambiente e à Natureza, o desregulamento ecológico põe mesmo em causa a sobrevivência das próximas gerações. A ideia de construção europeia, velha e generosa aspiração de coexistência entre nações que outrora se digladiaram, não escaparia a tais dinâmicas anti-humanistas e, por isso, a União Europeia é hoje uma espécie de sociedade anónima gerida pelos países mais poderosos que actuam em função dos interesses dominantes na economia e na finança. União desunida, cada vez mais à beira da implosão. A designação pelo acrónimo PIIGS das cinco economias mais frágeis mostra bem a arrogância anglo-saxónica e germânica. A Alemanha esquece-se que no século XX foi o país mais vezes em bancarrota, ou próximo disso, e que só conseguiu dar o salto para o que é hoje devido às injecções de capitais norte-americanos. Além de que usufruiu do adiamento do pagamento das indemnizações justificadas pelo saque e destruições do nazismo, as quais – de acordo com o estabelecido – deviam ter vencido aquando da reunificação. Um dos países credores é precisamente…a Grécia. 2 – No plano nacional a democracia chegou-nos com o 25 de Abril de 1974 quando se entrava na fase final dos “trinta gloriosos anos” do pós-guerra. Depois de um acidentado processo de estabilização político-económica, o nosso país, quando foi admitido na CEE, apresentava uma soma de fragilidades e vulnerabilidades estruturais a diversos níveis: no do sistema produtivo e empresarial; no das instituições democráticas; no da formação, educação e qualificação; no da cultura e das mentalidades. A história destes anos mostra-nos bem, por muito que custe às almas generosas e bem-intencionadas, que a democracia não é uma mera construção jurídico-político-institucional, mas o resultado de mudanças complexas e profundas de carácter sociocultural. Se por democracia entendermos uma efectiva separação dos poderes, secularização e laicização, pluralismo partidário, primado da Lei, forte sociedade civil, participação cívica, consentimento e confiança renovados por parte dos cidadãos, direitos individuais, liberdades e garantias integralmente asseguradas, justiça social, etc. 65 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! Ora, tem-se verificado como é difícil superar as sequelas de quase meio século de regime autoritário e do que foi a nossa história do século XIX e da primeira metade do XX. Ou seja, e abreviando, trinta e sete anos depois do movimento dos capitães, temos uma sociedade civil extremamente frágil, uma cultura cívica embrionária, um sistema político e um sistema de partidos marcados por graves disfunções. Isto é, a democracia portuguesa padece de sérias patologias. Os dois principais partidos que se afirmaram numa bipolarização de governo, se se podem designar como de massas do ponto de vista organizativo, são um misto de catch-all parties e de partidos oitocentistas. Assim, passada a fase heróica das lideranças dos pais fundadores, tornaram-se aparelhos pragmáticos de gestão de clientelas, de colocação de burocracias na administração político-económica pública; organizações onde, com a maior das naturalidades, as oligarquias que gravitam em torno dos vários níveis do poder subvertem as regras democráticas a nível interno, falseando eleições, organizando sindicatos de voto, recorrendo às mais diversas formas administrativas de controlo funcional. E as suas respectivas juventudes, em vez de formarem quadros imbuídos de uma exigente cultura democrática, são de facto viveiros de aparatchiks que asseguram a reprodução dessas oligarquias partidárias. Pela sua natureza social e organizativa, que tecnicamente se poderá designar de partido de quadros, o CDS/PP é um caso que se diferencia das duas grandes forças do bloco central. Quanto à esquerda, comunista e bloquista, alimenta-se do seu potencial de pressão. Particularmente o PCP, devido a uma sólida base sindical; o BE desempenhando um papel tribunício que noutros países cabe às forças extra-parlamentares. Deste modo, ambos se têm auto-excluído da governação, o que penalizou, nas últimas eleições, em especial os bloquistas. Aos problemas com que se deparam as democracias um pouco por todo o lado, juntam-se em Portugal estes elementos que nos são específicos; às repercussões da crise do sistema económico-financeiro a nível internacional, acrescentam-se os nossos bloqueamentos devidos ao atraso secular, às irracionalidades introduzidas na agricultura e na indústria, ao desbaratamento dos fundos europeus, à corrupção negocista proporcionada por sucessivos governos. Casos de verdadeiro assalto ao erário público, como 66 FERNANDO PEREIRA MARQUES os das PPP – para citar só este exemplo –, ou ainda outros de criminosa promiscuidade entre o público e o privado de que emergiram os escândalos do BPN e do BPP, dariam lugar, noutras democracias, a fortes sanções judiciais e políticas. No nosso país o cidadão médio tem uma relação esquizofrénica com o Estado e a política, ainda marcada pelo sufocamento cívico das dezenas de anos de salazarismo: detesta os “políticos” mas venera o poder e, no fundo, considera uma injustiça não ser, se não ministro ou deputado, pelo menos presidente da Junta de Freguesia. A comunicação social, por seu lado, torna a vida política numa espécie de prolongamento dos confrontos futebolísticos e muitos dos jornalistas – à excepção de bons profissionais que são sempre…excepções – adorariam ser “políticos”, ou assessores de um órgão de poder, maxime integrarem o gabinete do primeiro-ministro ou Casa Civil do PR. Escasseia, assim, uma visão crítica e lúcida sobre os verdadeiros problemas com que o país se depara, é incipiente a cultura democrática e funcionam mal os checks and balances fundamentais à saúde do sistema político. Por tudo isto – respondendo à questão enunciada no início –, é claramente falacioso centrar no último governo todas as responsabilidades pelo impasse a que se chegou. José Sócrates não foi um reformador como tentou ser Costa Cabral. Ele, como já Guterres fizera, introduzindo uma ou outra medida positiva inspirada no modelo social europeu – digamos assim para facilitar –, limitou-se, no essencial, a gerir uma situação já viciada e, na sequência do que atrás se disse, fê-lo com pragmatismo, detestando – ele e a sua equipa – perder tempo com grandes ou pequenas questões de carácter ideológico-programático, ou excessivos escrúpulos nos planos das ideias, dos princípios e dos valores. Governar era preciso, esvaziando o PS de qualquer vida interna ou de capacidade de definição estratégica (os programas eleitorais e de governo são textos de circunstância produzidos a toque de caixa por uns quantos autores de ideias gerais) e transformando os seus membros – já nem será correcto dizer militantes – em meros figurantes na execução de objectivos traçados pelas agências de marketing. As coisas até funcionaram enquanto a conjuntura internacional permitiu engenharias contabilísticas e esconder sob o manto diáfano da fantasia, veiculada nos prime time, as irracionalidades político-económico-financeiras 67 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! com que, entretanto, gestores públicos e privados, e muitos cavalheiros de indústria, iam lucrando. Quanto ao cidadão comum – especialmente das classes intermédias – utilizava os seus cartões de crédito generosamente fornecidos por uma banca próspera e protegida que lhe prometia abrir as portas de todos os paraísos. 3 - Devo dizer que as minhas convicções europeístas me levaram a não valorizar devidamente as reservas de economistas lúcidos como João Ferreira do Amaral que sempre considerou extemporânea a nossa integração no euro. E de facto ele tinha razão. O impacte da integração e o desbaratamento dos fundos já contribuíra para nos tornar sobretudo um mercado para as exportações de economias mais fortes – nomeadamente a espanhola – e um mero prestador de serviços, pelo que a perda da moeda nacional só agravou esta condição periférica e dependente. Tanto mais que a ideia europeia, como já disse, se reduziu a um projecto mercantil liderado particularmente pela Alemanha enquanto economia dominante, que pouco tem a ver com a construção cultural e social de uma Europa dos povos, progressivamente liberta dos egoísmos nacionais. Acresce a crise da mundialização financeira desregulada, onde a especulação raia o quase banditismo e grupos organizados, como as agências de rating, são na realidade uma espécie de gangues legais (veja-se o documentário Inside Job) que impõem regras aos Estados. Deste modo, para contrabalançarem o abanão sofrido em 2007/2008 e as rupturas havidas nos próprios EUA, e para ao mesmo tempo enfraquecerem o euro, essas agências e os interesses para que trabalham centraram a sua acção desestabilizadora nos países europeus do Sul, os mais frágeis. Mas não ficarão por aqui, como já se viu ao começarem a atacar frontalmente a gestão do Presidente Obama. Chegámos assim à situação de crescente pressão sobre as finanças públicas e à ajuda externa, com os conhecidos episódios que culminaram na dissolução da Assembleia da República e na convocação de eleições antecipadas. Poder-se-ia ter evitado este desenlace? Dificilmente se escaparia à necessidade de recurso ao exterior, pelas razões aduzidas relacionadas com a estratégia da especulação internacional. Mas claro que a impaciência do PSD e a imaturidade da sua liderança ajudaram a precipitar as coisas. Deste modo, tecnocratas estrangeiros vieram vasculhar as contas nacionais 68 FERNANDO PEREIRA MARQUES para nos dizerem o que o governo saído das eleições devia fazer no sentido de desmantelar, ainda mais, o nosso embrionário Estado social, constranger as classes médias, tornar mais pobres os pobres, e impor uma lógica monetarista e de protecção da banca segundo a cartilha ultraliberal. A Europa rica da Senhora Merkel ameaça-nos com puxões de orelhas, e outros, como os chamados “Verdadeiros Finlandeses”, disseram em voz alta o que muitos europeus mais a Norte pensam. A crer no El Pais (18/4), Timo Soini, que dirige esse partido, de facto o vencedor do último pleito eleitoral, afirmou: “É inconcebível que os bens conseguidos aqui, sob a estrela do Norte, sirvam para regalar a gente do Sul que vive ociosa deitada sob as oliveiras.” Neste contexto de agravamento da perda de soberania na condução da política económica e de gestão dos dinheiros públicos, assim como de inevitável instabilidade social e política, impor-se-ia que predominasse o sentido de Estado e do interesse nacional junto de todos os responsáveis. Mas acontece que temos um Presidente da República medíocre que privilegia como veículo de actuação o facebook, diz banalidades frequentemente contraditórias, e partidos – particularmente os dois maiores – que insistem em caminhar para o abismo. Não só pela sua incapacidade em empreender uma estratégia de emergência que salvaguarde a dignidade nacional, as conquistas sociais e a necessidade de crescimento, mas também pela persistência na asneira e na picardia leviana. A demonstrá-lo a forma como, mais uma vez, foram feitas as listas para deputados e decorreram as eleições. Claro que seria difícil num período tão curto superarem-se os vícios bem entranhados no funcionamento desses partidos. Mas poder-se-ia ter já dado alguns sinais de mudança que mostrassem, pelo menos, uma tomada de consciência. Em vez de um esforço de definição consistente de linhas de actuação para o curto e o médio prazo, não obstante o condicionamento imposto pelas organizações externas que nos tutelam, assistiu-se ao anúncio de generalidades programáticas e a pronunciamentos tacticistas em todas as direcções. Quanto às listas para deputados, repetiram-se as estafadas habilidades que no decurso dos anos têm ilustrado a falta de consistência orgânico-ideológica e contribuído para a mediocridade do pessoal político-parlamentar segregado por esses partidos (refiro-me aos dois do bloco central – nos outros a questão põe-se de forma diferente). As listas são entendidas como um cozinhado 69 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! reunindo vários ingredientes: uma porção substancial de gente do aparelho (incluindo da juventude) para que este funcione durante a campanha, uns independentes para mostrar abertura “à sociedade civil” (um escritor aqui – potencial ocupante da anódina pasta da Cultura -, um colunista acolá, uma actriz noutro lado, um trânsfuga de outro partido devidamente reciclado), mais uns notáveis ungidos pela sua passagem pelo governo, ou pelo mundo dos negócios, ou que se pretende surjam como garantes de competência. As “competências” de que já falava Gomes da Costa nos anos 20 do século passado antes do 28 de Maio. Será que alguém acredita que constituiu um factor de atracção eleitoral para o PS a colocação nas listas, e por vezes no seu topo, de ministros e secretários de Estado cessantes desgastados pelo poder e sem nenhuma vocação para a actividade parlamentar? Não foi evidente que se tratou de uma forma de os compensar no retorno às suas vidas profissionais, donde em geral saíram aos trambolhões só porque não resistiram à sedução – por vezes fatal – do poder? Seria muito difícil perceber que o PSD, ao ir buscar Fernando Nobre, não só não iria capitalizar os votos por ele obtidos nas presidenciais como, antes pelo contrário, agravaria a descredibilização do sistema político, da instituição parlamentar e o cepticismo dos cidadãos em relação ao funcionamento da democracia? Mas se tem sido e continua a ser assim o funcionamento dos dois maiores partidos, o que é que de facto determina a opção de voto dos eleitores? Há factores de diverso teor, como os matizes no discurso social, as diferentes histórias e culturas partidárias. No entanto, por força do nosso passado feito de despolitização e autoritarismo, a que não escapam mesmo as gerações mais novas, tornam-se particularmente relevantes a personalidade do líder e a forma como o marketing o “vende”, mais a atracção de quem detém ou potencialmente vai deter o poder. Donde ter sido significativo que numa conjuntura como a actual, com o desgaste sofrido pelo Governo e pelo primeiro-ministro, o PSD só tenha conseguido nos últimos dias de campanha descolar da situação de empate técnico existente durante semanas. E quanto aos resultados propriamente ditos, como diria La Palice, é evidente que o PS perdeu porque o PSD teve mais votos, mas contrariamente ao que li nalguma imprensa, não foi a maior derrota depois da de 1985. Além deste ano (20,8%), percentual70 FERNANDO PEREIRA MARQUES mente, em 1979, 1980, 1987 o PS obteve resultados inferiores (em 1991 Jorge Sampaio atingiu um ponto mais, 29,2%). Em número de votos, e em relação a 2009, o PS perdeu cerca de 520 mil (quase tantos como os que viu fugirem-lhe nesse ano em comparação com a maioria absoluta obtida em 2005), mas o PSD só subiu cerca de 490 mil e houve, em termos globais, aproximadamente menos 130 mil sufrágios expressos (o BE viu o seu eleitorado reduzido em 270 mil votos). Sintetizando: Passos Coelho obteve uma percentagem inferior a Durão Barroso em 2002 (40,1% e neste ano mais 124 000 votos do que o PS). Estes números permitem-nos afirmar que, como tem sido habitual no sistema de partidos existente, uma fracção significativa do eleitorado flutuante do bloco central transferiu-se para o pólo da alternância, outra fracção do eleitorado, que votou socialista em 2009, absteve-se ou dispersou-se por vários partidos, e muitos que nessa altura optaram pelo BE regressaram à sua opção tradicional (socialista, comunista ou outra). Por fim, e contrariamente ao que alguém também disse, o PS não ficou reduzido ao seu eleitorado fiel, consolidado, de irredutíveis como os gauleses de Astérix, que é inferior aos 28,05% obtidos: grosso modo, e tanto quanto estas estimativas são possíveis, esse eleitorado corresponderá aos perto de 21% de 1985, ou a um pouco mais. Em termos técnicos, utilizando a conceptualização do chamado “paradigma de Michigan”, não houve um “esmagamento” do PS pois a alternativa que se lhe opunha era manifestamente frágil. Antes se assistiu a uma continuidade do sistema que se caracteriza pela alternância entre dois grandes partidos. Quer se queira quer não, o PS continua a ser um deles, nenhum outro – contrariamente ao que se passou em 1985 com o PRD – lhe disputou tal lugar, donde ser importante o que no seu seio irá acontecer neste outro ciclo entretanto aberto pela eleição de um novo secretário-geral. Sem os socialistas não há alternativa institucional à coligação de direita que agora nos governa, não há perspectivas de travar o desmantelamento do que nos planos político, social e económico ainda resta das conquistas mais significativas do pós-25 de Abril. A constituição do actual Governo evidenciou a frágil organicidade do PSD que – como aliás também acontece com o PS – recorreu ao recrutamento daquela peculiar categoria no nosso sistema político que são os “independentes”, ou seja, as tais supostas “competências” técnicas ou 71 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! académicas, quase sempre uma incógnita quanto à capacidade políticoadministrativa. De assinalar o exercício demagógico de emagrecimento artificial do número de pastas ministeriais – que acabou por ter de ser compensado pelo número de secretários de Estado, assessores/as, “especialistas”, chefes de gabinete hiper-remunerados/as, etc. –, sem que isso obedecesse a uma decisão ponderada do ponto de vista da racionalidade e dos objectivos. Quanto ao projecto político, rapidamente se precisou, se dúvidas houvesse, que o escopo principal da maioria de direita é ser ainda mais “troikiano” do que o diktat da chamada “troika, e, como grandes desígnios nacionais, têm-se ouvido coisas díspares como, no plano económico – a crer em declarações daquele sorridente ministro da Economia importado do Canadá –, transformar o país numa Florida europeia, um destino de sonho para os reformados europeus com poder de compra. Ainda mais significativamente refiram-se as privatizações e a perda de posições públicas em sectores estratégicos, o que só torna ainda mais vulnerável a nossa economia à cupidez internacional. Não deixou, pois, de ser patética a reacção do primeiro-ministro, do governo, do PR e de outros responsáveis à actuação das agências de rating que aparentemente eles julgavam rendidas ao luminoso governo PSD-CDS. Finalmente, e contrariando – como era de esperar – algumas declarações peremptórias durante a campanha eleitoral, recorre-se à via fiscal e a impostos extraordinários sobre aquela pequena percentagem de portugueses que estão acima do quase limiar da sobrevivência da maioria, ao mesmo tempo que se deixam tranquilos os rendimentos do capital e os dividendos (o argumento usual é de que se teme que, patrioticamente, quem possua capital o faça sair do país se se aumentar a imposição fiscal). Aliás, são os contribuintes que vão continuar a pagar desastres das gestões anteriores, como o do caso BPN, negociata com que se banqueteou a fina flor do cavaquismo – e o próprio, através daquela transacção de acções ainda mal explicada – e outros irão agora lucrar associados a dinheiros oriundos da cleptocracia angolana. Chegou-se a um ponto em que, iludindo tudo o que bom senso e os fundamentos elementares da economia ensinam, Portugal corre o risco de ser vítima da cura de estabilização financeira que lhe impõem – como aconteceu há anos atrás com a Argentina – , dos cortes cegos na despesa que ameaçam paralisar serviços, esvaziar funções, travar políticas multipli72 FERNANDO PEREIRA MARQUES cadoras quanto à produção e ao emprego. Em resumo, está-se a impedir qualquer dinâmica de crescimento só possível através do investimento público e privado e do aumento da procura. Os povos não se alimentam com a especulação que só aproveita aos especuladores, e é premente reconstruir o nosso tecido produtivo nos vários sectores, pois é com a força de trabalho, a vontade e a inteligência que se faz “a riqueza das nações”. Estamos a deixar de ser Portugal para tornarmo-nos Portugalinho. Nestas circunstâncias é preciso fazer renascer o sentimento da dignidade nacional, reencontrarmo-nos enquanto povo e ocupar o lugar que nos acabe numa União Europeia que está paulatinamente a ser destruída por dirigentes como a Senhora Merkel e o seu Freund Barroso. O PS está comprometido com o programa imposto pelos controleiros europeus e mundiais da finança, e por muito que se queira redimir de ter ajudado a conduzir o país para este impasse, isso condiciona-o e limita-o. Por outro lado, tanto no plano global como europeu, os governos estão sujeitos, já o dissemos, à chantagem do banditismo financeiro. Consequentemente, as mudanças que é necessário ocorram, estão dependentes de dinâmicas mais gerais, a nível europeu e não só, que nascerão da mobilização dos povos – incluindo o nosso –, e da reorganização estratégica da esquerda e dos movimentos sociais, tradicionais ou de tipo novo. As democracias europeias precisam não de um “choque liberal”, mas de um “choque social”. Se não surgirem outros actores sociais e políticos, ou se os que à esquerda ocupam a cena política não conseguirem repor no centro da sua acção os valores da solidariedade, da liberdade, da igualdade, da democracia, dos Direitos do Homem, da ética republicana, da laicidade, etc., etc. – tudo aquilo por que se têm batido, no decurso de séculos, gerações e gerações de homens e mulheres –, o que nos aguarda são formas de autoritarismo, mais ou menos tecnológicas e comunicacionais. São reais e concretos os big brothers que nos ameaçam, os verdadeiros detentores do poder que continuam a dominar com cinismo, a incentivar a ganância, a destruir os elos comunitários, argumentando com a “novlíngua” da inversão de valores que enaltece os chamados winners que sobrevivem esmagando os loosers, quer dizer, os mais pobres, os mais fracos, os mais desprotegidos. Não se trata de fazer a revolução – tranquilizem-se os pragmáticos e os socialistas caviar (à portuguesa) –, mas chegados a este ponto de desmantelamento 73 PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO! dos avanços políticos e sociais conseguidos nos dois séculos passados, tornaram-se objectivos prioritários nos planos nacional e europeu reinventar a Democracia e reconstruir o Estado-Providência, adaptado aos tempos actuais. Dentro de uns tempos vai-se perceber ainda melhor o que quero dizer com isto e tais objectivos até se tornarão quase revolucionários. Entretanto, agora que o calor aperta, Portugueses, só mais um esforço, sejamos patriotas e reduzamos a despesa…tirando a gravata! Feliz o país que tão geniais governantes e “governantas” tem! 74 Do Estado Social ao Estado Assistencial Joaquim Jorge Veiguinha O programa do XIX Governo constitucional tem como lema “superar a cultura de paternalismos e das dependências” e estimular “uma cultura de responsabilidade e abertura” (p. 4). Resta saber, porém, que responsabilidade e que abertura o Governo de coligação PSD/CDS tem em mente e se existem indícios de uma efectiva superação da “cultura de paternalismos e dependências”, já que esta frase tem sido nos últimos tempos frequentemente utilizada para legitimar o ataque aos direitos sociais que, segundo uma perspectiva neoliberista, ‘sufocam’ a ‘livre iniciativa’ dos indivíduos na ‘sociedade civil’. Caso contrário, estaremos perante um mero exercício de retórica sem consistência que esconde, sob a capa dos títulos grandiloquentes do tipo “Confiança, Responsabilidade, Abertura”, frontispício do programa governamental, outros objectivos, de que se destaca o desmantelamento do Estado social e, ao contrário do que se promete, a construção de um Estado assistencial num cenário de saudoso retorno pós-moderno ao 24 de Abril. Desde logo, o Governo anuncia que a sua vontade de “cumprimento escrupuloso das medidas do FMI e da União Europeia” se caracteriza por uma maior ambição no “processo de ajustamento da economia portuguesa” (p. 16). Esta intenção do aluno diligente que põe o dedo no ar antes dos outros e aproveita todas as sugestões do professor para fazer o melhor trabalho de casa, é geralmente um sintoma de provincianismo e mesmo de insegurança. Sob a capa do excesso de zelo, pode esconder-se uma agenda conservadora que, por mais que se tente ocultar, acaba por revelar-se, com todo o esplendor, em plena luz do dia. E isso torna-se claro quando, com a gravidade que trai todas as promessas grandiloquentes, o Governo propõe um esforço de consolidação orçamental em que dois terços serão suportados pela redução da despesa e um terço pelo aumento da receita (p. 17). Em termos gerais, uma das características das políticas de direita é privilegiar os cortes na despesa relativamente à criação de condições de uma maior justiça fiscal e tributária. O modelo e paradigma desta orientação são actualmente exemplificados pelo Partido Republicano dos Estados Unidos que 75 DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL defende um corte drástico nas despesas sociais, consideradas sintomas de um Estado que tende cada vez mais para o ‘socialismo’, e uma redução da carga fiscal sobre os mais ricos. O Governo PSD/CDS não se atreve a tanto, mas não se afasta muito deste figurino, mesmo quando as suas primeiras medidas contradizem as promessas do seu programa. O recente imposto extraordinário que incide sobre os rendimentos do trabalho e isenta escandalosamente os rendimentos do capital que, como os dividendos, não têm nenhuma função de reactivação do investimento produtivo, não é mais do que uma versão ‘soft’ das concepções do Tea Party norte-americano, revelando uma iniquidade monstruosa num país em que as desigualdades na repartição da riqueza são enormes. Não contente com esta medida que, ao que tudo indica, é apenas um primeiro passo, o programa do Governo esclarece-nos sobre o seu ‘projecto’ fiscal e tributário: redução da Taxa Social Única (TSU), em conformidade com o ‘Memorando de Entendimento” (p. 12), que, no entanto, acabou por abandonar, ‘compensando-a’ com o aumento unilateral, à revelia da negociação sindical, de meia hora diária da jornada de trabalho do sector privado; “transferência de categorias de bens e serviços das taxas de IVA reduzida e intermédia para taxas mais elevadas” (p. 22); e – eufemismo peregrino – “simplificação fiscal” (p. 23) que consiste sobretudo na redução do número de escalões do IRS e do IRC, mas que se traduzirá, na prática, numa redução da progressividade dos impostos directos, tendo provavelmente como horizonte possível uma flat tax sobre o rendimento, como já acontece em alguns países recentemente entrados na União Europeia. Eis como, por detrás da retórica tecnocrática aparentemente neutra no plano político, este Governo revela a sua verdadeira natureza: a ‘reforma estrutural’ do sistema fiscal ataca profundamente a sua função redistributiva e reforça claramente o seu carácter regressivo e socialmente injusto. Do lado da despesa, destaca-se sobretudo o princípio orientador da ‘libertação’ das empresas para o sector privado (p. 21). Esta ‘libertação’ traduz-se numa vaga de privatizações já previstas no Memorando do Entendimento: EDP, REN, TAP, ANA, área de seguros e áreas não estratégicas da CGD e CTT. Mas o Governo revela-se mais ‘ambicioso’ do que a ‘troika’ neste ponto, defendendo a ‘eventual concessão’ a privados de carreiras e linhas dos STPC, da Carris e do Metro de Lisboa, a que se junta a “definição do modelo de privatização/concessão do operador ferroviário estatal” e a “sua efectiva concretização, designadamente na actividade de transporte de mercadorias e suburbano de 76 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA passageiros” (p. 42), bem como a de um canal da RTP que terá efeitos catastróficos na qualidade de informação e revelar-se-á, como alguns operadores privados já se aperceberam, financeiramente desastroso em consequência da hipertrofia do mercado publicitário. A obsessão privatizadora deste Governo nem sequer tem em conta os ensinamentos históricos mais recentes, como é revelado, por exemplo, pela desastrosa alienação dos caminhos-de-ferro britânicos, em que a eficácia e as condições de segurança do sistema ferroviário da velha Albion pioraram significativamente, desmentindo as perspectivas ideológicas dos seus mentores thatcherianos. O quadro da ‘redução de custos’ ou da ‘racionalização’ da despesa é completado pela criação de um “programa de rescisões por mútuo acordo” na Administração Pública, a que se acrescenta uma ‘renovada’ “política de recrutamento altamente restritiva, avaliada globalmente, em articulação com os movimentos normais de passagem à reforma dos servidores do Estado” (p. 12). A preservação dos postos de trabalho na Administração pública é deste modo posta em causa. Além disso, o programa do Governo não esclarece o que entende por “movimentos normais de passagem à reforma” dos funcionários públicos, pelo que é lícito interrogarmo-nos se estarão ou não na calha novos aumentos na idade de aposentação, novas penalizações pelas reformas antecipadas ou até mesmo a proibição destas últimas em nome da ‘sustentabilidade’, num sector em que os chamados ‘direitos adquiridos’ são concebidos por alguns como ‘privilégios’ que importa ‘nivelar’ pelo menor denominador comum, se não mesmo erradicar completamente do horizonte. Entretanto, os trabalhadores ‘excedentes’ da função pública que passarem para o quadro de mobilidade especial, passarão a receber 66,7% dois meses depois e 50% ao fim de um ano. Em nome da ‘liberdade de escolha’ Uma das palavras-passe do programa de Governo PSD/CDS é a ‘liberdade de escolha’ que se transforma em princípio estrutural das políticas sociais. Relativamente ao Sistema Nacional de Saúde (SNS), o Executivo propõe “fomentar um maior protagonismo dos cidadãos na utilização e gestão activa do sistema, através do reforço do exercício de liberdade de escolha dentro de regras de acesso pré-definidas e reguladas, designadamente entre operadores públicos. O cidadão deve ser um protagonista activo no exercício do seu direito a cuidados de saúde” (p. 76). Por detrás destas considerações pomposas esconde- 77 DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL -se, porém, o projecto, há muito acalentado pela direita, do ‘opting out’ do SNS, o que significa o seu esvaziamento a prazo com a transferência de uma parte dos cidadãos que têm poder económico para exercer o direito de ‘liberdade de escolha’ para sistemas privados de saúde e a redução de um SNS cada vez mais subfinanciado aos cidadãos de menores recursos. A americanização pré-obamaniana do sistema de saúde é o alfa e o ómega deste projecto em que, apesar da promessa da defesa de um SNS universal e tendencialmente gratuito, se reduz misteriosamente a sua cobertura a um “plano de prestações garantidas” (p. 76). O programa do Governo nada nos diz sobre que prestações são ou não garantidas pelo SNS, o que levanta desde logo suspeitas sobre a cobertura universal dos cuidados de saúde e dá lugar à abertura de novas ‘brechas’ privatizadoras no próprio sistema, de que a “concessão da gestão de hospitais a operadores dos sectores privado e social” (p.110) constitui um primeiro passo. O princípio da ‘liberdade de escolha’ estende-se também ao sector da educação com o conceito de que o “serviço público de ensino” pode ser prestado por escolas privadas não apenas em regimes de contratos de associação com o Estado, mas também em regimes de contratos simples (p. 113), como já acontecia anteriormente. No entanto, O fecho de escolas públicas e a provável deterioração da qualidade pedagógica resultante do prosseguimento da política desastrosa de constituição de mega-agrupamentos pode criar argumentos para um alargamento das formas de financiamento estatal das escolas do ensino particular e cooperativo através de uma operação ideológica em que o conceito de ‘ensino publico’ tenderá a tornar-se cada vez mais impreciso e indefinido. Neste sentido, o Governo já começou a ‘actuar’ aumentando o financiamento de 2130 turmas das escolas privadas de 181. 600 milhões de euros em 2010/2011 para 253. 700 milhões euros em 2011/2012. Paralelamente, permite que os colégios privados constituam turmas de 12 alunos, enquanto decreta o aumento do número de alunos por turma nas escolas públicas do ensino básico e secundário. O mesmo princípio orienta a política do Governo relativamente ao acesso da população à rede dos transportes públicos. Neste âmbito, pretende-se ‘compensar’ o fomento da regressividade do sistema fiscal e tributário com a ideia de que “devem ser encontradas formas de minorar eventuais aumentos tarifários sobretudo com os cidadãos de menores rendimentos através de medidas de discriminação de preços” (p. 39). Uma das primeiras medidas do Executivo foi um aumento brutal de 15% dos preços dos bilhetes dos transportes públicos, 78 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA que entrou em vigor a partir de 1 de Agosto. O anúncio de que a ‘equidade’ será restabelecida através de medidas de “discriminação de preços” em benefício dos mais desfavorecidos põe sub-repticiamente em causa um sistema de passes sociais de acesso universal. Embora o programa governamental nada adiante a este respeito, a defesa de uma lógica de abertura às privatizações de importantes ramos do sector de transportes públicos aponta para a formação de um sistema dualista: de um lado, os cidadãos de menores recursos que beneficiarão de medidas de ‘discriminação de preços’, permanecendo, porém, envolto no mais denso mistério o modo como estas serão concretizadas; do outro, os cidadãos que, não tendo direito à alegada ‘discriminação de preços’, terão que pagar as ‘tarifas normais’. Repare-se que já o anterior Governo PSD/CDS tentou acabar com os passes sociais. O anúncio destas novas medidas aponta no mesmo sentido, apesar da retórica sobre o restabelecimento da equidade: como se pode restabelecê-la se, simultaneamente, é promovido um sistema fiscal e tributário cada vez mais regressivo? Assim se começa a desenhar-se a passagem do Estado social ao Estado assistencial. O sistema dualista tem como um dos principais campos de aplicação a ‘reforma’ da segurança social. Apesar do abandono da redução TSU, o Governo PSD/CDS disponibiliza-se a efectuar uma estudo sobre “a introdução para as gerações mais novas de um limite superior salarial para efeito de contribuição e determinação do valor da pensão”, mas também a avaliação da “possibilidade de se introduzir contas individuais de poupança remuneradas no sistema público para efeito de pensão de velhice, com contribuição definida por parte dos trabalhadores e empresas e conversão à idade de reforma, tendo em conta a longevidade e o crescimento económico” (p. 93). A introdução de tectos contributivos para os futuros pensionistas, medida já anunciada pelo Executivo, não apenas pode pôr em causa a tão apregoada sustentabilidade da segurança social, mas também criar, de novo em nome da ‘liberdade de escolha’ para as gerações mais novas, um sistema profundamente discriminatório: de um lado, um sistema público de pensões subfinanciado destinado aos mais pobres; do outro, um sistema centrado em seguros ou fundos de pensão privados, para todos os que auferirem de um rendimento que supere o tecto contributivo estipulado. A isto acrescentam-se ainda as ‘contas individuais de poupança’ baseadas num sistema de ‘contribuições definidas’, o que não é mais do que uma tentativa de americanização da segurança social portuguesa. De facto, este 79 DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL sistema, baseado na capitalização bolsista, substituiu, nos Estados Unidos, o de prestações definidas em que o trabalhador tinha, à partida, garantida uma pensão de aposentação com base nos descontos efectuados, independentemente da instabilidade dos mercados financeiros. Os 401 (K) à portuguesa – planos de contribuições definidas dominantes em terras norte-americanas – anunciam assim triunfalmente a sua entrada em cena, em nome de uma ‘liberdade de escolha’ que acaba por converter-se em último recurso para os que não conseguem sobreviver com pensões públicas cada vez mais baixas e socialmente desvalorizadas e podem subscrever esquemas privados de aposentação baseados na ‘lotaria’ da capitalização. Deste modo, é posto em causa o direito universal a uma pensão pública numa lógica regressiva centrada nas desigualdades de poder económico que complementa a da ‘simplificação’ do sistema fiscal e tributário. E com o ar mais natural deste mundo o governo estima que em 2030 o sistema público de pensões centrado na repartição implodirá, o que representa a admissão de uma regressão civilizacional intolerável: cada um por si a divina providência por todos, eis o seu lema neste capítulo. A desregulamentação das relações laborais Relativamente às questões laborais e do emprego, o programa do XIX Governo constitucional diz defender “uma legislação laboral que fomente a economia e a criação de emprego, que diminua a precariedade laboral e que esteja concentrada na protecção do trabalhador e não do posto de trabalho” (p. 26). Antes de tudo, não se percebe como a protecção do trabalhador pode ser separada da protecção do posto de trabalho, já que o Governo enuncia a intenção de diminuir a precariedade laboral. De facto, colocar a tónica sobre a protecção do trabalhador e considerar menos importante a protecção do posto de trabalho é uma forma habilidosa de pôr em causa a estabilidade e segurança no emprego ao mesmo tempo que se anuncia a intenção contrária. Assim, a situação de ‘emergência social’, para a qual existe, como veremos, um alegado programa de combate, serve de pretexto para o que os contratos a termo que caduquem nos próximos doze meses possam ser renovados (p. 27). Mas isto significa precisamente que a promessa de diminuir a precariedade laboral é prontamente desmentida com o alargamento dos contratos atípicos à custa de formas mais estáveis de contratação. Esta medida é, porém, apenas o primeiro passo para uma desregulamentação das relações laborais e para o esvaziamento 80 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho (IRCT). Relativamente à duração do trabalho, o Governo defende que o banco de horas pode ser estabelecido “por acordo individual ou grupal, sem necessidade de previsão em IRCT e de funcionar por períodos plurianuais” (p. 28). Segundo o nº 1 do art. 480 do Código de Trabalho (CT), “o empregador deve afixar em local apropriado da empresa a indicação de instrumentos de regulamentação colectiva aplicáveis”. A dispensa desta necessidade relativamente a uma questão tão importante como o banco de horas retira aos trabalhadores o controlo mínimo que poderiam exercer sobre a duração do trabalho, já que todo “acordo individual ou grupal”, podendo ser celebrado à revelia dos acordos colectivos de trabalho, não passará de uma espécie de acordo ad hoc cuja informalidade beneficia em última instância as entidades patronais que podem impor as suas condições para desregulamentar o horário de trabalho numa situação em que o medo de perder o emprego fragiliza a capacidade dos trabalhadores para defender os seus direitos laborais. Complementarmente, e tomando como pretexto o alinhamento com “práticas internacionais de países de referência”, o programa do Governo PSD/CDS, pretende adequar o tempo de trabalho suplementar “às necessidades das empresas e do trabalhador”, o que se traduz pela abolição da “dupla compensação” – 50% na primeira hora extraordinária e 75% para as seguintes – já prevista no Memorando do Entendimento. Este deixa aos trabalhadores a ‘opção’ entre uma “remuneração suplementar”, que será significativamente menor do que no passado, e a “concessão de tempo equivalente (ou majorado) de descanso (com um limite máximo anual) ou férias” (p. 28). Esta ‘opção’ acaba por pôr em causa o direito à remuneração do trabalho suplementar que não pode ser compensado por um tempo de descanso ou de férias não apenas porque aquele é inseparável da jornada de trabalho, mas também porque o estabelecimento do banco de horas tende cada vez mais a ser definido arbitrariamente pela entidade patronal. A desregulamentação das relações de trabalho atinge o seu apogeu com o alargamento do âmbito dos contratos temporários. Segundo o nº 1 do art. 180º do CT, “o contrato de trabalho temporário só pode ser celebrado a termo resolutivo, nas situações previstas para a celebração do contrato de utilização”. Este contrato pode ser estipulado pela empresa que utiliza o trabalhador apenas “para satisfação de necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à satisfação dessa necessidade” (CT, art. 140º, nº1). O programa 81 DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL governamental visa ‘banalizar’ a celebração deste tipo de contratos que podem ser realizados “sempre que houver uma verdadeira necessidade transitória de trabalho” (p. 28). Além do mais, os contratos de trabalho temporário podem tornar-se cada vez mais informais, já que é defendida “a possibilidade de prescindir de justificação, desde que respeitados certos limites percentuais deste tipo de contratação, face ao total de trabalhadores da empresa” (p. 28). Este conjunto de medidas pressupõe uma ideologia que privilegia a individualização das relações laborais em detrimento da contratação colectiva e aposta no alargamento dos contratos atípicos. A resposta ao desemprego não pode, porém, passar pelo alargamento da precariedade e instabilidade laborais, frequentemente associadas a baixos salários e, consequentemente, a um poder de compra reduzido, completamente insuficiente para estimular a procura interna que é a base de sustentação do emprego, bem como pelo aumento do horário de trabalho de que se destaca a meia hora suplementar no sector privado que, pode transformar-se na acumulação de um ‘crédito’ até 10 horas sobre cada trabalhador. Este crédito poderá ser distribuído pela entidade patronal pelos dias úteis da semana ou então concentrar-se num dia que “não seja de descanso semanal obrigatório”, o que equivale a dizer que os trabalhadores serão forçados a fornecer gratuitamente 10 horas