O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem
Eduardo Lourenço
Mundo Árabe em Revolta
Joaquim Jorge Veiguinha
Tunísia, Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe?
Virginie Collombier
O Desastre da LSE
Hermínio Martins
Portugueses, Só Mais um Esforço!
Fernando Pereira Marques
Do Estado Social ao Estado Assistencial
Joaquim Jorge Veiguinha
Precisamos de mais Europa contra a Crise
Guilherme d’Oliveira Martins
Uma Nova Política
Pedro Miguel Cardoso
A Constituição e o Futuro: Revisões Constitucionais Inconstitucionais?
Paulo Ferreira da Cunha
Mediocridade, Partidocracia, Mérito e Democracia
Fernando Mora Ramos
Shakuntala Irreconhecível
João Soares Santos
Os Indignados e a Crise da Liberal Democracia
Joaquim Jorge Veiguinha
“Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao
Escrutínio Crítico” de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010
Pedro Miguel Cardoso
Portugal como Problema: Que Soluções?
Joaquim Jorge Veiguinha
AS REBELIÕES ÁRABES
A Dança Clássica Khmer
João Soares Santos
A Honra Perdida do Major Silva Pais
Fernando Pereira Marques
ISSN 0871-7982
Fundação Res Publica
Preço: 20€
Árabes
as Rebeliões
O Trágico Regresso das Direitas
Alfredo Margarido
71
72
O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem
Eduardo Lourenço
Tunísia e Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe?
Virginie Collombier
Do Estado social ao Estado Assistencial
Joaquim Jorge Veiguinha
Precisamos de mais Europa contra a Crise
Guilherme d’Oliveira Martins
Director: Eduardo Lourenço
1
DIRECTOR
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Fernando Pereira Marques
COORDENADOR
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Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha,
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Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 71/72 – Outono/Inverno 2010
Design e Produção: Garra Publicidade, SA
Apoio à Redacção: Sofia Nascimento
Registo de Título nº 113 463
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2
ÍNDICE
AS REBELIÕES ÁRABES
O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem
Eduardo Lourenço
7
Mundo Árabe em Revolta
Joaquim Jorge Veiguinha
11
Tunísia, Egipto: Que Modelos para as Transições no Mundo Árabe?
Virginie Collombier
41
O Desastre da LSE
Hermínio Martins
59
PARLAMENTO
Portugueses, Só Mais um Esforço!
Fernando Pereira Marques
63
Do Estado Social ao Estado Assistencial
Joaquim Jorge Veiguinha
75
IDEIAS
Precisamos de mais Europa contra a Crise
Guilherme d’Oliveira Martins
87
O Trágico Regresso das Direitas
Alfredo Margarido
93
Uma Nova Política
Pedro Miguel Cardoso
99
A Constituição e o Futuro: Revisões Constitucionais Inconstitucionais?
Paulo Ferreira da Cunha
107
CULTURA
Mediocridade, Partidocracia, Mérito e Democracia
Fernando Mora Ramos
127
Shakuntala Irreconhecível
João Soares Santos
133
3
SOLTOS
181
A Dança Clássica Khmer
João Soares Santos
187
A Honra Perdida do Major Silva Pais
Fernando Pereira Marques
191
Os Indignados e a Crise da Liberal Democracia
Joaquim Jorge Veiguinha
LIVROS
201 “Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico”
de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010
Pedro Miguel Cardoso
215 Portugal como Problema: Que Soluções?
Joaquim Jorge Veiguinha
4
COLABORAM NESTE NÚMERO
Eduardo Lourenço – Ensaísta
Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta
Virginie Collombier – Investigadora
Hermínio Martins – Professor Universitário
Fernando Pereira Marques – Professor Universitário
Guilherme Oliveira Martins – Jurista
Alfredo Margarido – Professor Universitário (A título póstumo)
Pedro Miguel Cardoso – Formando da Fundação Respublica
Paulo Ferreira da Cunha – Professor Universitário
Fernando Mora Ramos – Encenador
João Soares Santos – Ensaísta
Carlos Brito – Cartoonista
5
6
AS REBELIÕES ÁRABES
O Fantasma de Bin Laden ou o Eixo do Bem
Eduardo Lourenço
Com força não, com manha vergonhosa
A vida lhe tiraram, que os espanta;
Que grande aperto em gente, ainda que honrosa,
Às vezes leis magnânimas quebranta.