de trabalho num sábado por mês (4 x 2H 30), ultrapassando, por conseguinte, as 48 horas de trabalho que é o limite legal máximo do horário laboral na UE. Mas o Governo está sempre predisposto a invocar um pretenso estado de ‘emergência social’ para introduzir medidas em que o inevitável preço a pagar pela alegada redução da taxa de desemprego consiste num trabalho carente de direitos ou com direitos substancialmente restringidos. Emergência social ou precariedade social? Considerando que o país “vive hoje uma crise social”, o Governo propõe um “programa de emergência social” em que se promete que “ninguém será deixado para trás” (p. 81). Esta louvável intenção entra, porém, em contradição com a ausência de políticas sociais redistributivas. A própria designação ‘programa de emergência social” trai as benévolas intenções governamentais, pois todo o Estado social que se preze dispensa, com a excepção da ocorrência de catástrofes naturais imprevistas, a declaração de estados de emergência. De facto, as políticas sociais redistributivas não visam limitar prejuízos, mas melhorar as condições de vida de todos, nem tomam como pretexto o agravamento da situação das 82 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA pessoas com maiores carências para deixar os outros entregues a si próprios, em nome de um conceito de ‘responsabilidade social’ que se transforma num mero resíduo do axioma da ‘liberdade de escolha’. O programa do Governo partilha uma ideologia que considera inevitáveis as desigualdades sociais e que, por conseguinte, tende a desresponsabilizar o Estado na criação de uma sociedade mais inclusiva. A desregulamentação das relações laborais, a regressividade do sistema fiscal e tributário, a redução do âmbito universal SNS centrado nas misteriosas ‘prestações garantidas’, a inviabilização da maioria das urgências nos hospitais públicos em consequência da redução de 50% do limite anual horas extras dos médicos, a fusão e encerramento de hospitais públicos enquanto os hospitais privados proliferam como cogumelos, a privatização parcial da segurança social através do estabelecimento de tectos contributivos e da introdução de contas individuais de poupança em que as reformas futuras dependem da aleatoriedade das aplicações na Bolsa, apontam para um desmantelamento do Estado social e para a sua conversão em Estado assistencial. A característica central do ‘programa de emergência social’ é a transferência da responsabilidade social do Estado para outros sujeitos e a total ausência de propostas estruturadas de política social. Prova disso é que a “base da estrutura” que visa garantir que “ninguém fica para trás” será transferida para as “autarquias (sinalização das situações de acompanhamento e controlo)” ao mesmo tempo que lhes são cortados financiamentos, enquanto “na sua gestão devem participar as IPSS e as organizações da sociedade civil” (p. 86). Mas isto significa que não existe verdadeiramente um programa integrado de combate às situações de pobreza, mas apenas um conjunto muito vago de medidas avulsas, de que se destaca a “criação de bolsas de voluntários” que se empenhem em ‘causas sociais’ como a constituição dos banco alimentares e o apoio à terceira idade nos seus domicílios. Nada nos move contra o voluntariado. Antes pelo contrário, apreciamos enormemente a dedicação, a entrega e o espírito de solidariedade das pessoas que se dedicam a ajudar os outros numa época em que se difunde cada vez mais um individualismo exclusivista. No entanto, não é através de apelos ao voluntariado ou às ‘iniciativas’ da sociedade civil que se resolvem os problemas resultantes do agravamento das desigualdades sociais. Tais apelos denotam uma concepção assistencialista de intervenção social que acaba por legitimar as assimetrias sociais que afirma querer combater. A isto se acrescenta ainda para completar o quadro a obrigação de “prestação de trabalho comuni- 83 DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL tário pelos beneficiários do RSI” (p. 90), bem como a criação de “programas dirigidos à inserção de desempregados com mais de 55 anos, através de acções de formação profissional específica, com o objectivo de fornecer as competências adequadas para o desempenho de funções de apoio social, no quadro da Rede Nacional de Solidariedade” (p. 30). Deste modo, se abre a porta, em nome da ‘emergência social’ e de uma ‘Rede Nacional de Solidariedade’ de contornos indefinidos, a uma concepção que considera o subsídio de desemprego não como um direito, mas como uma mera contrapartida de uma prestação que de voluntária se transforma em obrigatória. De facto, o ministro da Solidariedade Pedro Mota Soares, já disse que a todos os que se recusarem a prestar o trabalho de ‘emergência social’ em lares, creches e outros equipamentos serão retirados os subsídios de desemprego (Ver: DN, 6.08.2011). Além do mais, a entrada destes ‘colaboradores’ forçados a baixo preço contribuirá para reduzir ainda mais os já muito baixos salários dos trabalhadores das instituições privadas de solidariedade social. Em conclusão, o programa do Governo PSD/CDS aponta para o aprofundamento de um preocupante dualismo social: dum lado, uma minoria opulenta cada vez mais exígua; do outro, uma zona de exclusão e pobreza sociais destinatária de políticas assistencialistas ou de um programa de ‘emergência social’. Entre uma e outra situa-se uma zona intermédia de contornos indefinidos e com expectativas tendencialmente decrescentes em que vigora o princípio da ‘liberdade de escolha’, complementado por um conceito de ‘responsabilidade social’ em que o número cada vez menor dos que possuem capacidade aquisitiva podem satisfazer a sua ‘boa consciência’ distribuindo pelas instituições privadas de solidariedade social as sobras do seu ‘bem-estar’ para aliviar o ‘mal-estar’ dos indigentes desprovidos de direitos e dependentes da caridade institucionalizada: alimentos para os bancos contra a fome, vestuário usado e mesmo medicamentos. Os primeiros e os terceiros estão muitas vezes fora de prazo, pois, como diz o ditado, “a cavalo dado não se olha o dente” e constitui um sacrilégio que os pobres e doentes sejam mal agradecidos. Nesta verdadeira ‘terra de ninguém’ os cidadãos serão avaliados segundo a sua capacidade e poder económico, já que as prestações do Estado social serão cada vez mais reduzidas. Para poderem ter acesso às prestações não garantidas de um SNS cada vez menos universal, estes deverão subscrever seguros privados de saúde, bem como planos privados de pensão centrados na capitalização para não ficarem reduzidos a pensões públicas cada vez mais reduzidas. 84 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA Não sendo indigentes, não terão acesso à ‘tarifa social’ dos transportes públicos, mas deverão suportar preços diferenciados conforme os rendimentos. Da mesma forma, não terão direito a receber as sobras dos medicamentos em final de prazo, medida de ‘emergência social’ enunciada em 4 de Agosto de 2011, para reduzir os desperdícios e ajudar os mais pobres dos cada vez mais pobres, mas deverão pagar uma percentagem cada vez maior dos medicamentos em primeira mão que consomem, já que as comparticipações estatais tenderão a reduzir-se cada vez mais. Assim, se retoma, de novo, o tristemente célebre lema de um membro do governo cavaquista: “Quem quer saúde que a pague”. A transformação regressiva do Estado social em Estado assistencial basear-se-á num empobrecimento generalizado da população considerado como uma inevitabilidade. Não é verdade que, apesar da retórica do programa do Governo sobre a promoção do emprego, o ministro das Finanças considera ‘natural’ que a taxa de desemprego atinja 13, 5% em 2012 – estimativa subavaliada se tivermos em conta os cortes salariais na função pública, o aumento do horário de trabalho no sector privado, a brutal quebra do investimento e a redução da procura nos mercados para onde se dirige a maior parte das nossas exportações – e que apenas comece a descer lentamente em 2013? Não explica, porém, como nestas condições socialmente restritivas, contrárias à criação de emprego e à dinamização da procura interna, se poderá reduzir o défice público para 3% em 2013, quando já se torna muito difícil cumprir a meta de 4,5% acordada com a ‘troika’ em 2012. A sobretaxa de 50% sobre o 14º mês que incide exclusivamente sobre os rendimentos de trabalho e poupa escandalosamente os rendimentos do capital, em 2011, corte dos subsídios de férias e natal dos funcionários públicos em 2012, o aumento brutal de 15% das tarifas dos transportes públicos e a redução em estudo da rede pública de transportes metropolitanos revelam claramente que o Governo do PSD/CDS não está minimamente preocupado com a justiça social nem com a repartição equitativa dos sacrifícios necessários para equilibrar as contas públicas. As políticas de redistribuição social dos rendimentos, pilares do Estado social, são substituídas pela caridade privada institucionalizada que legitima, na prática, uma desigualdade e precariedade sociais que não param de crescer. Tempos sombrios se avizinham: o processo de degradação e fascização sociais e a dependência dos mais fragilizados relativamente aos que detêm alguma forma de poder ou de predomínio avançam a passos de gigante. 85 IDEIAS Precisamos de mais Europa contra a Crise* Guilherme d’Oliveira Martins N ão há organizações humanas irreversíveis e a União Europeia, apesar de resultar de uma obrigação de sobrevivência, não escapa a esta consideração. Desde o pós-guerra, vivemos hoje o momento mais perigoso para o equilíbrio do velho continente. Não falo só das dificuldades económicas, que são superáveis, mas sim das repercussões políticas da perigosa fragmentação social a que se assiste. A crise das dívidas soberanas na Europa é essencialmente política, uma vez que resulta da tentação fragmentária e dos egoísmos nacionais – agora evidentes, quando a memória da destruição europeia da primeira metade do século XX vai-se esvaindo, mostrando-se as novas gerações pouco atentas à exigência de lançar planos e políticas audaciosos, visando assegurar os equilíbrios e uma coordenação de vontades para defender os interesses vitais europeus. A Europa é um continente heterogéneo, que não pode ter a tentação de realizar uma união artificial. Não há uma nação europeia, mas sim uma união de Estados e Povos livres e soberanos. As duas legitimidades, dos Estados e dos cidadãos, têm de ser preservadas. Daí que sejamos confrontados com o desafio de distinguir, em nome da subsidiariedade, os objetivos nacionais e supranacionais. Por isso, a ideia de governo económico da União obriga a compreender que a coesão económica, social e territorial terá de resultar de iniciativas comuns de investimento e emprego, de medidas tendentes à justiça distributiva e do fortalecimento de instrumentos de democracia supranacional, capazes de envolver os cidadãos e de reforçar a legitimidade do exercício. A Europa não poderá ser vista como uma associação de formigas e cigarras, na imagem da fábula de Esopo, cheias de má consciência ou de momentâneo brio. Não basta proclamar a virtude da disciplina das despesas públicas, é indispensável colocar o rigor e a exigência permanentes ao serviço de uma economia europeia saudável, em que cada um seja capaz de desempenhar o seu papel – adequando os * Este texto foi redigido segundo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 87 PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE recursos às finalidades, para que as necessidades económicas sejam satisfeitas de acordo com os recursos disponíveis. E o certo é que é indispensável percebermos que o «efeito europeu» deve funcionar, permitindo que, em conjunto, possamos superar a grave crise que atravessamos. Só em conjunto poderemos ter respostas. Cada um por si, apenas poderá encaminhar-se para o desastre. E o mesmo se diga se a União Europeia se limitar a dar receitas, sem se comprometer com a tarefa essencial de ajudar na ação de curar. Como lembra Jean-Paul Fitoussi: «os programas de rigor sucedem-se a um ritmo acelerado nos países ditos “da periferia”, até se propagarem hoje ao centro da Europa». (Le Monde, 21.7.2011). É, no entanto, preciso perceber que o rigor é positivo se não se tornar depressivo e insuscetível de ajudar a recuperação. Como em qualquer terapia, temos de evitar a todo o custo que o enfermo, não morrendo da doença, seja condenado pela cura. Os erros passados (a ilusão contabilística, o crédito sem freio, a especulação indiscriminada) não podem dar lugar ao salve-se quem puder. Precisamos de uma sábia ligação entre uma disciplina durável e a preservação de medidas sociais que atenuem as desigualdades e realizem a equidade e a eficiência. A subalternização das políticas sociais e da coesão económica terá efeitos dramáticos. E Fitoussi lembra ainda: «a solvabilidade – a capacidade de reembolsar as dívidas de cada um – é uma questão de futuro: depende, é um truísmo, da importância das receitas futuras, comparadas às somas que convém reembolsar. Programas de austeridade muito exigentes reduzem as perspetivas de receitas, enquanto as taxas de juro muito elevadas aumentam as anuidades de reembolso». Temos, assim, de recusar a tentação de agravar os programas de resgate, preferindo preservar a sustentabilidade das finanças públicas em ligação com a recuperação económica. Sustentabilidade e recuperação são faces de uma mesma moeda. Os responsáveis da zona euro não podem continuar a brincar com o fogo, correndo o risco de precipitar a Europa e o mundo numa crise ainda maior, que os especuladores (em busca de ganhos fáceis) visam induzir, como se tem visto nos últimos dias, não só na Europa, mas também nos Estados Unidos. Numa palavra, não podemos pedir a responsabilidade das cigarras, enquanto cultivamos a irresponsabilidade das formigas. É mesmo disto que se trata – num mundo que parece funcionar às avessas. Os sinais que se perfilam no horizonte são cada vez mais preocupantes. A globalização, com as suas virtudes e defeitos, traz-nos a rápida transmissão 88 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS das enfermidades. A Europa e os Estados Unidos da América vivem um momento muito difícil, em que os erros se acumulam (e se reproduzem) e, em vez de sinais duráveis de recuperação, há, a cada passo, sintomas de agravamento de todas as incertezas. O certo é que há um exercício para o qual não tem havido respostas satisfatórias, que corresponde à necessidade de harmonizar as medidas de consolidação orçamental e de controlo das dívidas dos Estados e das economias com a promoção de investimentos reprodutivos e de emprego, capazes de pôr as economias a funcionar com crescimento económico e melhor desenvolvimento humano. Se voltasse ao mundo, John Maynard Keynes, um liberal aberto, ciente da importância da cultura e da coesão, conhecedor do género humano, estudioso e prático do curto prazo e da complexidade do equilíbrio económico (fora das tentações unívocas e simplificadoras dos clássicos, como Jean-Baptiste Say), depararia, para seu grande espanto, com os erros simétricos dos seus pretensos amigos e adversários. Os amigos esqueceram-se de integrar a noção de procura efetiva no contexto do mercado sem fronteiras, envolvendo a complementaridade entre a ação das políticas públicas e a responsabilidade dos agentes económicos. Afinal, para Keynes, o crédito público teria de ser momentâneo e não sistemático, devendo ser reduzido em situações de pleno emprego – e aí não tem havido o «fine tuning» exigido pelo acompanhamento cuidado das conjunturas. Os adversários têm cometido o erro de sinal contrário, incapazes de entender que a estabilidade de preços deve ser alcançada através da compreensão dos diversos tipos de equilíbrio – ora de pleno emprego, ora de subemprego. Numa palavra, a falsa vulgata keynesiana tem prevalecido, esquecida da lição fundamental do mestre de Cambridge – segundo a qual a estabilização da conjuntura obriga a uma atenção permanente à evolução volúvel e inesperada da procura efetiva global. Se regressarmos à leitura atenta da obra de Keynes facilmente percebemos que há muito que os decisores fundamentais esqueceram o seu alcance e as suas passagens fundamentais. Olhemos com atenção os casos europeu e português. Lembremo-nos do memorando do triunvirato (UE – BCE – FMI). Diga-se, em abono da verdade que os objetivos aí consagrados são corretos e devem ser cumpridos. As medidas de disciplina e rigor das Finanças Públicas devem ser aplicadas, considerando que o objetivo essencial é reencontrar o caminho do crescimento económico e do desenvolvimento. A dívida pública deve ser consistentemente reduzida, 89 PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE com mais eficiência económica e mais e melhor emprego. Estamos perante uma exigência lançada à economia real (pública e privada), impondo-se evitar, a todo o custo, o agravamento da tendência depressiva da economia. Se não dermos possibilidades às economias periféricas de crescer, apenas estaremos a agravar os problemas de todos. A indústria alemã precisa do mercado europeu, as economias europeias precisam da coesão económica, social e territorial da União, a economia global será gravemente afetada se o euro falhar. Daí que, quando se ouve o discurso do fim do euro, o que se passa é que quem o cultiva ajuda neste momento a fragilização da União Europeia. O euro é uma tábua de salvação, desde que haja vontade e coragem para assumir o governo económico europeu, mais necessário que nunca. Aliás, percebeu-se bem que a lógica depressiva na Europa já se transmitiu aos Estados Unidos (num estranho jogo de espelhos) – podendo anunciar uma recessão na economia mundial. Como se vê com a Itália e a Espanha, o ataque dos especuladores ao euro seguiu a bem conhecida técnica do salame. A começar nos elos frágeis, houve a tentação de pensar que os mercados se satisfariam com a oferta aos predadores de algumas ovelhas, mais ou menos inocentes. No entanto, os lobos não se satisfizeram. O primeiro resgate da Grécia não funcionou porque não houve a capacidade de entender que se exigiria a antecipação de medidas que protegessem a moeda única e que pressupusessem uma autêntica solidariedade, que não existiu. Todos estamos, contudo, no mesmo barco. Só a Europa (se existir e se se coordenar) pode evitar uma recessão mundial com efeitos imprevisíveis. Impõe-se que cada um cumpra o seu papel: que as medidas disciplinadoras se liguem a decisões inovadoras e à criação de riqueza. Eis por que razão a disciplina das Finanças Públicas deve ser cada vez mais rigorosa – desde que haja capacidade criadora de riqueza e de emprego, e se favoreça a coesão social, a confiança e a justiça distributiva. As Finanças Públicas são um instrumento ao serviço das pessoas, não podem tornar-se um fim em si. Daí a importância das políticas sociais em ligação com o aperfeiçoamento da legitimidade política do exercício – como tem insistido Pierre Rosanvallon. Só haverá. Deste modo, futuro para a Europa social se o rigor e a justiça se completarem. Permitam-me ainda uma reflexão complementar. O tema está na ordem do dia: surgem diversas propostas no sentido de introduzir nas constituições 90 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS europeias limites formais no tocante à dívida pública e ao défice orçamental. Diga-se em abono da verdade que as preocupações subjacentes são legítimas. Pretende-se, afinal, evitar surpresas futuras no tocante à estabilidade do euro resultantes da indisciplina orçamental. Theo Weigel, Ministro das Finanças alemão, em 1997, pretendeu atingir esse objetivo através do que designou como Pacto de Estabilidade, que seria um instrumento internacional autónomo com força própria, de natureza intergovernamental, que constrangeria, mercê da existência de sanções, os Estados-membros do Euro. Tal não viria a ser aceite pelo Conselho Europeu, prevalecendo a lógica supranacional, traduzida na aprovação de regulamentos sobre os défices excessivos, que conhecemos como Pacto de Estabilidade e Crescimento, e que foram alterados em 2005, para darem (e bem) ênfase sobretudo ao endividamento público e à equidade intergeracional. Muitos consideram, porém, esses regulamentos da União Europeia insuficientes na sua força dissuasória. Daí a insistência na necessidade de introduzir nas Constituições dos países membros da União limites constitucionais expressos – à imagem e semelhança da regra de ouro constante na Lei Fundamental alemã. Reza o artigo 115º. 2 da Grundgesetz: «As receitas e despesas devem ser equilibradas basicamente sem recorrer a créditos. Este princípio é cumprido, quando os recursos provenientes de créditos não ultrapassem 0,35 por cento em relação ao Produto Interno Bruto nominal. Adicionalmente, há de ter-se em conta os efeitos de uma evolução conjuntural que não corresponda à situação normal de altas e baixas simétricas». Em Inglaterra, por outro lado, a Constituição material inclui, desde 1997, por decisão do Governo de Tony Blair, quando Gordon Brown era Chanceler do Tesouro, a regra de ouro segundo a qual «o Governo contrairá crédito apenas para investimento e não para financiar despesa corrente». Facilmente percebemos que as soluções possíveis são sempre muito diversificadas, deparando-se, a cada passo, com as variáveis múltiplas e imprevisíveis presentes nas políticas de finanças públicas. De facto, a tentativa de solucionar problemas políticos conexos com condicionantes económicas e sociais complexas merece uma especial atenção, uma vez que é um engano pensar-se que uma suposta «inconstitucionalidade» da Lei do Orçamento poderá evitar a indisciplina financeira e fiscal. Impõe-se, assim, dar especial atenção à política (politics e policy) não a confundindo com técnica. Nesse sentido, por exemplo, a ação dos Tribunais de Contas e organizações superiores de controlo, em especial quando há instrumentos de fiscalização prévia quanto às 91 PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE operações de maior dimensão e quando há a possibilidade de acionar a responsabilização financeira dos agentes e exatores orçamentais, revelam-se de maior eficácia – sobretudo se os instrumentos disciplinadores do Tratado da União Europeia funcionarem (pela existência de sanções efetivas, segundo um princípio de igualdade entre todos os Estados). Ora, a Constituição da República Portuguesa não só consagra o reconhecimento, com todas as consequências, do fenómeno supracional da União Europeia, integrando na nossa ordem jurídica o direito comunitário, mercê de um fenómeno de partilha de soberanias (onde se integra o regime de responsabilidades quanto aos défices excessivos e limites da dívida pública), mas também assume um sistema de responsabilidade financeira, baseado no Tribunal de Contas e na participação deste na rede europeia englobando o Tribunal de Contas europeu. Há, pois, na Constituição material portuguesa um sistema que consagra, desde já, a existência de limites claros quanto à dívida pública e ao défice orçamental. E quais são eles? Nos termos dos Tratados e dos regulamentos aplicáveis: 3 por cento do PIB para o défice e 60 por cento quanto à dívida pública. Estes compromissos estão claros e a sua definição não deve oferecer dúvidas – devendo ter consequências sancionatórias no âmbito de um governo económico da União. No entanto, importa compreender a crítica justa feita por Jacques Delors, desde o início, à aplicação formalista de critérios basicamente monetários. A União Económica e Monetária só pode funcionar se for económica, isto é, se integrar as políticas de coesão social e de justiça distributiva, em articulação com a estabilidade monetária. Ora, a consagração de limites formais nas Constituições obriga a criar mecanismos rígidos de consequências imprevisíveis, sobretudo em países da coesão, como Portugal, em que a disciplina e a convergência económica e social têm de ser vistas lado a lado. Nesse sentido, a inclusão de uma norma formal na Constituição revela-se falível, por duas razões: ou porque confunde um desiderato político com uma interpretação técnica, ou porque não teria em consideração a dinâmica da evolução económica numa Europa mais concorrencial, mais coesa e justa, que a prática e a jurisprudência comunitárias terão de concretizar. Se a Constituição material consagra já os limites europeus, então consideremo-los, adicionando-lhes a coordenação do governo económico europeu! É mais prudente e eficaz. 92 O Trágico Regresso das Direitas* Alfredo Margarido N a Europa as eleições sucedem-se levando aos mesmos resultados: aumento do número de eleitores que abandonam as esquerdas tradicionais, preferindo-lhes os vários matizes e sobretudo da extrema-direita nacionalista e populista. Face a esta vaga, falsamente inesperada, as esquerdas mostram-se desarmadas, na medida em que uma parte delas renunciou de maneira explícita ao vocabulário e ao projecto da esquerda, como se verificou no caso francês, tendo Leonel Jospin anunciado que o seu programa eleitoral não seria socialista (!). Esta situação não poder ser explicada sem o recurso à história, na medida em que não estamos perante um movimento súbito e desordenado, mas antes face à acumulação de vagas que, lenta mas constantemente, anunciaram a reconversão de uma fracção das populações europeias ao vocabulário da extrema-direita. Se o racismo sempre foi uma constante da Europa cristã e branca, se o anti-semitismo aparece apenas como uma variável interna desse racismo, não podemos deixar de mostrar a nossa surpresa perante a violência da metamorfose. Do ponto de vista da história, seria fácil regressar ao nazismo, já que este oferece, com os seus campos de concentração e a destruição total e deliberada de alguns segmentos das populações europeias – judeus à frente, logo seguidos por ciganos, homossexuais, doentes mentais, marcha funesta que levava na cauda os “políticos” comunistas e anarquistas antes de quaisquer outros – o modelo perfeito da arianização, ou a branquização da Europa. Parece contudo indispensável evocar algumas outras circunstâncias europeias. Uma das consequências ideológicas mais funestas da guerra opondo, dentro do quadro amplo da segunda guerra mundial, os russos aos alemães, foi a aceitação de uma oposição firme e declarada entre os “dirigentes”, evidentemente perversos, e o “povo”, ou seja, os “soldados”, inocentes apenas vítimas da perversão * Este texto de Alfredo Margarido encontrava-se em carteira. Apesar de algumas passagens estarem desactualizadas, o artigo é, em termos globais, de grande actualidade. Por isso, decidimos publicá-lo a título póstumo. Informamos os leitores que, nos próximos números, poderemos publicar na Finisterra novos textos do espólio do autor. 93 O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS dos dirigentes. Tal foi o ponto teórico afirmado dia e noite nas emissoras russas recorrendo ao alemão. O seu autor foi um subpai do povo, Molotov, que teve a seu cargo a gestão dos negócios internacionais da defunta União Soviética. Os dirigentes soviéticos nem sequer se deram à tarefa de verificar que os dirigentes nazis não matavam ninguém: eram os “inocentes”, os soldados da Wehrmacht que destruíam e torturavam os russos, os judeus antes de quaisquer outros, mas depois os comissários políticos e, enfim, todos os que falavam russo, viviam na Rússia e deviam ser destruídos, pois não podiam deixar de ser comunistas. A verdade, porém, é que esta angelização do “povo”, reforçada pela “diabolização” dos dirigentes, forneceu uma grelha ideológica onde se eliminou todo e qualquer elemento dialéctico, que ainda continua a funcionar. Basta observar a tristeza compungida de alguns comentários provindos da esquerda burguesmente bem comportada: em França, os operários não teriam receado votar na extrema-direita, o que deve ser interpretado como uma espécie de movimento contra-natura, aceitando-se que o proletariado pertence naturalmente à esquerda. O código genético do proletariado seria de natureza a impor esta única orientação, pondo termo a qualquer forma de livre-arbítrio. Basta ler os comentários da imprensa durante esse período, para estarmos em condições de nos dar conta desta “naturalização” das escolhas políticas. Esta maneira de ver as coisas apoia-se mais numa concepção biológica, ou para-biológica, do que na coerência das escolhas políticas. Tais comentadores ignoram aos que parece a velha e sempre actual lição de Karl Marx: não se deve confundir a “situação” de classe com a “consciência de classe”. E um certo número de marxólogos consagram um amplo esforço para descrever as diferentes formas de alienação que pesam sobre os homens que trabalham. A eliminação de Karl Marx, considerado responsável pelas malfeitorias de Estaline e dependentes, contribui de maneira evidente para a opacidade teórica em que estamos a viver. Tanto mais que a “situação de classe” produziu alguns sólidos frutos teóricos, como no caso do “foco”, caro aos cubanos e a Régis Debray, que acreditava que o “instinto” revolucionário estava presente nos trabalhadores dominados ou colonizados, como também se pode ainda hoje ler na obra teórica de Frantz Fanon. Confiando à natureza o que pertence ao trabalho político, acabou por se renunciar à simples análise dos parâmetros da mundialização, que conseguiu anular o esforço teórico indispensável à análise das tensões existentes. Ora como esquecer que o etnocentrismo, sendo embora um conceito do século 94 ALFREDO MARGARIDO XIX, constitui um dos pilares mais activos da relação entre o Mesmo e o Outro? A sobrevalorização dos valores do grupo – do mesmo – exige a desvalorização paralela dos valores do Outro. Podemos encontrar um belo exemplo deste mecanismo em Heródoto, em Euterpe, que compara algumas práticas egípcias com a dos gregos, para concluir que, dadas as diferenças, “os egípcios não eram homens”. Esta desumanização não pode deixar de arrastar consigo o seu comportamento: o enselvajamento. A Europa que possui há milénios fortes sentimentos anti-semitas, reforçou-os com o anti-islamismo. Durante séculos o Mediterrâneo multiplicou as guerras provocadas pelas religiões e, de resto, continuamos nos nossos dias mergulhados na violência irracional desses afrontamentos. Como se a diferença religiosa não fosse suficiente como fonte de conflitos, acrescentaram-se as diferenças somáticas, que serviram entre o mais para justificar e reforçar, pelo menos a partir do século XV, a escravatura africana e o tráfico de escravos. Não podemos esquecer que a liquidação dos judeus pelos nazis alemães foi precedido pela violenta repressão exercida pelo exército vermelho soviético, organizado por Trotsky, não só contra os “anarquistas”, mas sobretudo contra os “nacionalistas”, isto é, os defensores dos valores nacionais, que tinham acreditado que a solução federalista podia conduzir à exacerbação desses valores nacionais que o Império só podia ter maltratado, procurando erradicá-los de maneira definitiva. Como se a Revolução só pudesse ser possível quando decidida a eliminar a própria originalidade social e cultural das populações. Talvez pressentindo esta violência, Karl Marx fora incapaz de explicar a Vera Zassulitch qual podia ser a contribuição do mir na organização futura do campo russo ou soviético. Se a Alemanha pôde liquidar seis milhões e meio de judeus, modificando para sempre a estrutura antropológica e cultural da Europa, tal se deveu à existência desse anti-semitismo, que já multiplicara os progroms e que permitira que a França levasse a cabo um progrom militaro-judicial no “affaire Dreyfus”. Foi necessária a associação do Vaticano com os Estados Unidos e a Alemanha para proceder a esta liquidação maciça, que pode contar com cumplicidades tanto teóricas como logísticas de quase todos os aparelhos políticos europeus. Arthur Miller conta nas suas Memórias que o anti-semitismo do Estado-maior norte-americano impediu que fossem bombardeadas as linhas de caminho-de-ferro que levavam aos campos de concentração, mantendo em funcionamento normal este instrumento sem o qual não teria sido possível esvaziar a Europa de judeus, transformados em fumo nos vários campos de 95 O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS concentração instalados a leste da Europa. Ou seja, a burocracia de Eichman foi servida pela cumplicidade objectiva do estado-maior norte-americano, mau grado a intervenção apaixonada dos judeus instalados na Suíça. O após-guerra complicou muito as situações, pois que a reconstrução assim como a reestruturação da produção, exigiam força de trabalho numerosa, vigorosa e disciplinada. O remédio para esta situação já fora enunciado no imediato após-primeira guerra mundial: era indispensável importar trabalhadores. Os italianos permitiram que a construção civil francesa recuperasse rapidamente, tal como os polacos forneceram os trabalhadores para as actividades mineiras, sobretudo no que se refere ao carvão ou ao potássio. Não sem uma contribuição modesta dos portugueses. Face às destruições provocadas pelos bombardeamentos e outras operações destruidoras, foi necessário voltar a importar trabalhadores estrangeiros, a partir de 1945. A Europa do plano Marshall foi também a Europa do trabalho emigrado. As cidades foram recuperando o seu perfil clássico, e pouco a pouco as populações, mesmo se não enriqueceram, passaram a poder comprar uma fracção do supérfluo com que sempre tinham sonhado. O “dois cavalos” permitiu que o proletariado e fracções da pequena burguesia pudessem comprar o seu “carrinho”. Importar trabalhadores, quer dizer aceitar novas regras sociais, pois se trata de corpos, de línguas, de religiões, de cozinhas e até de vestuário diferentes. A coabitação foi possível, como lembram algumas memórias (por exemplo, Cavana), enquanto os emigrantes aceitaram os guetos, isto é, a instalação à margem da cidade. A política dos “arrabaldes” (as banlieues), permitiu dividir as populações em dois grupos que só contactavam nos transportes e nos armazéns: instalou-se uma fronteira fria entre os dois grupos de produtores. Esta situação agravou-se, no caso dos portugueses, com a criação dos “bidonvilles”, os famosos bairros de lata onde, durante anos, os portugueses esperaram que a sociedade francesa lhes permitisse instalar-se no espaço social urbano. À medida que, graças também ao trabalho dos emigrantes, a Europa enriquece, descobre a necessidade da intolerância. Ouvi há dias o jovem cabo-verdiano agora promovido na Holanda devido ao assassinato do dirigente da extrema-direita Pim Fortuyn. O que pretende ele? Pois simplesmente o encerramento das fronteiras, para impedir a instalação na Holanda de novos emigrantes. Deve esperar-se que os mais antigos, entre os quais ele se conta, se instalem confortavelmente. Uma vez isso feito, poder-se-á então rever as regras impostas ao controlo da emigração. A Holanda votou agora, assegurando um resultado histórico à lista Pim 96 ALFREDO MARGARIDO Fortuyn, dirigente assassinado em Roterdão a 6 de Maio. Tal como se verificara em França, a emigração foi um dos cavalos de batalha do debate eleitoral. Em França, o debate está marcado pela forte presença de muçulmanos oriundos das antigas colónias francesas – Argélia, Marrocos e Tunísia –, mas também pela presença crescente de trabalhadores oriundos da África negra, que continuam a optar pelas vias tradicionais da emigração, que a primeira guerra mundial abrira aos africanos dependentes do processo colonial. O facto de se registar em França a existência de regiões mais duramente racistas, sublinha a dupla importância das populações francesas provenientes da África do Norte – les rapatriés, ou os pieds noirs, entre os quais se contavam alguns pieds rouges – que continuam a chocar-se com os antigos colonizados, muçulmanos na sua maior parte, mesmo se se regista uma forte tendência para abrandar o ritmo e a pureza das práticas religiosas ortodoxas. Nesta região, é a guerra colonial que continua e que não parece destinada a apaziguar-se. Não esqueçamos que Jean-Marie Le Pen foi oficialmente pára-quedista (Le lieutenant Le Pen) na Argélia, sendo acusado – embora sem provas – de estar associado a práticas de tortura e a crimes violentamente antimuçulmanos. Uma das questões essenciais reside nos dias de hoje num duplo descrédito: não haveria diferença entre a esquerda e a direita, pelo que na escolha seria não só impossível como absolutamente inútil. Se tal se diz, devemos contabilizar o peso e o sentido desta afirmação.É evidente que esta dissolução da diferença deve ser atribuída à esquerda, que não procede ao trabalho de análise política, deixando acreditar a ideia de que o mais importante reside na competência dos gerentes dos diferentes aspectos da sociedade moderna. Assim, por exemplo, as famosas listas de espera nos hospitais seriam quase só a consequência da imperícia dos administradores dos hospitais. A falta de estudos sistemáticos até permite que esta ideia seja correntemente aceite quando estamos perante uma situação que deriva de situações sociais e técnicas inéditas. Os portugueses só agora começam a descobrir o corpo e as práticas da medicina preventiva. Por outro lado, a segurança social permite-lhes consultar os médicos, quer com boas razões, quer sob a pressão dos seus próprios fantasmas. O que aumenta de maneira evidente a recursos aos médicos e aos hospitais. Por boas, por excelentes razões, que contudo, ainda não conseguiram encontrar a resposta política adequada. Os governos socialistas são responsáveis pela despolitização deste problema, sendo Correia de Campos um dos gestores que se mostrou incapaz de compreender o alcance das suas intervenções. Ao proceder à despolitização, os ministros obrigam a esquerda 97 O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS a renunciar aos seus valores próprios, fornecendo à direita um diploma de superioridades gestionária, que tem sido constantemente exibido, mesmo se não podemos de momento contar com resultados largamente credíveis. A cultura da esquerda só pode ser crítica, mas ao renunciar à análise polémica das situações, a esquerda deserta expressamente os seus valores, contribuindo para a atonia do político. Voltemos, por isso, a algumas lições dadas durante o século XIX, e que se prolongam no século XX. Quem poderá esquecer que os modelos anarquistas tanto fecundaram as ideias políticas, como aquelas, aparentemente mais modestas, da estética? Quem poderá ignorar que existe uma ligação directa entre a utopia de Charles Fourier e a proposta plástica de André Breton? Ora como compreender a organicidade desta ligação, se renunciarmos ao seu veemente conteúdo político? A direita vive, como todos os necrófagos, devorando cadáveres das ideias da esquerda. O grande esforço da esquerda deve por isso centrar-se na necessidade de regressar ao terreno das suas ideias próprias que acreditam na revisão crítica das propostas teóricas, não esquecendo de proceder à análise do peso do quotidiano. Não nos iludamos: se a esquerda pode, em França, barrar o caminho de Le Pen, foi servindo-se de um mediador, o Sr. Jacques Chirac, que a esquerda considera com razão ser um ladrão e um vigarista de alto coturno. Ou seja, para se defender do inferno, a esquerda democrata e republicana, foi obrigada a eleger uma personalidade diabólica não só medíocre, mas visceralmente desonesta, que soube contudo empurrar para a primeira linha a sua mulher, que provém da nobreza provincial, e a sua filha, que procura feminizar uma campanha caracterizada pela mobilização dos velhos ratos de rabo pelado que nos últimos vinte anos macularam com nódoas indeléveis o corpo frágil da República. Retomemos pois o lento trabalho político. Ninguém nasce politicamente determinado, mesmo se Aristóteles acreditava na existência de um corpo predestinado à escravatura. Mas não acreditemos que o homem possa ser definido como um simples “animal político”. A consciência de classe depende do trabalho crítico levado a cabo pelo indivíduo associado aos demais. Se a escolha politica é certamente individual, não pode contudo separae-se das escolhas colectivas. Se não podemos apostar na “consciência colectiva”, noção hoje muito despojada de valor, operatório, já podemos contudo aceitar que a decisão individual depende da nossa articulação com a sociedade global. A atomização da sociedade parece sobrevalorizar as escolhas individuais quando, na verdade, a degradação do colectivo, ou antes do comum, impede que o homem ascenda ao imo da sua própria humanidade. 98 Uma Nova Política1 Pedro Miguel Cardoso A dicotomia Esquerda/Direita está enraizada no pensamento político contemporâneo e tem inerente um simbolismo que foi forjado em lutas e debates históricos. Além disso é utilizada com abundância, o que nos coloca perante a questão: serão de facto úteis estes conceitos? Num mundo que muda a um ritmo acelerado quando comparado com outras épocas históricas, quais são os desafios cruciais que na actualidade se colocam à Política em geral e aos partidos políticos em particular? Este texto pretende por um lado traçar um breve roteiro histórico do debate Esquerda/Direita e apontar algumas questões fundamentais com que se confrontam as nossas sociedades, nomeadamente na sua dimensão económica e política. Tanto a Esquerda como a Direita são interpeladas a dar uma resposta. I. As origens da Esquerda e Direita A génese histórica dos conceitos políticos de Esquerda e Direita ocorre na Revolução Francesa. Os defensores do Antigo Regime sentavam-se à direita do rei e os opositores à sua esquerda. Assim a Esquerda está intimamente ligada desde a sua génese conceptual a um propósito de questionamento e contestação da ordem vigente e a Direita a uma lógica de conservação dessa mesma ordem (do Status Quo). Por isso mesmo em sociedades fortemente hierarquizadas, estratificadas e reprimidas, as forças de Esquerda assumiram desde muito cedo o combate por uma sociedade mais livre, socialmente dinâmica, onde todos tivessem oportunidades mínimas de acesso a bens materiais, educativos e culturais. Nas primeiras décadas do século XIX toda a Direita era conservadora e toda a Esquerda era liberal. A 1 Texto apresentado no âmbito do curso “Esquerda e Direita” promovido pela Fundação Res Publica em 2010. 99 UMA NOVA POLÍTICA Direita defendia os privilégios, as tradições, o regime vigente, enquanto que a Esquerda batia-se por mudanças no plano político, social e económico. II. O Capitalismo e o Socialismo Com a revolução industrial e com o imperativo de produzir cada vez mais e de acumular capital, as condições de trabalho atingiram níveis de indignidade. Os horários prolongados de trabalho, os salários de miséria, a má habitação, contribuíram para cenários de degradação humana. O trabalhador era o elo mais fraco de todo um sistema produtivo que aspirava à máxima rentabilidade e eficácia. Os problemas sociais e humanos numa sociedade capitalista em crescimento acelerado constituíram as sementes para a afirmação das correntes de pensamento socialistas, que defendiam a intervenção do Estado na promoção da classe trabalhadora e na correcção das injustiças sociais. A partir de certa altura, ser de Direita passou a significar defender além das tradições, a propriedade privada, e ser de Esquerda defender a causa da redistribuição socialista. O liberalismo quase desapareceu da cena política. É de salientar que nos Estados Unidos da América, onde as ideias socialistas nunca tiveram grande adesão, a Esquerda continuou a ser identificada com a defesa do liberalismo, sobretudo social. O liberalismo se por um lado defende a propriedade privada e a liberdade económica, também defende a liberdade em matéria de costumes. Somos herdeiros desta história. Continuamos a colocar o socialismo na Esquerda e o conservadorismo na Direita. Tendemos a colocar o liberalismo na Direita quando acentuamos a relevância que esta dá à propriedade e ao mercado. Mas sabemos que o liberalismo está à Esquerda sempre que se opõe ao gosto pelas hierarquias e tradições dos conservadores. Portanto, a Direita pode ser conservadora e/ou liberal e a Esquerda pode ser socialista e/ou liberal. Depois de analisarmos a diversidade ideológica chegamos à conclusão que há várias esquerdas e várias direitas (Rosas, n.d.). Existirá alguma característica definidora que unifique a diversidade de um campo e de outro? Segundo Norberto Bobbio (1994), o critério mais adoptado para distinguir a Direita da Esquerda é a sua diferença de atitude perante o ideal da 100 PEDRO MIGUEL CARDOSO igualdade. A Esquerda tem uma atitude mais favorável à igualdade do que a Direita. Mas isso não significa que a Esquerda pretenda eliminar todas as desigualdades ou que a Direita as queira conservar a todas. A Esquerda tende a considerar que a maior parte das desigualdades é de carácter social, produzidas pela civilização e não pela natureza, enquanto a Direita enfatiza o seu aspecto natural, considerando que o artificial é o conceito de igualdade. De um lado, estão aqueles que consideram que os homens são mais iguais do que desiguais, do outro, aqueles que consideram que eles são mais desiguais do que iguais. Ao longo do século XX assistimos ao fracasso dos regimes ditos comunistas e depois de 40 anos de guerra fria, o sistema internacional entrou num período de transição caracterizado pela hegemonia norte-americana e pela prevalência de um sistema liberal – capitalista. Segundo Rosas (n.d.), uma razão para a persistência da dicotomia pode estar na sua utilidade cognitiva, no espaço político plural dos regimes liberais - democráticos. A divisão em Direita e Esquerda permite uma simplificação mental desse espaço e facilita a constituição de alternativas aos detentores do poder. III. Os desafios cruciais da actualidade Segundo Soromenho – Marques (1998) os movimentos sociais que se geraram ao longo do século XIX e foram ganhando uma posição de hegemonia que se tornou completa ao longo do século XX, como por exemplo, o movimento nacionalista, o movimento social reformista (em especial a social-democracia de Lassalle) e o movimento social revolucionário (os comunismos), possuíam um conjunto latente de valores fundamentais comuns que iam para além dos seus diferentes textos programáticos. Estes movimentos sociais clássicos, acreditavam na bondade incondicional do progresso científico e técnico, ignorando a eventual existência de efeitos colaterais indesejáveis; acreditavam que o eixo organizador da vida política passava pela conquista do poder de Estado; eram movimentos escatológicos, do fim da história (ex. a defesa das nações sem fissuras nem lutas de classes, o fim da exploração do homem pelo homem, etc.); encaravam a política como uma luta contra os inimigos (os capitalistas, os aristocratas, os vermelhos, 101 UMA NOVA POLÍTICA os opressores imperiais, etc.). Resumindo, eram optimistas em relação às virtualidades do progresso técnico e ao papel emancipador do Estado. Ao longo do século XX estes movimentos procuraram realizar a sua utopia. Analisando a experiência histórica podemos tirar ilações colocando algumas questões. Não devemos questionar a dimensão quase sagrada que tem o progresso tecnocientífico nas nossas sociedades? Esse progresso não trouxe apenas coisas boas e talvez esteja na altura de colectivamente adoptarmos uma dose acrescida de vigilância e humildade para que as descobertas científicas não se virem contra a civilização que as gerou. Será que devemos colocar todas as nossas esperanças no Estado? Aquilo que verificamos é que o Estado-Nação não tem hoje capacidade para responder aos múltiplos desafios, muitos deles globais, que se lhe colocam. E será o paraíso na Terra realizável? Olhemos para o século XX e podemos verificar os resultados alcançados por aqueles que tentaram tão ambicioso desígnio. Estamos sim confrontados com questões relacionadas com a sustentabilidade do nosso estilo de vida e com as ameaças ambientais que colocam em causa as condições dadas como certas por aqueles que aspiravam ao paraíso na Terra. Com os cenários a apontarem para que em meados do século XXI a população humana global ronde os 10 mil milhões de pessoas, torna-se crucial criarmos um novo paradigma de desenvolvimento. Assim para evitarmos situações de ruptura e colapso necessitamos: de uma política demográfica mais racional e adequada ao carácter limitado dos recursos alimentares; de proteger e promover a biodiversidade, como base da inovação biotecnológica de que depende a indústria alimentar e farmacêutica; salvaguardar o genoma humano contra as tentativas de manipulação ilegal; vigiar os impactos ambientais que ocorram no âmbito das pesquisas e aplicações associadas aos organismos geneticamente modificados; internalizar no preço dos produtos os seus custos ambientais; rever as políticas fiscais e de subsídios de forma a estimular as práticas agrícolas sustentáveis; promover hábitos culturais e estilos de vida amigos do ambiente; perceber a ameaça que pode significar uma crise alimentar para a paz internacional (Soromenho - Marques, 2005). A questão da sustentabilidade ecológica será uma das questões centrais com que se confrontarão as sociedades humanas durante os próximos séculos. Por isso, ela tem que estar presente na reflexão política e os partidos políticos 102 PEDRO MIGUEL CARDOSO terão que lhe dar uma resposta. Superar esta crise é um grande desafio e exige que questionemos dogmas, pensemos criativamente e sejamos determinados na acção. Por exemplo, será que a qualidade de vida implica um crescimento económico contínuo? Diferentes especialistas têm notado a insustentabilidade de uma qualidade de vida assente na degradação ambiental, mostrando que a partir de um certo limiar o Produto Interno Bruto (PIB) pode continuar a subir enquanto a qualidade de vida e de ambiente diminuem. Já o economista Kenneth Boulding dizia com alguma ironia e dispensando tradução: “Anyone who believes exponential growth can go on forever in a finite world is either a madman or an economist”. De facto num mundo com recursos finitos não é razoável pensar que o crescimento económico pode continuar para sempre. Como refere Tim Jackson (2009), economistas antigos como John Stuart Mill e o próprio Keynes já previam um tempo no qual o crescimento económico tinha que parar. O trabalho pioneiro de Herman Daly2 sobre a economia em estado estacionário surge nesse mesmo sentido. Será possível a prosperidade sem crescimento? O crescimento tem sido, até agora, um mecanismo que previne o colapso. Em particular as economias de mercado têm colocado um elevado ênfase na produtividade laboral. Os desenvolvimentos tecnológicos contínuos fazem com que de um ano para o outro menos pessoas sejam necessárias para produzir os mesmos bens. Enquanto a economia se expande não há problema com o factor produtividade laboral, mas quando a economia não cresce surgem as pressões relacionadas com a manutenção dos postos de trabalho. As pessoas perdem os seus empregos, há menos dinheiro na economia, as empresas vendem menos, o Estado arrecada menos receitas e tem que aumentar as suas despesas, é uma espiral de recessão. Por isso as respostas políticas às crises económicas são mais ou menos unânimes de que a recuperação significa estimular o consumo e uma retoma do crescimento económico. Estas evidências conduzem-nos a um inconfortável e verdadeiro dilema: se o crescimento pode ser insustentável, o decrescimento parece ser instável. Será por isso necessária uma reinvenção da forma como a economia funciona, de modo a garantir a prosperidade sem crescimento. Outra grande questão deste século e provavelmente dos próximos é a correcção das desigualdades sociais a nível nacional e global. É inaceitável 2 Daly, Herman (1972). The Steady State Economy. London: W. H. Freeman and Company Ltd. 103 UMA NOVA POLÍTICA que num mundo com tanta riqueza produzida, largos estratos populacionais continuem a viver na pobreza. Como salienta Santos (2007) as três pessoas mais ricas do mundo controlam mais riqueza do que os 600 milhões de pessoas que vivem nos países mais pobres. As desigualdades entre os países mais desenvolvidos e os países em desenvolvimento estão a crescer. Desde meados da década de 1970 até 2000 o PIB aumentou em praticamente todas as regiões no mundo, excepto na África Subsariana. As maiores taxas de crescimento deram-se nos países mais ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico e na Ásia Oriental. No entanto e segundo um relatório3 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a razão entre o PIB per capita dos países mais ricos e mais pobres está a aumentar: em 1820 era cerca de 7, aumentou para 11 em 1910, para 30 em 1960 e em 1997 tinha o valor de 74. E como acrescenta este mesmo autor, a pobreza não é apenas um problema de países em desenvolvimento, uma vez que significativas franjas da população dos países desenvolvidos vive com carências a vários níveis (alimentação, saúde, educação). Para enfrentar estes enormes desafios, necessitamos de mobilização e coragem política, tanto à Direita como à Esquerda. A Esquerda tem uma responsabilidade acrescida dado o seu património histórico e dos esforços que desenvolveu para questionar, combater e/ou reformar o capitalismo. As desigualdades e a insustentabilidade do modelo socioeconómico vigente devem ser os seus grandes adversários. Há um caminho de luta por mais igualdade social e sustentabilidade económica e ambiental que se abre ou melhor, que continua aberto para os partidos que se reivindicam de Esquerda. IV. Considerações finais Num mundo em acelerada mudança, os desafios são complexos, exigentes e interpelam-nos a pensar e a agir de forma inteligente, tanto a nível individual como a nível colectivo. É fundamental revalorizar e credibilizar a política como espaço de debate, de definição das opções colectivas 3 DUnited Nations Development Programme (1999). Human Development Report 1999. United Kingdom: Oxford University Press.Ltd. 104 PEDRO MIGUEL CARDOSO e de defesa do bem comum. Em vez do primado da economia necessitamos do primado da política. A economia deve ser colocada ao serviço das pessoas e não o contrário. Necessitamos também de novas formas de fazer política. Em vez dos conflitos artificiais que muitas vezes ocupam a cena política precisamos de cooperação e respeito entre adversários, coragem política para enfrentar certos interesses particulares e de uma visão colectiva de médio – longo prazo. Mas os partidos políticos só o conseguirão fazer se abandonarem a lógica do poder (e da oposição) a qualquer preço e se contarem com uma comunicação social de qualidade que abandone a lógica do imediatismo e do sensacionalismo. Uma comunicação social que compreenda o seu importante papel de informação mas também de formação, que não ceda à tentação de entrar no jogo político. No âmbito do debate Esquerda/Direita é importante não diabolizar nenhum dos campos, a evolução é simultaneamente conservadora e progressista (como referem muitos estudiosos da evolução da vida na Terra). As sociedades devem conservar o que têm de bom e procurar mudar o que têm de mal ou aquilo que já não serve. Julgo que faz sentido, sem reduzir o pluralismo e a diversidade, apelar a uma lógica de cooperação e compromisso entre partidos políticos para fazer face aos desafios cruciais do nosso tempo. Em suma, uma nova política. V. Referências bibliográficas Bobbio, Norberto (1994). Direita e Esquerda - Razões e Significados de Uma Distinção Política. Lisboa: Editorial Presença. Jackson, Tim (2009). Prosperity Without Growth? The Transition to a Sustainable Economy. United Kingdom: Sustainable Development Commission. Rosas, João Cardoso (n.d.). Direita / Esquerda. In Dicionário de Filosofia Política e Moral, Instituto de Filosofia da Linguagem (http://www.ifl.pt). Santos, Filipe Duarte (2007). Que futuro? – Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente. Lisboa: Gradiva. 105 UMA NOVA POLÍTICA Soromenho-Marques, Viriato (1998). O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente. Mem Martins: Publicações Europa – América, Lda. Soromenho-Marques, Viriato (2005). Metamorfoses. Entre o Colapso e o Desenvolvimento Sustentável. Mem Martins: Publicações Europa – América, Lda. 106 A Constituição e o Futuro: Revisões Constitucionais Inconstitucionais? Paulo Ferreira da Cunha I. Os Factos e o Direito 1. Mudar as regras, mudar o(s) sentido(s) Imagine que no fim de semana os responsáveis pelo trânsito lhe mudavam os sentidos. Uma cidade, apenas uma cidade, pode tornar-se um labirinto, e um pandemónio, de um momento para o outro. Na segunda-feira, o cidadão que sonolentamente pega no carro ainda com gosto a café na boca e olhos colados às pálpebras, repara, com espanto (e certamente não sem indignação) que a sua própria rua deixou de ter dois sentidos. E vai redescobrindo, como que pé ante pé (não vá entrar por via proibida) o trajecto até ao emprego a cada esquina e cruzamento. Imagine-se que o vizinho do lado fará o mesmo. E o vizinho do vizinho. Chegará tarde ao emprego. Mas, como a cidade mudou para todos, não foi só ele. Foi a cidade em peso. Todos chegaram tarde, mal-humorados, mal dispostos. E a pergunta está nos lábios de todos: mas para quê? O que se ganhou com a mudança? Não que os cidadãos sejam conservadores. Mas, como o célebre dentista, acreditam que é melhor conservar um dente que arrancá-lo. Além de que mudar para pior dá trabalho e tem custos. Por isso é tão vazio o simples discurso da “mudança”. Ninguém entendeu na cidade o porquê da reviravolta. Uns, mais intelectuais, inventaram umas teorias, sobretudo para se promoverem como inteligentes. Mas só os deslumbrados neles acreditaram. Ninguém os levou a sério, e trataram de procurar encontrar um caminho de volta a casa, o que não foi fácil. Imagine agora que na semana seguinte voltava tudo a mudar. E assim sucessivamente. 107 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 2. Frenesim revisionista De tempos a tempos, joga-se para a ribalta mediática a possibilidade de revisão constitucional. Não ocorre apenas nos períodos em que constitucionalmente tal é possível. Ocorre sobretudo quando as agendas políticas de alguns políticos acham oportuno agitar esse magno problema. Cremos que alguns pensarão que assim se livram do corriqueiro da chicana política. A revisão constitucional, aí está um tema de Estado, algo de elevado. E de facto assim é. Mas isso não significa que, sendo a Constituição de magna importância, as propostas de revisão, só por si, o sejam. Já tivemos nada menos que sete revisões à nossa Constituição. Número cabalístico. Há tempos, um reputado constitucionalista falava da necessidade de acabar com o frenesim revisionista constitucional. Estamos de acordo. Não por este ou aquele projecto, mas por todos. O afã em mudar a Constituição é tal que só lembra a mudança dos sinais de trânsito. E o que era permitido passa a proibido, e vice-versa. Porque a Constituição é a grande reguladora do trânsito político e jurídico na República. É óbvio que numa cidade, como numa Constituição, qualquer que ela seja, por muito boa que ela seja (e a nossa é mesmo muito boa já), é sempre possível melhorar. Nenhuma cidade tem o tráfego perfeitamente regulado. Há congestionamentos a evitar, semáforos a afinar, um sinal que caiu ou está prestes a ficar ilegível... Mas uma coisa são acertos de pormenor, outra coisa uma revolução por via de revisão. Admite-se até, se muito bem pensado e amplamente discutido, o repensar de algumas instituições e institutos de vulto, mas não absolutamente caracterizadores de um regime e de um sistema social. Seria, por exemplo, possível, além do exemplo já dado, constitucionalmente agilizar a institucionalização da regionalização, que é uma reforma de fundo permanentemente adiada, e que constituiria uma mudança qualitativa na nossa democracia, sempre excessivamente tributária ainda (mesmo – e quiçá sobretudo – no plano do simbólico e do imaginário) da “cabeça imperial”, hoje sem império. Neste parágrafo, como é óbvio, falou também a paixão pessoal e a opção política, mas não deixou de pesar a leitura da Constituição, que é pela regionalização, cuja estrutura, aliás, em grandes linhas consagra. Não para que se mantenha utopia, mas que se venha a volver em concretização. 108 PAULO FERREIRA DA CUNHA 3. Do que se poderia rever Damos o exemplo de mais pontos que ganhariam, a nosso ver, em ser revistos. Não são propriamente pormenores. Têm até grande dignidade. Pessoalmente, a nossa experiência portuguesa e a análise do que tem sucedido pelo mundo fora persuadiu-nos que o referendo nacional, que não estava no texto original, não só tem tido uma formulação deficiente como não ganha nada em sair do nível local. Mas não seríamos, neste caso, o primeiro a lançar a pedra da mudança... Outra situação que mereceria ser repensada, mas que também, por si só, não implica “morte de homem”, é a auto-limitação da capacidade educativa do Estado. Compreensível a seguir ao 25 de Abril, saindo-se de um regime autoritário, e com a lembrança da Mocidade Portuguesa e dos livros únicos escolares. O Estado democrático obviamente não pode ser confessional, nem ter uma filosofia, nem uma estética, etc. Mas isso não significa que não possa e não deva promover a educação cívica, as virtudes e os valores constitucionais, a educação para a cidadania e para os Direito Humanos. E o mesmo se diga da Educação para a compreensão do nosso Património, português, europeu e universal: artístico, literário, e histórico. À luz de uma visão restritiva e fundamentalista da nossa Constituição, o Estado deveria abster-se demais. Mas não pode, não deve. Aí está um ponto para uma ampla discussão de grande nível sobre as funções do Estado no plano ético e educativo. Há sempre mudanças de maior ou menor vulto que poderiam ser encaradas. Mas não vem nenhum mal ao mundo se não forem feitas já. E mais: se o preço de retocar o que esteja eventualmente menos bem for abrir a porta a revisões devastadoras, é preferível, de longe, deixar tudo intocado. Contudo, mesmo mudanças como as que referimos – regionalização, referendo e função educativa do Estado -, todas podendo ser de vulto, não ferem (pela sua própria temática: poderiam ferir no projecto concreto – como aliás qualquer mudança, como é óbvio) em nada os limites materiais de revisão constitucional, as chamadas “cláusulas pétreas” que é vital ter em conta nas revisões, uma vez acautelados os limites formais e procedimentais. 109 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS 4. As Propostas de Revisão bombásticas É evidente que revisões como as que referimos, salvo, talvez, uma aceleração da institucionalização das regiões por via constitucional, por exemplo, são pouco aptas a concitar grande celeuma mediática, pelo menos sem uma orquestração muito cuidada. As propostas de revisões constitucionais com mais eco são, precisamente, as que distorceriam, descaracterizariam por completo a nossa Constituição. E é isso que se tem feito, embora da parte de grupos sem muito eco, que contudo vêm a sua voz reforçada pela ousadia das suas propostas (todas inconstitucionais, está bom de ver). Rever a Constituição instituindo o Presidencialismo (e puro e duro), acabando com o Tribunal Constitucional, ou então acabando com a “proibição de regresso à monarquia” (via obrigatoriedade da “forma republicana de governo” – o que contudo tem que se lhe diga interpretativamente), são tudo reformas institucionais suficientemente bombásticas para darem um minuto de fama aos seus arautos – que bem sabem que não terão grande eco junto dos parlamentares com poderes constituintes. Pelo menos em princípio. Mas cuidamos que em fim também. Mas há um outro ponto de revisão constitucional inconstitucional que pode dar visibilidade mediática, embora não acreditemos que seja popular. É uma mudança não de regime ou de sistema político, mas de sistema social e económico. Ela tem sido sistematicamente martelada pelos que, depois de uma primeira “conversão” forçada e na verdade não sincera a um “socialismo” moderadíssimo e adjectivado (por pressão dos tempos revolucionários em 1974-1975), passariam a ver nas marcas verbais de socialismo na Constituição o princípio de todos os males. É certo que a primeira versão da Constituição, em 1976, terá quiçá abusado de algum jargão, oscilando os especialistas (de Marcelo Caetano a Sottomayor Cardia e a outros1) se propendia mais para o marxismo se mais para o anarquismo. Contudo, todos esses exageros verbais seriam abundantemente podados nas revisões ulteriores, e logo na primeira. 1 Cf. FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Ideologia e Utopias nas mais recentes Constituintes Brasileira e Portuguesa: Algumas linhas de leitura, Actas do VIII Colóquio Antero de Quental, São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil, in “Estudos Filosóficos”, DEFIME – Departamento das Filosofias e Métodos, Universidade Federal de São João D’El Rei, n.º 3, Julho / Dezembro de 2009, pp. 263-276. 110 PAULO FERREIRA DA CUNHA Hoje o que resta do socialismo é, como parece ter já afirmado a voz autorizada de Manuel Alegre (a quem se deve a redacção do Preâmbulo), uma alusão inicial que representa, isso sim, o Estado Social. O Estado Social democrático e de direito, entenda-se. Porque Marcelo Caetano já começara na senda declarada de um Estado social, embora autoritário, uma transmutação modernizada do Estado “corporativo” salazarista2. O que está em causa, é, pois, o Estado social. Ele não é apenas simbolizado na expressão “socialismo”, hoje isolado bastião verbal no Preâmbulo. Ele está presente em toda a Constituição, e é a sua marca ideológica (socialmente muito consensual, aliás – ainda hoje) e o seu programa económico, social e cultural. 5. Revisão dos direitos sociais e subsistência do Estado social A questão está em saber se atacando, ainda que cirurgicamente, pontos nevrálgicos dos direitos fundamentais económicos, sociais e culturais, logo atacando o cerne do Estado social, ao longo do articulado na Constituição ele ainda subsistirá. Atacando, por exemplo, o princípio da igualdade entre todas as pessoas (independentemente dos múltiplos factores de diferença, que são também os de discriminação), ou o princípio da universalidade do Serviço Nacional de Saúde, ou a gratuitidade tendencial de toda a escola pública. O modelo que está por detrás dessas alterações, que podem parecer até razoáveis em tempos de “vacas magras”, é o modelo anti-Estado social, é a ideologia da teologia de mercado, anarco-capitalista ou neoliberal. Mas há diferenças essenciais entre reversão essencial e ruptura, de um lado, e medidas de excepção, no respeito pela Constituição, do outro lado. Pode em tempos de crise haver sacrifícios e cortes, mas não se podem colocar em causa os princípios e os valores constitucionais. Assim, desde logo os sacrifícios, a fazerem-se, têm de ser justos, equitativos, universais, e temporários. Senão, quebra-se a própria confiança e a esperança, motor de progresso e de saída da crise. Rasgar-se-ia assim a Constituição não com a empávia do contra-revolucionário assumido, mas, quiçá, com a vergonha do arrependido ou do derrotado. 2 Sobre os vários estados sociais, v. BONAVIDES, Paulo — Do Estado Liberal ao Estado Social, Prefácio, 8.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 25, p. 184. 111 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS Permitir que um só desses pontos simbólicos e nevrálgicos da Constituição seja substituído por uma formulação, ainda que pretensamente neutra, de cunho neoliberal, é mutilar o edifício, desvirtuar-lhe a traça, torná-lo vulnerável e partir-lhe um dos pilares que o sustentam. A neutralidade é sempre invocada pelos mesmos que procuram afirmar-se pela negação, ou pela dissimulação, ou seguir na sombra do pensamento dominante, embora hipocritamente e com todas as reservas mentais, esperando melhores dias. Veja-se o processo baptizado como exdenomination, forma de mistificação por auto-negação ou colagem que Barthes denunciou nas suas Mythologies3, e que tanto ocorreu durante os tempos mais quentes das revoluções em Portugal (lembremo-nos dos “adesivos”, para não falar no PREC - Processo Revolucionário em Curso). O formalismo jurídico não é, assim, neutro, mas, hoje em dia, a forma jurídica de uma política neoliberal, ainda que os seus aplicadores estejam completa e sinceramente convictos de que esse formalismo é que é a forma jurídica propriamente dita (e portanto a correcta) de “aplicar o Direito”, enquanto uma metodologia consentânea com os novos tempos que alguns dizem já neoconstitucionalistas (ou mesmo pós-neoconstitucionalistas para alguns) seria um maneira antijurídica, errónea, e política (pecado dos pecados!) de ser jurista. Contudo, há muito tempo já que Morton J. Horwitz com muita agudeza explicou o que se passa: “A principal condição social necessária ao florescimento do formalismo jurídico em uma sociedade é que os grupos de poder dessa sociedade tenham grande interesse em disfarçar e abolir a inevitável função política e distributiva do direito.”4 Há sempre, mesmo no direito posto, tão amado pelo positivismo legalista, um direito pressuposto5, e pressupostos que influem no direito – e que (parece impossível) os juristas só há relativamente pouco tempo começam a desvendar, saindo, finalmente, de uma menoridade de séculos... Antes 3 BARTHES, Roland — Mythologies, Paris, Seuil, 1957, ed. port. com prefácio e trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1978, p. 206 ss.. 4 HORWITZ, J. Morton — The Transformation of American Law, reed., 1992, p. 266, apud POSNER, Richard A. — Overcomig Law, Cambridge, Harvard University Press, 1995, trad. port. de Evandro Ferreira e Silva, Para Além do Direito, São Paulo, wmf Martins Fontes, 2009. 5 V. GRAU, Eros Roberto — O Direito Posto e o Direito Pressuposto, São Paulo, Malheiros, 1996. 112 PAULO FERREIRA DA CUNHA de mais, é preciso compreender mesmo o que significa ser o Direito um “discurso legitimador”. E não se diga que a Constituição promete uma cornucópia de mordomias que não pode, razoavelmente, concretizar (nem ela, claro, nem realmente os governos), e que, assim, os maus e ilusórios direitos expulsam os bons. Esta última asserção é verdadeira, mas não são direitos ilusórios os que possam não ser momentaneamente concretizados na sua máxima latitude. O Direito Constitucional é hoje uma ciência e uma técnica apuradíssimas que permitem por um lado reduzir direitos em confronto, assegurandolhes, por concordância prática, a cada um, apenas um círculo mínimo de concretização. E ainda, por outro lado, pelo princípio da reserva do possível, podem em cada momento ser avaliadas as possibilidades de concretização, e em que medida, de direitos que reclamem, por exemplo, Finanças mais estáveis e risonhas. Nenhum Estado (nem o nosso) foi alguma vez à falência por causa da sua Constituição. Mas seria muito estranho que os adeptos de que o mundo ande por si mesmo, deixando andar e deixando passar, sem regulação, conseguissem triunfar colocando na nossa lei fundamental, que todas as outras determina, um qualquer marco da sua fé desreguladora. Para que querem os neoliberais uma Constituição económica, social e cultural? Apenas para dizer que não existe. E que tudo está, afinal, nas mãos de quem tiver mais força, em cada momento. Nas relações laborais, conforme o braço de ferro entre patrões e trabalhadores. Nas relações políticas, conforme o resultado de cada nova eleição. Ora precisamente as Constituições existem para evitar que o programa nacional (e transgeracional, histórico, espera-se) de um País mude ao sabor de cada eleição pontual, para que os Países tenham um projecto de mais longo prazo. E também porque entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que oprime e a lei que liberta. E não foi um socialista quem o disse, foi Lacordaire, que era um clérigo liberal, mas obviamenter não neoliberal. Léon Bourgeois dizia há mais de um século que os partidos estão sempre atrasados em relação às ideias. Este mesmo ano, Alfredo Bosi acrescentou que também em relação às suas próprias6. Mas pior é haver os que recuam. 6 BOSI, Alfredo — Ideologia e Contra Ideologia, São Paulo, Companhia das Letras, 2010. 113 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS Num país como o nosso, em que os principais partidos são o socialista, o social democrata, e um partido democrata cristão (que invoca, por isso, como inspiração a doutrina social da Igreja católica), não deveria haver, em princípio, muito desacordo quanto a um programa social mínimo e quanto ao Estado social. Se o vírus do neoliberalismo, parasitário, não andasse a contaminar alguns (uns mais que outros, é certo), ao ponto de mudarem de bandeiras. Espera-se apenas que, num futuro que se deseja próximo, todos se reencontrem na sua ideologia própria. 6. Inconsticionalidade das Revisões Inconstitucionais Uma revisão constitucional que pusesse em causa algum dos elementos estruturantes do Estado Social seria uma ruptura inconstitucional, uma revolução sob capa de revisão. E se, por absurdo, o Parlamento, ainda que pela devida maioria e no devido tempo e pelo devido modo a deixasse passar, deveria ser (no seu cerne, porque sempre pode haver à mistura elementos inócuos no plano da materialidade constitucional, e passíveis de revisão constitucional constitucionalmente válida) considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, que para tanto tem plena competência, e, no caso, teria também o dever de o fazer. Ora não é necessário ser constitucionalista encartado para compreender porquê. E depois, é preciso compreender o que se esconde por detrás do discurso revisionista que proclama (ainda hoje, depois de tudo o que se passou e se está a passar) as maravilhas do Estado mínimo (ou um eufemismo para dizer o mesmo). Os seus adeptos nunca foram realmente contra o Estado, e dele têm, aliás, por toda a parte, recebido a salvação da falência, depois das últimas crises. Dão que pensar estas linhas de Giuliani Neto, sempre iconoclasta: “O mundo do capitalismo industrial, nas duas últimas décadas, construiu o discurso do Estado mínimo. As práticas neoliberais nunca abriram mão do controle sobre o Estado. Todavia, um capitalismo de nova feição, financeira, derivado daquele outro, construiu um ambiente para si e, neste espaço imaginário, que chamou mercado, tomou uma tal de auto-regulação como meio eficiente para gerir seus interesses”7. 7 GIULIANI NETO, Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo torto do Direito e da Política, p. 67. 114 PAULO FERREIRA DA CUNHA Porém, parece tratar-se sobretudo de pragmatismo pro domo. Os teóricos liberais parecem ser, segundo Kolm, pouco mais que “aprendizes de feiticeiros”: “Le libéralisme économique, apparemment défendu par les analyses rafinnées des marchés déployées par des économistes, repose in fine sur une sociologie de l’Etat primaire et d’amateurs. (...) Ce sont des généralisations sans justification à partir de cas spécifiques (parfois, de plus, exagérés ou même mythiques) du bas journalisme, de la ‘sagesse populaire’ en un sens qui calomnie ces deux termes, des ragots que l’on accepte que parce qu’ils confortent des préjugés (ou soutiennent des intérêts).”8 E quanto ao Estado mínimo dos bons velhos tempos liberais (que acabariam por converter não poucos liberais a políticas sociais), nunca olvidaremos o diagnóstico do agudo filósofo jesuíta Lúcio Craveiro da Silva: “O capitalismo nascente nos alvores do séc. XIX arrastou consigo a proletarização de uma multidão de operários arruinados pela luta da concorrência das novas fábricas, e obrigados, por isso, a trabalhar por salários de fome. Dada a quase completa ausência de legislação social e protectora dos trabalhadores, o que repugnava à doutrina liberal, esta proletarização desembocou numa tal pobreza material e moral do mundo do trabalho que a sua descrição nos deixa horrorisados ao lermos os inquéritos do tempo.”9 II. A Política e a Sociedade 1. O Consenso Político do Estado Social Ainda que fosse possível mudar juridicamente a constituição nesse sentido desregulador e anárquico, tal seria um erro político. Que se voltaria contra os que viessem aprovar essa (contra-)revolução. Há, neste caso, como já se viu, duas concepções opostas de sociedade. Por um lado, temos a concepção social da Constituição da República Portuguesa em vigor, que nesse ponto (estamos já a descontar os excessos) 8 KOLM, Serge-Christophe — Le Libéralisme moderne, Paris, P.U.F., 1984, p. 174. 9 KCRAVEIRO DA SILVA, Lúcio — “Marxismo, Filosofia da Libertação”, in Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga, Faculdade de Filosofia de Braga, 1994, p. 365. 115 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS de algum modo uniu todos os constituintes sem excepção do ponto de vista ideológico. O próprio CDS – Centro Democrático Social, único partido que votaria contra a Constituição no seu todo (tinha apenas 15 deputados) não só defendia na altura um “socialismo orginal” como uma “sociedade sem classes”, como a sua matriz ideológica era (e pelo menos em parte ainda será hoje) a democracia cristã, que, baseada na doutrina social da Igreja, é claramente favorável ao Estado social, como dissemos já. E do PSD - Partido Social-Democrata (que falava, no seu primeiro programa, quando ainda PPD – Partido Popular Democrático -, até de inspiração marxista, além de outras) à UDP – União Democrática Popular de inspiração maoísta, passando pelo PCP – Partido Comunista Português - marxista-leninista e pelo seu compagnon de route (na constituinte por vezes mais extremista) MDP – Movimento Democrático Português – , ao PS – Partido Socialista – socialista democrático, olhando as respectivas matrizes ideológicas, todos seriam concordes com essa perspectiva latamente e não sectariamente social. Esse seria o grande denominador comum até, porque, no plano político, havia divergências institucionais e de valores políticos muito grandes, que propiciaram então a divisão entre os auto-denominados “partidos democráticos” e os demais... A Constituição, que logo se disse compromissória, fundou-se também nesse compromisso sobre o modelo de sociedade: nem uma sociedade do salve-se-quem-puder liberal, nem uma sociedade totalitária e colectivista. Podada, como dissemos, mais de uma fraseologia que de uma verdadeira deriva menos pluralista e de economia social de mercado em termos efectivos, a Constituição sempre se integrou, e depois da primeira revisão mais ainda, no modelo social europeu. Essa é a sua grande matriz. Ela nos liga à Europa social, essa que na verdade despertava a nossa admiração (e até inveja) quando nela não estávamos integrados. Essa que precisa urgentemente de renascimento, pois sob a ameaça da burocracia, da tecnocracia e da contabilidade egoísta. Há também que olhar o nosso sonho europeu e de o redespertar, em bases sociais. 2. O Consenso Social do Estado Social Sociologicamente (quer dizer: a nossa sociedade, o povo em geral, maioritariamente) aderimos a esse modelo do Estado social, o modelo social 116 PAULO FERREIRA DA CUNHA europeu. Todos, praticamente, sem diferenças de partidos, com excepções minoritaríssimas, de que já falaremos. E que modelo é esse? É o de um verdadeiro Estado social, democrático, não um Estado providência todo-poderoso10 e sufocando a iniciativa, mas de um Estado coordenador e protector dos mais desfavorecidos, regulador, redistribuidor da riqueza em alguma medida, e capaz de ser a confiança de cada um no futuro, pois a cada um, de forma regulada, pode valer no infortúnio: na doença, na velhice, na invalidez... Trata-se assim de um Estado com serviços de saúde, com escola pública, de qualidade e cobertura suficientes, com prestações de desemprego, reforma, etc. De muitos quadrantes há vozes que não alinham no bota-abaixo rude da aniquilação do Estado social. Pelo contrário. Voz autorizada do pensamento económico, certamente insuspeito de socialismo, João César das Neves inclina-se contudo para o social, e afirma com clareza os seus pontos de vista. Num artigo de divulgação, dirigido aos meios católicos, começa por sublinhar um facto que alguns se obstinam em escamotear: “A sociedade moderna manifesta continuamente um desejo de mais, não de menos Segurança Social”11. E a sua explicação de índole psico-sociológica para as reacções, ou algumas delas, ao problema da Segurança Social é interessante, e pode servir para ponderação. O mais relevante é que, ao contrário dos contínuos profetas da desgraça (que pressagiam catástrofes se não se tomarem já amanhã - ou ontem - medidas severamente contrárias aos trabalhadores, aos consumidores, aos não possidentes), revela uma situação de facto muito mais tranquila: “Portugal já não tem uma crise séria na Segurança Social. Mas ninguém acredita nisso. A razão é muito curiosa. Os políticos dramatizaram a situação financeira para justificarem o rompimento das promessas e a população acreditou quando falavam em falência da Segurança Social. Tomadas as medidas, os políticos dizem agora que o futuro está assegurado. Mas nisso ninguém acredita”12. 10 Cf., para desfazer confusões, v.g., FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Direito Constitucional Geral, máx. p. 259 ss. 11 CÉSAR DAS NEVES, João — Segurança Social, in “Família Cristã”, ano LVI, n.º 5, Maio de 2010, p. 20. 12 Ibidem, p. 21 117 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS Problema é que de novo se começaram a ouvir políticos falar em múltiplas falências de vários sistemas públicos, em diversos países. E depois veio o ataque “dos mercados” e o espectro do FMI começou a ser invocado, e depois chegaria mesmo a Portugal. É curioso que na fase dos primeiros problemas bancários, dizia-se que o mercado estava mal, mesmo muito mal. Assim colocou o problema Giuliani Neto: “O Mercado, este ente tratado como se fosse uma pessoa de carne e osso, entupiu-se de dinheiro, empanturrou-se de sonhos humanos, buscou casas em garantia, hipotecou esperanças e, narcotizado com seu próprio prazer, matou-se; overdose... Overdose de ganâncias, de inescrupolisidades, de falta de limites e de responsabilidades”13. Depois, o autor relata que os “liberalóides de plantão” (sic) se teriam sumido debaixo dos “cobertores estatais”. Sim, aí buscaram agasalho às primeiras brisas mais frias, e aí permaneceram até que os dinheiros públicos removessem a bola de neve que geraram. Mas há o resto da história: Depois, já refeitos e quentes, regressaram. “Afinal, o Estado não é tão mau assim” – pensaram. E voltaram a apedrejá-lo. E agora já “os mercados”, passaram a ser a dor de cabeça de toda a gente, sobretudo nos países sob mira. Depois da Grécia e da Irlanda, Portugal. E já se fala da Espanha, da Béligica... Parece que o dito Mercado recuperou, com as injecções de dinheiros na banca... e passou ao plural. Além da análise económica e financeira destes problemas (para que somos incompetententes), haveria uma outra análise a empreender: a retórica e mediática. Mas a solução não é demissão do Estado. É precisamente nestes momentos críticos que os pobres e a própria classe média necessitam mais do auxílio, da rede protectora, do Estado Social. E há, sem dúvida, mesmo para o jurista (e não só para o político), confortável nas suas fórmulas, tantas vezes, um dilema ético que não poderá deixar de pôr-se: Fará ele ou não uma “opção pelos pobres”? Não é uma dessas opções de classe vetero-marxistas, com toda a sua carga. Mas é um desafio de coragem, como bem afirmou Gomes Canotilho, comentando um dos que esse problema dispararam à quietude dos juristas14. No fundo, há uma 13 GIULIANI NETO, Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo torto do Direito e da Política, p. 25 14 GOMES CANOTILHO, José Joaquim — O Direito dos Pobres no Activismo Judicial, in Direitos Fundamentais Sociais, coord. de J. J. Gomes Canotilho, Marcus Orione Gonçalves Correia, Érica Paula Baracha Correia, p. 33. 