T
Lusíadas, Canto VIII
udo que é necessário para compreender a saga ‘redentora’ e
maldita que culminou no ataque às torres de Nova Iorque e
fechou provisoriamente com a morte sem julgamento de Bin
Laden tem a sua bíblia portátil no livro de Lawrence Wright, a
“Torre do Desasossego”. Economiza a proliferação automática de centenas
de comentários que a insólita comemoração do espectacular acontecimento
do 11 de Setembro suscitou e continua a suscitar. O mais empolgante dos
romances empalidece ao lado dessa espécie de reconstituição na melhor
linha do grande jornalismo americano. Lendo-o, pelo menos, esse acontecimento deixa de ser percebido como um fenómeno quase ‘sobrenatural’
ou sem causa, expressão do ‘mal absoluto’ de novo género, e sobretudo mais
inexplicável que o do Holocausto. Lendo Lawrence Wright compreendese, se já não se supunha, que o sacrílego ataque não foi um acontecimento
irracional, opaco, contingência pura da ordem da loucura, mas a peripécia
de um combate bem anterior ao gesto ou à gesta de Bin Laden que tem
como actores – e isso é que é novo – dois actores de destino interligados e
até cúmplices e aliados, os Estados Unidos no seu novo papel hegemónico
sem antagonista depois da queda do Muro de Berlim (e até antes) e do
outro, o mundo árabe, não como inimigo potencial por motivos religiosos
ou culturais, mas como objecto privilegiado dos interesses americanos (e
latamente ocidentais) que desde os tempos de Mossadegh e do Xá da Pérsia
são ‘vitais’ para os Estados Unidos.
Bin Laden é o herdeiro directo e o concentrado consciente e assumido
não apenas de um histórico ressentimento do Islão contra o Ocidente,
mas igualmente de contradições pessoais e políticas que na primeira parte
da sua acção anti-imperialista se articulou com o combate anticomunista
dos Estados Unidos. Como ‘saudita’, e até a título familiar, o seu destino
7
O FANTASMA DE BIN LADEN OU O EIXO DO BEM
está ligado ao do imperialismo económico sem fronteiras dos Estados
Unidos. Mas cedo se deu conta que esse aliado privilegiado na luta contra o
comunismo como ideologia ateísta incompatível com o Islão era também e
sobretudo não só o aliado mais que privilegiado do jovem Estado de Israel,
como, de algum modo, o Grande Israel. A luta de morte contra um deles
implicava, na sua nova opção de ‘converso’ que o seu combate ideológico,
cultural e religioso se polarizasse contra o que já era, há muito, para uma
grande parte do mundo islâmico, o Grande Satã.
Sob este pano de fundo, a idade ideológica que dominou o combate
político do Ocidente desde a Revolução de Outubro (para não falar da
herança reciclada da Revolução Francesa) mudou de paradigma. Não o de
um muito sofisticado conflito entre ‘civilizações’, mas o de uma leitura mais
arcaizante, aquela que convém às oposições ou detestações que relevam da
esfera mais decisiva da crença. Com a queda do Muro de Berlim e o enfraquecimento da tradição iluminista, o recalcado por ela volta outra vez sob
a forma de ‘fundamentalismo’, não à moda medieval puramente religiosa
e condicionante das práticas de uma sociedade, sobretudo na ordem ética,
mas como referência identitária servindo de pedestal à autonomia política.
Paradoxalmente, o episódio, na aparência anómalo e fantástico do 11 de
Setembro – que a dez anos de distância tem sido evocado por gente responsável (Miliband entre outros) como uma espécie de não-acontecimento
– não tem leitura significativamente histórico-mítica, enquanto improvável ‘clash’ entre dois fundamentalismos. O assim nomeado e que seria
(ou é) por excelência o que tem neste momento no Islamismo a sua encarnação histórica, e o americano, de raiz messiânico-bíblica, na sua essência
ideal e que é pura e simplesmente o ‘modelo americano’ vivido como as
tábuas da lei em todos os domínios na ordem da realidade.
Não é por acaso que o imaginário actual é literalmente de ordem
fantástica e fantasmagórica reciclando um pouco cansativamente o eterno
cenário do combate entre o Bem e o Mal nos termos arcaicos e mágicos
dos eternos contos infantis. Ou até deslocando para espaços extraterrestres
os mais que terrestres conflitos entre dominados e dominantes (de dominadores da nova espécie sobre os canónicos dominados). Ao apocalíptico
ataque às Torres o traumatizado – e com razão – Presidente dos Estados
Unidos vai conferir, a exemplo de Reagan, uma dimensão imediatamente
8
EDUARDO LOURENÇO
místico-mítica desse combate entre o Bem e o Mal. Ainda não saímos
desse contexto da ciência-ficção, com a América como o império do Bem
e Bin Laden no papel assumido de mau da fita, enquanto, ou antes, de
anjo do Mal. De um ‘mal’ que, como no caso paradigmático do Diabo (ao
menos no Ocidente), convém não evocar porque ele comparece sempre.
No tempo da Ideologia, tempos de Che Guevara, o cadáver do adversário
foi ‘cristãmente’ integrado na sua humanidade. Desta vez, o que esteve (ou
está em causa) é de outra ordem. Bin Laden morto não terá imagem para
adorações futuras. Será reenviado ao nada expulso da ordem humana. As
exigências do eixo do bem são tão implacáveis como as do Mal.