118 PAULO FERREIRA DA CUNHA “responsabilidade social dos juristas”, só que essa não se traduz, como a das empresas, em dádivas e apoios a causas sociais. Mas num posicionamento. Ao contrário dos seus caluniadores, embora em todos os sistemas haja excepções e aproveitadores das malhas do sistema, a essência deste tipo de Estado não é o parasitismo social, o definhamento do empreendimento, o prémio da preguiça, o quietismo deletério, ou o assistencialismo miserabilista. Ele existe porque, ao contrário do que dizem tantos neoliberais, ainda não curados (são incuráveis) pela prova real da derrocada da economia de casino à vista pelas crises recentes, provocadas de forma já reconhecidamente criminosa (e com condenados), os pobres não são marginais incapazes, os célebres “perdedores” (losers) porque incompetentes, “madraços”, etc. Há sobretudo pobres – e sempre os teremos entre nós, conforme diz o Evangelho15 – porque há a caprichosa deusa fortuna, há sorte e má sorte. E quando a má sorte bate à porta de qualquer um, sim, os impostos de todos devem servir para acudir a esse. Independentemente de ter contribuído muito ou pouco. Isso é solidariedade, isso é fraternidade, isso é, também, justiça social, palavras que para os neoliberais mais consequentes nem sequer sentido têm16. O que dá a verdadeira dimensão da sua mentalidade e mundividência. E contudo a verdadeira justiça é também justiça social, segundo alguns. E até para Tomás de Aquino: “Toda justiça é social uma vez que a existência humana é sempre coexistência.”17... Obviamente que a velha regra do “não faças ou não queiras para os outros o que não quererias que te fizessem” seria, se bem aplicada, de grande pedagogia. A grande lição para os neoliberais seria verem-se numa socieade desertificada de Estado, doentes, velhos, desempregados, em todas as condições de debilidade em que regateiam apoio aos demais. Mas não lha podemos desejar sequer, porque mesmo um neoliberal merece protecção social, pela sua própria dignidade de pessoa. E mais: apenas pela sua simples condição de ser humano. 15 Jo. XII, 8. 16 Cf., desde logo, a indagação de HAYEK, Friedrich A. — Was heisst ‘sozial’?, in AA. VV., Masse und Demokratie, Erlenback / Zurique / Estugarda, Eugen Rentsch, 1957, p. 71 ss. 17 SANTOS, Prof. Ribeiro dos — Programa de Filosofia do Direito, s/l (Brasil), s/e, 1968, pp. 177-178. Cf. ainda, sobre esta matéria, FERREIRA FERNANDES, Sérgio Fernando — Justiça Particular e Justiça Social, dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, sob nossa orientação defendida em 10 de Dezembro de 2010, policóp. 119 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS Mas bem vistas as coisas, à parte quiçá alguns Pedros Cem, que do alto das suas torres erigidas sobre grandes fortunas, eventualmente desafiem a Providência (não o Estado providência) a fazer naufragar a frota da sua afluente riqueza18, o curioso, o paradoxal, é que frequentemente os teóricos mais extremados desta teoria impiedosa não correrão muitos riscos porque nem sequer são empresários, e em muitos casos não passam de intelectuais bem consolidados nos seus empregos públicos que eram (antes da sua influência se começar a fazer sentir nesse âmbito, pelo menos) praticamente inamovíveis e vitalícios. E em alguns casos, embora informalmente, também hereditários. O fenómeno neoliberal é sobretudo uma moda intelectual, com arroubos demagógicos e populistas localizados, como as tiradas sobre o uso “despesista” dos impostos de todos e outras do género. Contudo, sem grande impacto quando se pense duas vezes, porque qualquer pessoa sensata prefere que haja alguns abusos de subsídios a mais a quem não mereça do que não ter para si nenhuma protecção quando chegar a hora. A crítica é a de atirar o bebé fora com a água suja. A forma sensata de tratar o assunto é fiscalizar, é reprimir os abusos, é gerir com rectidão e parcimónia benefícios sociais gerais, e não cortar a torto e a direito, mais a torto que a direito, entenda-se. A solução é, realmente, a de, pelo exemplo primeiro, e pela inspecção e pela punição dos abusos, depois, implantar uma ética republicana, ou, se se preferir uma expressão mais inócua (embora perdendo vigor), uma ética pública, estadual, ou constitucional19. Num momento em que já todos estamos severamente a pagar a conta dos desvarios e desmandos da economia internacional de casino, de clara inspiração neoliberal, uma receita de desmantelamento do Estado social é paradoxal e descabida. E não se vê como possa mobilizar realmente quem quer que seja, por si mesma. É evidente que terá sempre o apoio dos indefectíveis e dos tácticos das lideranças partidárias que a propuserem. Mas será que chegará às próprias bases partidárias? Temos as maiores dúvidas. 18 Há um saboroso poema de sabor popular de GOMES DE BARROS, Leandro — A Vida de Pedro Cem, v. http:// pt.wikisource.org/wiki/A_Vida_de_Pedro_Cem. 19 As expressões poderão a alguns parecer mais inócuas, mas nem sempre as propostas que encerram. Cf., v.g., MONTEJANO, Bernardino — Ética Pública, Buenos Aires, Ediciones del Cruzamante, 1996; SCHMITT, Carl — Staatsethik und pluralistisher Staat, in “Kantstudien”, n.º 35, Berlim, 1930, pp. 28-42. 120 PAULO FERREIRA DA CUNHA Obviamente o consenso será geral contra gastos sumptuários, contra má gestão, contra beneficiários do beco dos milagres. Mas haverá no eleitorado dos partidos que têm uma matriz ideológica social, e até social-democrata (ou democrata-cristã...) entusiasmo por um desmantelamento do Estado e do seu carácter protector? O eleitorado dos nossos partidos do arco constitucional – de todos eles, da esquerda à direita – não é sociologicamente neoliberal, muito pelo contrário. Já se tem visto até na investigação da maneira de ser do português médio até um excesso de apego ao Estado, e uma vocação para o funcionalismo público, que não faria mal abanar com algum rasgo de “empreendedorismo” (palavra em si horrorosa, mas conceito útil)20. É possível que um punhado de intelectuais, cremos que nem sequer uns tantos grandes empresários (porque a nossa economia sempre foi muito dependente do Estado) e alguns financeiros (ou candidatos a tanto) adiram de alma e coração a este “choque mental”. Porque o seria. Mas não o Povo Português. E seremos o primeiro a reconhecer que nem sempre pelas melhores razões. Mas não apenas o povo mais pobre, como a própria classe média, e até a média-alta, habituaram-se a ter o seu centro de saúde, os seus medicamentos mais baratos que o preço reclamado pela indústria farmacêutica, o seu hospital quase sem custos, a sua escola gratuita até certo ponto, e o seu subsídio de doença e a sua reforma garantida. Como resistiriam estas coisas à queda do seu grande defensor, a Constituição social que temos? Não resistiriam. No fundo, o neoliberalismo acaba por fazer pior que o simples mudar absurdo dos sinais de trânsito: o neoliberalismo acaba com eles. E então, como há quem nada respeite, imagine-se o que seria a vida social sem regras. Laissez faire, laissez passer – grande lema liberal – é muito bom quando se tem um carro potente e caro que amedronte até quem tem sobre nós prioridade. Para os demais, é só a lei da selva. Mudar a Constituição, para quê? Para um consequente neoliberal o bom seria não haver mesmo Constituição nenhuma. 20 Cf. algumas referências interessantes v.g. in ARROJA, Pedro — Gestão Cientifica em Portugal. Em Defesa de John Brown, in “IV Jornadas Luso-Espanholas de Gestão Científica”, vol. I, Porto, 1988, p. 205 ss. 121 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS III. A Constituição e o Futuro 1. Esvaziamento da Constituição: Dinamitar as Cláusulas Pétreas Amigas e defensoras da Constituição são as normas que a protegem contra a sua descaracterização, ou o seu hara-kiri. Desde logo, as normas de blindagem à mudança perversora, as normas dos limites materiais de revisão, que na nossa Constituição primeiramente se sedeavam no art. 290.º e hoje constam do art. 288.º. “Cláusulas pétreas” é uma metáfora evidente, que logo nos explica do que se trata. São – ou deveriam ser – limites intransponíveis, ou, no mínimo, obstáculos da maior dureza, que só se levam de vencida a dinamite ou à bomba. É sabido que tivemos em Portugal uma ultrapassagem de uma situação de algum estrangulamento político e de alguma debilidade de força normativa da Constituição (por um processo, aliás comum, de déficit de democraticidade contextual no exercício do poder constituinte: veja-se os pactos MFA-partidos, ou o sequestro da Assembleia Constituinte) por via de uma “dupla revisão” constitucional. Mas esse processo terá que ser visto como excepcional. As cláusulas pétreas foram nele como que dissolvidas, para deixar passar uma revisão constitucional que, sem isso, seria claramente inconstitucional. E cremos que havia disso óbvia consciência. De novo se fala (e de novo se falará sempre, enquanto este tipo de normas de protecção da Constituição existirem, em qualquer país) de contornar, de uma forma ou de outra, esta blindagem constitucional, que é o cerne da auto-defesa da lei fundamental. Os argumentos são consabidos, e repetem-se de uns países para os outros. São sobretudo os argumentos do progresso, da adaptação, do realismo, e até da “democraticidade”, entendida como um sismógrafo das potenciais opiniões da ventosa plebis, que, assim, não consentiriam nenhum contrato social durável, antes as leis deveriam estar à mercê das maiorias do momento. Pressupondo-se, contudo, que tais maiorias seriam favoráveis à desregulação e ao total domínio da coisa pública pelos poderes económicos.... Resumida, é essa a “moral” imoral dos projectos de desconstitucionalização, e até de ataque à jurisdição constitucional. A qual, contudo, se quiser continuar prestigiada, por todo o mundo, haverá de 122 PAULO FERREIRA DA CUNHA saber resistir à sua instrumentalização ou à subserviência, mais até a ventos político-económicos que a pessoas ou governos em concreto. Os métodos de revisão em causa, esses, seriam: ou de novo a dupla revisão, ou mesmo a eliminação do ou dos preceitos que prescrevem as referidas cláusulas pétreas: em Portugal, o art. 288.º da Constituição da República Portuguesa. Não sabemos qual o mais grave. Agora que de há muito se encontram sanados quaisquer excessos do primeiro texto constitucional, a dupla revisão seria claramente uma fraude à Constituição, e absolutamente indesculpável. Do mesmo modo, a supressão do referido artigo constituiria uma porta aberta a todas as desconstruções e mutilações constitucionais. Seria, na verdade, o princípio do fim da presente Constituição, ou de qualquer uma que de tal processo fosse vítima. 2. Alternativa à Revisão: Uma Nova Constituição? « Un peuple a toujours le droit de revoir, réformer et de changer sa constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les générations suivantes ». Neste art. 28.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aposta como Preâmbulo à Constituição francesa de 1793, há muita sabedoria, i.e., há nela muito senso comum. É evidente que nenhuma Constituição é eterna. Contudo, uma coisa é a realidade fáctica, histórica, outra coisa é a realidade normativa. Historicamente, toda a mudança de Constituição (salvo casos raríssimos, como a Carta Constitucional francesa de 1830 e a Constituição gaulista de 1958) é traumática, é revolucionária, e tem períodos de vazio constitucional. Como afirma Didier Maus, “Du point de vue de l’histoire constitutionnelle européenne, on constate qu’en general les changements de constitution correspondent à de très profondes transformations politiques, notamment des périodes historiques différentes: on passé d’un régime monarchique à un régime républicain, d’un régime liberal à un régime communiste ou vice-versa (…) En général, il s’agit d’un signe de transformation beaucoup plus que politique: sociétal.”21 21 MAUS, Didier — La Ve République, hier, aujourd’hui, demain, in Renouveau du droit constitutionnel, Mélanges en l’honneur de Louis Favoreu, Paris, Dalloz, 2007, p. 822. 123 A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS Isto significa que os povos (ou os grupos activistas que os conduzem) mudam, efectivamente, as constituições, mas no risco da subversão e da revolução, da ilegalidade face às constituições anteriores. Evidentemente, há casos, como o da constituição francesa de 1958, em que se opera uma transição constitucional em que se gera um consenso (contudo com vozes discordantes) sobre o modo de alterar as regras do jogo. E assim, o art. 90.º da Constituição francesa de 1946, sobre a revisão constitucional, foi revisto, permitindo um novo texto constitucional, feito sobretudo na sombra dos gabinetes do Governo, sob tutela do presidente. Dupla revisão, técnica sempre perigosa e potencialmente subversora. E método de criação constitucional muito pouco democrático. Seria possível um consenso das forças políticas portuguesas para alterar o art. 288.º, que, além dos pontos concretos intocáveis da Constituição, implica a proibição geral e total de mudar de Constituição dentro da ordem, da legalidade, do regime instituído? De forma alguma tal nos parece possível. A chave do problema é o Partido Socialista, que sempre tem sido um defensores da Constituição, que (na versão presente, mas mesmo muito na original) a ele e (em bem menor grau) ao PPD/PSD fundamentalmente se deve. Mas imaginem-se as reacções do PCP e o Bloco de Esquerda perante uma tentativa de mudança de Constituição rasgando os limites da presente. Todos os partidos têm interesse em manter o regime, e uma ruptura desse género não se sabe ao que poderia levar, além de a pertença à União Europeia ser um garante contra aventureirismos antidemocráticos e anti-constitucionais, como seria o caso. Só o CDS votou contra a Constitução, e depois com ela foi convivendo, apesar de críticas pontuais, que nunca puseram em causa o regime. Durante mais de 30 anos, apenas grupos de extrema direita ou para ela caminhando se manifestaram radicalmente contra a Constituição (sendo de presumir que grupos de extrema esquerda sejam também desafectos a ela, mas estes não se preocupam com reivindicações juridistas, que consideram certamente “burguesas” – pelo que desta inimizade constitucional se não ouve falar). Não cremos, assim, que a grande autoridade moral de grandes pais-fundadores da Constituição, e a memória de outros, possa permitir que um programa social e democrático, de qualquer partido ou grupo de partidos se desvincule da defesa da actual Constituição. Sob pena de perder a face e a memória. 124 PAULO FERREIRA DA CUNHA Só um grande desconhecimento das virtualidades auto-regeneradoras deste texto tão aberto e tão generoso poderia levar a atravessar o Rubicão de uma ruptura. Apesar dos proverbiais “brandos costumes” dos Portugueses, uma ruptura constitucional poderia ser o princípio da guerra civil que se evitou em 1975, precisamente com o compromisso constitucional. Por certo não uma guerra civil clássica, obviamente. Mas sérias convulsões sociais nos esperariam, decerto, se o nosso viver socialmente protegido e dignificado viesse a ser substituído pela selva, pela lei do mais forte. Para quê mudar o fato que nos está bem, e que, em alguns aspectos, nem sequer foi usado suficientemente (como nos direitos sociais)? À pergunta “poderá haver uma nova Constituição?” devemos responder, pois, sim e não. Sim, porque a História não pára, e é impossível à normatividade suster a evolução: benéfica ou nociva. E pode, de facto, mas não de direito, fazer-se inconstitucionalmente e artificialmente uma nova Constituição ainda durante o “prazo de validade” histórico desta: prazo esse que é indeterminado. Não, porque a nossa ordem jurídica, a normalidade institucional, o normal funcionamento das instituições democráticas que o presidente da República deve defender e por que deve velar, não permite mudar de Constituição. Apenas rever a presente, nos seus estritos termos. Mudar de Constituição seria mudar de regime. E para isso é preciso, sempre, uma revolução ou uma contra-revolução - recordemos. Por vezes, há formas eufemísticas de o dizer, e mesmo de o fazer. Mas a ideia é sempre a mesma: uma mudança substancial no estado das coisas, nos modos de governar, na relação entre quem manda e quem não detém o poder, nos direitos dos cidadãos, e no projecto nacional. Uma Constituição não é como uma moda, que muda por pressão social volúvel para ter de mudar, para ser in, chic ou moderno, etc.. Seria bom que olhássemos para a longevidade de algumas constituições e mesmo de algumas leis (como os nossos dois códigos civis), como exemplos, e nos lembrássemos que, num tempo democrático, como o nosso, em que as revoluções se tornam, pela força das coisas, raras (como bem lembrava Tocqueville), também as mudanças radicais dos pactos ou contratos sociais por isso mesmo terão de ser excepcionais. E que todas as mudanças, a fazerem-se, têm de ser para aperfeiçoar o modelo, não para o contrariar. Muito menos para o subverter ou lhe dar fim. 125 CULTURA Mediocridade, partidocracia, mérito e democracia Fernando Mora Ramos A mediocridade não tem obra, suga a alheia. Não é uma identidade activa, prospectiva, é aquela forma sem vértebra, hábil em mexer cordéis que a pessoa do oportunista ou instituição manobram nas águas turvas de um caminho que se trilha sem sobressaltos, de modo garantido, fermentando o bloqueio dos processos, sacaneando o parceiro, o outro ou outra entidade, e disso colhe o que procura como lucro privado e íntimo – o medíocre é perito na oportunidade, é oportunista, e não concorre com o outro pela qualidade da coisa pelo jogo da alternativa, o medíocre corre com o outro pela via do bastidor, do truque, é chico-esperto. Ele é o pilar da imobilidade e na imobilidade tem a sua renda – nada melhor que um deslize dos prazos das obras, que um reajuste orçamental, que um poleiro inútil, pouco visível e pago em senhas de presenças, viatura, refeições, horas fora de horas, salário directo no NIB, férias, prémios de desempenho pela invisibilidade competente, etc.; nada melhor certamente que a criação necessária de uma Fundação desnecessária, que uma comissão que se prolonga por objectivos não atingidos e plena de reuniões não realizadas, nada melhor que fingir na simulação bem urdida a mudança para que tudo fique na mesma. É aquele do discurso que se cola à ocasião que, não o obrigando a nada, o mantém à tona garantindo-lhe as benesses tramadas ocultamente e fazendo fluir o pequeno e o grande tráfico em que está envolvido. A mediocridade não produz riqueza, é improdutiva, porque justamente na média apenas se concretiza o que a inércia concede e não aquilo que, inventado – sair da crise é invenção e não aplicação de receitas anteriores –, o futuro necessita: a tal riqueza própria criada que, investida em democracia, poderia viabilizar um país livre e não uma bagunça descoordenada em que justamente reinam os mais medíocres, daqueles que também ganham as eleições porque espelham um desígnio da média que vota na média e da bagunça que é seu habitat – o ambiente em que as coisas crescem como viroses, doença ideológica conformista, é o habitat da política portuguesa que, sem verdadeiras rupturas, não encontrará respostas saudáveis ao que tem de enfermo. Os medíocres adoram as águas turvas e nesta opacidade 127 MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA ambiente prosperam, nada melhor que manobrar em lugar oculto, em estranhas associações, em reuniões de três e de cinco, em plataformas negociais de interesses privados de grupo, aí residindo o espaço de decisão dos verdadeiros poderes. De um espaço a outro o medíocre faz o seu caminho. Da loja para o grupo, do grupo para o partido, do partido para o voto concelhio, do voto concelhio para o geral. Da eleição para o cargo na empresa, da empresa para o Ministério e vice-versa, assessor, administrador, consultor, executivo de topo, chefe de gabinete, membro de conselho de administração com cargo não executivo, director-geral, presidente do conselho de administração, secretário de Estado, accionista anónimo de capital saqueado por via habilmente legalizada, predador imobiliário e mesmo usurário: eis os meandros. Quantas donas Brancas não singraram com o aval das instituições mais supostamente sérias, ungidas de auréola moral e de auréolas de outro tipo, religiosas e a da infalibilidade tecnológica aliada a uma competência que nunca se traduz em melhoria, nem em resultado palpável, nem tem dimensão humana? Será a democracia, a democracia do voto? Não, não é. Porque quase metade da população não vota, isto é, quase metade não reconhece esta democracia como uma democracia e nela não se faz representar. Como um corpo sem as patas de trás, com meio pulmão e um coração mecânico que se arrasta para uma debilidade cada vez maior. Se aos que não votam se juntarem os votos brancos e nulos há uma vasta massa de criaturas fora do sistema que, na realidade, não vota na média e que portanto não se identifica com a mediocridade instalada, mesmo que o sistema em que reinam os que fazem da média o seu poder os caracterize como desistentes, irresponsáveis e outros epítetos. Estes fora do sistema não são necessariamente a maioria silenciosa de Spínola, nem a massa amorfa dos supostos absentistas do voto, nem são tão diferentes de uma grande parte dos que votam e que o fazem sem opinião, por puro mimetismo ou empurrados por terceiros, mesmo obrigados e alguns levantados da cama, quase mortos, para a ela regressarem e para expirarem sem a paz merecida dos momentos terminais, depois da cruzinha preenchida no cacique mais ou menos familiar. Os que não votam são mais do que os epítetos que lhes querem colar à pele e são muitos, são a maior maioria e uma maioria feita de imensas diversidades – é um estudo por fazer e ninguém o faz, menos ainda os sociólogos, estes teriam de ir para o verdadeiro terreno e constituir equipas esforçadas e persistentes, mais do que manipular segundo as circunstâncias amostras ditas paradigmáticas ou dados estatísticos mais que suspeitos a favor de teses que são 128 FERNANDO MORA RAMOS anteriores à própria investigação para confirmarem os seus estudos académicos nada experimentalistas. Estas zonas por investigar, estes buracos negros da democracia, continuam cuidadamente fora de ser objectos de investigação, e portanto nas profundezas do ignoto por razões obviamente do sistema que só tende à reprodução das malformações convenientes a quem o estrutura laboriosamente nos limiares promíscuos da relação entre público e privado. Os que não votam são, seja como for, a prova de que a democracia dos medíocres não os consegue convencer a que votem, trinta e tal anos depois, ou de que nem lhes chega o desejo de votar sequer através da voz institucional e massificadora do direito de votar – os partidos também não saem de votações baixas, vistos os números –, o que significa que há quem esteja fora do sistema por precariedade total e que por essa razão, que esta democracia não combate de modo que a aprofundasse, nem sequer acede ao voto, mesmo perante o proclamado direito a saltar-lhe em frases publicitárias frente aos olhos cegos – no país da estatística somos não sei quantos alfabetizados, até licenciados (cujos canudos se adquirem na versão de Bolonha como produtos brancos de supermercado), mas no país real somos maioritariamente iletrados e incapazes de criar riqueza libertadora. Nos partidos abundam os fiéis que apenas fazem número, mesmo que nos partidos exista um potencial de transformação dos próprios partidos justamente junto dos que são apenas os marginalizados seguidores não fiéis. Os partidos praticam o simulacro da pluralidade mas são partidos cujos eleitores votam os secretários gerais em votações na casa dos noventa por cento, à moda das tradições de homogeneidade acéfala que conhecemos. Dos outros, dos elementos dos partidos e seus aliados ditos independentes, directamente sistémicos, há que indagar quantos agem pelo interesse geral e com que competências. Quantos parlamentares produzem de facto matéria legislativa? Quantos intervêm? Que qualidade tem o material produzido? Quem fala disso ou analisa isso? Quantos têm posições próprias, reflexão sobre as matérias que supostamente conhecem? Ensaios, estudos, análises? Não basta ser capaz de levantar o braço, nem basta ser capaz de reproduzir um discurso que o chefe proferiu antes. Cada deputado deveria ser um partido para quem o elegeu, o verdadeiro representante da categoria glocal – global e local –, como diria Marc Augé. À verdadeira escola, à verdadeira cultura, não escaparia a tal criação de riqueza que libertaria o país, o que não é apenas uma conversa de crescimento com uns quantos algarismos percentuais para satisfação de cabeças estatísticas. 129 MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA Porque a essa escola só pode corresponder uma cultura – resultado também da escola estética, da prática e fruição das formas de conhecimento específicas desses discursos fundamentais – da qualificação constante com incidência económica, no quadro de uma política do mérito eleita como regra democrática e ambiente crítico – o respeito desta formulação colocaria que percentagem da actual classe dita política no desemprego, ou no devido emprego? Assim sendo, uma grande parte de portugueses não vota por estar fora desta democracia e por não reconhecer na lógica representativa, tal como é praticada e manipulada, uma verdadeira dignidade e verdade de representação, sentem-se exteriores ao sistema, excluídos da política como ela é praticada pelos que se autonomeiam políticos e pelo sistema que também os nomeia desse modo. A delegação de interesses num suposto grupo de pessoas proposto por partidos e que é escolhido dentro dos partidos por uma via absolutamente privada – são associações privadas com vocação pública, o que não significa representação do interesse público – para ulteriormente ser ungido pelo voto da eleição geral, é um mecanismo que na realidade funciona de modo corporativo e segundo interesses que não respeitam a representação mas que, pelo contrário, são expressão de formas de desenvolvimento de tráfico dentro dos partidos e entre as capelas partidárias e as empresas e também de outros interesses, nomeadamente salariais e de cargos – o cargo de deputado europeu o mais ambicionado, claro. Fora deste esquema não há verdadeiramente partido algum, já que nos partidos que apenas acedem aos poderes públicos e não aos poderes empresariais e financeiros, o mecanismo interno de selecção de candidatos e de acesso aos poderes internos deixa muito a desejar e não procede de modo que funde competências político-técnicas, nem paradigmas de funcionamento interno democrático capazes de gerar trabalho e obra como dedicação ao país e ao planeta. Os candidatos não são sujeitos a critérios de verdadeira exposição e combate democráticos, são objecto de listagens e de lutas de lugares, de hierarquias, sendo raro o espaço de uma verdadeira pluralidade de opinião e posicionamentos geradora de dinâmicas não dirigidas de modo dirigista e resultados de lógicas mais que de antagonismo de conjuntura. O trabalho lento, diverso e íntegro de um verdadeiro projecto concreto de alternativa futura não surge com a consistência da projecção possível na prova prática, há programas de partidos totalmente indigentes e ainda mais sectores da realidade ignorados nos próprios capítulos que se lhes dedicam. O caso da cultura é paradigmático e nunca nada se diz sobre as políticas do património, dos museus, da língua, das artes plásticas, do cinema, do audiovisual, do teatros, das 130 FERNANDO MORA RAMOS artes performativas em geral, da criação, da internacionalização, do livro, da divulgação e animação culturais, da inscrição no território das estruturas de criação como componentes da identidade contemporânea nacional e do espírito de tradição universalista europeu, da articulação entre as artes como profissões e os ensinos como um caminho para lá se chegar, etc., nunca nada se diz sobre a importância dos clássicos, mas finalmente fazem-se declarações pomposas sobre as potencialidades económicas de Pessoa como marca e do inglês técnico para nos abrir a porta do paraíso. Nenhum partido tem dentro de si uma verdadeira capacidade de experimentação do futuro e lamentavelmente nenhum deles desenvolve na sociedade civil um verdadeiro campo de experimentação social em antecipação do que de facto desejaria desenhar como futuro, mesmo de um modo apenas “apontado”, a partir da própria realidade organizativa interna partidária e adjacente. O decréscimo de forma organizativas próprias de modelos de sociabilidade democráticos, tais como as mutualistas, as formas cooperativas e autogestionárias, as universidades populares e outras formas organizativas de livre iniciativa – organizações privadas sem fins lucrativos – são hoje em dia, no todo social, formas residuais ou de entretenimento terapêutico/social, e mesmo os sindicatos não se desenvolvem verdadeiramente como um vasto campo de cultura alternativa sob formas organizadas socializadoras, para além do combate político no estrito sentido da oposição ao poder governativo de um modo muitas vezes apenas como contraponto mecânico, puramente reactivo e não autonomamente activo e livre, potência de futuro. Os partidos, para serem partidos que representassem o interesse geral teriam de, no plano interno, funcionar de forma abertamente democrática e segundo as leis gerais da exposição e do debate abertos. Seriam casas do exercício da política como ciência pública da governação do que é comum. Uma organização não pode ser parcialmente oculta no seu modo de vida associativo privado e reivindicado como tal como ideal para si mesma e depois, em condições determinadas, representar o interesse nacional e geral. É uma contradição nos termos, uma impossibilidade. Os interesses representados para serem gerais não podem gerar-se nas microestruturas de simbioses identitárias, de fulanizações humoradas e de pequenos interesses, os interesses imediatos dos próprios. Os partidos são geridos por lideranças e o seu sistema de voto interno é, como se sabe, manobrado ao ponto de existirem dentro dos partidos formas de tráfico dos cargos a que se candidatam, inclusive sabendo-se de candidatos que pagaram para serem candidatos a determinados cargos. Claro que os partidos se podem organizar como quiserem e fazer as reuniões que 131 MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA entenderem como entenderem, mas não podem, por essa via da sua vida interna, reivindicar uma legitimidade de representação do interesse geral. Ao interesse geral só pode corresponder uma identificação absoluta com o que ele é e isso significa, para além de exposição clara às regras da democracia transparente, que os cargos públicos a que se candidatam, parlamento e governo, não deveriam ter, nem corresponder, a nenhum tipo de privilégio nem de salário elevado, mais elevado que o comum dos mortais – o combate dos partidos nunca seria, deste modo, por nada que o comum do cidadão não pudesse fruir e almejar pelo seu trabalho normal. O verdadeiro representante do interesse público não deve estar acima dos seus concidadãos quanto a meios de vida, nem gozar de nenhum tipo de privilégio. A democracia não se coloca estas questões porquê? Pela simples razão de que é um sistema que serve apenas directamente parte dos que votam, mais ou menos, e os partidos que são proprietários da democracia – é uma democracia para os partidos e não para o interesse de todos. O interesse de todos está longe de poder ser representado pelos partidos e por isso a democracia é muito mais do que os partidos são, embora o sistema remeta para estes o exercício do poder político de uma forma absolutamente imperfeita para aos tempos que correm. A necessidade de encontrar formas pós-partidárias de representação do interesse geral está em cima da mesa e é de uma urgência vital. O que acontece na realidade está para além do que os partidos podem e são. Outras formas de exercício do poder dos cidadãos são necessárias de modo a que a inscrição da participação dos cidadãos na vida colectiva se faça como a crise o exige. Ainda recentemente o provou a manifestação da “geração à rasca” cujo primeiro resultado é o da superação da própria condição geracional em que surgiu, o que é um sinal extraordinário de possibilidades futuras. O potencial de mudança da força surpreendente que ali emergiu não encontra formas de participação adequadas à sua própria força de mudança. A sua força de mudança corre o risco de se esgotar no nada. Num sistema democrático estes sinais de presença e de actividade positiva política encontrariam os seus mecanismos de inserção dinâmica, transformadores, canais abertos á participação e neles os qualificados, os mais capazes e com provas dadas, obras de transformação criativas, seriam reconhecidos pelo mérito do que realizam e por essa via eleitos como líderes de projectos, como mais capazes, como líderes sociais. Mais que uma campanha eleitoral o que deveria guindar alguém a eleito seria a sua obra, ter realizado mudança, coisas palpáveis, ser um criador de formas de liberdade e qualificação da vida dos outros e da riqueza comum. 132 Shakuntala Irreconhecível João Soares Santos «A melhor prova da grandeza de um poeta é a incapacidade dos homens em viver sem ele». Arthur W. Ryder 1. A primeira peça de teatro originariamente redigida em sânscrito (Sanskrita) e prácrito (Prakrita = «original», «natural», «comum», «usual», termo que abarca os dialectos vernaculares da Índia, aparentados entre si, embora com pronunciações diferenciadas) traduzida para uma língua europeia foi «Shakuntala do Sinal de Reconhecimento» («Abhijnana Shakuntala»)1 sendo o responsável William Jones. Vertida para Inglês em 1789, esta obra («Sacontalá or the Fatal Ring») apareceu impressa em Calcutá dois anos depois de Jones centrar nela a sua atenção e cinco após a fundação da Asiatick Society na mesma cidade. Sucederam-lhe duas edições em Londres (1790 e 1792) e uma em Edimburgo (1796). Um campo literário até então inacessível ao público europeu adquiriu proeminência e lançou um fulgor de respeitabilidade sobre os candidatos à decifração do sânscrito e à divulgação das obras escritas neste idioma. Em 1791 Georg Forster trasladou o texto de Jones para Alemão (2ª. edição em 1803) e mostrou uma cópia a Goethe e a Johann Herder. A partir da mesma fonte bibliográfica britânica A. Bruguière apresentou a sua versão francesa (1803) e Luigi Doria, baseando-se na impressão francesa e inglesa, uma tradução italiana (1815). Recomendada por um brâmane chamado Radhakanta, Jones leu e transferiu inicialmente o texto desta peça para latim que «assume uma enorme semelhança com o sânscrito» e depois, «palavra a palavra», para Inglês. Apesar de considerar esta obra como «uma das maiores curiosidades que a literatura da Ásia trouxe até nós», julga aceitável que, sem danos, a mesma possa ser parcialmente alterada, deslocando o terceiro acto para o segundo, o sexto para o quinto, haja a supressão da conversa entre Dushyanta, o rei de Hastinapura, com Mathavya, a figura cómica (Vidushaka) e do segmento longo de galanteio entre este soberano e Shakuntala no eremitério.2 Jones utilizou a variante Bengali do texto. Esta foi a primeira versão ou recensão conhecida no mundo 133 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL Ocidental, tendo edições de Antoine de Chézy (Paris, 1830) e Richard Pischel (Kiel, 1877). Estão actualmente documentadas quatro (ou cinco) recensões desta peça: a Bengali e a Kashmiri, de corpo literário mais extenso, presumivelmente destinadas à cena, a Nagari ou Devanagari e a dravídica, mais abreviadas, depreendendo um registo somente para leitura, acrescentando-se por vezes a Maithili (dialecto do Bihar, próximo do Bengali). Com dissemelhanças entre si, apesar de apenas estas adaptações terem sido preservadas, a perturbação deleitosa causada pela tradução ou pela tradução da tradução da fonte Bengali alteou o nome deste dramaturgo e poeta aos píncaros da arte literária mundial. A repercussão dos aplausos entusiásticos dos eruditos europeus ajudou a colocar o idioma sânscrito, hostil ao saber comum, na agenda dos estudos universitários. As vaidades intelectuais retiraram proveito deste autor e da sua expressão verbal. Numa época em que os textos indianos estavam ainda pouco propagados e a compreensão das línguas deste país era deficiente, os sábios europeus apreenderam este exógeno cativante num enquadramento colonial e de transformação dos autóctones. Num processo de mudança do Outro em vantagem dos padrões de civilização do ocupante, a descoberta e o reconhecimento artístico de «Shakuntala» resultou de uma genuína fascinação que muitas vezes permitiu um aproveitamento para o exercício jactancioso de exibição de saber e para a promoção individual. Neste período, a tradução modelava a fonte ao gosto e aos preconceitos estéticos instalados, sacrificando ou deturpando noções culturais indianas bem como os aspectos lexicais e estilísticos que as manifestavam. As limitações do tradutor evidenciavam-se em incorrecções no modo como veiculava ou comentava no seu idioma vocábulos, frases e sentidos, em omissões de regras formais, de segmentos mais complexos ou censuráveis por indecência ou obscenidade, na camuflagem de hábitos e convenções, na incapacidade de transmitir as inflexões e timbres próprios de cada situação. A tradução manifesta o que o seu autor julga ser a Índia e as pretensões que com o seu trabalho tem em relação a ela. Kalidasa contribuiu para a autoridade filológica, crítica e literária de elites europeias. Arrebatou e catalisou discursos egocêntricos. Muitas vezes a necessidade do erudito falar sobre si mesmo abafava o assunto sem o elucidar ou problematizar. 134 JOÃO SOARES SANTOS Antoine de Chézy, titular da cadeira de sânscrito no Collège de France, fundada por Louis XVIII em 1814, na introdução à sua tradução de «Shakuntala» («La Reconnaissance de Sacountala», a partir de um manuscrito da biblioteca do rei, Paris, 1830) elogia-se por ter conseguido superar as grandes dificuldades proporcionadas pelo léxico sânscrito. Glorifica o seu esforço, saber, escrúpulo e meticulosidade para exprimir em Francês esta obra-prima. Num estilo enfatuado, realça também que, para satisfazer o leitor, para lhe dar aquilo que ele espera ser uma dramatização indiana, não hesitou em mutilar e aplanar este exemplo de haute poésie. As páginas preliminares do livro terminam com uma exaltação da sua falecida mulher, uma criatura que ele «viu definhar dia a dia preenchida por uma calma e resignação admiráveis e não experimentando outras lástimas que as de me abandonar».3 A «pauvre Thérèse» que, na sua «terrível agonia» final, tinha com mágoa mais viva «o temor que, no meu desalento, não pudesse acabar este trabalho e que regozijava quando, após mil esforços, conseguia terminar uma parte.»4 Depois da sua primeira edição de «Shakuntala» («Sakoontalá or the Lost Ring, an Indian Drama», 1855) segundo a versão Devanagari, Monier Monier-Williams (1819-1899) reviu a obra e concluiu que «após um severo exame crítico de todas as palavras, apenas detectei alguns pontos menores insignificantes – e estes apenas na introdução e notas – para os quais uma alteração parecia desejável».5 Admite ter, nalguns casos, tomado demasiadas liberdades com o texto original mas, pensando na alternativa, optou por uma solução dirigida a um leque mais abrangente de leitores e não somente a sanscritólogos e estudantes do idioma. Assume ter em consideração um público mentalmente cingido por valores europeus, destinatários para os quais é imprescindível um tradutor capaz de transmitir o melhor possível as ideias orientais, de lhes fornecer uma indumentária conformável com os cânones ocidentais de gosto. Considera ainda que a mesma não se adequa a dramatizações num palco. Manifesta as suas reservas no que concerne às iniciativas ocorridas na Índia de adaptar para cena a sua versão da peça. O teatro de Kalidasa devolvido aos Indianos em Inglês não lhe parece um desfecho muito correcto para a obra. Contudo, não pode ser por si escamoteado o sucesso obtido por esta tradução em algumas partes da Índia, entre um público ligado à administração colonial Britânica. Segundo ele, 135 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL William Jones não apresentou «Shakuntala» de modo a ir ao encontro das circunstâncias da época e o seu trabalho foi realizado «a partir de manuscritos corruptos (os melhores que então podiam ser procurados) nos quais a vigorosa fraseologia de Kalidasa foi ocasionalmente enfraquecida, as suas delicadas expressões de amor refinado colocadas numa roupa inconveniente e as suas ideias, grandes na sua simplicidade, diluídas por repetições ou amplificações.»6 Pelo contrário, o seu exercício de transposição verbal patenteia a versão mais pura da composição dramática, à qual acrescenta abundantes notas «suficientes para responder às exigências do erudito não oriental».7 Este princípio de atalhar e maquilhar material literário, ao invés de condignamente o clarificar, mantém-se ao longo do século XIX. A tradução de Abel Bergaigne, mestre de conferências da Faculdade de Letras de Paris e Paul Lehugeur, professor do Liceu Charlemagne (Paris, 1884) responsabiliza-se por querer «não fatigar inutilmente o leitor»,8 remetendo cortes, disfarces e rasuras para o apêndice e omitindo porções que «podem passar por interpoladas». Consoante os seus apetites e agrados, muitos indivíduos sem o talento literário para edificar uma peça como «Shakuntala», não sentem embaraço em eliminar secções de texto naquilo que enaltecem como sendo uma obra-prima. Kalidasa é oferecido em sacrifício por tradutores e sanscritólogos a um público subentendido como preguiçoso ou com capacidades de inteligibilização restringidas. Para não cansar de um modo supérfluo o leitor, o texto do dramaturgo é facilitado, tornado acomodatício em nome do rigor científico e de receptores alegadamente inaptos para apreender a obra tal qual como é. Bergaigne e Lehugeur encurtaram a peça «sem outra preocupação que a do sentido estético de um leitor Francês».9 Como muitos outros, Maurice Pottecher no « L’Anneau de Sakountala», adaptado por si em verso Francês e representado no Théâtre du Peuple de Bussang (Paris, 1914) coloca a preferência pessoal em primeiro plano e não hesita em aplicar modificações, em vestir a peça com uma nova roupagem «para que aquilo que ela tem de imortal e de encantador seja melhor saboreado por um auditório moderno».10 Crê que uma intervenção deste calibre, que uma reinvenção de «Shakuntala» não atraiçoa a obra, que a falta de fidelidade a um expoente máximo da literatura não implica 136 JOÃO SOARES SANTOS deslealdade ou indelicadeza. Pelo contrário, sustenta a sua atitude como um tentame arrojado que visa evidenciar a verdadeira e durável beleza da mesma.11 Ao longo do século XIX o interesse pelo teatro sânscrito e por «Shakuntala» em particular exprimiu-se em numerosas edições, em estudos e opiniões diversas sobre a literatura indiana, em composições poéticas e em espectáculos de teatro, ballet e ópera. Para além dos autores já mencionados, Wilhelm Gerhard (1820), Bernhard Hirzel (1833) e Hippolyte Fauche (1854) elaboraram transferências linguísticas a partir da recensão Bengali e Ernst Meier (1852), Friedrich Rückert (1867), Carolus Burkhard (1872) e Edmund Lobedanz (1878) a partir da versão Devanagari. Dos resultados obtidos a partir destes registos indianos derivaram outras traduções publicadas por toda a Europa. Em 1867 P.-É. Foucaux apresentou uma tradução da peça de Kalidasa baseando-se na edição de Monier Monier-Williams. Uma tradução livre de «Sakountala» não suportada pelo texto de Kalidasa mas pelo episódio referente à sua história, contido no Livro I (Adi Parva) do «Mahabharata», apareceu feita pelo mesmo em 1894. Receando que uma conversão rigorosa pudesse repelir o leitor francês, Foucaux que se «esforçou por respeitar o fundo e a forma»,12 decidiu «misturar alguns traços emprestados do drama de Kalidasa “La Reconnaissance de Sakountala”».13 O seu propósito «foi explicar certas obscuridades e adoçar a rudeza da lenda antiga».14 2. A trasladação pioneira na língua Portuguesa de «Shakuntala» foi empreendida por Guilherme de Vasconcellos Abreu (1847-1907). A edição bilingue15 teve apenas uma tiragem de cinquenta exemplares e nela somente consta o prólogo e o primeiro acto da peça, num total de sessenta e duas páginas. Abreu era bacharel em matemática pela Universidade de Coimbra e engenheiro naval. Deslocou-se a França e à Alemanha para consolidar conhecimentos no domínio linguístico e cultural sobre a Ásia. No relatório acerca do primeiro ano de estudos orientais feitos em França e Alemanha, enviado de Paris em Janeiro de 1877 a João de Andrade Corvo, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e dos da Marinha e Ultramar, enuncia que chegou a Paris em Maio de 1875, foi aluno de Abel Bergaigne na Escola dos Hautes Études, num curso de História da Literatura Antiga 137 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL da Índia. Antes de seguir para a capital francesa, Abreu tentou traduzir extractos do «Ramayana» e o episódio de Nala e Damayanti, incluído no «Mahabharata». Admite a sua carência de «método rigoroso por cuja falta tudo é estéril».16 Em Paris menciona ter-se debruçado na tradução de um conto de Vetala (refere-se ao «Vetalapanchavimshatika», «Os 25 Contos do Demónio» ou «do Vampiro») e do «Hitopadesha» («Instruções Úteis», uma compilação de narrativas). Seduzido pelo prestígio académico de Martin Haug (1827-1876) deslocou-se depois para Munique, no final de Agosto, conhecendo-o a 3 de Setembro de 1875. Porém, logo após este encontro, o professor de Literatura e Língua Sânscrita Clássica e Védica e de Gramática Comparativa adoeceu. O seu estado de saúde «piorava cada dia e, sobretudo depois do Natal, Haug não era mais o homem dos primeiros dias».17 Abreu foi igualmente atingido por uma enfermidade, perdendo a tão almejada oportunidade de estudar aprofundadamente com esta personalidade. No termo do mês de Abril de 1876 retornou a Paris. «Envelheci em cinco meses mais de cinco anos».18 No período situado entre fins de Outubro e finais de Março as suas aprendizagens decorreram «no meio de sofrimento» especialmente «terrível».19 Voltou para esta cidade «mais para convalescer do que para estudar».20 Conseguiu ter algumas lições privadas com Bergaigne pois «a doença veio logo pôr-lhe estorvo».21 Neste relatório endereçado à tutela propõe que o governo observe com atenção «a acção civilizadora da Inglaterra no Hindustão, se não quiser ver perdidas com desonra as suas colónias na Índia».22 Defende que os administradores daqueles territórios devem conhecer os seus administrados. Está convicto que o empenho no estudo da Índia será um factor indispensável para a civilizar, para promover a sua renovação, para a modernizar. Esta diligência de conhecer um objecto com o desígnio de o mudar, pois não é conveniente a sua preservação ou aceitação, ilustra em si um contra-senso. Se uma cultura nos suscita admiração tal como é porque a pretendemos transformar? Na perspectiva de Abreu o interesse do povo colonizado era ser subjugado pela vontade do colonizador, implicando esta atitude passiva de obediência e assimilação um suposto benefício do primeiro em relação à superioridade do segundo. O relatório seguinte de Vasconcellos Abreu, assinado com a data de 21 138 JOÃO SOARES SANTOS de Janeiro de 1878, dedicado ao Marquês D’Avila e de Bolama, Presidente do Conselho de Ministros, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, dá conta da sua actividade entre Novembro de 1876 e Maio de 1877 em Paris. Nele alude à persistência da sua enfermidade, o constante padecimento, o fracasso parcial dos intentos da sua viagem. Depois do falecimento de Haug e das escassas lições com Bergaigne, partiu para Lionsur-Mer na Normandia. Em Outubro regressou a Paris e a sua condição física agravou-se. Segundo ele, de entre os que houve e mais lhe convinham seguir, os cursos de sânscrito realizavam-se às oito da manhã. Era Inverno, estava doente e viu-se resignado a ter de se concentrar nos estudos sozinho, indo por vezes à universidade assistir a lições sobre temáticas diversas. Reuniu assim dados complementares entendidos como «indispensáveis não a quem se propunha a traduzir Sânscrito, Zenda ou Marathi, mas a quem se proponha saber alguma coisa de etnologia sem cujo estudo não se pode ser Orientalista».23 Tendo recebido apoio financeiro do Estado para ir para o estrangeiro, Abreu parece ressentir a sua frustração e incómodo por a realidade experimentada não ter correspondido às suas expectativas. «Ainda que em minha consciência entendesse não perder o meu tempo nem gastar mal o dinheiro da nação, pareceu-me dever oficiar declarando que, por não poder seguir o curso que desejava com Bergaigne, estava estudando o sânscrito só comigo. E nesse sentido oficiei».24 Nesta sua exposição alude também ao drama «Shakuntala», traduzido por Monier Monier-Williams (edição de 1867), ao convite recebido pelo Marquês D’Avila e de Bolama para reger a cadeira universitária de Glótica e, no âmbito do ensino público, propõe a introdução ao estudo da língua e da literatura sânscrita, enquadrada na «sublime ciência» da sociologia em Lisboa, no Porto e em Coimbra. Realça a pertinência de uma cadeira de sânscrito e de glótica bem como a necessidade de reformas no ensino superior. A aprendizagem deste instrumento de comunicação, o sânscrito, bem como das línguas vernáculas da Índia, parece-lhe fundamental para «o efeito de uma boa administração colonial».25 Quando escreveu o «Manual para o Estudo do Sãoskrito Clássico» (1883), Abreu era Presidente da Secção Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa, membro da Sociedade Asiática de Paris, da Academia Indochinesa de Paris, lente de Sânscrito no Curso Superior de Letras em Lisboa e 139 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL sócio honorário efectivo e correspondente de outras sociedades científicas, literárias e artísticas. No tomo II, secção III deste manual, intitulado «Chrestomathia de Textos em Sãoskrito Clássico», selecciona entre os poetas líricos Kalidasa e alguns versos (94 a 112) do seu poema «A Nuvem Mensageira» («Meghaduta»), o qual designa como «A Mensagem» e um extracto de «Shakuntala» («Xakuntalá», Acto I e Acto V), a partir da recensão Bengali publicada por Richard Pischel (1877). O que aparece referenciado como Acto I é o mesmo texto do prólogo e Acto I da sua edição de 1878. Em posfácio, assinado com a data de Julho de 1891, Abreu lamenta que, não obstante ter sido dada à estampa em 1883, a «Chrestomathia» só foi publicada em 1891 e «muitas foram as causas que para isto concorreram; de entre elas basta que cite uma: o desamor com que os estudos históricos e muito especialmente os filológicos são tratados nas regiões oficiais em Portugal».26 Os exercícios usados no tomo I do volume II do «Curso de Literatura e Língua Sânscrita Clássica e Védica» são adopções com permissão de uso do «Leitfaden für den Elementarcursus des Sanskrit» (1883) de Georg Bühler da Universidade de Viena. Com humildade, Abreu manteve-se informado sobre a actividade dos sanscritólogos europeus e as suas aulas seguem o modelo de Haug e de Bühler. Deplora a sua frágil saúde e o país com as suas «más vontades». Sonha como gostaria que fosse a realidade nacional quase como a desculpar aquela na qual estava inserido. «Oxalá que por este meu esforço se compreenda breve em Portugal a utilidade dos estudos clássicos; e que em futuro próximo possa quem vier depois alargar mais a estrada que se abre agora, e que por ela sigam afoitos no trato das letras viandantes que se esqueçam, quais romeiros felizes, do bordão. Por enquanto só muito à puridade se pode dizer que sem estes estudos não há estudos sérios da Literatura, da História, de boas letras em Escolas de Letras e portanto não os haverá no instituto designado para este fim entre nós, o “Curso Superior de Letras”».27 Em 1884, no Curso Superior de Letras, havia cerca de quarenta alunos e, para além de Literatura Sânscrita, Védica e Clássica, constavam disciplinas como História Universal e Pátria, Filologia Comparada ou Ciência da Linguagem, Literatura Grega e Latina, Literatura Moderna, Filosofia, História Universal Filosófica. Na direcção dos estudos filológicos estava Adolfo Coelho. 140 JOÃO SOARES SANTOS No período da governação de Salazar, o sânscrito, entre outras línguas, foi leccionado na Escola Superior Colonial, depois designada por Instituto de Estudos Ultramarinos e Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Na Faculdade de Letras de Lisboa no ano lectivo de 1991-1992 inscreveram-se no curso de sânscrito cerca de trinta alunos dos quais metade foi assídua. Na Páscoa restaram três e no final do ano dois. 28 José Júlio da Exaltação Costa (1870-1956), professor e secretário de Tribunal Administrativo Fiscal e de Contas em Goa, editou uma tradução de «Shakuntala de Kalidassa» (Pondá, 1911), recorrendo a uma tradução inglesa. Mariano Gracias referiu que «entre grande número de traduções que conta este belo poema, em quase todas as línguas cultas, há uma em prosa, directamente vertida do Inglês, do meu ilustre amigo e conterrâneo José Júlio da Costa, que é uma das mais fiéis e bem feitas».29 Este depoimento contradiz referências publicadas sobre esta tradução apontando-a como seguindo Fauche. Costa estudou Inglês em Bombaim e leccionou este idioma no Instituto Liceal Particular em Divar. A «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» (vol. XXVI) no artigo não assinado sobre «Shakuntala» (com a grafia «Sakuntalá»), «drama lírico da literatura indiana pós-védica», apenas menciona a «boa versão em prosa de José Ferreira Martins entre «outras de menos valor feitas em Goa». Esta obra de Ferreira Martins (1911) foi republicada pela Imprensa Nacional de Angola em 1925 com outro prefácio. Na sua primeira edição Martins elogia outros tradutores deste texto com destaque para Monier MonierWilliams (aparecendo sempre escrito Mornier-Williams) e Fauche «que o verteu em Francês, língua dos namorados, mais rica e mais bela que a inglesa e algo moldada para obras desta natureza».30 Com um fôlego grandiloquente afirma, sem reservas, que Kalidasa era contemporâneo de Jesus Cristo, mais velho quarenta anos e que nasceu e foi criado na corte do Rajah Vikramaditya, um espírito lúcido apaixonado na leitura dos Vedas que «se fundam na guerra entre os Kurus e os Panchlas».31 Este soberano, segundo ele, era admirador «do Valmiki» que compôs «Ramayana» e apreciador do «Mahabarata». Ferreira Martins enaltece Kalidasa como poeta, prosador, como «fino perscrutador da alma humana» e «Shakuntala» como «um dos monumentos mais grandiosos da literatura Védica»,32 ajuntando que 141 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL «o brilho das imagens, a formosura dos conceitos e a pureza da moral que encerra o drama evangeliza-o».33 Para caracterizar a protagonista usa como termo comparativo um poema «feito com mão de mestre» de Bruno Vasconcellos chamado «O Último Respigo»: «Na pagina – Mulher – páro e cogito… Aos seis, botão de rosa; aos dez encanto; Aos doze maravilha; aos quinze mitho; Aos vinte sentimento; aos trinta pranto. Algumas vezes cêra, outras, granito; Agora, repulsão; logo quebranto; Em affecto, os extremos do infinito; No amor, cegueira; no rancor, espanto. Se, pois, um voto universal eleva, Pelos séculos fóra, em toda a parte, Ao supremo prestigio a filha de Eva: Que talento ousaria decifrar-te, Esphinge audaz, mixto de luz e treva Obra Prima de Deus, o Sol da Arte?! 34 Este tradutor da tradução de Mornier-Williams equipara esta última com as obras de William Shakespeare. «Se Shakespeare tem no mundo literário um lugar de evidência, não inferior terá Mornier-Williams que nessa tradução em que mostra o seu grande cabedal de conhecimentos evidencia-se como escritor de altos recursos, de forma sugestiva e o seu fino temperamento de poeta».35 Na edição de 1925, Ferreira Martins louva os atributos da Índia. Este território «é uma chama ardente sufocada pelas cinzas acumuladas em séculos de estádio, onde em convulsão confrange e palpita, surgindo em galas louçãs que farão deslumbrar outros povos».36 A Índia é um país que «descansa apenas no regaço dos sois cálidos, após um labutar de muitos séculos».37 Neste novo prefácio declara que nada sabe sobre Kalidasa, 142 JOÃO SOARES SANTOS sendo por isso difícil «fixar a época da sua existência dentro de um limite mais ou menos plausível».38 Refere opiniões que situam a vida deste autor entre o século VIII a.C. e o século VI d.C. e lendas que o identificam como sendo «uma das nove pérolas que marchetavam o manto de púrpura do Rajá Vicramaditi» ou um «Rajá de Kashmira» ou «um idiota, para afinal mostrar que é só aos entes sobrenaturais que ele ficou devendo o dom da poesia».39 Em rodapé anota que nas obras de teatro indiano antigo, em geral o diálogo das personagens principais era em verso sânscrito e das mulheres e figuras secundárias em prácrito. Numa fluência verborreica, procura com a pompa oca dos vocábulos dar uma aparência de erudição. Os dramas indianos «bebem a largos sorvos do fluido da História romântica dos gloriosos feitos de seus antepassados».40 Sobre Kalidasa declama que «os episódios de todos os seus poemas épicos e dramas, são metal bruto extraído das inesgotáveis minas da literatura sânscrita, que ao toque da varinha mágica do poeta, se transformam em ouro puro, brilhante. Arrancando o mármore bruto das pedreiras dos tempos anteriores a si, Kalidaça soube brunir e cinzelar as toscas pedras e com elas erguer um monumento de admirável estrutura, onde juntou o divino ao profano, irmanou o belo ao grandioso».41 Como fetiche de engrandecimento, reporta aos elogios de Goethe, Humboldt, Horriwts (supostamente E. P. Horrwitz), Schlegel, Harder (supostamente Herder), Lassen, Lamartine, Fauche, Fançoney, Williams, etc. No halo de autoridade irradiado destes nomes consagrados, Martins, num rasgão lírico constata que no drama de Kalidaça a mulher «é grácil como a arequeira, tão doce e encantadora como o botão de lírio numa noite de prata, iluminada pelos brandos raios da lua».42 Inclui nesta versão o prólogo da peça (ausente na edição anterior) e procede a pequenos ajustes no texto de 1911. Em 1919 a Imprensa da Universidade de Coimbra publica «Xacuntala, Drama Sânscrito de Calidaça», traduzido por Bernardino Gracias e com uma introdução de Monsenhor Sebastião Dalgado (1855-1922). Dalgado, um Goês formado em direito canónico e romano na Universidade de S. Apolinário em Roma e doutorado em teologia por concessão especial do papa em 1884, veio ocupar o cargo de professor de sânscrito no curso leccionado por Vasconcellos Abreu após o falecimento deste. De Janeiro 143 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL de 1908 até à sua morte, a cadeira universitária esteve assegurada por este homem de notável erudição que, entre outras obras lexicográficas de referência escreveu um «Dicionário de Concani-Português» (Bombaim, 1893), um «Dicionário de Português-Concani» (Lisboa, 1905), o «Glossário Luso-Asiático» (Coimbra, 2 Volumes, 1919 e 1921) ou os «Rudimentos da Língua Sânscrita (Gramática, Textos e Vocabulário) para uso dos alunos no Curso de Sânscrito da Faculdade de Letras de Lisboa» (1920). Traduziu o «Hitopadesha» («Hitopadexa ou Instrução Útil») a partir do sânscrito com uma introdução de Vasconcellos Abreu (Lisboa, 1897) e «Nala e Damayanti» (Coimbra, 1916). Com agravados problemas de saúde, consequentes de arteriosclerose e intoxicação úrica, na véspera do seu óbito, acamado e com as pernas amputadas, ainda reviu as provas tipográficas do livro «Provérbios Concanis». Na introdução de «Xacuntala», Dalgado aborda a natureza do teatro sânscrito, as recensões desta peça («a Devanágari, mais concisa, a Bengalina mais difusa, a Dravídica e a Caxemirense»)43 bem como as traduções existentes. Salienta que «alguns dos apreciadores não eram sanscritistas para se deliciarem com as belezas e os encantos na sua límpida fonte, nem tinham diante dos olhos uma versão rigorosamente efeituada, mas interpretações do sentido, pálidos reflexos».44 Parece insinuar que o contágio de glorificação de «Shakuntala» foi em grande parte um modo de os enaltecedores se vangloriarem através de Kalidasa. Sublinha que a «profunda e duradoura» impressão causada em Goethe dependeu de uma tradução precursora (a de Jones), em si com algumas restrições na exacta observância relativamente à matriz, depois transferida para Alemão. Segundo ele, as traduções feitas têm um valor relativo. «Raríssimas são as que se podem considerar mais ou menos literais».45 Jones pensou «interpretar o texto em linguagem corrente», Monier Monier-Williams em «adaptá-lo ao teatro europeu», Bergaigne em «acomodá-lo ao gosto moderno do público em geral» e, por isso, «não podiam necessariamente (e confessam-no) ater-se com fidelidade ao protótipo».46 Esta conduta tem a vantagem de «fornecer o dono do restaurante o que sabe ao paladar, são ou estragado, dos fregueses cosmopolitas»47 e o inconveniente enorme de ocidentalizar e modernizar algo cuja natureza não é essa. «Quem não gosta de caril indiano não o come. Mas não se lhe há-de dar qualquer mixórdia com tal 144 JOÃO SOARES SANTOS nome, como não seria dar gato por lebre. O ninho de pássaro é ninho de pássaro, e não geleia de mão de vaca; o manduco (rã grande) é manduco, não é frango. O meu ideal acerca de produções sânscritas clássicas é uma trasladação possivelmente verbal, como a da Bíblia, conservando na substância e na forma o sabor e o aroma oriental (…).48 Se uma viagem à Índia e à época do autor incomodam, então o melhor é ficar em casa. A ausência de veracidade pode ser conveniente mas isso não exime o testemunho de ser uma falsificação ou mentira. «Um autor, ainda que tenha vivido há quinze séculos, creio que tem o direito imprescritível a que a sua obra não seja profanada ou deturpada».49 Dalgado toma uma atitude firmemente elucidativa. «Shakuntala» não deve ser desfigurada pelas fantasias e pelas transigências de quem sobre ela incide. A tradução deve ser um trabalho que respeita o talento do autor. Entre as versões que conhece, Dalgado prefere a de Monier-Williams. «O que é obscuro explica-se e justificase em anotações».50 Apresenta um exemplo da transferência de Monier Monier-Williams e o verdadeiro sentido da fonte. «Por exemplo, Calidaça diz, em substância, que a gazela, perseguida pelo rei, parecia antes voar que correr. Monier Williams traslada-o em verso: «See! In his airy bounds he seems to fly, And leaves no trace upon th’ elastic turf». Mas o que o poeta exprime exactamente pelas suas palavras é o seguinte: «Olha! (pasya; cf. Lat. spice, ingl. spy). Por causa da saltação (-plutatvat cf. ¯ gr.¯ pléo, lat. pluit) alta (ud-; cf. zende uz, irland. uas, os em compos.) e avançada (-agra-; cf. gr. ákron) prossegue (pra-yati; cf. lat. pro e it) muito mais ¯ (bahu-tara, comparativo) no ar (viyati, locativo), pouco (stokam) na¯ terra (urvyam: lit. «a extensa»; cf. gr. eurús, irland. uras)». -A máxima liberdade que se toma na escola, analisado o texto, é dizer: “Por causa dos seus altos (direcção vertical) e largos (direcção horizontal) saltos prossegue muitíssimo pelo ar, pouco por terra”. Não se harmoniza bem com a vernaculidade da língua portuguesa semelhante trasladação? Paciência! Em compensação, interpreta-se com fidelidade não só a mente do autor, mas também a sua expressão e o seu estilo. E não pode desejar mais o estudante de sânscrito e o amante da literatura oriental».51 145 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL Ao receber a proposta de Bernardino Gracias de converter «Shakuntala» para o idioma nacional, respondeu «que somente uma versão literal lhe faria honra e seria oportuna. Dar-lhe-ia seguramente muito mais trabalho mas teria, à proporção, mais merecimento».52 Mais adiante, Dalgado consigna que «o público português actual pouco ou nada aprecia os estudos orientais, sem embargo de tantas e tão gloriosas relações que a nação teve com o Oriente, e de tantos indianistas de primeira plana que produziu, tão considerados pelos estrangeiros, como Duarte Barbosa, Fernão Mendes, João de Barros, Castanheda, Garcia da Horta, Gaspar Correia, Camões, Diogo do Couto, Gaspar da Cruz, Fernão de Queiroz. Não se nota na classe ilustrada pelo menos o mesmo interesse que se manifesta na Bélgica, na Dinamarca ou na Noruega. Julga-se talvez que o Orientalismo é nebuloso, pueril ou inútil; mas outro é o juízo dos entendidos. O leitor ordinário lê por passatempo, ou por luxo, e não com o empenho de adquirir novos conhecimentos; a leitura leve e superficial satisfaz, portanto, plenamente o seu gosto».53 Eça de Queirós (1845-1900) de um modo breve atestou o insípido panorama orientalista português, o gosto ignorante ou a entediante banalidade da maioria dos seus discursos. Para ele, por volta de 1862 ou 1863 «conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então, em Coimbra, um distintivo de superioridade e elegância intelectual. Os Vedas, o Maabarata, o Zendavestá, os Edas, os Nibelungen, eram os livros sobre que nos precipitávamos com a gula tumultuosa da mocidade que devora, aqui, além, um trecho mais vistoso, sem ter a paciência de se nutrir com método» («Um Génio que era um Santo», «Notas Contemporâneas», obra póstuma, 1909). Esta falta de vinculação efectiva, de diligência e de perseverança na continuidade deste tipo de estudos prevaleceu até aos nossos dias. O tom de leviandade refulge na tradução de Ruy Sant’Elmo de «Shakuntala» («Xacuntalá», Nova Goa, 1941). Apesar de mencionar as edições anteriores da peça (excepto a de Vasconcellos Abreu), o autor, se de facto as consultou, parece ter esquecido a introdução de Sabastião Dalgado pois assume fazer «uma adaptação libérrima do drama às exigências do teatro susceptível de representação».54 Não manifesta qualquer prurido em considerar que as obras antigas devem ser actualizadas, justificando-se com o interesse de um público destinatário que «não tem tempo nem preparação 146 JOÃO SOARES SANTOS para as ler»55 e assim «ficaria privado de fazer delas uma ideia sequer».56 Embora ter uma ideia não seja o mesmo que ter o usufruto profundo de um texto cheio de subtilezas, o tradutor advoga, não sem estar cônscio da polémica atitude que toma (e esta caucionar qualquer opção medíocre), ser preferível conhecer superfícies do que não conhecer. Com uma conveniente modéstia que delata a sua incompetência em tratar adequadamente o texto de Kalidasa, admoesta: «resolvemos abater o camartelo sobre a obra venerável».57 Não julgando ser o utensílio de demolição usado para bater na reverenciada obra a causa de uma mutilação ultrajante, redime-se logo de seguida do acto pois, apesar de tudo, pensa ele, a ideia mater do drama permaneceu intacta. Sant’Elmo decide em nome do leitor, supostamente incapaz, o que entende ser para ele mais adequado. Sendo ele também um receptor, o primeiro leitor da sua tradução, com a qual comunica com os destinatários, os argumentos expostos para a sua solução conversora veiculam um retrato do seu calibre intelectual. Confessa a sua miopia em relação à cultura indiana, a sua estreiteza no conhecimento de «psicologia indiana», relatando ser um «mero espectador». Tal limitação não invalida a presunção ou a esperança de «ter sido possível aproveitar, com mais ou menos fidelidade, tudo o que concorria para caracterizar o ambiente psíquico da época, que ainda é fundamentalmente, o de hoje».58 Procura depois, pela citação de outros autores, descrever os atributos definidores do «oriental». Por fim sugere que «este conto de fadas» fosse adaptado à ópera e desafia Ivo Cruz e Rui Coelho para aceitarem a sua proposta. 3. A temática das traduções para Português de «Shakuntala» interessou Anil Samarth, um indiano a viver em Portugal e em cujo currículo consta uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (1995-1998) para uma investigação sobre as relações socioculturais entre a Índia e Portugal nos séculos XIX e XX e a docência da cadeira de sânscrito na Universidade Independente (1999-2000). Num muito descuidado artigo intitulado «Sakuntala – um Drama em Sânscrito: Traduções em Português», usa como principal referência de informação o texto da «Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» copiando as incorrecções nela existentes. Defende sem explicar que «hoje está confirmado que [Kalidasa] viveu mais ou menos no ano 375 da nossa era. Esta confirmação é feita pela análise do seu 147 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL estilo literário».59 Reproduzindo sem mencionar a «Enciclopédia», diz que Goethe referiu no «Fausto» o drama «Shakuntala». «Esta atracção estendeu-se a outros vultos da literatura europeia como Herder Fauche ou Shakespeare, nascendo daí a grande voga que Sakuntalá teve na Europa do século dezoito para o século dezanove, sem embargo de haver na Índia outro poema de kalidaça de maior efeito lírico, como o víkrama-urvaci».60 Ao longo de cerca de duas páginas, resume a peça, literalmente como consta na «Enciclopédia» e, por exemplo, descreve que no terceiro acto «o bobo gracejando, tenta dissuadi-lo [o rei] por a jovem não ser filha de reis»61 e que, nesse mesmo acto «um asceta amaldiçoa a donzela e profere a fórmula da magia, em virtude da qual Sakuntalá não será reconhecida pelo rei esposo que apenas se lembrará dela por virtude de um anel».62 De facto, quer na versão dita cénica quer na literária, Mathavya, o bobo (Vidushaka), não aparece em cena no terceiro acto nem há qualquer maldição proferida. Samarth escreve ainda que no quarto acto «o rei volta à sua capital onde espera a vinda da sua jovem e formosa esposa»,63 embora nesta divisão da peça Dushyanta, o monarca, esteja ausente. Nela, o que em síntese sucede de crucial é a maldição de Durvasas sobre Shakuntala, causando esta que Dushyanta, o seu amado esposo, a olvidasse. Anil Samarth relata existirem três recensões de «Shakuntala» aditando que a edição de 1878 de Vasconcellos Abreu contém apenas «cinquenta cópias com citações do sânscrito original em caracteres devanagri. Tanto quanto sei, é a primeira tradução do drama indiano em língua portuguesa».64 Efectivamente, nesta edição, somente o prólogo e o primeiro acto estão impressos e numa paginação bilingue, ficando do lado esquerdo o texto nos idiomas indianos e do lado direito a tradução em Português. Sem fundamentar, afirma igualmente que «por muitas razões», o livro mais significativo na nossa língua foi escrito por Ruy Sant’Elmo (Abílio Augusto de Brito e Nascimento) como suporte de um espectáculo teatral estreado no Cine Teatro Nacional em Panjim, Goa, no dia 4 de Dezembro de 1941, num enquadramento de angariação de fundos para uma campanha contra a tuberculose e vertido e apresentado em Marathi no mesmo local por estudantes a 19 de Dezembro do mesmo ano. Por fim, destaca como «mais importante» que «antes de 1941, as traduções de Xacuntalá em marathi, concani e inglês foram feitas a partir do original em sânscrito. Mas a versão portuguesa de Xacuntalá 148 JOÃO SOARES SANTOS de Ruy Sant’Elmo, atraiu tanto a atenção de autores e tradutores que foi traduzida em marathi, concani e inglês. A língua portuguesa parece ser a única língua europeia a partir da qual Sakuntalá, que conta cerca de vinte séculos, foi a traduzida para línguas indianas».65 Os disparates de Samarth não merecem mais dispêndio de comentários. Bernardino João Salvador Gracias (1889-1966), indiano, discípulo de Sebastião Dalgado na Faculdade de Letras, interessou-se pelo teatro sânscrito publicando «Do Teatro na Literatura Indo-Àrica» (Imprensa da Universidade, Coimbra, 1928) e por Kalidasa, traduzindo também o poema «Meghaduta» («A Nuvem Mensageira», Lisboa, 1925). Este foi, no ano seguinte, abordado por Mariano Saldanha, médico, professor de sânscrito no liceu central de Nova-Goa («Mêghaduta ou a Mensagem do Exilado») e substituto de Sebastião Dalgado na cadeira de sânscrito na Universidade. «Exceptuando certas expressões cuja nudez forte foi velada por um ‘manto diáfano’»66 o autor «esforçou-se por aproximá-la o mais possível do original, a fim de manter o cunho do pensar indiano, mesmo com algum sacrifício da dicção portuguesa, mas não ao ponto de sair uma versão tão literal, que tornasse fastidiosa a leitura».67 Sublinha que Xacuntalá, «a suprema criação de Kalidasa», já tinha sido «apresentada ao leitor português por três traduções»68 e sintetiza as opiniões biográficas vigorantes sobre este dramaturgo, expondo-as sem nenhuma certeza, embora sugira como data plausível para a sua existência o século V, durante o auge da dinastia Gupta. Saldanha trabalha a partir da edição de Kashinath Pathak, de Wilson, de Nandargikar, das traduções inglesas e outras, bem como o comentário de Mallinatha. Apresenta da página 69 a 114 a matriz em sânscrito com notas de trasladação. Telo de Mascarenhas no volume «Kailâsha, Contos e Lendas do Hindustão» (Edições Oriente, Lisboa, 1937) narra em seis páginas o enredo de «Shakuntala», bem como no livro «A Mulher Hindu». O mesmo selecciona, traduz e prefacia «Mestres do Conto Indiano» da colecção Antologias Universais (Portugália Editora, sem data) no qual insere o conto «Sakuntalá» de Rabindranath Tagore. Em «A Mulher Hindu», apresenta um conjunto de ensaios «breves e singelos, sem a pretensão de ser erudito»69 e compara-se a um «obscuro pescador de pérolas»70 que «trouxe a lume pequenas maravilhas de precioso quilate»71 mas que 149 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL «não as soube polir e facetar com engenho e arte, para lhe emprestar o oriente de sonho e a irisada luz faiscante que lhes é própria»72 O livro versa sobre personagens femininas da literatura indiana, descrevendo a narrativa de Sita, de Savitri, Damayanti e de Shakuntala (6 páginas impressas para esta última, reproduzindo integralmente o texto publicado no volume «Kailâsha») contendo ainda um capítulo sobre a poetisa Mira Bai, a poetisa e política Sarojini Naidu e escritos sucintos sobre música, dança, teatro, literatura erótica (destacando o «Kama Sutra», o «Ananga Ranga», o «Gitagovinda» e o «Ciclo das Estações» de Kalidasa) e literatura jurídica. Estabelece uma analogia entre os dramas de Kalidasa e «flautas encantadas ecoando na espessura da floresta»73 e identifica Shakuntala com «a meiga donzela do ermitério do Santo Kamadevá, delicada como uma liana e pura como a água lustral dos tanques sagrados, que oferta ao rei Duchanta, a quem ama perdidamente, com a hospitalidade do seráfico retiro, o seu corpo de fogo e o seu coração de neve».74 Com o «desejo de fazer pela Índia, esta sonhada terra do Oriente que desde os meus tempos de infância encheu o meu espírito com a luz fulgurante do facho luminoso da Época dos Quinhentos e que por isso quiz ver e conhecer de perto, alguma coisa de útil»,75 Agostinho de Carvalho escreveu «Índia Milenária, Terra de Impérios», a sua primeira obra em prosa. Interessado pelos costumes e vida deste povo, o autor tinha previamente publicado no Diário de Luanda e no Jornal da Índia crónicas intituladas «Lendas da Índia». Neste livro que incide sobre «acontecimentos e figuras de maior vulto», «dando-lhes uma auréola de merecida glória e numa forma literária em que a história, conservando o seu cunho de autenticidade, deixa de ser uma lamurienta ladainha de pesadas narrações para se tornar uma descrição romântica em que, guardando-se a verdade dos factos, êstes se apresentem com leveza que prenda o leitor através de certos episódios que só por si encerram beleza eterna a que só falta dar-lhes a tinta ligeira duma forma literária apropriada ao quadro»,76 dedica duas páginas a Shakuntala e duas a Kalidasa. A ele chama «astro de primeira grandeza» e «príncipe dos poetas no lirismo e o Shakespeare indiano no género dramático»,77 resumindo a peça «Shakuntala» e o poema «Meghaduta». Silvina da Troya Gomes no prefácio de «Contos Indianos» alude a Çâkuntalâ «como uma das mais lindas obras literárias da Índia antiga, 150 JOÃO SOARES SANTOS doce e trágica, humana e inconcebível, com toda a fantasia oriental».78 Neste texto, a autora, apesar de editar um livro com o seu nome, admite logo no início a sua dificuldade em escrever, falta de gosto e de inspiração e evoca os versos cantados por Beatriz Costa no filme «Aldeia da Roupa Branca» («três camisas [aliás, corpetes], um avental, sete fronhas e um lençol») antes de começar a discorrer sobre literatura indiana. Sobre a heroína da peça de Kalidasa balbucia: «… talvez daqui a pouco eu consiga ver Çâkuntalâ… Çâkuntalâ, toda a Primavera, todos os perfumes, todas as beberagens inebriantes! O meu corpo caminha, mas a minha alma fica para trás, como a seda dum estandarte que se leva contra o vento».79 O prefácio termina com esta frase: «E agora, por favor, não me preguntem onde aprendi isto tudo…»80 No século XIX realizaram-se 46 traduções em 12 línguas diferentes da peça «Shakuntala»,81 adaptações aos palcos de ópera, de ballet e de teatro que remotamente lembravam Kalidasa. Uma boa tradução exige uma correcta interpretação. Dados fidedignos sobre a teoria e a prática teatral indiana eram escassos neste século. Noções adulteradas ou insuficientes sobre a cultura deste país repercutiram-se no modo como era expressa. Os signos linguísticos de uma dramatização depreendem pensamentos sobre o mundo numa concepção de teatro. Uma estrutura profunda por detrás dos vocábulos precisa ser compreendida para que a transferência destes para outros idiomas desloquem consigo os processos e hábitos mentais do autor, as convenções inerentes à acção no espaço cénico e uma elucidação sobre os elementos que o integram. «No seu melhor a tradução de poesia deve assemelhar-se ao processo de decantar [pouring] um muito volátil e evanescente líquido [spirit] de um receptáculo para outro. Uma parte do fluido original ficará sempre sujeito a algum desperdício e evaporação».82 No afã de julgar ter descoberto um filão na entrada da mina, muitos letrados prospectores de «Shakuntala» rapidamente quiseram, com algumas das pepitas encontradas, exibir provas exteriores de riqueza. Parece hoje trivial afirmar que o acolhimento da Índia em geral e de «Shakuntala» em particular no século XIX e XX, bem como muito do fogo-de-artifício que sobre esta peça rebentou no firmamento dos intelectuais serviu para deslumbrar e promover muitos olhares ignorantes. A Índia foi uma coutada onde, por ofício ou por entretenimento, muitos homens perseguiram espécimes por 151 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL vezes mais para mostrar o troféu nas suas casas e instituições ou os seus dons de caçador do que para valorizar a coisa capturada. O tema interessa menos que aquele que elabora o discurso. Traduzir só glorifica o intermediário se a fonte for honrada. A ambiência linguística de um autor conserva a sua genuinidade ontológica e cultural. O tradutor interpreta essa realidade e recodifica-a no seu léxico. A fidelidade neste exercício de decifração e de substituição implica um entendimento alargado, uma empatia, sem deixar de permitir margens de subjectividade. Não justifica porém esta actividade o apagamento do texto original, a ocultação da voz do agente pela arbitrariedade dos intentos e abrangência de compreensão do mediador. Traduzir significa preservar a integridade do objecto. Sem deixar traços de uma presença incómoda, o mediador reescreve. Se for bom neste trabalho de transferência, suscita a vontade de ler no idioma original, estimula o interesse pela plasticidade da matriz. Poeta singular e atemporal, Kalidasa foi motivo de traduções plurais. No assombro e estima do Ocidente estava traçado o horizonte de contingência dos que o abordaram. Estas traduções espelharam a admiração pelo autor indiano e as reverberações do raciocínio de eruditos modelados e eleitos por uma cultura diferente. Desvendado por quem realiza a decifração, pelas palavras do intérprete, Kalidasa foi explorado e transaccionado num meio restrito. A dificuldade da língua tornou-o um segredo precioso, só acessível aos homens doutos que, graças ao qual, se regeneraram. Desvirtuada com soluções menos diligentes de superação da resistência linguística, «Shakuntala» foi aligeirada para ser entendida. A distanciação tornou-a mais familiar. Coberta com outras vestes e maquilhagem, na sua fisionomia não transpareceu a nitidez da pureza inicial. 