Mas é uma ilusão imaginar que o mistério à luz do dia da tenebrosa
epopeia ou anti-epopeia de Bin Laden e o que nela o ultrapassa como em
tudo o que conta no que chamam História (ou contra-História) terminou.
Li há dias que Francis Ford Coppola, em Veneza, ousou sugerir que por
detrás desse atentado satânico não haveria uma tenebrosa pulsão maléfica digna dos cenários apocalípticos que tanto sucesso e dinheiro trazem
a Hollywood, mas certamente “algumas razões”. E que seria necessário
não só para a América, mas para o mundo que ele fascina ou esmaga ter a
audácia de contemplar – até para realmente a exorcizar – essa nova imagem
de Medusa da História. Durante séculos o Ocidente – então quase só a
Europa – viveu numa espécie de guerra intermitente com o mundo islâmico
com que desde o início da sua expansão se defrontara. Sobretudo como se
fossem dois planetas que mutuamente se desconheciam mais até do que se
temiam. Com a ascensão da Europa a ‘rainha do mundo’ e luz da História,
pensava ela quando era do género de Montesquieu, começa uma época de
fascínio – sobretudo da parte da Europa como é nossa tradição – entre
ambos. A Europa e as suas invenções suscitam a curiosidade e interesse do
‘extático’ mundo islâmico. Com a época imperialista da Modernidade o
fascínio converteu-se pouco a pouco em desconfiança. Não está feita para
uso comum a história desta paixão assimétrica entre Oriente e Ocidente. E
fascinado o mais deslumbrado não é o D. João da História que nós somos
como europeus. Bin Laden é um entre os milhares de muçulmanos para
quem o encontro com a cultura europeia, a acção da Europa, em vez de
deslumbrar, lhes revelou a sua irredutível originalidade e reforçou a sua
consciência identitária e o orgulho e dignidade de antiga e brilhante civili-
9
O FANTASMA DE BIN LADEN OU O EIXO DO BEM
zação marginalizada – ou auto-marginalizada relativamente à omnipresente
Europa. Não foi na América e em relação à América (ou só tardiamente em
relação a uma nova América hiperimperialista) que os reflexos do ressentimento ganharam consistência e se converteram em imperativos de acção.
No seu livro fascinante Lawrence Wright evoca o percurso desses ‘deslocados’ do Islão que em contacto com a cultura europeia se transformaram
nos fundamentalistas que não precisavam de ser mais nas suas pátrias de
origem. Descobriram ao mesmo tempo que os ‘ocidentais’ não nascem
tão ‘superiores’ como eles imaginavam, mas sobretudo que eles, islâmicos,
tinham a sua identidade, valores, uma religião que os vestia e compensava de tudo. E mais do que tudo, que este Ocidente, senhor do mundo
era vulnerável. Que se fosse preciso podia ser ferido no seu coração. Este
simples pensamento vivido com convicção gerou os aviões (sintomaticamente americanos) que no espírito de Bin Laden deviam punir a arrogância
do povo de deuses, sobretudo senhores que não eram os deles.
Recentemente um dos mais brilhantes cronistas europeus, Timothy
Garton Ash, escreveu que o 11 de Setembro pareceu “um desvio” na
História. Será. Até porque tudo é desvio ou nem isso na estrada mais que
tortuosa e enigmática da História que não esquecerá tão cedo. E mudaram,
mais do que se diz, os tempos que nos foram dados a viver. Que mais
não fosse Bin Laden pôs o Islão no ecrã do mundo como actor de uma
História onde até então figurava mais como fantasma do que como referência tão mítica como as outras. E também a esse título o 11 de Setembro
não seja como muitos naturalmente desejavam um mero ‘fait divers’ do
nosso tempo tenebroso mas um sinal ambíguo endereçado ao futuro como
escreveu Vasco Pulido Valente.
Lisboa, 12 de Setembro 2011.