4. Kalidasa («Kali» + «dasa», literalmente «escravo de Kali») foi, segundo a tradição, uma das nove gemas ou jóias (Navaratna) da corte de Vikramaditya («sol de bravura»), um hipotético soberano de Ujjain (cidade de Madhya Pradesh, antiga Avanti), fundador da época Vikrama (cerca do ano 57 a.C.), responsável pela expulsão dos Shakas (nome genérico dado a povos estrangeiros do Noroeste, mormente as tribos Citas) e reinou em quase todo o norte da Índia. Este monarca, do qual nada se sabe, havendo por isso dúvidas sobre a autenticidade histórica da sua associação como mecenas 152 JOÃO SOARES SANTOS ao dramaturgo, era, à semelhança de outros governantes, apreciador de literatura. Entre as obras atribuídas a Kalidasa estão dois poemas (Khanda Kavya) intitulados «A Ronda das Estações» («Ritusamhara») e «A Nuvem Mensageira» («Meghaduta»), duas epopeias (Maha Kavya) intituladas «A Linhagem de Raghu» («Raghuvamsha») e «O Nascimento de Kumara» («Kumarasambhava») e três peças de teatro (Natya) intituladas «Malavika e Agnimitra» («Malavikagnimitra»), «A Heroína Urvashi» ou «Urvashi Ganha pela Valentia» («Vikramorvashi») e «Abhijnana Shakuntala». Por vezes a conjectura da autoria estende-se aos poemas «O Sucesso de Nala» («Nalodaya»), «A Construção da Ponte» («Setubandha») e «A Embaixada perante Kuntaleshvara» («Kuntaleshvaradyuta»). O teatro sânscrito divide-se em dez formas maiores (Rupakas) e dezoito formas menores (Uparupakas). As primeiras segmentavam-se em Nataka (um género inspirado nas epopeias, nos Puranas ou em eventos históricos e do qual faz parte o drama sobre Shakuntala), Samavakara, Vyayoga, Dima, Ihamriga, Utsrishtikamka, Prakarana, Prahasana, Bhana e Vithi. Apesar de, por conveniência, ser designado por teatro sânscrito, este só é falado em sânscrito por personagens divinas, brâmanes ou soberanos e príncipes. Os restantes intervenientes exprimem-se em prácrito e em dialectos regionais. As mulheres de elevado estatuto social proferem nos trechos líricos vocábulos em prácrito antigo chamado Maharashtri e nas outras secções da narrativa em Shauraseni, juntamente com os servos de categoria superior e as crianças. Entre outros dialectos prácritos vigorantes nas peças está o Magadhi (enunciado por servos da residência real), o Avanti (por jogadores e trapaceiros), o Abhiri (por pastores de vacas), o Paishachi (por carvoeiros) ou o Apabhramsha («corrompido», conectado com pessoas da mais baixa extracção social e estrangeiros). Entre as personagens do elenco prevalecem qualidades emocionais e intelectuais dispostas por tipologias (Nayaka Bheda). Os deuses e heróis que os encarnam (como Rama) têm «uma constituição ideal e nobre, uma alma com elevação, firmeza e clemência, são inabaláveis nas acções e possuem uma disposição psíquica extremamente harmoniosa»84 (Dhirodatta). Os monarcas são alegres, moderados, afáveis, sensíveis, apreciam as artes requintadas (Dhiralalita, em que «Dhira» = «firme», «seguro», «constante» + «Lalita» = «encantador», «gentil»). Os generais e ministros manifestam condutas orgulhosas, invejosas, jactantes, enganadoras (Dhiroddhata). Os brâmanes e 153 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL mercadores são figuras calmas, serenas, probas, inclinados para o desfrute artístico (Dhiraprashanta). No que concerne ao relacionamento amoroso separa-se o Nayaka delicado ou cavalheiresco (Dakshina), do fingido (Shatha), do desavergonhado (Dhrishta) e do fiel (Anukula). Entre a classificação das mulheres (Nayika Bheda) diferencia-se as deusas (Divya), as rainhas (Bhavati), as de superior condição social (Kulangana) e as cortesãs (Ganika). No amor elas podem ser firmes, constantes, controladas (Dhira), encantadoras, voluptuosas e de coração leve (Lalita), enérgicas, vivas, arrebitadas (Udatta) e modestas (Nibhrita). Entre as mulheres casadas encontramos as dedicadas aos esposos (Sviya), quer quando são jovens (Mugdha), quer quando têm uma idade mais avançada, embora possam abordar o cônjuge com alguma aspereza (Madhya) ou quando têm uma idade madura (Pragalbha). Em resenha, podemos ainda incluir no rol de figuras dramáticas vários companheiros e auxiliares do protagonista (Pataka e Prakari) como o cómico (Vidushaka), o parasita (Vita), o massagista (Pithamarda ou Anunayaka), o servo ou serva (Cheta e Cheti), a mensageira (Duti), os membros do séquito real, entre os quais bardos (Vaitalikas e Magadhas), o camareiro do paço (Kanchuki) que vigia o harém, guarda a armadura e a coroa do monarca e personagens femininas secundárias que apoiam a heroína como as amigas (Sakhis), a ama (Dhatri), etc.85 O teatro sânscrito conserta porções líricas as quais têm diferentes combinações rítmicas com diálogos em prosa. Divide o encadeamento da sua trama em actos e segmentos (Sandhi), mudando estas últimas quando entra ou sai uma personagem. As peças representavam-se no salão de música (Sangita Shala) dos palácios e dirigiam-se a uma audiência cultivada que não se conciliava com trivialidades artísticas. Ao ter como destinatários estas elites de gosto apurado, o dramaturgo elaborava, segundo as convenções firmadas, composições que apelavam a todas as subtilezas da compreensão, obras deliberadamente penetrantes contemplando os matizes e a disponibilidade para pequenas surpresas estéticas. Nos méritos teorizados sobre poesia podemos enunciar a sugestionabilidade, a capacidade de conectar ou unir referências, de algo prevalecer depois de se dissipar (como um aroma), de esconder significados ou dar um duplo sentido (Shlesha); a clareza fulgurante (Prasada = «claro e brilhante», «distinto»); a ligação concordante das partes, capaz de provocar uma inteligibilização não confusa (Samata); a doçura (Madhurya = «doce», «melo- 154 JOÃO SOARES SANTOS dioso», «que suscita afectos suaves», «beleza sofisticada»); a existência de algo especial que completa ou que se junta ao sentido pretendido (Samadhi); o sentido ou a coisa tornada perceptível ao assistente sem ter ambiguidades que o distraiam daquilo que a faz ser como é (Arthavyakti, «Artha = «relacionado com uma coisa ou objecto» + «Vyakti» = «manifestação», «aparência», «marca de distinção», «sinal que individualiza»); a força da mensagem conseguida graças a uma cuidada selecção de vocábulos (Ojas = «força, «vigor», «habilidade», «energia»); a harmonia formal obtida pela correcta conjugação das palavras (Saukumarya = «ternura», «delicadeza»); a elevação temática e do sentimento a transmitir (Udara = «nobre», «elevado», «ilustre») ou o poder de causar deleite (Kanti = «beleza», «encanto», «esplendor», «desejo»). Segundo o «Ornamento da Poesia» («Kavyalamkara») nesta arte deve constar a habilidade do autor em veicular o que parece não querer dizer, a negação de uma coisa para insinuar uma alternativa, o dom de usar engenhosamente a metáfora, a hipérbole (Atishayokti = «em gradação ascendente», «sobreabundante»), o contraste (Vyatireka = «diferença», «exclusão», «contraste»). No «Espelho da Poesia» («Kavyadarsha») de Dandin (séc. VI), o poeta, após muito estudo e dedicação, evidencia o seu talento pela transmissão da essência do assunto sobre o qual está a incidir. Oculta enquanto deixa emergir, confessa por via indirecta, nega para afirmar com mais ênfase, elogia através da repreensão. O conceito de Dhvani («som», «eco», «reverberação», «alusão», «dar a entender»), importante no teatro sânscrito, implica uma complementaridade entre o que é verbalmente tangível e o que não é. O poeta redige para o seu público vocábulos que, em si, devido à sua própria natureza, já possuem um poder sugestivo e explora nas suas opções de articulação um efeito empático. A tradição indiana refere três tipos de Dhvani: quando na literalidade da ordem lexical ou semântica está latente outra ideia ou assunto (Vastudhvani), quando se adorna o significado de modo a intensificar o seu impacto (Alamkara) e quando os significados induzem estados psíquicos e usufruto afectivo (Rasadidhvani). O poeta sânscrito deve ser alguém portador de génio (Pratibha), deve ter muita cultura (Vyutpatti), ter muita prática (Abhyasa), ser um conhecedor do mundo, das artes e da literatura em especial, dos tratados indianos, da política, da gramática, da semântica, da métrica, possuir a aptidão de apreciar e de criar, 155 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL ser um amante do saber. Por intermédio das formas ele emana essas faculdades. A sua obra demonstra ou prova as suas privilegiadas competências. Segundo o «Natya Shastra» existiam três espécies de auditórios: o de configuração rectangular (Vikrishta), o quadrado (Chaturashra) e o triangular (Tryashra), cada um podendo ter uma dimensão ampla (Jyeshtha), para as divindades, média (Madhyama), para as figuras reais e pequena (Kaniyasa) para a gente comum. O Vikrishta Madhyama é considerado o melhor (62 x 32 Hastas = medida do cotovelo à ponta do dedo médio). Respeitava regras de comprimento e de organização. Este rectângulo era dividido em duas partes iguais, ficando numa das metades o auditório, o lugar de acomodação da assistência (Prekshaka Nivesana) e na outra o pavilhão do palco (Rangamandapa) com a boca de cena (Ranga), tendo esta uma área central (Ranga Pitha) e duas laterais (Mattavaranis) e, por detrás, separado por uma cortina, os bastidores ou a cabeça do palco (Ranga Sirsha) onde se encontrava a plataforma da orquestra (Kutapa Vedika). Um painel decorado sobre uma parede de tijolo delimitava a área do palco de uma porção posterior oculta chamada «quarto verde» (Nepathya) no qual os actores procediam à maquilhagem e daí se deslocavam para a zona de interpretação, passando por duas portas laterais cobertas por um pano (Pati ou Apati). Entre a boca de cena e os bastidores havia uma cortina (Yavanika) e, atrás dela, antes da intriga se desenrolar, os intervenientes realizavam rituais e proferiam orações. Os pilares dispostos por todo o espaço cénico deviam ser erigidos após cerimónias adequadas. Os lugares do auditório estavam dispostos em escada. O rei ou a figura presente de maior realce sentava-se na parte oriental, à sua direita os ministros, os poetas, os críticos, os astrólogos e, à sua esquerda, os mercadores e as mulheres do harém. Os membros da comitiva real eram colocados a norte e os brâmanes a sul. Nas orlas do auditório distribuíam-se os militares de patente alta, apreciadores, panegiristas e guardas. As representações ocorriam em festividades públicas ou particulares, por exemplo, na ocasião do nascimento de um sucessor, na comemoração de uma vitória, numa festa religiosa ou na inauguração de uma nova residência. Os actores e actrizes eram geralmente da classe brâmane e com vínculos familiares. Por vezes os papéis femininos eram interpretados por homens. Havia convenções de indumentária, de adereços e de maquilhagem para as diferentes personagens. Circunstancialmente usavam-se máscaras. A música 156 JOÃO SOARES SANTOS acompanhava sempre as representações pois esta causava prazer (Ranjana) na recitação do texto (Pathya) e nos movimentos da figura dramática. Para além dos religiosos e políticos, o propósito central do teatro consistia em, pela conexão dos factores envolvidos, suscitar Rasa («sabor», «qualidade deleitosa») uma emoção que prevaleça e em cujas modalidades consta o amor (Shringara), o heroísmo (Vira), a repugnância, a aversão (Bibhatsa), a ira (Raudra), a alegria (Hasya), o terror (Bhayanaka), a piedade (Karuna) e o maravilhamento (Adbhuta). Rasa infere o usufruto maravilhado do espectador, o efeito de deslumbre artístico que suplantou a experiência comum, o regozijo da fruição de um estado psíquico emancipado de uma consciência direccionada, o prazer do sabor demovido da imagem do objecto que o causa. O nome Kalidasa aparece associado a uma obra. «Tudo o resto é ficção tirada do seu próprio nome».85 As transposições desta peça para línguas ocidentais enalteceram-no como autor e engrandeceram os seus tradutores e investigadores. «A má tradução é a que não faz justiça ao seu texto de partida, por motivos óbvios e numerosíssimos. A ignorância, a precipitação ou as limitações pessoais fazem com que o mau tradutor interprete erroneamente o original. Falta-lhe o domínio da sua própria língua que é uma condição indispensável da representação adequada. Equivocouse estilística ou psicologicamente ao escolher o seu texto: a sua própria sensibilidade e a do autor que está a traduzir são demasiado discordantes. Quando surge uma dificuldade, o mau tradutor procede por elisão ou paráfrase. Quando o tom lhe parece elevado, exagera. Onde o autor é ofensivo, arredonda as arestas (…). A tradução falha quando e onde não compensa, quando e onde não estabelece a equidade radical. O tradutor apreendeu e/ou apropriou-se de menos do que aquilo que havia no texto. Traduz diminuindo. Por vezes, opta por dar corpo e reiterar plenamente apenas um aspecto ou outro do original, fragmentando, distorcendo a sua coerência viva segundo as suas próprias necessidades ou segundo a sua própria miopia».86 157 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL Referências: 1 – «Abhijnana» significa «recordação», «lembrança», «verificação», indica um sinal ou um testemunho de recordação. Shakuntala é reconhecida por causa desse sinal (um anel). 2 – «Sacontalá or the Fatal Ring: an Indian Drama by Cálidás», incluído na obra «The Works of Sir William Jones», Vol. IX, John Stockdale e John Walker, London, 1807 3 – Antoine de Chézy (Tradução), «La Reconnaissance de Sacountala, Drame Sanscrit et Pracrit de Calidasa», Librairie Orientale de Dondey-Dupré Père et Fils, Paris, 1830 4 – Idem 5 – Monier Monier-Williams (Tradução), «Sakoontalá or the Lost Ring, an Indian Drama Translated into English Prose and Verse from the Sanskrit of Kálidása», Routlege, London, 1898 6 – Idem 7 – Ibidem 8 – Abel Bergaigne e Paul Lehugeur, «Sacountala, Drame en Sept Actes mêlé de Prose et de Vers», Librairie des Bibliophiles, Paris, 1884 9 – Idem 10 – Maurice Pottecher (Tradução), «L’Anneau de Sakountala, Légende Dramatique en 7 Actes d’après Kalidasa», Librairie Paul Ollendorff, Paris, 1914 11 – Idem 12 - P.-É. Foucaux (Tradução), «Sakountala», E. Dentu Éditeur, Paris, 1894 13 – Idem 14 – Ibidem 15 - «O Reconhecimento de Chakuntalá», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, 32x36 cm 16 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Relatorio acerca do Primeiro Anno de Estudos Orientaes feitos em França e Allemanha», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878 17 – Idem 18 – Ibidem 19 – Ibidem 20 – Ibidem 21 – Ibidem 22 – Ibidem 23 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Relatorio Apresentado em Cumprimento das Determinações da Portaria do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 16 de Março de 1875», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878 24 – Idem 25 – Ibidem 26 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Manual para o Estudo do Sãoskrito Clássico», Tomo II: «Chrestomathia», Imprensa Nacional, Lisboa, 1891 27 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Exercícios e Primeiras Leituras de Sámscrito (Apêndice ao Manual)», Imprensa Nacional, Lisboa, 1898 28 – Luís Filipe F. R. Thomaz, «Estudos Árabo-Islâmicos e Orientais em Portugal», 158 JOÃO SOARES SANTOS «Povos e Culturas», Nº. 5, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1996 29 - Mariano Gracias, «Terra de Rajáhs», Casa Editora a Luso-Indiana, Bombaim, 1925 30 – José F. Ferreira Martins (Tradução), «Sakuntalá», Imprensa Nacional, Nova Goa, 1911 31 – Idem 32 – Ibidem 33 – Ibidem 34 – Ibidem 35 – Ibidem 36 - José F. Ferreira Martins (Tradução), «Xakuntalá», Imprensa Nacional, Angola, 1925 37 – Idem 39 – Ibidem 40 – Ibidem 41 – Ibidem 42 – Ibidem 43 – Monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, introdução de «Xacuntala, Drama Sânscrito de Calidaça, Traduzido do Original por Bernardino Gracias», Imprensa da Universidade, Coimbra, 1919 44 – Idem 45 – Ibidem 46 – Ibidem 47 – Ibidem 48 – Ibidem 49 – Ibidem 50 – Ibidem 51 – Ibidem 52 – Ibidem 53– Ibidem 54 – Ruy Sant’Elmo, «Xacuntalá, Adaptação Livre da Obra Imortal de Kalidassa», Tipografia Central, Nova-Goa, 1941 55 – Idem 56 – Ibidem 57 – Ibidem 58 – Ibidem 59 – Anil Samarth, «Sakuntala – um Drama Sânscrito: Traduções em Português», Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 117ª., números 1-12, Lisboa, Janeiro - Dezembro de 1999 60 – Idem 61 – Ibidem 62 – Ibidem 63 – Ibidem 159 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL 64 – Ibidem 65 – Ibidem 66 – Mariano Saldanha (Tradução), «Mêghaduta ou a Mensagem do Exilado», Casa Editora Livraria Coelho, Nova-Goa, 1926 67 – Idem 68 – Ibidem 69 – Telo de Mascarenhas, «A Mulher Hindu (Ensaios)», Edições Gleba, Lisboa, 1943 70 – Idem 71 – Ibidem 72 – Ibidem 73 – Ibidem 74 – Ibidem 75 – Agostinho de Carvalho, «Índia Milenária, Terra de Impérios», Tipografia Rangel, Bastorá, 1942 76 – Idem 77 – Ibidem 78 – Silvina de Troya Gomes (Selecção e Tradução), «Contos Indianos», Editorial Gleba, Lisboa, 1945 79 – Idem 80 – Ibidem ´¯ 81 – Dorothy Matilda Figueira, «Translating the Orient: The Reception of Sakuntala in Nineteenth-Century Europe», State University of New York press; Albany, 1991 82 – Monier Monier-Williams opus cit. 83 – Ver Tarla Meha, «Sanskrit Play Production in Ancient India», Motilal Banarsidass, Delhi, 1995 84 – Idem 85 – Lyne Bansat-Boudon, «Le Théâtre de Kalidasa», ¯ ¯ Gallimard, Paris, 1996 86 – George Steiner, «Depois de Babel – Aspectos da Linguagem e Tradução», Relógio d’Água, Lisboa, 2002 160 JOÃO SOARES SANTOS Anexo Tradução segundo a recensão Bengali de «Abhijnana Shakuntala» por Guilherme de Vasconcellos Abreu, contida na edição de 1878 da Imprensa Nacional. O texto em itálico e negrito corresponde a partes em verso. Personagens deste excerto da peça: O Director (Sutradhara) Uma Actriz, esposa do Sutradhara O Cocheiro do rei (Suta) Dushyanta, Rei de Hastinapura Shakuntala Anasuya, amiga de Shakuntala Priyamvada, amiga de Shakuntala Ascetas Prologo Propiciação Nas oito fórmas em que Chiva se manifesta: - Agua, primeira producção do productor; - o Fogo, que leva a oblação offerecida segundo as regras prescriptas; - e o Brâhmane que a offerece; - o Sol e a Lua que ambos o tempo determinam;- O Ether, que penetrando tudo, é perceptivel pelo ouvido; - a Terra, que dizem ser «a origem de todas as sementes»; - O Ar pelo qual respiram os entes vivos; - propicio vos proteja o Supremo Senhor! (Depois da propiciação) O Director da Scena Basta de delongas! (Olhando para o postscenio) Nobre Dama, se o arranjo do postscenio está ultimado, n’esse caso vem para aqui. Uma Actriz (Entrando) Eis-me aqui, Senhor! cumpra-se a tua ordem. O Director Eis uma assembléa em crescido numero de verdadeiros conhecedores, ó Nobre Dama! Perante ella temos de representar a nova obra 161 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL scenica, composta pelo illustre Kálidása, chamada o reconhecimento de Chakuntalá. Que, portanto, cada um desempenhe a sua parte do melhor modo possivel. A Actriz Em virtude da tua boa direcção, Senhor, nada por certo ha de faltar. O Director (Sorrindo-se) Eu te digo, ó Nobre Dama, a verdade: A arte de fazer representar uma obra scenica, jamais a considero eu perfeita, em quanto a satisfação dos entendidos não chego a ver completa. Que de si proprios desconfiam os que mais saber possuem. A Actriz É bem verdade! Que o senhor ordene o que ha a fazer já sem mais demora. O Director Que outra cousa ha a fazer immediatamente, ó Nobre Dama, senão bem dispor os ouvidos dos assistentes por meio de uma canção? A Actriz E qual das estações hei de eu tomar para assumpto do meu canto? O Director Evidentemente a que ainda ha pouco começou e nos convida a gosar. Canta um canto ácerca do verão. Em verdade agora é o tempo é o tempo em que um fresco banho regala, e das bignonias em flor os aromas trazem as brizas dos bosques; o somno em cada sombra tem logar propício; é cheio de encantos o caír da tarde. A Actriz (Canta) Como as damas se enfeitam gentilmente, reparae, com grinaldas de flores de chirixa nas pontas de cujos estames delicados a abelha mal tocou por um instante. O Director Admiravelmente cantado, ó Nobre Dama! Toda a assembléa está immovel, como se fosse uma pintura, por tal fórma se lhe prende em delicias coração e sentidos! Que peça devemos representar para lhe sermos agradaveis? A Actriz 162 JOÃO SOARES SANTOS Não é verdade que por vós, Senhor, foi já determinado se representasse hoje a melhor de todas as peças scenicas, o reconhecimento de Chakuntalá? O Director É verdade! estou lembrado. Tinha-o esquecido agora n’este momento. Mas porque? Tão extraordinariamente enlevado estava eu pela cadencia do teu canto arrebatador, qual o rei Duuxanta pela gazella veloz. (Dito isto sáem ambos) Acto I Entra em scena sobre um carro de arco e frechas na mão, perseguindo uma gazella, o Rei acompanhado do Súta. O Súta (Considerando o rei e a gazella) Ó Longevivaz! Quando os meus olhos lanço sobre a antilope mosqueada de preto e para ti de arco retezo, parece-me ver em pessoa, aqui presente, o Deus Chiva armado do pináka perseguindo uma gazella. O Rei Bem longe nos tem trazido, ó Súta, aquella antilope! N’este instante ella volta engraçada o pescoço dirigindo o seu olhar angustiado para o carro que a segue de perto. E com medo das frechas toda se encolhe, como se uma parte do seu corpo quizesse esconder na parte anterior. Da sua bôca aberta de cansaço, cáe, ainda por comer, a herva que ella deixa no caminho. E taes saltos impetuosos vae n’elle dando, que mal toca o chão só fende os ares. (com surpreza) Como é que apesar de a seguir ella se me encobre e mal a vejo? O Súta O Longevivaz! O terreno é desigual; e porque tive de caçar as redeas do carro se retardou o movimento. Eis rasão por que se te esconde a antilope perseguida. Agora que se roda em terreno igual não haverá difficuldade a alcançar. O Rei Solta pois as rédeas. 163 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL O Súta Como ordenas, Ó Longevivaz! (Fingindo apressar o movimento do carro) Olha, ó Rei, como soltas as redeas, os peitos dos cavallos se avançam sem que os possam tocar as nuvens de poeira levantadas. Como elles levam immoveis as pontas dos pennachos e caídas as partes flexiveis das orelhas. Correm sobre o caminho, ou voam por cima d’elle, os teus cavallos?! O Rei (Alegremente) Por certo vão os cavalos passar além da gazella: pois tudo o que me parece á vista ser pequeno, toma de repente grandes dimensões; une-se logo n’um todo o que ao meio julgo partido; o que de natureza é tortuoso aos olhos se me afigura rectilineo; não deixa a rapidez do meu carro nada ao longe ficar, nada ao lado de mim permanecer um só momento. (No postscenio) Eh! eh! ó rei! não mates a antilope do eremiterio, não a mates! O Súta (Prestando ouvido e olhando) Ó Longevivaz! E é n’este momento em que a frecha ajustada ía partir, que os dois ascetas, a quem não viamos, veem pôr-se de per meio entre ti e a negra antilope! O Rei (Assustado) Colhe as redeas ! O Súta Assim se cumpra, ó Longevivaz! (Dito isto o executa) (Em seguida entra com um discipulo um anachoreta) O Anachoreta (Erguendo o braço) Eh! eh! ó rei! Esta gazella pertence ao eremiterio! Por certo tu não deixarás caír, por certo não! essa frecha prestes a ser disparada, sobre o tenro corpo da gazella; seria um fogo ardente sobre balseira de flores. O que vale a misera vida dos fracos veadinhos contra as bem emplumadas settas que fazes caír penetrantes?! Retira de prompto 164 JOÃO SOARES SANTOS essa que já tinhas ajustada. São as vossas armas para proteger opprimidos, não para ferir innocentes! O Rei (Com reverencia) Retiro-a! (faz como o diz) O Asceta (Com alegria) O que acabas de fazer é proprio de ti, magestade, que és descendente da estirpe de Puru e luz dos Indras dos homens! Assim possas tu obter um filho que impere em toda a redondeza! O Rei (Reverente) Acolho as tuas palavras brahmanicas! Os Dois Ascetas Ó rei, saíamos ambos n’este momento para buscar a lenha. Este eremiterio, que aqui vês nas margens do rio Máliní, é do nosso Guru Kânua; e o protege, qual divindade tutelar, Chakuntalá. Entra n’elle, se com isso te não desvias de algum dever, que bom acolhimento ali te espera. E notando que livres de obstaculos, os ricos de austeridades praticam os ritos sagrados segundo as prescripções, conhecerás o effeito potente da protecção d’esse braço vincado de vergões da corda do teu arco. O Rei E está lá a esta hora o pater-familias? Os Dois Ascetas Agora mesmo, tendo confiado a sua filha o dever de bem receber os hospedes, partiu para o Somatirtha a fim de acalmar o destino que a ella lhe é adverso. O Rei N’esse caso quero-a ver, e ella, conhecido o meu respeito, fallará de mim ao Maharxi. Os Dois Ascetas E nós agora nos pômos a caminho. (O anachoreta parte com o discipulo). O Rei Ó Súta, toca os cavallos, quero visitar o eremiterio puro e purificar-me a mim mesmo. 165 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL O Súta Assim o cumpro, ó Longevivaz! (Finge dar impulso ao carro). O Rei (Olhando para todos os lados) Ainda quando se não tivesse ouvido de ninguem, se vê que isto são pertenças vizinhas da floresta sagrada. O Súta Como assim? O Rei Não o vês? Aqui Os grãos de arroz silvestre, que estão ao pé das arvores, cáem de cima dos ninhos, de dentro dos buracos onde estão os papagaios com os filhinhos, que os soltam de seus bicos. Em differentes logares se vêem ainda untuosas as pedras quebradoras dos fructos da ingudí. E por terem adquirido inteira confiança, as gazellas, andando com passo inalteravel, ouvem indifferentes o rumor. Os carreiros, que vão dar aos tanques da agua santa, se conhecem bem marcados por traços que ali deixaram as fimbrias gotejantes dos valkalas dos eremitas. E tambem: Pelas aguas dos canaes, agitadas pelos ventos, são os pés das arvores regados. A côr dos vividos renovos está mudada pelo ascendente fumo da manteiga dos sacrificios; e ali em frente, onde a herva santa foi cortada, andam sem medo, vagueando em socego, os filhos das antilopes. O Súta Tudo o mostra. O Rei (Tendo avançado um pouco) Ó Súta, não vá isto ser causa da perturbação do eremiterio. Pára o carro! eu desço aqui. O Súta Estão puxadas as redeas. Desça Vossa Longevidade. O Rei (Depois de descer examinando-se) Ó Súta! Nas florestas das mortificações entra-se com vestidos humildes. 166 JOÃO SOARES SANTOS Toma portanto os meus adornos e o meu arco. (O Súta recebe-os) Que os cavallos estejam refrescados e com o dorso esfregado quando eu voltar da visita aos moradores do eremiterio. O Súta Assim será executado. (Sae) O Rei (Approximando-se e olhando) É este o eremiterio. Vou entrar. (No momento de o fazer, indicando um presagio) Oh! Isento de paixões é o eremiterio, e todavia eu sinto o braço estremecer; que resultado me virá d’aqui? E certo que as portas dos acontecimentos futuros se abrem por toda a parte. (No postcenio) Para aqui, para aqui, queridas amigas! O Rei (Prestando o ouvido) Silencio! Aqui n’este pomar á direita soou como que uma voz. Bem! Vou certificar-me. (Approximando-se e olhando). Ah! são as filhas dos eremitas que para aqui se dirigem com regadores apropriados ás suas mãos a fim de regarem as arvores novas. Oh! que doce olhar o seu! Estes corpos esbeltos das virgens dos eremiterios é difficil de encontrar nos gyneceos reaes! oh! quanto em formosura as trepadeiras dos bosques excedem as trepadeiras de meus jardins. Vou observal-las d’este abrigo sombrio. (Fica observando-as.) (Logo entra occupada em trabalhos de jardinagem Chakuntalá com as suas duas companheiras) Uma d’Ellas Parece-me, querida Chakuntalá, que ao nosso pae Kânua são mais queridas as arvores do eremiterio do que tu mesma, a quem tão delicada, como a flor da maliká, elle incumbe de encher de agua as covas de rega. Chakuntalá Não, minha amiga! não é só por cumprir a ordem de um pae; eu sintome a ellas presa com amor de irmã. (Imita o regar) Priyamvadá Querida Chakuntalá, bastante agua têem estas arvores do eremiterio 167 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL que dão flor durante o estio. Reguemos as outras para as quaes o tempo da flor já passou, que por isso maior será o dever de desinteresse. Chakuntalá Lindamente o aconselhas, minha amiga. (Representa o acto de ir regar as arvores) O Rei (Áparte) Como assim? Aquella é Chakuntalá a filha de Kânua? (Sorrindo-se) Ah! que desavisado foi n’isto o veneravel Kânua obrigando-a a trazer vestido o valkala. E quer o Rixi habituar ás fadigas asceticas este corpo tão bello e encantador sem arte!... É quasi pretender elle cortar com o fio da folha do lotus, da folha da azul nymphea, os ramos da acacia dura. Bem! Fico ainda entre as arvores sem que ella suspeite que a observo. (Conserva-se escondido) Chakuntalá Minha querida Anusúyá, Priyamvadá atacou-me de mais o valkala; aperta-me; alarga-m’o tu. (Anusúyá desaperta-o) Priyamvadá (Gracejando) Accusa unicamente o vigor da tua juventude, a que é devido o forte desenvolvimento dos teus seios, ó querida amiga. O Rei Ella disse a verdade. O valkala, a que sobre as espaduas prende um gracioso nó, encobrelhe a redondeza de seus dois peitos. O seu corpo juvenil, de que elle não deixa ver todo o esplendor, é como flor opprimida por folha que já murchou. Todavia improprio como é da sua idade um corpete e alburno, nem por isso lhe não fica engraçado adorno. Porque: O lotus é ainda bello abraçado ao chaivala, e a lua mais formosa com suas manchas escuras. Este corpo gentil é ainda mais gracioso com o valkala grosseiro. 168 JOÃO SOARES SANTOS Mas o que não será adorno no meio dos attractivos de figura tão c1onairosa? Chakuntalá (Olhando em frente) Queridas amigas, aquella arvore, com os ramos agitados pelo vento, como se fossem uns dedos a acenarem, parece querer dizer-me alguma causa. Pois vou ter com ella. (Assim o faz) Priyamvadá Fica ahi um instante, minha Chakuntalá. Chakuntalá Para que? Priyamvadá Afigura-se-me ver com a mangueira um cipó enlaçado emquanto estás junto d’ella. Chakuntalá Se tu te não chamáras Priyamvadá (que diz cousas amaveis). O Rei Priyamvadá não o exagerou. Que em verdade d’ella os labios têem a frescura de uns gômos novos, os braços semelhamse a umas vergonteas flexiveis. É como flor a juventude mimosa que se prende a seus membros. Anusúyâ Querida Chakuntalá, e esta navamáliká que se casou com o sahakára e a que déste o nome de «Luz dos bosques!?» Chakuntalá (Tendo-se dirigido para ali e contemplando com amor) Como é encantador o enlace completo d’estas duas plantas! Ó minhas companheiras! A navamáliká toda viçosa, cheia de flores, e o sahakára, convidando ao goso, todo coberto de fructos! (Fica contemplando-as) Priyamvadá (Sorrindo-se) Sabes tu, Anusúyá, por que rasão Chakuntalá olha com tanto enlevo para «Luz dos bosques?» Anusúyâ 169 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL Não posso adivinhar. Dize-m’o tu! Priyamvadá É que ella está pensando: - Assim como «Luz dos bosques» se uniu a uma tal arvore, assim eu possa encontrar o marido que desejo. Chakuntalá Tal desejo te anda em teu proprio coração! (Inclina o regador) Anusúyâ E aquelle cipó madhaví, que o nosso pae Kânua creou por sua propria mão como te creou a ti, o esqueces tu, Chakuntalá? Chakuntalá Mais facilmente me esqueceria eu de mim. (Approximando-se do cipó, com alegria) Oh! que maravilha! que maravilha! Priyamvadá, tenho a contar-te uma causa bem agradavel. Priyamvadá Agradavel para mim, o que? amiga! Chakuntalá O cipó madhaví está todo em flor desde baixo, n’esta estação impropria. Ambas (Correndo para ali) Pois é verdade?!... realmente?!... Chakuntalá É verdade! Não o vêdes vós mesmas? Priyamvadá (Com alegria, depois de se haver certificado) E agora, tambem eu tenho a dizer-te alguma cousa agradavel: - Em breve será o teu casamento! Chakuntalá (Enfadada) É assim exactamente o desejo que sentes em ti. Priyamvadá Não! não! não fallo o a rir! Do nosso pae Kânua o ouvi eu: que isto é um signal manifesto de bom prenuncio para ti. Anusúyâ Por isso, ó Priyamvadá, Chakuntalá rega com tanta affeição o cipó madhaví. 170 JOÃO SOARES SANTOS Chakuntalá Esta planta é a minha irmã, e tanto basta para que eu a regue. (Continua a regal-a.) O Rei Oxalá que ella seja por sua mãe de origem differente da de seu pae. Mas não ha que duvidar. Não ha que duvidar: é a esposa propria de um kxattriya aquella a que tanto deseja esta minha alma nobre; em caso sujeito a duvida, a norma elo homem justo é o impulso do coração. Todavia eu me farei informar d’isto com a precisa certeza. Chakuntalá (Assustada) Ai!... uma abelha saída d’entre as flores da navamáliká volteia á roda do meu rosto. (Mostra-se perseguida pela abelha) O Rei (Ancioso) Para onde a abelha vae, para ahi vão attrahidos os olhos formosos d’ella. No franzir inquieto das sobrancelhas, o medo lhe ensina, a ella que ainda não ama, a volver olhos de amor. (Impaciente). Enquanto tu abelha, os seus olhos pestanejastes repetidas vezes tocas sem lhes deixares quietos os cantos exteriores; e suavemente zumbes pairando ante os ouvidos como por lhe dizeres algum segredo; e d’ella, que agita a mão a sacudir-te, o labio inferior sorves, fonte de delícias, ficando satisfeita; esmaga-nos o coração o desejo insaciado de conhecer a verdade. Chakuntalá Livrai-me vós ambas, amigas, d’essa abelha importuna! Ambas as Amigas (Rindo) Livrarmos-te nós?! Lembra-te para isso de Duuxanta; aos reis incumbe proteger os bosques sagrados. O Rei Bella occasião esta para eu me deixar ver!... - Não ha que receiar!... (Detendo-se no meio da falla) D’este modo saber-se-ha que eu sou o rei... Bom! 171 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL far-me-hei tomar um hospede. Chakuntalá Esta teimosa não desiste!... Vou-me d’aqui embora!... (Dados breves passos, olhando para um e outro lado) Ah! que aborrecimento!... para onde eu vou para ahi me segue!... defendei-me pois!.... O Rei (Indo-lhe ao encontro subitamente) Ah! Quem governando na terra um Pauravez reprimidor dos que se comportam mal, é esse que commette irreverencia contra as candidas virgens do eremiterio?! (Ficam todas algum tanto confusas ao verem o rei) Anusúyá Não é grande o mal, Senhor, na verdade. É apenas a nossa querida companheira assustada por causa de uma abelha, e toda afflicta. (Dito isto, faz ver Chakuntalá) O Rei (Approximando-se de Chakuntalá) Augmenta a tua santidade? (Chakuntalá embaraçada fica sem responder) Anusúyá É agora motivo ter de receber tão distincto hospede. Priyamvadá Bemvindo sois, Senhor!... Minha querida Chakuntalá, vae! traze de casa, para offerecer ao hospede, fructos e o que compõe o argha. Esta será a agua para seus pés. O Rei Está perfeita a hospedagem pelas vossas palavras summamente gratas. Anusúyá Queira então o Nobre Senhor descansar aqui da sua fadiga, assentandose n’este banco de saptaparna tão fresco de si proprio. O Rei Por certo estaes fatigadas tambem do vosso trabalho irreprehensivelmente executado. Assentae-vos ali um instante. Priyamvadá 172 JOÃO SOARES SANTOS (Baixo) Querida Chakuntalá, é proprio de nós honrarmos os hospedes. Vem pois, assentemo-nos. (Assentam-se todos) Chakuntalá (Para comsigo) Como assim?!... sinto-me eu agora, á vista d’este individuo, possuida de emoção impropria da floresta dos penitentes? O Rei (Contemplando-as a todas) O cordial acolhimento que me fazeis, rivalisa com a vossa juventude e formosura. Priyamvadá (Baixo a Anusúyá) Quem será este personagem d’aspecto conspicuo e affavel que pela sua doce conversação diffunde uma cortezia magestosa,? Anusúyá Curiosa estou eu de saber o mesmo. Vou interrogal-o. (Alto) A confiança que o vosso doce fallar, Senhor, nos inspira, dá-me coragem para vos perguntar qual é a estirpe de Rádjarxis que se honra com a vossa illustre pessoa, e que paiz se sente agora triste pela vossa ausencia? Que motivo de bom auspicio vos traz, a vós tão delicado, a despeito de tantas fadigas, ao bosque da penitencia? Chakuntalá (Comsigo) Aquieta-te meu coração! Adivinhou-te os desejos Anusúyá! O Rei (Comsigo) Que farei n’este momento? Direi quem sou? ou, antes, devo occultalo? (Depois de ter reflectido) Seja assim, pois. (Alto) Diva Graciosa! eu sou um Vêdavit. Tenho a meu cargo a administração da justiça na cidade do rei da raça de Puru, e vim a esta floresta sagrada por desejo de ver o eremiterio. Anusúyá Os ascetas observadores do dever têem em ti o seu defensor. (Chakunlalá mostra-se confusa por amor) Ambas as Companheiras 173 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL (Notando os gestos do rei e de Chakuntalá; baixo a esta) Querida Chakuntalá, se o nosso pae aqui estivesse hoje presente ... Chakuntalá Que seria então? Ambas Faria este distincto hospede completamente feliz por meio de tudo o que é a essencia da sua vida. Chakuntalá (Com enfado fingido) Ide-vos d’aqui! Podeis suppor quanto vossos corações cogitarem. Não darei mais ouvidos ás vossas palavras. O Rei Tambem nós perguntâmos, Divas Graciosas, alguma cousa concernente á vossa amiga. Ambas Senhor, muito nos obriga a tua pergunta. O Rei Sua austeridade Kânua vive em constante ascetismo. Como é que esta vossa amiga é a sua filha? Anusúyá Escuta, Senhor! Um Rádjarxi de extraordinarios merecimentos, cujo nome é Kauchika. O Rei Sua austeridade Kauchika... Anusúyá É o pae da nossa amiga. Mas, porque tendo sido exposta, o reverendo Kânua tomasse a seu cuidado creal-a, é este o seu segundo pae. O Rei «Exposta» dizeis, e isso nos dá curiosidade. Desejâmos ouvir o caso desde o principio. Anusúyá Ouve, Senhor! No tempo em que aquelle Rádjarxi vivia nas mais austeras penitencias, os deuses, conta-se, já um tanto apprehensivos, enviaram-lhe a Apsará, por nome Menaká, dotada, do poder de fazer quebrar os votos de penitencia voluntaria. 174 JOÃO SOARES SANTOS O Rei Tal é o receio que os deuses têem das austeridades alheias? D’ahi então?... Anusúyá D’ahi quando veio o tempo encantador da primavera, elle ao ver aquella formosura, que era como um veneno... (Ao dizer isto mostra-se enleiada) O Rei O resto adivinha-se. A vossa companheira é evidentemente a filha de uma Apsará! Anusúyá É verdade! ... O Rei Ella bem o mostra! D’entre as filhas de Manu por certo nenhuma podia ter dado nascimento a tão grande formosura. A luz radiante e trémula, que anda no sol e mais astros, e fende as nuvens no espaço, não irrompe da face da terra! (Chakuntalá conserva-se de olhos baixos com expressão de enleio e pejo) O Rei (Para si) Ainda bem! correm livremente as minhas esperanças! Priyamvadá (Sorrindo-se dirige-se a Chakuntalá) Bem se percebe que este Illustre Senhor deseja ainda dizer alguma cousa. (Chakuntalá com um gesto de mão censura a sua companheira) O Rei Adivinhastel-o precisamente, Diva Graciosa. Por desejo de ouvir toda a fausta historia ainda nos resta alguma cousa a perguntar. Priyamvadá E porque hesitar? Bem certo é que á gente dos eremiterios se dão as ordens sem acanhamento. O Rei Pergunto pois: Se o voto que a vossa amiga fez de viver anachoreta, sem conhecer o 175 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL amor, deve ser guardado só até ao tempo proprio de realisar casamento; ou se tem de viver sempre com as antilopes femeas, tão amadas por ella, e em cujos olhos formosos vê outros como os seus! Priyamvadá Senhor, o cumprimento dos deveres religiosos d’esta virgem é dirigido pelo seu Guru Kânua, cuja tenção é dal-a a marido digno d’ella. O Rei (Para comsigo, com alegria) Exulta meu coração! a duvida n’este momento acaba de ser dissipada. O que receiavas ser fogo, é pedra preciosa em que se póde tocar. Chakuntalá (Como que zangada) Anusúyá, Vou-me embora, eu! Anusúyá Porque? Chakuntalá Vou dizer á nossa respeitavel Gautamí quão indiscreta está sendo Priyamvadá na sua conversação. (Levanta-se) Anusúyá Minha amiga, não é proprio dos habitantes do eremiterio ausentaremse quando lhes parecer, deixando um hospede distincto antes de satisfeitas as obrigações da hospedagem. (Chakuntalá parte sem responder) O Rei (Comsigo) Ela parte! (Indo a levantar-se como que desejoso de a deter, contém-se) Ah! como o movimento de um espirito amoroso se denuncia no movimento do corpo! A mim, na verdade, Deteve-me a cortezia no impulso que me levava a seguir a filha do Muni; E sem me ter levantado do logar onde estou, parece-me ter partido e já voltado. Priyamvadá (Detendo Chakuntalá) Cruel! não te é permittido o ires-te embora! Chakuntalá 176 JOÃO SOARES SANTOS (Franzindo as sobrancelhas) E porque não?! Priyamvadá Deves-me a rega de duas arvores; desobriga-te d’isso e podes partir. (Obriga-a a voltar) O Rei Eu bem vejo que a Diva Graciosa vossa companheira está cansada de regár as arvores. Porque em verdade lhe descem as espaduas de cansaço, e, de tanto ter regado, vêem-se-lhe as palmas das mãos e os braços excessivamente vermelhos. A respiração apressada além do natural, ainda lhe está levantando o seio em ondulações. Uma rede formada das gotas da transpiração, em toda a fronte, impede o balançar das flores de chirixa que lhe enfeitam as orelhas. Sem fita que já perdeu, segura com uma das mãos os cabellos desgrenhados. Assim pois vou eu libertal-a da sua divida. (Dito isto entrega o annel que tira do dedo. As duas companheiras recebem-no, e lendo as lettras do nome olham uma para outra) O Rei Não estejaes suppondo o que não é. Este annel é um presente do rei. Priyamvadá Não cleveis portanto, Illustre Senhor, deixal-o saír do vosso dedo. Fique ella livre da sua dívida pela palavra de Vossa Nobreza. Anusúyá Minha querida Chakuntalá, ao espirito compassivo d’este Nobre Senhor, ou antes Rádjarxi, deves tu o ficares livre. Para onde irás tu agora?... Chakuntalá (Comsigo) Não deixaria de saír se tivesse força sobre num. Priyamvadá Porque não sáies agora? Chakuntalá Em que dependo ainda de ti? Quando bem me aprouver, então é que hei de saír. 177 SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL O Rei (Contemplando Chakuntalá; para si) Sentirá ella por mim o que eu sinto por ella! Ainda bem! que felizmente assim o posso pensar! Sem as fallas misturar com as minhas fallas, está tão attenta em mim, que, só por me escutar, bem me responde. A sua face não volta para a minha, e, todavia, só em mim, quasi sempre, tem objecto o seu olhar. (No postscenio) Eh! eh! ó ascetas! Dae-vos pressa em defender os animaes do eremiterio! que perto anda divertindo-se á caça o rei Duuxanta. Eis que já a poeira, batida pelos cascos dos cavallos, se levanta como nuvem de gafanhotos pelo sol do occaso alumiada, e vem caír sobre as arvores do eremiterio, em cujos ramos os humidos valkalas estão suspensos. O Rei (Comsigo) Ah! As tropas que me procuram e põem em alvoroto o eremiterio! (Outra vez no postscenio) Eh! eh! ó ascetas! Pondo em confusão velhos, mulheres e creanças se approxima um elephante, que, assustado ao ver um carro ele guerra, e tendo, d’um formidavel impulso, quebrado um dente no tronco de uma arvore que se lhe antepunha no caminho, enleiado por ter vindo prender-se na sebe de sarmentos que arrancou á força, a grei das antilopes dispersa, e material impedimento da nossa penitencia, o eremiterio arrasa. (Todos ouvindo isto se levantam assustadamente) O Rei Oh! quão criminoso sou no mal que estou fazendo aos anachoretas. Eia pois! obstemos ao mal! As Duas Companheiras O elephante espavorido nos encheu de susto, Senhor! Permitte-nos, pois, que partâmos para casa. Anusúyá (Dirigindo-se a Chakuntalá) Querida Chakuntalá, a nossa respeitavel Gautamí, deve estar assustada. Vae pois; apressemo-nos todas. 178 JOÃO SOARES SANTOS Chakuntalá (Fazendo como se não podesse andar) Ah!... Sinto-me com os membros entorpecidos!... O Rei Parti sem receio, sem receio, ó Divas! e nós faremos todos os esforços para que o eremiterio não esteja por mais tempo em alarme. As Duas Companheiras Reconhecemos perfeitamente quem tu és, Magestade. Perdoa-nos agora a mediocridade em servir-te de que somos culpadas. E perguntâmos-te, Senhor, se a hospedagem impropria, que confessâmos, é ainda assim motivo bastante de tornares a visitar-nos? O Rei Mas não, não! Dou-me por bem recebido com vos ter visto, ó Divas! Chakuntalá Anusúyá, molestei um pé n’uma ponta de herva kucha, a fimbra do meu vestido está presa a um ramo de kuruvâka. Esperae por mim até que me desembarace. (Dito isto e dirigindo um olhar para o rei parte com as companheiras) O Rei (Suspirando) Partiram todas! Bom! Agora parto eu! Desde que vi Chakuntalá sinto fraco desejo de voltar para a cidade, pelo que vou fazer acampar o meu sequito não longe de eremitério… Não tenho forças para me esquecer de Chakuntalá, que todo me preoccupa! Vae para diante o corpo, apenas volta para traz o coração inquieto; é como a seda da bandeira levada contra o vento. (Sáem lodos) Assim é o Acto I intitulado – A Caçada - 179 SOLTOS A Dança Clássica Khmer João Soares Santos «É impossível ver a natureza humana ser levada a esta perfeição». Auguste Rodin, referindo-se às danças de Khmer (1906) S ituado na península Indochinesa, o Camboja é um país com uma aérea de cerca de 181 000 km2 rodeado a Norte e a Oeste pela Tailândia, a Noroeste pelo Laos, a Leste e a Sul pelo Vietname, tendo ainda a Sudoeste uma porção de superfície litoral banhada pelo Golfo da Tailândia. Os principais estuários fluviais são o Mekong e o Tonlé Sap. Os Khmer constituem a maioria étnica da população. A religião predominante é o Budismo Theravada. Neste território desenvolveram-se os reinos hindus de Funan e de Zhenla (séculos I a VIII) e, entre os séculos VI e XV, floresceu o império Khmer cujo período áureo ou clássico costuma ser cronologicamente datado entre os séculos IX e XIV. Esta esplendorosa civilização Khmer adoptou valores culturais indianos e exerceu uma significativa influência nos espaços geográficos adjacentes. Em 1860 Henri Mouhot (1826-1861), naturalista Francês e explorador, curioso e maravilhado contemplou as ruínas de Angkor, indagando às populações locais quem tinha edificado tão prodigioso complexo arquitectónico. Recebeu como resposta, na sua opinião justa, a insinuação de que devia ter sido a obra de gigantes. A época dita de Angkor (deformação de «Nokor», por sua vez um termo derivado do sânscrito «Nagara» = «cidade importante») inicia-se com Jayavarman II (802-c.835) e termina com a conquista e saque desta cidade e região em 1431 pelo povo Thai. Os artistas da corte real são levados em cativeiro para Ayutthaya e, apesar da sua condição subalterna perante o novo jugo político, continuaram a exercer predomínio cultural na modelação das preferências estéticas da elite governante, a nova potência regional. A aura esplendorosa da monarquia Khmer apagou-se sob a supremacia Thai. Obrigada a deslocar-se para a área de Phnom Pen, sob a regência de Ang Chan I (1516-1566), com a capital em Longvek, esta voltou a recuperar alguma prosperidade e fulgor. Foi nesta época que Frei Gaspar da Cruz (c. 1520-1570), missionário Português, com desígnios de cristia- 181 A DANÇA CLÁSSICA KHMER nização, contactou com a soberania Khmer. Em 1569 os Birmaneses atacaram e depredaram Ayutthaya. O soberano Ang Duong (1841-1859) procurou revigorar o património coreográfico Khmer, introduzindo-lhe mudanças. A par dos laços já firmados com Chineses e Indianos, no século XVII e XVIII os Khmer estabeleceram relações com os Portugueses, Espanhóis, Franceses, Ingleses e Malaios. No século XVIII, parte do território do Camboja, a área meridional do delta do Mekong, foi anexada pelos Vietnamitas. Em 1863 o país tornou-se um protectorado Francês, integrando, juntamente com o Laos e o Vietname, as colónias da Indochina. Em 1945 os dirigentes proclamaram a independência só de facto conseguida em 1953. A partir de 1969, durante o conflito do Vietname (1955 -1975), o Camboja foi alvo de bombardeamentos dos Estados Unidos. Em 1970, Norodom Sihanouk foi deposto pelo general Lon Nol, causando o evento uma guerra civil culminando em 1975 com a ascensão ao poder dos Khmer Vermelhos, iniciando-se um regime de insanidade liderado por Pol Pot. Até 1979, altura da sua queda e controlo Vietnamita (cessado em 1991), o país atravessou um período de terror no 182 qual, por exemplo, as escolas e os templos foram quase todos encerrados, o dinheiro abolido e suprimida a maioria das actividades artísticas. Os herdeiros vivos das antigas tradições artísticas foram considerados inimigos do Estado, acabando presos e torturados, transportados para «campos de reeducação» ou dizimados. Estima-se que entre 80 a 90% dos dançarinos, músicos, actores e dramaturgos deste país tenham perecido durante esta ditadura. Grande quantidade de documentação bibliográfica relacionada com as artes foi destruída. Em Paris um grupo de dança dirigido por Bopha Devi (n. 1943), filha de Norodom Sihanouk, manteve-se em exercício no degredo, regressando à pátria após o afastamento de Pol Pot (o exílio real durou de 1970 a 1991). Outros artistas encontravam-se em campos de refugiados na Tailândia e outros tantos refugiaram-se nos Estados Unidos. Apesar do enorme dano cultural sofrido, o Camboja tem feito notáveis diligências para superar a memória destes tempos e para restaurar a sumptuosidade e o refinamento das suas manifestações artísticas clássicas. Os apoios institucionais têm permitido uma revitalização dos géneros e nas últimas três décadas as digressões interna- JOÃO SOARES SANTOS cionais receberam um acolhimento muito caloroso do público. As artes cénicas Khmer remontam às práticas palacianas do período de Angkor. A mais antiga referência à prática de dança neste território é uma inscrição em sânscrito datada do século VII. Entre estes géneros aristocráticos o mais importante é o Lakon Kabach Boran ou Lakon Luong interpretado no passado exclusivamente pelas esposas, concubinas ou parentes do monarca. Tradicionalmente esta companhia feminina de corte só interpretava em privado no espaço de alojamento do soberano, na presença deste, da sua família e de convidados ilustres, durante festividades matrimoniais, aniversários, coroações, celebrações oficiais, cerimónias religiosas ou para entretenimento. Só uma vez por ano, durante vários dias, as bailarinas exibiam em santuários no exterior as suas coreografias, rendendo veneração aos antepassados e às entidades sobrenaturais. A função simbólica das suas danças era prestar homenagem e propiciar as forças que ultrapassam a compreensão humana para assim ritualmente garantir felicidade ao reino. As mulheres desempenhavam papéis masculinos e femininos e, consoante as suas características anatómicas, tinham aprendizagens centradas num só tipo de personagem. A rainha Sisowath Kassamak Neary Roth (c. 1903-1975), mãe do rei Norodom Sihanouk (nasceu em 1922, reinou entre 1941 e 1955 e de 1993 a 2004), introduziu homens no elenco para assumirem as figuras de macaco no Reamker (o «Ramayana» Khmer), diminuiu o tempo das coreografias para as destinar a um público mais vasto e utilizou esta arte como veículo diplomático. Com esse propósito, nos anos 60 do século XX, o Ballet Real do Camboja realizou espectáculos por várias cidades do mundo, dispondo então a companhia um total de 254 pessoas distribuídas por tarefas distintas. A principal bailarina era a princesa Bhopa Devi. A 27 de Junho de 1964 apresentaram o Reamker no Théâtre Sarah Bernhardt em Paris (actualmente Théâtre de la Ville) acompanhando a visita oficial do então seu chefe de Estado, Norodom Sihanouk, ao único país do Ocidente com o qual nessa altura ainda mantinha relações cordiais. O repertório do Lakon Kabach Boran consiste em danças abstractas, sem conteúdo narrativo (Robam) e coreografias dramatizadas (Roeng) nele se integrando o Reamker, mitos e lendas, histórias contidas nas «Jatakas» (descrevendo as vidas anteriores do Buda Gautama) ou o 183 A DANÇA CLÁSSICA KHMER ciclo narrativo de Panji (conhecido no Camboja por Enao ou Eynao). De salientar nas danças femininas de corte a elegância e a delicadeza dos movimentos corporais de pé ou de joelhos, as subtilezas das mãos e do olhar, as maravilhosas indumentárias de seda e brocado e os ornamentos dourados e prateados (incrustações no tecido, braceletes, coroas, diademas, cintos, fivelas, jóias pendentes, brincos, máscaras, armas ou leques), criando a globalidade de estímulos uma ambiência onírica e hipnótica. O corps de ballet desloca-se com uma requintada serenidade com o apoio da música do ensemble instrumental Pinpeat, composto por uma espécie de xilofone com lâminas de bambu suspensas e encurvadas sobre uma armação de madeira, parecendo uma embarcação (Roneat Ek), uma variedade de xilofone arqueado semelhante ao anterior mas com teclas de madeira e um tom mais grave (Roneat Thung), um metalofone disposto na horizontal com lâminas de ferro (Roneat Dek), dois conjuntos de dezasseis gongos com um bolbo superior, paralelos ao chão, sustentados por uma armação semicircular no meio da qual se senta o músico (Kong Vong Touch e Kong Vong Thom, sendo o primeiro mais pequeno 184 que o segundo), um tambor com a forma de barril com duas superfícies de percussão assente num suporte (Sampho), dois grandes tambores (Skor Thom), uma espécie de oboé (Sralay) ou uma flauta de bambu (Khloy), um par de címbalos digitais que pontuam o ritmo (Chhing), um coro e os seus solistas. Podemos usar para verbalizar a experiência de assistir à performance das bailarinas do Ballet Real do Camboja as palavras do antigo cronista Khmer que, descrevendo a construção de Angkor, aludiu às esculturas das Apsaras: «o olho não se fatiga, a alma fica envolta numa agradável sensação, o coração jamais se sacia».1 Parecida com o género anterior mas com atributos mais vigorosos, a outra expressão de dança de corte existente neste país, somente interpretada por homens, destinada a representações no exterior para o povo, é o Lakon Khol. Nela as figuras de macacos e de demónios (Rakshasas) presentes no Reamker utilizam também máscaras. Conjectura-se que a sua origem possa ser as dramatizações de marionetas de sombras (Nang Sbek Thom). Entre as lendas que relatam a origem do Camboja podemos destacar quatro. A primeira versa sobre a fundação do reino e de JOÃO SOARES SANTOS Angkor Thom através do casamento de Prah Thong, um príncipe indiano exilado, com uma Nagi, a filha do soberano dos Nagas locais. A segunda refere a chegada de um brâmane chamado Kaundinya, procedente da Índia, que casou com «Folha de Salgueiro» uma rainha autóctone à qual impôs o uso de roupa. Uma terceira incide sobre um rei leproso, belo e jovem, glorioso nas suas expedições militares e que tinha quatro mulheres favoritas às quais concedia todas as vontades. Um dia abandonou o luxo palaciano e partiu sozinho com elas numa viagem de descoberta do mundo. Por fim, uma outra narrativa sobre o aparecimento da dinastia Khmer menciona Kambu, um eremita ou príncipe a quem Shiva ofereceu Mera, uma ninfa celeste (Apsara), como esposa. Desta união surgiu a genealogia real Khmer que governou um território designado por Kambudesa («país de Kambu» ou «nascido de Kambu») mais tarde abreviado para Kambuja. A junção do nome «Kambu» e «Mera» originou o termo «Khmer». «A Lenda da Criação do Reino Khmer», o título do espectáculo que o Ballet Real do Camboja apresentou no dia 4 de Junho de 2010 no XVI Festival de Músicas Sagradas do Mundo em Fez (Marrocos) tinha esta última récita como tema coreográfico. A composição inicial foi da rainha Kassamak, revista na actualidade pela sua neta, a princesa Bhopa Devi. Este ano o Ballet Real comemora o vigésimo aniversário do seu renascimento (1991-2011) e apresenta-se em digressão pela Europa com as dez melhores bailarinas interpretando as melhores peças coreográficas do repertório clássico Khmer. Em Julho estiveram em Bergerac (região da Aquitânia) no Festival do Verão Musical e no Festival Sfinks, na cidade de Boechout, região de Antuérpia (Bélgica). JSS 185 A DANÇA CLÁSSICA KHMER Referências: 1 – Referido por Henri Marchal, «Les Temples d’Angkor», Albert Guillot, Paris, 1955 186 A Honra Perdida do Major Silva Pais Fernando Pereira Marques T erminou com uma absolvição (em Julho de 2011) o processo desencadeado pela queixa de familiares do último director da PIDE/DGS, o major Silva Pais, contra os responsáveis (Carlos Fragateiro, José Manuel Castanheira, Margarida Fonseca Santos) pela adaptação ao teatro de um livro sobre a filha desse dignitário do Estado Novo, que esteve em cena há uns anos atrás no D. Maria II. A razão principal invocada pelos queixosos era de que, na peça em questão, se afirmava que o major teria ordenado o assassínio do general Humberto Delgado. Diga-se, desde já, que este julgamento pouca atenção mereceu por parte dos nossos media, pois para o ruído neles dominante outras questões foram mais relevantes. Mas sublinhe-se também, em contrapartida positiva, ter sido demonstrado que a Justiça ainda funciona com algum bom senso. Não conheço o livro e não vi o espectáculo teatral, por isso desconheço os termos como neles foi abordada a questão geradora do litígio. Mas abstraindo da liberdade de criação e em se ficcionar sobre a realidade, além do que já está historicamente comprovado quanto a esse acto criminoso do regime e da sua polícia política, só por absurdo se pode pretender que o chefe supremo da dita, que despachava regularmente com o presidente do Conselho de Ministros, podia estar inocente na complexa operação que conduziu o malogrado general para a armadilha onde perdeu a vida (com a sua secretária brasileira). Operação acompanhada por detalhada planificação, que obrigou à intervenção de vários agentes provocadores e de uma brigada expressamente enviada para Espanha com o objectivo, obviamente, ou de deter ou de neutralizar essa figura destacada da oposição, então um símbolo mobilizador das esperanças de muitos dos que recusavam o regime. Todavia, mesmo que por hipótese académica esses agentes e essa brigada tivessem agido por conta própria – insista-se no disparate da hipó187 A HONRA PERDIDA DO MAJOR SILVA PAIS tese –, pretender argumentar junto dos tribunais com o bom nome de um indivíduo que durante longos anos foi responsável por sistemáticos atentados aos direitos humanos, que liderou todo um sistema de perseguição, denúncia e repressão, é ofender não só a inteligência dos portugueses, mas sobretudo insultar as muitas vítimas, desaparecidas ou ainda vivas, dessa polícia e do regime de que foi principal instrumento. Não deixa de ser irónico, convenhamos, que o princípio do primado da Lei a que hoje recorrem esses familiares, era aquele mesmo princípio que os membros da PIDE/ DGS, nas suas diversas funções e qualidades, declaravam com jactância não chegar às salas do último andar da António Maria Cardoso onde decorriam os interrogatórios (antes da mudança para Caxias). Todos sabemos que a superioridade moral da Democracia reside no respeito pelos direitos, liberdades e garantias. E também sabemos que até os mais execráveis indivíduos ao serviço de regimes que assentavam no medo e na violência organizada têm família à qual as suas culpas não são extensíveis. No entanto, esses indivíduos, com diferentes níveis de responsabilidade, ao ocuparem cargos públicos e institucionais no 188 sistema repressivo e sendo conscientemente executores de acções contra a dignidade das pessoas e dos povos, não podem isentar-se dessa responsabilidade. Deveriam entre nós, como noutros lados aconteceu ou está a acontecer, terem respondido por isso. E digo deveriam, porque, como sabemos, por uma série de circunstâncias – que aqui não cabe aprofundar –, após a instauração do regime democrático em 25 de Abril de 1974, de facto, e objectivamente, usufruíram de uma escandalosa impunidade. Recordem-se os juízes dos Tribunais Plenários que terminaram calmamente a suas carreiras com todas as regalias, e dos agentes da PIDE/DGS que tiveram direito a receber as suas pensões como banais funcionários públicos. Contrariamente a alguns corações sensíveis não interpreto isto como um sinal positivo que nos diferenciaria de outros povos. Considero antes que são manifestações de falta de memória e de pundonor, bem na continuidade da passividade que ajudou a que em Portugal subsistisse uma das mais longas ditaduras contemporâneas. Neste contexto se percebe melhor, por exemplo, o actual revivalismo em torno de Salazar, a forma acrítica, para não dizer panegírica, como se aborda FERNANDO PEREIRA MARQUES a guerra colonial, enquanto que se remete a luta pela Democracia quase para os rodapés dos livros de História e se consideram os que recusaram contribuir para a mistificação ultramarina como maus filhos da pátria. Só assim, neste clima, onde se confundem e esbatem princípios e valores, se percebe que os tais familiares tenham ousado avançar com semelhante processo. O major Silva Pais terá direito ao bom nome póstumo enquanto indivíduo privado e no que à sua intimidade e dos seus diz respeito – é assim que deve ser em Democracia –, mas não existe “bom nome” a preservar em tudo o que ao desempenho de um cargo público, durante longos anos, se refere. Talvez deste fait divers se possa tirar um bom tema para uma tragicomédia à portuguesa que se poderia chamar qualquer coisa como: “A Honra Perdida do Major Silva Pais”... 189 190 Oo Indignados e a Crise da Liberal Democracia Joaquim Jorge Veiguinha E m 12 de Março de 2011, milhares jovens, convocados por um movimento designado por ‘Geração à Rasca’ manifestaram-se em Lisboa contra a precariedade laboral e o plano de austeridade negociado pelo governo de José Sócrates, o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia. Dois meses depois, em 15 de Maio, cerca de 20.000 pessoas ocupavam a praça Puerta del Sol de Madrid. Retomou-se assim um movimento que, iniciado em Lisboa, se estendeu a outras cidades espanholas e teve ramificações em outras urbes europeias – Atenas, Bruxelas, Berlim, Paris, Londres –, atingindo o seu apogeu na primeira semana de Agosto no país vizinho. Inspirado no pequeno livro Indignai-vos do francês Stéphane Hessel e por um panfleto espanhol do mesmo tipo, este movimento tem como palavra ordem e reivindicação central ‘democracia real, já!’ e apanhou completamente desprevenido o governo e a classe política espanhóis. Rapidamente o movimento 15-M, como ficou conhecido, alastrou a outras grandes cidades espanholas, de que se destacou Barcelona, que juntou à palavra ordem madrilena o slogan ‘ninguém nos representa’ que complementa a reivindicação central deste movimento de indignação. Em 19 de Junho, desencadeiam-se manifestações em toda a Espanha contra o ‘pacto pelo euro’, assinado pelos 17 países da zona Euro, em que se impõem compromissos sobre a moderação salarial, a flexibilidade laboral, a restrição das despesas com as pensões e a coordenação das políticas orçamentais no sentido da imposição de draconianas medidas de austeridade. Os indignados espanhóis prevêem cortes brutais nas despesas sociais e traçam as grandes linhas estratégicas do movimento. Este pretende ser cada vez mais ‘horizontal’, opondo-se a uma direcção hierarquizada, aprofundar a descentralização com o objectivo de penetrar nos bairros de Madrid, coordenar as manifestações nas diversas cidades espanholas e expandir-se internacionalmente. O seu modo de 191 OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA intervenção consiste na confluência de marchas que, partindo de outras cidades, deverão confluir, em 23 de Julho, em Madrid. O movimento 15-M aposta fundamentalmente na desobediência civil e na acção directa de ‘raiz pacifista’, como referem alguns dos seus representantes. Porém, em 15 de Junho, uma concentração junto do parlamento catalão em protesto contra a aprovação do ante-projecto orçamental da Catalunha terminou com insultos e tentativas de agressão aos deputados que foram obrigados a ser transportados de helicóptero para entrarem no plenário. Dos confrontos com as forças de choque dos Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, resultaram 36 feridos ligeiros, dos quais três agentes, sendo detidas quatro pessoas. Esta primeira mancha no ‘currículo’ do movimento dos ‘indignados’ não lhes retira, porém, o seu carácter predominantemente pacifista e não violento. Segundo um dos porta-vozes do 15-M, Aid Sanchez, “o povo levantou-se, estamos a dizer aos políticos e aos banqueiros que não nos representam” (Público, 20.06.11). É de sublinhar que no país vizinho a taxa de desemprego dos menores de 25 anos atinge 43,5% e que 44% dos licenciados executam tarefas que requerem uma qualifi192 cação inferior à que obtiveram nos seus estudos universitários. Em 23 de Julho confluem na emblemática Puerta del Sol seis marchas de ‘indignados’ que na totalidade percorreram 3000 quilómetros e 200 povoações para anunciar e discutir as suas reivindicações. Esta estratégia tem notáveis semelhanças com o movimento de ‘ida ao povo’ nos finais do século XIX na Rússia czarista, em que milhares de pessoas das grandes cidades partiram para os campos para esclarecer os camponeses ainda submetidos ao regime de servidão. Em 20 de Junho, inicia-se a rota do Leste que partiu de Valência e passou por 29 povoações em 24 dias. Quatro dias depois, iniciou-se a rota do Noroeste, proveniente de Santiago de Compostela e, no mesmo dia, começou a sua jornada a do Norte, a partir de Bilbau, e a do Nordeste que saiu de Barcelona. Em 25 de Junho, foi a vez da rota do Oeste que partiu da Estremadura e a do Sul que zarpou de Málaga. No dia 25 de Julho, realizou-se no Palacio de Cristal del Retiro o I Fórum social 15-M, em que foi debatida a estratégia do movimento para o Outono. Em 5 de Agosto, uma carga policial acabava com uma concentração de indignados em frente da sede JOAQUIM JORGE VEIGUINHA do Ministério da Administração Interna em Madrid. No dia seguinte, inspirados pelo movimento dos indignados espanhóis, 250.000 manifestantes protestaram em Tel-Aviv, em Israel, contra os preços incomportáveis dos alugueres das habitações – um aumento de 250% em 6 anos – e contra a degradação das condições pedagógicas nas escolas – uma média de 40 alunos por turma, a que os professores não podem dar a atenção adequada. O escritor israelita David Grossman sintetizou assim este movimento de indignação israelita: “As pessoas esfregam os olhos e começam a abrir-se a esse algo, todavia indefinível e impredizível, inclusivamente indescritível, mas que está adquirindo forma através de slogans resgatados de princípios do tipo «o povo exige justiça social» e «queremos justiça e não caridade» e outros sentimentos recuperados de épocas anteriores (…) pela primeira vez em muito tempo, voltamos a respeitar-nos a nós próprios como cidadãos individuais e como povo de Israel”1. As considerações do escritor isra- elita suscitam-nos, antes de tudo, algumas reflexões sobre as causas dos movimentos do tipo 15-M. Estes são fruto do agravamento das desigualdades sociais, de que resulta o enfraquecimento cada vez maior da coesão social, e traduzem-se, no plano político, na crise da liberal democracia cada vez mais subordinada à ditadura dos mercados financeiros que põe em causa, com as suas curas de austeridade, não apenas o emprego e o crescimento económico, mas também as políticas sociais e redistributivas que garantiam a estabilidade e o bem-estar sociais de largas camadas dos estratos inferiores da classe média assalariada e da população trabalhadora. Num ensaio que analisa a instabilidade social na Europa entre 1919 e 2009, os professores Jacopo Ponticelli e Hans-Joachim Voth, da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, concluem, fundamentados por uma ampla base dados, que nestes 90 anos “os cortes nas despesas públicas aumentaram significativamente a frequência de distúrbios, de marchas antigoverno, greves gerais, assassinatos políticos e tentativas de derrubar a ordem estabelecida”2. 1 El País, 7.08.2011. 2 Cit. por, Naim, Moisés – “Test: Advine el país!”, El País, 14.08.11, Madrid, p. 4. 193 OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA Um movimento global Em 17 de Setembro cerca de 2000 pessoas iniciam em Nova Iorque o movimento ‘Ocuppy Wall Street’, contestando que 1% dos norte-americanos possuam 40% da riqueza, 46 milhões estejam abaixo do limiar da pobreza e 50 milhões não tenham seguro médico. Em 15 de Outubro, manifestações de indignados realizaram-se em diversas capitais europeias. Em Londres, cerca de um milhar de pessoas concentraram-se nas escadarias de catedral de S. Paulo que se situa perto da Bolsa da capital britânica; em Bruxelas, realizou-se uma marcha com a participação de 6000 pessoas, mas a polícia encerrou sem pré-aviso os locais que serviram de centros de mobilização dos indignados, apesar de não se terem registado actos de violência durante o desfile. Em Berlim, mais de 10.000 pessoas percorreram a avenida Unter den Linden, ostentando cartazes e faixas em grego, espanhol, inglês e alemão e cerca de 5000 pessoas realizaram um sit in em Francoforte, junto da sede do Banco Central Europeu; em Madrid, 46.000 pessoas concentraram-se na praça Puerta del Sol e nas imediações e efectuaram uma marcha que durou mais de 194 quatro horas em Barcelona; em Lisboa, 12.000 pessoas, segundo a polícia, e 25.000 pessoas, segundo os organizadores, realizaram uma manifestação que terminou junto da Assembleia da República, protestando contra a austeridade que recai exclusivamente sobre os rendimentos do trabalho, o FMI, os políticos e o Governo em que a palavra de ordem mais difundida, “Não é a nossa dívida não a pagaremos”, revelava uma ignorância e uma irresponsabilidade radicalista enormes; Em Roma, uma manifestação de pacífica de 200.000 pessoas foi, porém, manchada pelos distúrbios provocados por grupos minoritários violentos que desencadeou a reacção tardia da polícia de que resultaram 70 feridos muitos dos quais nada tinham a ver com os arruaceiros que estiveram na origem do desencadeamento da carga policial. O que está verdadeiramente em jogo é a capacidade que a liberal democracia do pós-Segunda Guerra Mundial até à queda do Muro de Berlim dispunha para resolver os conflitos sociais pela via político-institucional. Esta capacidade só ‘funciona’ quando os níveis de desigualdade social não ultrapassam determinado limite. Caso JOAQUIM JORGE VEIGUINHA contrário, o frágil elo que conecta representantes e representados é ameaçado, o que tem como principal consequência, primeiro, um crescente absentismo político nas eleições legislativas, depois, uma ruptura que ora pode traduzir-se em explosões de violência seguidas de pilhagens, como sucedeu, em Agosto, em Londres, ora num novo tipo de manifestações de protesto que contrapõem a democracia directa à democracia representativa, exigindo, como os ‘indignados’ espanhóis, ‘democracia verdadeira, já!’ e em que o clássico mandato representativo entra em crise. É neste sentido que deve ser interpretada a palavra de ordem dos jovens de Barcelona “ninguém nos representa”. Democracia directa ‘versus’ democracia representativa? Resta-nos analisar duas interpretações opostas sobre este fenómeno relativamente inédito que nos poderão ajudar a emitir um juízo crítico sobre o seu impacto social. Para o filósofo espanhol Daniel Innenarity, “as nossas sociedades estão cheias de pessoas que são «contra», enquanto são cada 3 vez mais raros os que são «por» alguma coisa de concreto e identificável. O que é hoje mobilizador são as energias negativas de indignação e de vitimização. Todo o problema consiste em saber como fazer-lhes frente. É o que Pierre Rosanvallon designou por «era da política negativa», em que os que se opõem não o fazem como os rebeldes ou os dissidentes do passado, na medida em que a sua atitude não traça nenhum horizonte desejável, nenhum programa de acção. Neste contexto, o problema consiste em distinguir a cólera regressiva da indignação justa, e de pôr esta ao serviço de movimentos eficazes e transformadores”3. Embora esteja, em parte, de acordo com o último parágrafo da análise de Innerarity, não se pode dizer que os movimentos do tipo 15-M não lutem por objectivos identificáveis e se limitem a explorar um sentimento ‘negativo’ de vitimização. Antes de tudo, a ‘negatividade’ pode, em certos, momentos transformar-se em factor de transformação social, já que a reconciliação com o presente não é mais do que o conformismo reprodutor que aceita como inevitáveis Courrier International, 26.05. 2011 195 OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA o agravamento das desigualdades sociais e mesmo, como já se difunde em certos círculos, o desaparecimento a prazo do próprio Estado e modelo social europeus. De resto, o movimento madrileno do 15-M, os manifestantes de Tel-Aviv, de Nova Iorque e de outras grandes cidades europeias, ao definirem com alguma clareza o que não querem – não à subordinação do político ao económico e do económico ao financeiro, não às políticas de austeridades que, em nome da redução dos défices públicos e do combate a uma inflação cada vez mais baixa sacrificam o emprego de milhões de pessoas e hipotecam o seu futuro, pela satisfação de necessidades cada vez mais prioritárias de habitação, que não podem transformar-se num luxo de poucos, e também de uma educação pública de qualidade, em que o sucesso pedagógico não deve ser subalternizado relativamente às restrições orçamentais – apontam, de certo modo, uma via, se bem que ainda pouco clara e algo imprecisa, para a construção de uma economia e sociedade melhores – expressa pela exigência de justiça e não de caridade assistencialista que gera 4 Público, 20.06.11. 196 dependência – e não apenas para a limitação dos prejuízos resultantes das políticas anti-sociais do neoliberalismo dominante. De facto, sem um descontentamento que transporta consigo um pouco de utopia não é possível uma abertura de horizontes sem a qual o mundo, para utilizar a frase do poeta, não “pula e avança”. No pólo oposto de Innenarity, situa-se o sociólogo português Boaventura Sousa Santos para quem “os movimentos mais criativos da democracia raramente ocorreram nas salas dos parlamentos: ocorreram nas ruas onde os cidadãos revoltados forçaram as mudanças do regime ou a ampliação das agendas políticas”4. Este juízo peca por sobrevalorizar o momento extra-institucional da rebelião ou da revolta cujo carácter ‘inorgânico’ e relativamente desarticulado lhe retira poder de intervenção e tende a cristalizar-se em reivindicações efémeras e pouco sustentadas politicamente que, ao contrário do que afirma o sociólogo da Faculdade de Economia de Coimbra, podem ser manipuladas ou conduzir a resultados contrários aos pretendidos: por exemplo, o 12-M português JOAQUIM JORGE VEIGUINHA deu um importante contributo para a vitória da direita nas eleições legislativas e o 15-M espanhol, pode, ao que tudo indica, favorecer a conquista de uma maioria absoluta pela direita espanhola nas próximas eleições de Novembro. As limitações de movimentos deste tipo residem precisamente na sua incapacidade para encontrarem uma mediação entre o momento extra-institucional e o momento institucional, já que tendem a rejeitar os partidos políticos e os sindicatos frequentemente considerados em bloco como forças do ‘sistema’. As palavras de ordem ‘democracia real, já!’ e ‘ninguém nos representa’ expressam esta ausência de mediação. Ambas apontam para uma espécie de democracia directa, muito em voga nas redes digitais contemporâneas, que pode desembocar numa forma de populismo que visa sobrepor a deliberação instantânea de alguns milhares de cidadãos reunidos numa praça ou em várias praças aos processos de decisão política centrados num mandato representativo que, apesar de não vincular os eleitos aos eleitores, como sucede com o mandato imperativo, tem por base consultas eleitorais demo5 cráticas periódicas em que milhões de cidadãos exprimem livremente as suas escolhas políticas. Ao contrário do que diz Boaventura Sousa Santos, nem sempre os movimentos mais criativos da democracia ocorreram nas ruas. Segundo o jornalista espanhol Joaquín Estefânia5, perto do final da II Guerra Mundial formou-se em Itália um movimento instantaneamente convertido num partido – o partido do ‘uomo qualunque’ (poderemos traduzir a designação por partido de ‘quem quer que seja’ ou de ‘qualquer um’) composto por cidadãos com expectativas frustradas que se consideravam vítimas de políticas promovidas por outros que os prejudicavam. A sua contestação, apesar de não poder ser associada às reivindicações do movimento dos indignados que pressupõem um nível de cultura política significativamente superior, transformou-se num grito inarticulado de desespero que se extinguiu num ápice e acabou por transferir grande parte dos seus militantes e simpatizantes instantâneos para os partidos de extrema-direita anti-sistema. Os resultados políticos imediatos dos movimentos dos indignados El País: Domingo, 22.05.11. 197 OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA portugueses e espanhóis têm favorecido objectivamente os partidos da direita na oposição que se servem do descontentamento existiente para conquistarem o poder político. Não é verdade que a manifestação da ‘Geração à rasca’ quando o PS estava no poder mobilizou 200.000 pessoas, enquanto a de 15 Outubro apenas conseguiu a adesão de 25.000? Eis uma estranha ‘discrepância’. A palavra de ordem do movimento ‘Occupy Wall Street’ “Estamos aqui para refundar a democracia” ignora que a democracia não se refunda, mas se reconstrói e que a sua reconstrução jamais pode abdicar da instância político-institucional sem a qual não é possível garantir o respeito pela diversidade e pelos direitos das minorias ou dos que pensam de modo diferente6. A democracia directa com a sua tendência para a ausência de regras formalizadas para a tomada de decisões e, por conseguinte, para o predomínio das emoções sobre a discussão informada e ponderada das diversas 6 perspectivas políticas pode ser presa fácil de manipulações e mesmo de infiltrações antidemocráticas e arruaceiras, como já aconteceu em Barcelona e sobretudo em Roma. Estas, para além de contribuírem para descredibilizar um movimento pacífico de indignação contra o agravamento da desigualdade e da injustiça sociais, podem servir de pretexto aos poderes económica e politicamente dominantes para limitarem a liberdade de manifestação dos sindicatos e das forças políticas que contestam o status quo existente. O primeiro passo já foi dado pelo presidente da Câmara Municipal de Roma, Gianni Alemanno, que proibiu, durante um mês, cortejos e manifestações na capital transalpina, enquanto o ministro da Administração Interna, Roberto Maroni, se prepara para desenterrar normas de excepção que foram estabelecidas nos ‘anos de chumbo’ do século passado e que prevêem prisões e julgamentos sumários aos grupos subversivos que põem em causa a ordem democrática. Estes ‘exemplos’ legislativos Neste sentido, James Madison tem razão quando reflecte sobre os ‘perigos’ da democracia directa, a que chamava democracia pura: “Uma democracia pura, termo com que pretendo referir-me a uma sociedade consistindo num pequeno número de cidadãos, que reúnem e administram o governo em pessoa, não pode admitir um remédio para as acções prejudiciais às facções. Em quase todos os casos, uma maioria sentirá uma paixão ou terá um interesse comum; a comunicação e a concertação resultam da própria forma de governo; e não existe nada para manter em respeito os incitamentos a sacrificar o partido mais fraco ou o indivíduo mais odioso” (Madison, James – “O Federalista”, Ed. Colibri, Lisboa, 2003, pp. 82-83). 198 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA poderão generalizar-se, se, como é previsível, as infiltrações de grupos extremistas e de polícias à paisana no seio do movimento dos indignados se alargarem, o que é muito preocupante, porque, para além de constituírem um novo passo para a restrição securitária da democracia política, tenderão a suscitar uma separação radical entre os que protestam e se confrontam com a polícia e os que permanecem encerrados em casa com medo dos distúrbios e da repressão desencadeada. Mas isto não é mais do que a antecâmara da morte da democracia e da vida cívica. Eis a razão pela qual o movimento dos indignados é cada vez mais parte do problema e cada vez menos parte da solução. 199 LIVROS “Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico” de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010 Pedro Miguel Cardoso O livro “Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico” da autoria do professor Augusto Santos Silva, contém, como o próprio título indica, um desafio implícito. Senti-me por isso desafiado a escrutinar as suas teses e posteriormente a produzir este texto que mais do que uma recensão crítica é um resumo da obra. Como o leitor poderá notar ela tem qualidades e profundidade para se tornar uma obra de referência. É um excelente contributo para o debate ideológico e para a definição do posicionamento da esquerda democrática no plano dos valores e princípios, demarcando-a duplamente: “por um lado face ao conjunto das direitas e, pelo outro, face às esquerdas não democráticas”. Tem também um duplo objectivo: analítico tendo em conta o que a esquerda democrática tem sido ao longo da história, mas também normativo “comprometido com a defesa de um certo lugar e trajecto para a esquerda democrática, no tempo presente e no próximo futuro”. É um esforço e um trabalho de saudar em tempos de algum esvaziamento ideológico e incerteza teórica em diferentes campos políticos. Vou expor cada tese separadamente: 1ª Tese “A dicotomia entre esquerda e direita é o operador mais eficaz para começar a caracterizar e distinguir correntes políticas” Nesta primeira tese o autor defende que “a distinção entre esquerda e direita é um procedimento eficazmente operativo para começar a estabelecer o lugar e a identidade da esquerda democrática”. Esta distinção tem já uma longa tradição, continuando a ser útil na demarcação dos diferentes campos políticos, nomeadamente ao nível das suas estruturas de pensamento e diferentes prioridades. Realça ainda a necessidade de “romper” com a popular alegação de que a esquerda valoriza mais a igualdade enquanto a direita valoriza mais 201 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 a liberdade. Sustenta esta necessidade apresentando exemplos históricos, particularmente a luta pela liberdade dos revolucionários liberais e democratas (de esquerda) da segunda metade do século XVIII e da primeira metade do século XIX. Mas também argumentando no plano normativo onde considera fundamental “para os que se reclamam da esquerda democrática e pluralista” a rejeição dessa alegação, uma vez que ela “desvaloriza um eixo fundamental de demarcação com as outras famílias, antiliberais, da esquerda”. 2ª Tese “O centro não existe sozinho; mas existe” Além da oposição entre esquerda e direita, o autor considera importante salientar a diversidade interna destes campos políticos. E para melhor caracterizar essa heterogeneidade vale a pena introduzir o conceito de centro que “não tem identidade própria” e “não existe sozinho; existe como centro – direita ou centro – esquerda”. O que não significa “que o centro seja um lugar vazio, sem pertinência ou significado”. 202 3ª Tese “Para além da oposição entre esquerda e direita, o mapa político também se organiza segundo outras clivagens: entre democratas e autoritários, progressistas e conservadores, moderados e extremistas, cosmopolitas e isolacionistas” A clivagem entre direita e esquerda é um ponto de partida, no entanto, existem outras clivagens relevantes: – Entre democratas que defendem a “democracia pluralista, representativa e poliárquica” e que têm um ideal de governo limitado, e os autoritários, que podem ser reaccionários ou revolucionários; – Entre modernos ou progressistas, que se sentem bem na contemporaneidade e valorizam a mudança, e os arcaicos ou conservadores que temem a mudança; – Entre moderados e extremistas, que é a “demarcação que melhor exprime o acoplamento da palavra centro a direita ou esquerda”; – Entre cosmopolitas pró- globalização e os isolacionistas soberanistas e nacionalistas. PEDRO MIGUEL CARDOSO 4ª Tese “Os valores básicos da uma dimensão e uma condição da esquerda democrática são a liber- liberdade”. dade, a igualdade, a justiça, a Uma dimensão, na medida em que colectividade e a diferença” a “liberdade plena supõe igual liberdade de todos” e porque a “primeira Na sua quarta tese, Augusto Santos garantia da liberdade do cidadão é a Silva sugere uma estrela de cinco lei”, que a todos trata por igual. Na pontas para caracterizar os valores ausência de lei e de igualdade perante centrais da esquerda democrática. São a lei, a liberdade torna-se no reino do eles a liberdade, a igualdade, a justiça, mais forte. Uma condição, na medida a colectividade e a diferença. em que a igualdade no acesso e na Porque não utilizar a tríade da utilização de recursos sociais básicos é Revolução Francesa: Liberdade, fundamental à liberdade, que requer Igualdade e Fraternidade? Porque, a não existência de desigualdades segundo o autor, não é suficiente- sociais profundas. Isto é, “só um certo mente discriminativa. A diferença é conjunto de recursos disponíveis para uma importante noção da contem- todos permite que cada um possa ser poraneidade e a colectividade um pessoa, inteira e livre.” contributo fundamental das correntes Partir da liberdade para a igualdade socialistas e comunistas dos séculos significa que não se aceita sacrificar XIX e XX. Além de que a fraternidade a liberdade em nome da igualdade e se pode melhor compreender através que “a finalidade orientadora da acção da combinação entre igualdade, justiça pela igualdade é a promoção da libere colectividade. dade: da capacidade de cada indivíduo se realizar como tal, construindo o seu próprio projecto, percurso e identi5ª Tese “A esquerda democrática dade pessoal. Ou seja: ser igual para parte da liberdade para a igualdade” ser livre, logo diferente.” Segundo o autor fica assim definida uma demarA esquerda democrática deve cação face às correntes autoritárias de assumir a liberdade como princípio esquerda que defendem o igualitafundamental e dela partir para a igual- rismo a todo o custo e face a uma direita dade. Segundo Augusto Santos Silva pouco preocupada com a igualdade. “partir da liberdade para a igualdade é afirmar que a igualdade é 203 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 – A distinção entre igualdade e 6ª Tese “A esquerda democrática sublinha a dimensão redistributiva identidade, em que a igualdade das pessoas não significa que elas partida justiça” lhem ou tenham que partilhar todas as A justiça na sua dimensão redis- características, qualidades e percursos; – A avaliação das desigualdades tributiva é um valor estruturante da esquerda democrática. Há uma justiça sociais segundo o critério da legitimique se preocupa com a salvaguarda da dade, em que as diferenças baseadas ordem pública e da convivência pací- no talento, esforço ou iniciativa são fica, mas há também uma justiça que legítimas; – O princípio do patamar comum, se preocupa com a distribuição dos recursos e bens, pedindo mais a quem um mínimo social, um conjunto de mais tem para proporcionar recursos recursos e condições mínimas disponíveis para todos; acrescidos a quem menos tem. – A concepção da igualdade enquanto Promover a justiça social através de mecanismos redistributivos é retirar orientação para a acção, colocando o a solidariedade da “esfera privada e ênfase na igualdade de oportunidades; – A acção pela igualdade incorassistencial” e torná-la numa missão central do Estado. É também impor- pora iniciativas que deliberadamente tante redefinir a questão da igualdade criam desigualdades a favor dos e da acção contra as desigualdades. Em desfavorecidos; – E oitavo e último elemento, a vez de promover o igualitarismo onde todos devem ser estritamente iguais abertura e mobilidade social: a esquerda e não pode haver quem se distinga, democrática não partilha antes combate perguntar “se há ou não desigualdades a tentação igualitarista e valoriza a iniciajustas, e quais, e por que critério?” e “é tiva e a responsabilidade individual. ou não justo haver um certo nível de desigualdade?” 