10
Mundo Árabe em Revolta
Joaquim Jorge Veiguinha
A
explosão democrática iniciada na Tunísia e no Egipto com
os seus ‘dias de raiva’ e a queda dos regimes republicanos
autoritários de Ben Ali e Hosni Mubarak está muito longe
de se converter numa apoteose triunfal da democracia e dos
direitos humanos, e ainda menos dos direitos sociais. É certo que a Tunísia
e o Egipto preparam a transição política com eleições para a Assembleia
Constituinte, em Novembro no país dos Faraós e em 23 de Outubro na
nação onde se desencadeou a revolução dos jasmins, que será o ponto de
partida para a institucionalização da democracia, a que se seguirão, em
Dezembro, no Egipto, eleições presidenciais. Também é verdade que em
Marrocos foi aprovada uma nova constituição que diminuiu os poderes do
monarca Mohamed VI e reforçou a esfera de acção do primeiro-ministro
proveniente de um parlamento eleito. No entanto, poderemos considerar
estes três casos relativamente excepcionais e não totalmente isentos do
risco de regressão. Ao contrário das reacções embevecidas da imprensa e
de inúmeros opinion makers que, de uma forma simplista, já vaticinavam que
a maré da democracia inundaria o mundo árabe e faria entrar em cena
novos protagonistas, os jovens das redes sociais num ambiente inédito de
apoteótica ‘ciber-revolução’, o pesado fardo da realidade tem-se encarregado de desmentir os primordiais excessos de optimismo. Na Líbia, apesar
da queda do regime de do coronel Khadafh e a formação de um governo
provisório que representa as forças do Conselho Nacional de Transição
apoiadas pela intervenção ‘humanitária’ da NATO, estalaram conflitos
internos entre grupos que participaram na rebelião contra o coronel
deposto e barbaramente executado relativamente à futura chefia militar
do país. A Síria, chave da estabilidade do Médio Oriente, vê-se confrontada com uma revolta generalizada da população a que o partido Baas de
Bashar al-Assad, o exército e os serviços de segurança respondem com uma
repressão brutal que já fez milhares de vítimas civis. Com o pretexto de
11
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
uma insurreição xiita, A petromonarquia do Bahrein recusa transformar-se em monarquia constitucional e aceita a intervenção da Arábia Saudita
e dos seus aliados para restabelecer o statu quo ameaçado. Por fim, o Iémen,
santuário da Al-Qaeda na península arábica, corre o risco de implodir
num ambiente em que se combinam conflitos tribais e confessionais e
onde o extremismo islâmico se aproveita do caos generalizado para o qual
muito tem contribuído o presidente Ali Abdulah Saleh que persiste em
manter-se no poder que detém há 31 anos.
O triunfo da democracia no mundo árabe é possível, pois, ao contrário
do que defendiam os partidários do “Choque das Civilizações”, não depende
de uma espécie de propensão genética e cultural que apenas o Ocidente
judaico-cristão possuiria. No entanto, ao que tudo indica, esta apenas
poderá concretizar-se como fruto de um longo e atribulado processo. Da
mesma forma, como nada indica que a História tem um sentido em que
as soluções políticas e sociais progressistas possuem, à partida, a garantia
da irreversível vitória, a implosão e o caos de países que até há bem pouco
tempo constituíam aparentes oásis de estabilidade sob o comando de
ferozes ditaduras, constituem também um cenário possível. Não é verdade
que a História, como disse o filósofo alemão Walter Benjamin, no seu
Angelus Novus, poderá ser uma “progressão imparável”, mas de “catástrofe em
catástrofe”? Os dados já estão lançados. No entanto, para evitar as ilusões
e os excessos de optimismo é cada vez mais necessário analisar o enquadramento económico, social, político e estratégico em que se move a revolta
do mundo árabe. E esta análise apenas nos permitirá fornecer algumas
pistas que nos ajudarão a desvendar não tanto as incógnitas do futuro, mas
a evitar que o pior dos cenários possíveis, a hobbesiana guerra de todos
contra todos, acabe por triunfar numa região tão conturbada.
A questão económica
Se tomamos como referência o Egipto e a Tunísia, focos das revoltas no
mundo árabe, verificamos, antes de tudo, que os primeiros seis anos do
século XXI registaram taxas de crescimento médio de 5% com um máximo de
7% para o Egipto em 2007-2008. Com a crise de 2008-2009 houve uma
desaceleração, já que a evolução do PIB caiu para 4,6% no Egipto e para 3,1%
12
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
na Tunísia. Tudo aponta para que este movimento declinante se reforce, já
que o FMI estima que no país regado pelo Nilo o produto aumentará apenas
1% em 2011, após a leve recuperação de 2010 em que atingiu 5,1%. Segundo
a mesma organização, o maior país da região verá não apenas o seu défice
público aumentar para 9,7% do PIB, mais 1,9% do que em 2008, podendo
atingir 11%, mas também registará uma quebra drástica de 5% das receitas
turísticas, uma das principais actividades económicas do país1.
Outra das características do mundo árabe e muçulmano é a elevada
taxa de crescimento demográfico que superou a do PIB anterior a 2009.
Se é certo que tanto na Tunísia como no Egipto a primeira tem revelado
tendência para desacelerar – na Tunísia existia uma média de 5 crianças
por mulher em 1980 contra apenas 2 actualmente, enquanto no Egipto o
número médio de filhos tinha passado de 5,5 para 2,7 no mesmo período
–, pode dizer-se que esta evolução recente é manifestamente insuficiente
para compensar os efeitos da explosão demográfica acumulada. Assim, na
Tunísia, a população passou de 4 milhões para 10 milhões de habitantes
entre 1960 e a actualidade, ou seja, um aumento de 250% em 40 anos,
o que implica uma taxa anual de 6,25%. Por sua vez, o país das pirâmides
viu a sua população aumentar cerca de 150% entre 1990 e 2010, passando
de 58 milhões para 85 milhões de habitantes. Este fenómeno não é um
fenómeno isolado, mas estende-se a toda a região do Norte de África, bem
como ao Médio Oriente. Relativamente à primeira região, destacamos
o caso de Marrocos, onde a população passou de 11,6 milhões de habitantes em 1960 para 32,4 milhões, da Argélia, de 10, 8 milhões para 35,4
milhões e da Líbia, o país menos povoado apesar da sua enorme extensão
territorial, em que a população quintuplicou alcançando 6,4 milhões, em
2010, quando era apenas de 1,3 milhões em 1960. Relativamente à segunda
região, podemos destacar os casos da Arábia Saudita e do Iémen, países
exportadores de petróleo: no mesmo período, a população da primeira
mais do que sextuplicou, passando de 4 milhões para 26,2 milhões; por sua
vez, no país governado até aos inícios de Junho de 2010 por Ali Abdulah
Saleh esta mais do que quintuplicou, atingindo 24,3 milhões em 2010
1
Fontes: Pech, Thierry – “Monde arabe: les ressorts de la révolte”, Alternatives Economiques, Paris, Março 2011, p. 30;
Teson, Nuria – “La primavera egípcia se congela”, El País: Negócios, Madrid, 5.06.11, p. 24.
13
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
quando possuía apenas 5,2 milhões em 1960, o que, tendo em conta os
elevados níveis de pobreza, transforma-o numa autêntica ‘bomba demográfica’. Fora do mundo árabe foi também impressionante o crescimento
demográfico do Irão cujos habitantes mais do que triplicaram no mesmo
período atingindo 75,1 milhões em 20102.
Uma das principais consequências do elevado crescimento demográfico no mundo árabe é a elevada percentagem de jovens entre 15 e 25 anos
na população da generalidade dos países tanto do norte África como no
Médio Oriente. Este ‘rejuvenescimento’ foi acompanhado pela queda da
taxa de analfabetismo que se tornou um fenómeno minoritário entre os
mais jovens. Se Marrocos têm ainda uma taxa de analfabetismo de 30%
e o Egipto de 15% nesta faixa da população, os seus valores são substancialmente mais baixos na Argélia (8%), na Síria (6%), na Tunísia (4%),
e puramente residuais na Líbia, onde atingem apenas 1%. Paralelamente,
cresce significativamente a percentagem das pessoas inscritas nas universidades no total da população jovem com valores que oscilam entre os 10% de
Marrocos, os 30% da Tunísia, do Egipto e da Argélia e da Arábia Saudita,
os 50% da Líbia, dos territórios palestinianos ocupados e do Líbano e os
60% dos Emirados Árabes Unidos. Esta explosão do ensino universitário
está associada à difusão das ligações com a Internet que deram um importante contributo para a difusão das redes sociais que estiveram na origem
das revoltas de que resultaram a queda dos regimes autoritários de Ben Ali
e Hosni Mubarak. No entanto, esta requalificação da juventude não tem
sido acompanhada pela melhoria das condições de vida, já que não apenas
a taxa de desemprego dos jovens no Norte de África e no Médio Oriente
ultrapassa os 30%, mas também, se exceptuarmos a Líbia, a parte da população que vive no limiar da pobreza é extremamente elevado, destacando-se
Marrocos, com cerca de 25%, o Egipto e a Argélia, em que esta se aproxima
dos 50% e o Iémen com mais de 50% de pobres3.
Embora se possam encontrar causas específicas para explicar o aumento
da pobreza nos diversos países da região, o fenómeno tem uma raiz comum
2
Pech, Thierry, ibidem, p.31.
3
Fontes: Gresh, Alain – “Ce que change le réveil árabe”, Le Monde diplomatique, Paris, Março 2011, p. 15; Sachs,
Jeffrey – “Los jovenes inquietos del mondo arabe”, El País: Negócios, Madrid, 10.04.11, p. 24.
14
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
no Norte de África tanto nas repúblicas autoritárias do Egipto, da Argélia e
da Tunísia, como na monarquia marroquina. De um modo geral, o crescimento económico elevado até 2008 não conseguiu compensar a explosão
demográfica ‘acumulada’ nos últimos 40 anos, apesar deste fenómeno
tender a esbater-se cada vez mais no futuro. No entanto, este evento não é
por si só suficiente para interpretar adequadamente o aumento das desigualdades sociais. O maior país da região, o Egipto, continua a ser o modelo
e paradigma de um processo de liberalização económica que, iniciado pelo
presidente Anwar al-Sadat nos anos 80, acabou por estender-se a outros
países da região, de que se destacou, por exemplo, a Argélia, em que o
modelo económico desenvolvimentista das chamadas ‘indústrias industrializantes’ se revelou um fiasco total. Este processo assinalou, como refere
Hazem Kadil, a ruptura com o ‘contrato social’ nasseriano dos anos 50
do século passado em que “o regime oferecia educação gratuita, emprego
num sector público em expansão, tratamentos de saúde a preços acessíveis, habitação a baixos preços e outras formas de protecção social, em
troca de obediência”4. A infitah [abertura económica] sadatiana, apesar de
fomentar o investimento estrangeiro no país e romper com o nacionalismo económico pan-arabista do regime do coronel Nasser, iniciou um
processo, a que Hosni Mubarak deu seguimento, caracterizado pela subida
da taxa de desemprego acima da média mundial, fuga de cérebros, fluxos
emigratórios crescentes, manutenção de elevadas taxas de analfabetismo
na população rural, gigantescos bairros de lata, baixo poder de compra
e aumento das camadas da população que não beneficiam de nenhuma
espécie de protecção social.