7ª Tese “A esquerda democráSegundo o autor são oito elementos que configuram um moderno conceito tica questiona a justiça da ordem do mundo” de igualdade: – A igualdade moral, em que cada Segundo esta tese, para a esquerda pessoa vale o mesmo; – A igualdade jurídica, dando iguais democrática é fundamental questionar a ordem do mundo, contestar a injusdireitos fundamentais a cada pessoa; 204 PEDRO MIGUEL CARDOSO tiça e querer corrigi-la. Interpelar o status quo tendo em mente um ideal de justiça “que está para além da lei e do direito e que pode pôr em crise a lei e o direito vigentes”. Esta é uma característica fundamental da esquerda democrática que a coloca ao lado da mudança e para quem “o primeiro dever dos cidadãos não é obedecer à ordem, por ser ordem, mas sim interrogá-la, inquirir dos seus fundamentos e legitimidade.” entre colectividade e solidariedade”, através da justiça equitativa (distribuição social dos benefícios), a socialização dos riscos (segurança social) e a discriminação positiva (intervenção deliberada em prol dos desfavorecidos). Neste quadro a solidariedade é vista como uma responsabilidade, um laço cívico, o reconhecimento de um direito a um nível mínimo de bem-estar, numa lógica de compromisso mútuo entre cada cidadão e a sua comunidade, na combinação de direitos e responsabilidades. 8ª Tese “A esquerda democrática acrescenta à república o sentido de solidariedade colectiva” 9ª Tese “O cosmopolitismo da esquerda democrática articula relaNesta oitava tese, o autor defende tividade e universalismo” que a esquerda democrática acrescenta O quinto valor constitutivo da à república a ideia de colectividade, a reconceptualização do Estado como esquerda democrática é a diferença e comunidade e organização política, a ele compreende-se melhor na relação que todos pertencem e onde todos têm com os outros valores. A diferença que é uma consequência da liberdade. E lugar e direito. Depois das dúvidas “libertárias” “amar a liberdade é também valorizar iniciais, os movimentos socialistas acei- a dissidência, isto é, o direito a exercer taram o Estado “como um espaço de a diferença como oposição e alternaintegração social e intervenção política” tiva”. Mas o autor deixa claro que “se e valorizaram-no, defendendo a sua se pode, no limite, tolerar a expressão intervenção em prol do interesse geral da intolerância, não se pode tolerar, ou bem comum, da protecção social e sob pena de contradição nos próprios termos, a prática ou o incitamento à da realização dos direitos sociais. Um outro contributo da esquerda prática da intolerância”. É também importante salientar que democrática é “a vinculação recíproca 205 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 “a igualdade pressupõe a diferença”, se todos fossemos estritamente iguais “a igualdade seria um dado e não uma questão, um ponto de partida e não um ponto de chegada, um constrangimento e não um objectivo”. Igualdade significa igual valor entre diferentes, o que implica a não discriminação, a valorização da singularidade de cada um numa unidade de iguais direitos universais. E a diferença está associada ao pluralismo, fundamento da democracia. O povo é diverso e essa diversidade “deve ser representada, pluralmente, nas várias instituições de governo e administração”. A diferença também se relaciona com reconhecimento, baseado no “conhecimento recíproco entre as diferentes partes” e “respeito mútuo”, consciente da possibilidade de partilha de valores transversais. A esquerda democrática não pode aceitar o relativismo que nega a “possibilidade de inter-avaliação crítica das culturas” e da pertença a um quadro comum, mas aceita a relatividade que comunica, que clarifica e se abre ao outro, convidando ao diálogo e à interpelação mútua. A esse reconhecimento intercultural dá-se o nome de cosmopolitismo, que é uma “hospitalidade face às ideias e seres diferentes”, que encara as diferenças como fonte de enriquecimento e valoriza o universal que une e integra. 206 Deste modo a esquerda democrática acolhe a diferença para a integrar num quadro comum. 10ª Tese “Os valores da esquerda democrática contrastam sobretudo com os valores do pensamento conservador” Depois de analisar os valores (teses 4 a 9) o autor aborda a identidade (teses 10 a 13) da esquerda democrática, em contraposição com a direita conservadora, colocando os respectivos valores em contraste. A direita tem como valores constitutivos: a ordem, a autoridade e a segurança. Ela encara a mudança social com desconfiança e até hostilidade. A ordem social e a tradição têm uma superioridade intrínseca e devem ser preservadas contra o risco de descontrolo e desintegração. Defende a autoridade e deseja que seja a “hierarquia o princípio organizador” da sociedade. Deseja um poder legítimo, forte e protector. E também a segurança, como garantia da protecção da pessoa e dos seus bens, de estabilidade contra a “incerteza, o risco e o desarranjo”, e conformidade/conformação do indivíduo perante o consenso normativo da sua comunidade. Como o autor refere, não se deve PEDRO MIGUEL CARDOSO justiça distributiva e a equidade. A palavra colectividade também suscita diferentes significados. Para a visão conservadora recorda a “transmissão inter-geracional de um padrão essencial”, de uma hierarquia. A esquerda democrática “liga o sentido 11ªTese“Porseulado,opensamento de colectividade a uma projecção conservador desconfia radicalmente da progressista do futuro e encara a colecconstelação de valores típica da esquerda tividade não como coesão pressuposta mas sim como coesão conquistada” no democrática” espaço democrático. E finalmente a diferença, que a Para o contraste entre as duas visões do mundo ficar claro, o autor direita conservadora tendeu sempre a apresenta a posição da direita conser- ver “como uma ameaça potencial”. vadora face aos valores constitutivos da esquerda democrática. 12ª Tese “Mas a esquerda demoO pensamento conservador considera a liberdade como valor inferior crática também se opõe à esquerda aos da ordem, da autoridade e da segu- conservadora e à direita liberal” rança. A liberdade é vista com o foco na Além das diferenças que separam sua dimensão dita negativa, liberdade a direita conservadora da esquerda do indivíduo contra o Estado, contra a sua intromissão na esfera privada, democrática há também diferenças mas também liberdade de iniciativa significativas entre esta e a esquerda que o autor apelida de “conservadora, para económica. No que diz respeito à igualdade, a além de autoritária”. Segundo ele há direita conservadora encara-a como uma “convergência das forças oriundas dimensão da liberdade, mas já não dos dois extremos do espectro político, acompanha a esquerda democrática que desconfiam por sistema da transna consideração da igualdade como formação social”. Esta afirmação pode ser melhor interpretada à luz da actual condição da liberdade. Em relação à justiça, enfatiza a vida política portuguesa e dirige-se justiça comutativa (sancionar pela àqueles que encaram a reforma como falta e reparar os danos) e desvaloriza a “uma tentativa de anular a ‘verdamenosprezar o poderoso efeito de estruturação social que esta visão tem, ancorada que está numa estrutura mental, num “modo de considerar, conhecer e interpretar o mundo”. 207 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 deira’ revolução”. Se a centralidade do valor da liberdade é a grande diferença que separa a esquerda democrática da esquerda conservadora, já em relação à direita liberal a esquerda democrática distingue-se “pelo peso que concede à redução das desigualdades por via da política pública”. “processo”, não de uma evolução pré-estabelecida regida por leis históricas, mas acreditando na cumulatividade da experiência e na melhoria das condições de vida da humanidade. 13ª Tese “A antropologia da esquerda democrática é humanista, racionalista, pró-activa e optimista” Com a décima quarta tese entramos no capítulo das aprendizagens. Segundo o autor a esquerda democrática não é estática, questiona-se, reajusta-se, em suma é dinâmica. O debate político além de uma confrontação de ideias, de uma “demarcação recíproca”, é também “um processo de influência mútua, um diálogo a várias vozes”, uma aprendizagem. A esquerda democrática ensinou mas também aprendeu muito. Como é que ela “foi alterando ou desenvolvendo o seu referencial doutrinário em função da dialéctica com as restantes correntes politicas”? Na décima terceira tese, o autor salienta que a esquerda democrática revê-se “numa certa antropologia filosófica, numa certa concepção do ser humano”. Baseada em quatro traços: – É humanista, valorizando cada pessoa e a sua igual dignidade no seio da polis; – É racionalista, valorizando a razão crítica, devedora do Iluminismo, acreditando na capacidade do homem para conhecer, compreender e intervir sobre o mundo; – É pró-activa, orientada para o futuro, capaz de intervir e fazer, apelando a uma pessoa que é sujeito/ actor e não mero produto ou agente de determinações transcendentes; – É também optimista, crendo no homem e no progresso, não no sentido hegeliano-marxista de 208 14ª Tese “As correntes políticas aprendem entre si” 15ª Tese “Do diálogo com a direita, a esquerda democrática aprendeu a revalorizar o mercado, o laço social e a segurança” Segundo Augusto Santos Silva a esquerda democrática saiu enriquecida PEDRO MIGUEL CARDOSO do diálogo com a direita em matérias como o mercado, os laços sociais e a segurança. Ele constata que parte da esquerda há muito que reconhece a economia de mercado e tem como objectivo gerir e regular o capitalismo em vez de o querer eliminar. Salienta que alguns dizem “que a fractura entre a esquerda e a direita democrática está em que a primeira aceita o mercado mas defende o Estado e a segunda tolera o Estado mas adora o mercado”. No entanto propõe que a esquerda deve valorizar o mercado como “instrumento útil que se deve defender no campo de acção que lhe é próprio, impedindo ao mesmo tempo que hegemonize os campos de acção que não são seus”. Defende que é importante distinguir entre economia de mercado e o capitalismo financeiro actual, “desregulado, indiferente à produção efectiva de bens e serviços socialmente úteis e obcecado no curto prazo”. Considera ainda que a democratização dos mercados deve ser uma bandeira da esquerda democrática. No que diz respeita aos laços sociais, a esquerda democrática “colhe sobretudo nos terrenos da crítica conservadora ao pensamento liberal radical e das correntes liberais moderadas e anti-jacobinas”. Ela não deve esquecer nem desprezar as origens. Deve compreender as identidades e as tradições como criações dinâmicas e “pôr em evidência as unidades básicas de integração e socialização e as redes sociais primárias”, como as famílias, as vizinhanças e as novas formas de constituição de redes (como as redes sociais na Internet). Deve valorizar a liberdade e pluralidade religiosa e recusar o banimento das religiões do espaço público, defendendo no entanto radicalmente a laicidade e sendo inimiga dos projectos teocráticos. Em relação a outra aprendizagem, a segurança, a esquerda de governo há muito assimilou a importância das funções de soberania do Estado. No entanto ainda “ecoam estereótipos e preconceitos” que devem ser combatidos (a bem dos valores e ordem democrática). A segurança é fundamental na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos e deve ser um instrumento ao serviço da igualdade social, contribuindo para a inclusão social e integração cívica das classes desfavorecidas. A esquerda democrática reencontra as suas preocupações essenciais no conceito de segurança, enfatizando a sua dimensão de protecção intimamente ligada ao bem-estar humano e a sua associação à ordem constitucional democrática, ao esforço conjunto dos Estados na reacção a agressões ou ameaças. 209 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 Recorrendo sempre que possível à diplomacia e submetendo essa reacção ao primado do direito internacional. Recusando a tentação securitária, salientando que as sociedades abertas comportam algum grau de risco, sendo até certo ponto “um preço a pagar pela liberdade, a mobilidade, a limitação do poder”. 16ª Tese “A esquerda democrática destaca, na atitude centrista, a limitação do poder, a aceitação da complexidade, a abertura, o compromisso e a moderação” O centro, como já foi referido, apesar de não existir sozinho, não deixa de existir e com relevância. Porque esclarece a oposição interna no seio dos grandes campos da esquerda e da direita, e porque exprime a identificação com um conjunto de princípios e atitudes: – O princípio do governo limitado, vinculando o centro-esquerda à matriz do liberalismo político. Todos os poderes devem ter limites impostos pela lei, pluralidade e interdependência; – A compreensão da complexidade e a sua incorporação no pensamento, propostas e acção; – O sentido de abertura e inclusão 210 para uma mobilização de forças e energias em torno de certos objectivos, recusando o populismo, o sectarismo e o vanguardismo. Segundo o autor há vários exemplos históricos que demonstram que a esquerda democrática ganhou quando soube dirigir-se ao conjunto da sociedade e soube construir plataformas entre diferentes grupos (socioprofissionais, confessionais, territoriais, culturais); – O sentido e o gosto do compromisso. A esquerda democrática não está apenas orientada para a crítica, protesto e reivindicação social. Ela está também orientada para o exercício de responsabilidades de representação e execução política. A opção pelo reformismo social e pela acção dentro do sistema político-institucional procurando transformá-lo e não destruí-lo a partir de fora, é uma “opção estratégica de fundo, que separou as águas no interior do movimento operário oitocentista e não cessou de aprofundar-se desde então”; – E o valor da moderação, como contraponto ao que na Grécia Antiga se designava de hubris (excesso). Significando aceitação da complexidade da realidade social que por isso mesmo é “incompletamente apercebida e compreendida”, a assunção da “relatividade, da finitude e da falibilidade das políticas” e a preferência PEDRO MIGUEL CARDOSO pelo progressismo democrático não revolucionário. A esquerda democrática defende a mudança e é progressista, mas desconfia dos projectos de engenharia social de “fabricação de uma ordem num molde pré-definido e de refundação sistémica do homem e da sociedade”, que procuram o “homem novo” e o “fim da história”. Foge das utopias totalizantes mas tem a sua própria utopia, no sentido de superação, de construção progressiva de uma realidade onde as pessoas sejam mais livres, iguais e solidárias. 17ª Tese “O dialogo entre as esquerdas enriquece a abordagem dos temas pós-materialistas, da liberdade subjectiva, da participação, do desenvolvimento sustentável e da luta contra a exclusão” No diálogo com a sua esquerda (para quem “nem olha só, nem olha preferentemente”), a esquerda democrática também procura retirar benefícios. E que temas podem estruturar tal diálogo? O chamado pós-materialismo e a “emergência de valores que já não são imediatamente reconduzíveis às oposições anteriormente conhecidas” do debate político: que eram a questão social (capital versus trabalho) e a questão religiosa (Estado religioso versus Estado laico). Questões relacionadas com a liberdade e diferença individual e grupal, e de relacionamento entre sociedade e ambiente impuseram uma nova agenda. A importância das liberdades cívicas e autonomia pessoal encaradas a partir dos fundamentos da modernidade política, nomeadamente do liberalismo político. O desafio que a sociedade em rede, resultante das inovações tecnológicas (particularmente a Internet), coloca à actividade e iniciativa política. A sociedade em rede potencia alguns dos valores da esquerda democrática: acrescenta sentido e amplitude à liberdade, redescobre o valor de comunidade fazendo emergir novos colectivos, sublinha os impulsos anti-hierárquicos, potencia a diferença e a pluralidade das formas de ser e interagir. O desenvolvimento sustentável também diz muito à esquerda democrática, na sua defesa dos bens colectivos e a na apologia da diversidade. Segundo o autor a esquerda democrática pode aportar a certo ambientalismo uma orientação progressista que procura aliar sustentabilidade, inovação tecnológica, crescimento económico e bem-estar social. 211 OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010 E finalmente o combate contra “a pobreza, a miséria social e moral, a desestruturação e desvinculação social, a exclusão pura e dura”, nomeadamente nas suas novas formas em locais distantes como a África Subsariana, o Sudeste Asiático e mesmo a América Latina. 18ª Tese “A esquerda democrática é uma disposição: para ser radical, realista, moderada, cosmopolita, performativa” A partir da décima oitava tese, entramos no quinto capítulo subordinado à questão: “O que se é?” O autor começa por dizer que a força singular do socialismo democrático é a sua capacidade para “combinar valores provenientes de diversas matrizes culturais e doutrinárias” e que ela decorre da opção pela modernidade europeia, caracterizada pelo humanismo, pluralismo, racionalismo crítico, cultura científica e técnica, e a inovação. Reside nesta opção o “suporte da abertura ideológica e da incorporação programática, na relação com as outras grandes correntes políticas” e a sua capacidade dinâmica de adaptação à evolução das sociedades. A esquerda democrática é caracterizada por várias disposições políticas: 212 – A disposição para ser radical na defesa da liberdade e democracia, em prol dos direitos humanos, primado da lei e controlo de poderes; – A disposição para ser realista: prudente nas questões de soberania, segurança e defesa. Céptica face àqueles que “entendem que se pode fazer tábua rasa da história, da geografia, das instituições sociais e dos padrões simbólicos de comportamento de territórios e populações” e procuram obrigar outros povos a ser revolucionários ou modernos, desconfiada dos “paraísos prometidos, do fim da história ou da harmonia universal”; – A disposição para ser moderada, procurando compromissos, lógicas de institucionalização dos conflitos e dando primazia aos meios pacíficos para gerir e resolver os conflitos internacionais; – A disposição para ser cosmopolita, de abertura ao mundo, não receando a contemporaneidade e o futuro; – E a disposição para a transformação social, procurando a mudança, agindo para mudar e transformar, corrigindo injustiças, apostando em pontos críticos, garantindo maior autonomia e melhores condições de vida a cada pessoa. PEDRO MIGUEL CARDOSO 19ª Tese “A esquerda democrática é uma cultura” As disposições referidas na tese anterior são sobretudo exigências colocadas à identidade e ao comportamento. São evidentes as tensões que existem entre algumas delas. A esquerda democrática é assim um lugar incerto e complexo. É uma cultura. Não apenas uma ideologia, uma doutrina social, um movimento, uma identidade. É também uma ideia e um ideal, uma “forma cultural” que “pertence à ordem propriamente cultural”, uma “reclamação de mais cultura” e uma “proclamação de cultura”. É um “apelo a um futuro outro”, uma “aventura de pensar e tentar fazer uma realidade diversa da que existe”. A esquerda democrática é uma ideia, um sistema de ideias, uma vinculação a um mito fundador, uma interpretação da história, um movimento social e um campo político. Mas é ainda um ponto de vista e uma linguagem, “uma disposição para o debate social e político a partir de um lugar e da sua perspectiva”, um “falar de certo modo”, a “preferir certos termos”, a “enunciar problemas e soluções de certa maneira”, “uma dada representação e desejo do mundo”, uma “imagem e imaginação do mundo”, para “compreender e dizer o mundo, a outrem e com outrem”. Em suma, uma leitura a não perder. 20ª Tese “A esquerda democrática é uma linguagem” A esquerda democrática deve ser inserida no contexto da modernidade europeia e no quadro do debate e competição política com a direita. Estes dois conceitos são marcadores que ajudam as pessoas a fazer escolhas, a definir identidades e a reconhecer valores sociais. 213 214 Portugal como Problema: Que Soluções? Joaquim Jorge Veiguinha B oaventura Sousa Santos inicia o prefácio do livro, Portugal: Ensaio sobre a Autoflagelação (Almedina, Coimbra, 2011) com uma referência a José Ortega y Gasset que define o sentido da sua mais recente reflexão sobre Portugal e o seu provável próximo futuro: “O filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia há cerca de um século que o problema era a Espanha e a solução era a Europa. Hoje não podemos dizer o mesmo a respeito de Portugal, pois se Portugal é o problema, a Europa, esta Europa, tão pouco é a solução” (p. 7). Portugal é actualmente um país que sofre uma das crises mais graves da sua história. Para Boaventura Sousa Santos importa antes de tudo destacar as dimensões desta crise que são essencialmente três: a dimensão financeira, de curto prazo, a económica, de médio prazo, e a político-cultural, de longo prazo. A primeira é fundamentalmente uma crise de endividamento, a segunda resulta da sobrevalorização do euro relativamente a um padrão de especialização centrado em bens de baixo valor acrescentado – Portugal exporta sapatos e vestuário, mas não aviões –, a terceira, a mais profunda, consiste na incapacidade dos grupos dirigentes de se libertarem de um passado em que um ciclo colonial que apenas terminou nos anos setenta do século XX gerou uma mentalidade avessa a confrontar-se com situações heterogéneas e inimiga dos desafios que pudessem abalar a rotina instalada. A condição semiperiférica de Portugal dificulta extraordinariamente a construção de uma alternativa aos seus bloqueamentos. Actualmente, Portugal é um país do centro se tivermos em conta o seu modelo de consumo, os avanços na esfera dos costumes, de que se destacam as leis sobre a interrupção voluntária da gravidez e o casamento dos homossexuais, a taxa de actividade feminina, uma constituição política avançada no plano dos direitos civis e sociais. No entanto, não deixa de ser um país da periferia, em consequência tanto do baixo nível de qualificação da força de trabalho, como de um plano de especialização centrado em actividades que os países mais desenvolvidos já rejeitarem ou transferiram para outras paragens – o têxtil continua a ter um peso excessivo nas nossas exportações –, e que sofrem 215 PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES? já a concorrência dos países em vias de desenvolvimento ou dos países emergentes – caso da China, por exemplo – que beneficiam de salários ainda mais baixos e de um euro sobrevalorizado que corrói as nossas quotas de mercado. Esta condição semiperiférica do país assume uma dimensão histórica, o que lhe confere um carácter estrutural: sem receio de exagerar Portugal, foi durante mais de dois séculos um ‘centro’ relativamente às suas colónias, mas uma ‘periferia’ relativamente à Inglaterra, transformando-se mesmo numa espécie de protectorado da velha Albion. A revolução de 25 de Abril de 1974 com os seus célebres três D’s – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver – constituiu a grande oportunidade para que Portugal pudesse superar a herança secular do seu atraso. No entanto, primeiro, o FMI em 1978, depois, o seu retorno em 1983 contribuiu para hipotecá-la. A integração de Portugal na CEE em 1986 não alterou, apesar da euforia inicial e o acesso aos fundos estruturais, esta herança que, a partir de 1993, e com a integração no euro nos finais do século passado, uma ‘fuga para a frente’ impulsionada pelo eixo franco-alemão, no entender de Boaventura Sousa Santos, começou a revelar todo o seu insustentável peso. Não conseguindo libertar-se plenamente do seu passado de dependência, Portugal é um país sempre em 216 atraso relativamente à Europa. Portugal e a Europa Boaventura Sousa Santos distingue três grandes momentos da evolução de Portugal na sua relação com a Europa: o momento de rejeição, o momento de aceitação e o momento de tolerância ou de rejeição disfarçada de aceitação. O primeiro inicia-se com a Conferência de Berlim (1890) e com o Ultimato britânico que assinala a subalternização do colonialismo português relativamente às grandes potências europeias e atinge o seu apogeu no período posterior à Segunda Guerra Mundial em que Portugal mantém um império colonial, enquanto os outros países europeus são confrontados com processos de descolonização de que despontam novas nações independentes nos continentes africano e asiático. O segundo inicia-se com o 25 de Abril de 1974, que marca o fim do império colonial português, e atinge o seu ponto culminante com a integração do país na União Europeia. Esta surge, no entanto, mais como “resultado auspicioso de novas rotinas impostas do exterior” (p. 52) do que como um projecto de construção da própria autonomia, acabando por desembocar num “ciclo cimento e betão”, o novo ‘ouro do Brasil’, em detrimento de uma aposta prioritária na educação e na inovação científico-tecnológica. O terceiro inicia-se com JOAQUIM JORGE VEIGUINHA a integração de Portugal na zona euro e caracteriza-se pelo endividamento crescente do país que vai sendo financiado por empréstimos contraídos no exterior e que culmina, em 2011, com o plano de austeridade negociado com o FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu. Este plano marca tanto a sua subalternização, como o seu desenquadramento no tempo: quando Portugal tentava construir o seu Estado social, entrava em crise, após a queda do Muro de Berlim, o modelo social europeu que, de certo modo, constituía, o seu paradigma. As medidas de austeridade a que o país foi submetido têm consequências catastróficas no plano social. O empobrecimento da classe média assalariada, sobretudo dos seus estratos médios e baixos, contribuirá para reduzir a procura interna e para bloquear o crescimento económico e o emprego; o enfraquecimento das redes de solidariedade informal – que Boaventura Sousa Santos designa por “sociedade providência” (pp. 72-78) – reforça o isolamento e a exclusão social dos mais débeis; o aumento do desemprego, do horário de trabalho e a erosão do trabalho com direitos contribui para diminuir as expectativas futuras de grande parte da população e torna-a mais vulnerável à aceitação acrítica de uma ideologia que considera inevitáveis a redução dos salários para aumentar o emprego; o aumento da desigualdade de oportunidades juntar-se-á à já elevadíssima desigualdade social – 41,5% da população portuguesa estaria, em 2009, em risco de pobreza se não existissem transferências sociais – com a construção de um sistema de ensino a duas velocidades – cursos profissionais para ingressar no mercado de trabalho para os mais carenciados e cursos de prosseguimento de estudos para os que desfrutam de um maior ‘capital cultural’ –, a formação de mega-agrupamentos pedagogicamente desastrosos e inviáveis no plano administrativo e a destruição da escola de proximidade nas zonas rurais e despovoadas. Em consequência, sublinha Boaventura Sousa, “a escola volta a estar, agora mais do que nunca, ao serviço da reprodução das elites” (p. 64). Alternativas A alternativa a esta situação social e política cada vez mais insustentável passa pela passagem de uma “democracia de baixa intensidade” a uma “democracia de alta intensidade”. A primeira caracteriza-se pelo seu carácter representativo e pela sua subordinação à hegemonia do capital financeiro ou de ‘poderes de facto’ que não são eleitos pelos cidadãos, mas que determinam, em última instância, as políticas de austeridade recessiva concebidas como uma inevi217 PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES? tabilidade. A segunda centra-se no princípio de “mobilização abrangente” que combina a responsabilização dos deputados e governantes perante os eleitores com a emergência de novos actores políticos de que se destacam os sindicatos e os movimentos sociais e sobretudo o conjunto de cidadãos não convencionalmente organizados, mas que se mobilizam com o objectivo de recusarem uma situação de degradação e precariedade sociais cada vez maiores: “Quando os cidadãos se transformam de praças de objectos em praças de sujeitos, as instituições convertem-se rapidamente em miniaturas de si mesmas e tudo fica mais ao alcance da deliberação democrática ainda que só por breves instantes” (p. 107). Embora Boaventura Sousa Santos tenha em mente movimentos do tipo ‘geração à rasca’, em Portugal, e 15-M, em Espanha, e se aperceba que estes se definem mais pela recusa do que pela proposta de alternativas viáveis no plano institucional, não é claro relativamente à questão de como estes movimentos podem passar do seu estado inorgânico para o plano da “sociedade civil organizada”. A sua desconfiança relativamente aos partidos políticos e aos sindicatos retira-lhes capacidade efectiva de intervenção e tende a confiná-los a uma força de protesto sem uma base de sustentação sólida que lhes permita construir um 218 caderno reivindicativo minimamente articulado. Não adianta dizer que, no futuro, “não haverá esquerda; haverá mosaicos de esquerda” (p. 106), já que o principal limite para a construção de uma alternativa à situação actual consiste precisamente na incapacidade de ‘federar’ a esquerda num projecto de transformação social em que o momento extra-institucional deve necessariamente converter-se em momento político, sob pena de se tornar ineficaz e de se cristalizar em reivindicações efémeras. Neste sentido, Boaventura Sousa Santos apela à “criação de múltiplas esferas públicas onde a sociedade civil organizada em associações e movimentos possa participar efectivamente na vida política através de múltiplas formas de democracia participativa” (p. 104). Só assim, se poderá evitar a “funcionalização da democracia” representativa que gera absentismo e indiferença política crescentes. No entanto, as diversas formas de democracia participativa propostas por Boaventura Sousa Santos – referendos sobre aspectos decisivos da governação, conselhos de cidadania, em que cidadãos sorteados são consultados sobre políticas públicas relevantes, fiscalidade participativa em que os contribuintes, podem, a partir de um certo montante, propor a orientação das receitas fiscais para serviços socialmente relevantes (educação, saúde) ou recusar a sua utili- JOAQUIM JORGE VEIGUINHA zação para outras finalidades (acções bélicas, energia nuclear) (p. 104) – pecam, se exceptuarmos o referendo que, em certas situações pode ser objecto de manipulações antidemocráticas, pela ausência de um poder estruturado de intervenção dos cidadãos sobre as principais decisões políticas. Figura de esquerda, fenómeno cada vez mais raro num país por enquanto rendido à pretensa inevitabilidade das medidas de austeridade recessiva do governo PSD/CDS, Boaventura Sousa Santos defende que se experimente uma coligação de esquerda ‘inédita’ que junte PS, BE e PCP. Esta coligação, apesar de não poder eximir-se a aplicar medidas para a redução do défice, deverá necessariamente negociar uma reestruturação da dívida (pp. 82-83). Admiramos a intenção do autor, mas não podemos subscrevê-la. De facto, as tendências social liberalizantes dos governos de José Sócrates no plano económico, não podem justificar a estratégia de um Bloco de Esquerda que sempre tentou ‘encostar’ cada vez mais o PS à direita para crescer à custa do seu eleitorado, nem de um PCP cuja imagem de marca continua a ser a de um insustentável sectarismo vanguardista a que se acrescenta uma total incapacidade para interpretar adequadamente a estrutura de classes do cibercapitalismo dos anos oitenta e noventa do século passado e da primeira década do século XXI. Esta incapacidade impede-o de se libertar de rotinas e rituais estereotipados e, por conseguinte, de propor formas de luta eficazes para combatê-lo tanto no plano sindical, como no plano político. Além do mais, estes dois partidos aliaram-se objectivamente ao PSD e ao CDS para derrubarem o governo socialista, tornando-se, por conseguinte, cúmplices, apesar da sua retórica esquerdista politicamente irresponsável, de Passos Coelho, o qual, afirmou textualmente, numa entrevista ao Wall Street Journal de 30 de Março de 2011, que “o seu partido chumbou as medidas de austeridade propostas pelo governo socialista (PEC IV) por não irem demasiado longe” (p. 82). E a avaliar pelo programa do governo PSD/CDS o actual primeiro-ministro irá cumprir a sua ‘promessa’, desmantelando o que resta do Estado e das políticas sociais e agravando ainda mais a desigualdade na repartição dos rendimentos. Relativamente à reestruturação da dívida – o que Boaventura Sousa Santos chama, juntamente com a sua renegociação, “desobediência financeira” (p. 87) –, Portugal, país periférico e insignificante em termos políticos, nunca poderá avançar isoladamente. Os exemplos de reestruturação referidos por Boaventura Sousa Santos – o caso argentino, islandês e, o mais antigo, o 219 PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES? caso alemão do pós-Segunda Guerra Mundial via plano Marshall – não se aplicam aos casos grego, português e irlandês, países depreciativamente e vergonhosamente apodados de ‘pigs’ pelo neoliberalismo dominante. As crises destas nações são apenas, como afirmou um articulista do Financial Times, danos colaterais no ‘normal’ funcionamento dos mercados financeiros. O mesmo não acontecerá se a crise da dívida se estender às grandes economias da zona euro, como é o caso da Itália e da Espanha, ‘too big to fail’. Neste caso, uma renegociação e reestruturação da dívida portuguesa terá fortes probabilidades de ser efectuada, mas por um governo que se preocupe com uma repartição equitativa dos sacrifícios e por fomentar o desenvolvimento económico e o emprego com direitos. Talvez apenas no momento em que esta situação na Europa se tornar socialmente insustentável cada um deixe de bramar contra os mercados financeiros quando a crise lhes bate à porta e decida cooperar com os outros para pôr cobro à ditadura monetarista do Banco Central Europeu, à inanidade de uma Comissão Europeia dirigida por um presidente que nada tem a ver com o espírito europeísta de Jean Monnet e Robert Schumann e à cegueira política de um governo alemão que continua a pensar que só uma cura de austeridade 220 recessiva imposta aos outros poderá preservar o seu modelo de exportação e o equilíbrio das suas contas públicas. Por isso, é necessário começar a construir uma ‘outra’ Europa. Boaventura Sousa Santos tem consciência que Portugal não terá alternativa no actual quadro da União Europeia. É necessário, portanto, construir uma nova Europa. No que é um dos melhores capítulos da sua obra, o sociólogo e investigador da Universidade de Coimbra considera que é necessário “refundar o projecto de convergência europeia através de uma estrutura mais federalizante e assente em processos de eleição directa para os principais órgãos de governo” (p. 131). Deve sublinhar-se a importância da ‘estrutura federalizante’, já que só uma solução deste tipo poderá promover os processos de cooperação necessários para permitir enfrentar os ataques da finança especulativa que exploram com sucesso a contradição entre uma moeda comum e a existência de taxas de juros diferenciadas das obrigações do tesouro dos diversos países da zona euro. Enquanto a União Europeia constituir apenas um grande mercado sem uma base de sustentação num orçamento digno desse nome e for adiada a construção de uma união política sem a qual todas as formas cooperativas de combate à crise e à ditadura das agências de rating JOAQUIM JORGE VEIGUINHA não terão possibilidade de sucesso, Portugal, a Irlanda e a Grécia não poderão sair do ‘buraco negro’ em que se encontram mergulhados. A emissão de eurobonds será o primeiro passo para encetar um processo de combate à finança especulativa e para reforçar a ideia de que a Europa só se salva se todos os países forem tratados de modo igual e nenhum for relegado para uma condição cada vez mais periférica em consequência do agravamento das medidas de austeridade recessiva que não apenas bloqueiam o aumento do emprego e do crescimento económico, mas também tornam objectivamente impossível o pagamento dos juros exorbitantes das suas dívidas públicas. A federalização da Europa só poderá ter sucesso se for acompanhado por um processo de ‘desfinanceirização’ do velho continente (pp.132-34). Boaventura Sousa Santos defende algumas medidas importantes no plano fiscal e tributário: aumento dos impostos sobre o capital financeiro e sobre os grandes patrimónios, proibição dos paraísos fiscais, retoma da tributação progressiva sobre os rendimentos e redistribuição dos impostos indirectos no sentido de aliviar o consumo de bens de primeira necessidade e de punir o consumo ostentatório. Estas medidas devem ser complementadas pela reestruturação da dívida, pela proibição da socialização pública das dívidas privadas e pelo combate à especulação financeira sobre as moedas e os títulos do tesouro. O quadro destas medidas completa-se pela substituição do pacto de estabilidade e crescimento por um pacto de solidariedade para o emprego e a ecologia e pela alteração do estatuto do Banco Central Europeu, de modo a que este deixe de ser refém dos bancos comerciais e das agências de rating para se transformar num agente de financiamento das economias dos países que se encontram em dificuldades. Porém, a Europa também não pode ser separada das suas relações com os outros continentes. Para Boaventura Sousa Santos, é necessário ‘desmercadorizar’ o mundo (pp. 147-50) através da aposta num desenvolvimento sustentável sem o qual caminhamos a passos de gigante para o desastre ecológico, evitar a formação de uma sociedade submetida ao império das transacções mercantis, promover uma nova geração de direitos fundamentais – direitos sobre a água, a terra, a biodiversidade e os bens comuns –, proibir a especulação financeira sobre a terra e os alimentos e integrar a redução da jornada de trabalho entre as medidas de fomento do emprego. Só assim, se poderá responder aos desafios perante os quais Portugal está confrontado no médio e longo prazo sem cair na nossa tradicional tendência para a autoflagelação. 221 REVISTAS RECEBIDAS Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4º trimestre 2010 Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1º trimestre 2011 Humanística e Teologia, Revista da Faculdade de Teologia, Porto, Dezembro 2010 Humanística e Teologia, Revista da Faculdade de Teologia, Porto,Julho de 2011 ParoleChiave, nº44, Carocci editore, Roma, Dezembro de 2010 Revista dos Assuntos Eleitorais, Cadernos da Administração Interna, Lisboa, Outubro 2010 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Setembro 2010 Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Julho-Dezembro 2010 Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Janeiro-Julho 2011 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Novembro-Dezembro 2010. Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Janeiro-Fevereiro 2011 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Março-Abril 2011 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Maio-Junho 2011 Nº TEMA PRINCIPAL ANO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10/11 12 13/14 15 16 17 18/19 20 21/22 23 24/25 26 27/28 29 30 31/32 33 34 35 36/37 38 39 40/41 42/43 44 45 46 47/48 49/50 51/52 53/54 55/56/57 58/59/60 61/62/63/64 65/66 67/68 69/70 71/72 O SOCIALISMO DO FUTURO* DOSSIER EUROPA A IDEIA DE REVOLUÇÃO REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA? O REGRESSO DOS NACIONALISMOS A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO? O FIM DA POLÍTICA? AMÉRICA! AMÉRICA! A ALEMANHA E A EUROPA A EUROPA, NÓS E OS OUTROS A ESPANHA E NÓS O FIM DE UM CICLO A EUROPA E NÓS VÁRIOS TEMAS POR UMA EUROPA À ESQUERDA O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO? O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS O REGRESSO DO POLÍTICO DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA? JUSTIÇA FISCAL A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO A EUROPA DEPOIS DE NICE A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO O MUNDO EM CRISE SER MINORIA, HOJE A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA A CRISE MUNDIAL UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA O ISLÃO E A MODERNIDADE EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS? OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS LIBERALISMO E DEMOCRACIA PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL A EUROPA DEPOIS DE LISBOA QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS? O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO AS REBELIÕES ÁRABES 1989 1989 1989 1990 1990 1990 1991 1991 1992 1992 1993 1993 1994 1994 1995 1995 1996 1996 1997 1997 1998 1998 1998 1999 1999 1999 2000 2000 2000 2001 2001 2001 2002 2002 2003 2003 2003 2004 2004 2004 2005/6 2007/8 2008/9 2009 2009 2010 2011 *O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10 anos antes, publicados no nº 1) NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de 25% de desconto na aquisição de cada exemplar. Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto. 223 224 225 «Finisterra»: a Revista de Reflexão e Crítica Assinatura: anual (quatro números) Estrangeiro Normal: 40€ Instituições: 52€ Europa: 103€ Apoio: 58€ Estudantes: 25€ Fora da Europa: 117€ Considerem-me assinante da «Finisterra» a partir do n.º NOME MORADA LOCALIDADE CÓD. POSTAL TELEFONE N.º CONTRIBUINTE EMAIL FORMA DE PAGAMENTO cheque n.º Cartão de Crédito VISA do Banco Autorizo o débito de € Nome que consta no cartão Assinatura Nº do cartão Prazo de validade Código de Segurança O código de segurança são os 3 dígitos que se encontram no verso do seu cartão TIRE FOTOCÓPIAS e envie para: «Finisterra» - Fundação Res Publica, Av. das Descobertas, 17 - 1400-091 LISBOA 226