O fenómeno da infitah não foi, porém, uma característica específica do
Egipto, mas um fenómeno transversal que, com a excepção da Líbia de
Khadafi, influenciou o Norte de África e as petromonarquias do Golfo
Pérsico, tanto mais que o Egipto, pela sua dimensão e o seu enorme peso
simbólico no mundo árabe e muçulmano, foi, é e continuará a ser a nação
precursora das grandes transformações económicas, sociais e políticas
na região, seja qual for o sentido destas. Tanto os países produtores de
petróleo, como os outros apostaram num modelo económico liberal em
4
Kandil, Hazem – “Revolt in Egipt”, New Left Review, Londres, Março/Abril 2011, p. 17.
15
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
que não apenas a intervenção estatal na economia foi drasticamente reduzida, mas também em que as funções sociais do Estado nasseriano foram
desmanteladas. Este modelo económico foi sustentado pela aposta no
imobiliário de luxo e no turismo, na grande distribuição comercial e na
banca, ou seja, pelo investimento em sectores improdutivos. Os anos 90 do
século passado assistiram à difusão do telemóvel, ao investimento nas telecomunicações, a uma vaga de privatizações de serviços públicos e à difusão
de parcerias público-privadas, de que se destacam os contratos tipo BOT
[Build Operate Transfer], um contrato de locação que permite delegar
concessões a investidores privados por um determinado período de tempo5.
Apesar da aposta na telemática, de resto um pouco a reboque do que se
passava no resto do mundo, se ter virado inesperadamente contra os regimes
ditatoriais, em consequência da difusão das redes sociais que estiveram na
origem da mobilização dos jovens opositores aos regimes de Ben Ali e de
Hosni Mubarak, bem como das grandes manifestações da praça Tahrir que
precederam a queda do regime autoritário egípcio e cujas repercussões ultrapassaram a capital cairota, influenciando movimentos juvenis nos países da
Europa do Sul, o modelo económico dominante é, fundamentalmente, um
modelo ‘rentista’ centrado numa oligarquia financeira que utiliza as receitas
provenientes do petróleo ou de outras fontes para aplicá-las em operações
imobiliárias, comerciais e bancárias, de que o chamado ‘milagre do Dubai’
com as suas mega-extravagâncias imobiliárias constitui o exemplo paradigmático. Um modelo deste tipo não apenas não gera emprego qualificado, o
que explica a fuga de cérebros e o descontentamento dos jovens licenciados
relativamente às suas perspectivas de emprego futuro, mas também acaba
por reproduzir-se tanto à custa de um sector informal de ‘pequenos trabalhos’ que emprega cerca de um terço da população activa, como na base de
contratos de trabalho precário sem segurança social e sem direitos sindicais.
Apenas no sector público e na administração existe uma certa estabilidade
de emprego e é preservado um mínimo de direitos sociais. No entanto,
este sector tem tendência a restringir-se cada vez mais em consequência do
reforço das políticas neoliberais. Uma das principais consequências destas
5
Ver: Corm, Georges – “L’unité retrouvée des peuples arabes”, Le Monde Diplomatique, Paris, Abril 2011, pp. 17 e 22;
Aita, Samir – “Abattre le pouvoir pour libérer l’État”, Le Monde Diplomatique, Paris, Abril 2011, pp. 20-21.
16
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
políticas é a redução e mesmo o desmantelamento do embrião de Estado
social construído na época de Nasser. Muitas das suas funções passaram
a ser desempenhadas pelos grupos islamitas que criaram uma espécie de
‘sociedade-providência’ que substituiu um Estado cada vez mais autoritário
e corrupto nos apoios sociais aos mais desfavorecidos. Eis a razão pela qual a
economia no mundo árabe acaba por se transformar em política.
A questão política
As repúblicas autoritárias do Norte de África e do Médio Oriente, que
já foram designadas perspicazmente pelo termo ‘repúblicas hereditárias’,
com a Síria e o Egipto como exemplos emblemáticos, têm o seu contraponto
nas monarquias absolutas, de que se destacam as petromonarquias do Golfo
Pérsico e a monarquia marroquina, que atravessa um processo de reforma
constitucional. Nas segundas não existe separação entre poder religioso e
poder político. Basta pensar que o rei de Marrocos, Mohamed VI, antes da
aprovação da nova Constituição era considerado pessoa sagrada – passará
apenas a ser ‘inviolável’ –, mas permanecerá líder espiritual e principal
responsável pela política religiosa. Na Arábia Saudita existe uma polícia
de costumes dependente do monarca que aplica os preceitos rigoristas da
sharia, de modo que, ao contrário do que já sucede em Marrocos, não existe
autonomia da esfera privada relativamente à hegemonia da esfera religiosa
que é ‘pública’. Todas as tentativas de criação de monarquias constitucionais e de partidos políticos têm sido reprimidas nas monarquias do Golfo
– a invasão consentida do Bahrein pela Arábia Saudita é uma prova disso
–, de modo que estas se mantêm como tiranias toleradas pelo Ocidente e
pelos Estados Unidos, tendo em conta a sua importância estratégica para a
preservação do acesso a essa fonte de energia fundamental que continua a
ser o petróleo6.
6
Relativamente à Arábia Saudita, chave da Pax Americana na região, o conservador Center for Strategic and International Studies
não revela a menor dúvida. Pouco importa a natureza do regime desde que os interesses estratégicos norte-americanos sejam assegurados no xadrez político regional em que o Irão se está a transformar numa potência emergente
‘ameaçadora’: “Este país [Arábia Saudita] é tão indispensável à estabilidade da região como à economia mundial.
Ryad desempenha um papel de contrapeso essencial perante um Irão radical e agressivo; está na origem do plano de
paz da Liga árabe com Israel; e tornou-se um parceiro vital na guerra contra o terrorismo. A estratégia americana
no Médio Oriente repousa inteiramente na presença de um regime benevolente na Árabia Saudita” (Cordesman,
Anthony – “Pourquoi le royaume est stable”, Courrier International, Paris, 10.03.11, pp. 18-19.
17
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
Em Marrocos, a revisão constitucional aprovada em 1 de Julho com
uma esmagadora maioria de 98%, apesar de reforçar os poderes do presidente do Governo [primeiro-ministro] na determinação da política de um
Executivo com base parlamentar, na convocação e presidência do Conselho
de Ministros por delegação do rei e na partilha com o monarca do direito
de dissolver o Parlamento, mantém ainda em mãos de Mohamed VI,
importantes poderes: para além do ‘poder espiritual’ de Comandante dos
Crentes, cabe ao monarca a gestão da política dos negócios estrangeiros,
a autoridade sobre as forças armadas e o aparelho de segurança e a possibilidade de poder decretar unilateralmente o estado de emergência7. Nas
primeiras eleições legislativas após a aprovação da nova constituição, a vitória
coube aos islamitas do Partido para a Justiça e Desenvolvimento (PJD) que
obtiveram 27% dos sufrágios, seguindo-se-lhes o Istiqlal, centrista nacionalista, com 15,18% e o Agrupamento Nacional de Independentes, partido
laico, com 13,16%. À esquerda, a União Socialista das Forças Populares
conseguiu apenas eleger 39 deputados em 395, o que equivale a 9,8% dos
votos expressos.
As repúblicas autoritárias, que têm estado na origem do tsunami social
e político que submerge o mundo árabe, centram-se, com a excepção da
Líbia do coronel Khadafi, como veremos mais à frente, numa estrutura
triangular de poder que, no Egipto e na Tunísia, começa a ser posta em
causa com a queda dos presidentes Ben Ali e Mubarak, mas que ainda
se mantém na Síria de Bashar al-Assad: o partido único – casos do
Partido Nacional Democrático (PND), no Egipto, do Rassemblement
Constitutionel Democratique (RCD), na Tunísia, e do Partido Baas, na
Síria –, o exército e os serviços de segurança. Os chefes de Estado, que
são simultaneamente líderes do partido único, delegam nos militares
de alta patente a direcção dos serviços de segurança que desempenham
as missões de ‘intelligence’ e controlam diariamente as actividades dos
cidadãos. Quando os serviços de segurança entram em crise, como aconteceu no caso do Egipto e da Tunísia, os outros dois pilares do poder
instituído são arrastados, com particular destaque para o partido único
7
Ver: Cembrero, Ignacio – “El rey Mohamed VI de Marrocos deja de ser ‘sagrado’ en la nueva Constitución”, El
País, Madrid, 11.06.11, p. 6; Lorena, Sofia – “O palácio está a ouvir a rua?”, Pública, Lisboa, 12.06.11, pp. 36-44.
18
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
e a oligarquia privada dos negócios que entretecem relações que tornam
muito ténue a distinção entre riqueza pública e enriquecimento privado.
No entanto, com as revoltas populares o exército tende a destacar-se dos
serviços de segurança e a transformar-se em garante da transição para uma
nova ordem em que seja preservada a laicidade do Estado, não havendo,
portanto, um isomorfismo entre estes dois vértices do ‘triângulo’ tradicional do poder8.
Uma das consequências mais importantes da dissolução do ‘contrato
social’ nasseriano e da política de liberalização mercantil encetada por
Sadat foi o esvaziamento das políticas sociais que teve como contrapartida a difusão do islamismo político que substituiu o nacionalismo laico
pan-arabista que, após a morte de Nasser, entrou numa decadência irreversível. Enquanto o laicismo era representado pelos partidos únicos
das repúblicas autoritárias e pela Frente da Libertação Nacional (FLN)
argelina, organização envolvida na luta de libertação nacional contra o
domínio colonial gaulês, a Organização da Conferência Islâmica (OCI)
nos anos 70 do século passado foi a principal incentivadora do islamismo
na sua vertente mais conservadora, o wahabismo, a que se juntou a ditadura
militar paquistanesa de Zia ul Haq que derrubou e executou o Presidente
Ali Bhuto. Nos finais dos anos 80, estas duas fontes do islamismo político na sua versão mais tradicionalista e intolerante foram particularmente
activas, juntamente com os Estados Unidos, no financiamento e no apoio
aos jihadistas contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Paradoxalmente, são
estas correntes que, com a derrota das tropas soviéticas no Afeganistão e o
derrube do regime militar afegão apoiado pela ex-União soviética retomam,
sob uma linguagem islamizada, a retórica anti-imperialista do ‘socialismo
árabe’ do período precedente, pretendendo retirar dividendos políticos
das revoltas no mundo árabe, como é confirmado por esta passagem de
um artigo do Inspire, jornal jihadista on line em língua inglesa, eventualmente
ligado à organização da al-Qaeda da Península Arábica (AQAP) com sede
no Iémen: “As revoluções que estão a abalar os tronos dos ditadores são
boas para os muçulmanos, boas para os mujahideen e más para os imperia8
Ver: Kawakibi, Salam; Kodmani, Bassma – “Les armées, le peuple et les autocrates”, Le Monde Diplomatique, Paris,
Março 2011, pp. 11-12.
19
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
listas do Ocidente e os seus homens de mão no mundo muçulmano”9.
Entre as organizações islamitas destaca-se a Irmandade Muçulmana
egípcia que se estendeu também à Síria de Hassez al-Assad. Opositora do
regime laico de Nasser que a reprimiu ferozmente, esta foi essencialmente
construída como um movimento conservador em que a política surgiu
subordinada à religião e que visava a islamização das instituições culturais egípcias e a defesa da sharia como princípio orientador da legislação.
O seu programa resumia-se na palavra de ordem “o Islão é a solução”.
No entanto, por razões tácticas ou por um desejo efectivo de mudança
ou de adaptação aos novos tempos, parece ter iniciado um processo de
renovação ideológica que culminou, em finais de Abril de 2010, na constituição do Partido da Justiça e da Liberdade que concorrerá às eleições
para a Assembleia Constituinte egípcia. Apesar de não esclarecer se abandonava a sua posição sectária e misógina sobre a proibição da candidatura
de um cristão e de uma mulher à Presidência da República, nem se exigirá
a aplicação da sharia, não se considera um partido religioso, mas uma organização política “civil com uma referência religiosa”10, comprometendo-se
a respeitar a Constituição egípcia que proíbe slogans religiosos.
Na Tunísia, destaca-se o partido islamista En Nahda (Renascimento),
dirigido por Rachid Ghannouchi. Ilegalizado por Ben Ali, o seu líder, que
o fundou há 30 anos com outro nome, sofreu duas penas de prisão e trabalhos forçados – a primeira e a segunda em 1987 – que lhe valeram mais de
três anos de cárcere. Exilado em Londres em 1991, Ghannouchi estudou
teologia na universidade de Tunes, filosofia em Damasco, frequentando
também a Sorbona, em Paris, apesar de ter escolhido, como outros adversários do regime de Ben Ali, a capital londrina como local que lhe permitiu
escapar às perseguições da ditadura do RCD. Retornado à Tunísia após a
9
The Economist, Londres, 2. 04. 2011, p. 22. Os partidários de Zia ul-Haq no Paquistão alinham pelo mesmo
diapasão como se pode depreender por estas declarações de Hamid Gul, o homem que chefiava os serviços secretos
paquistaneses durante a ditadura militar. Em entrevista ao jornal El País, quando lhe perguntam se a morte de Bin
Laden vai enfraquecer a al-Qaeda responde: “Podem dizer que conseguiram [os Estados Unidos e a NATO], mas
na minha opinião apenas reavivaram a lenda de Osama. O jihadismo internacional não vai desaparecer. Por detrás
dos levantamentos árabes – que o mais provável é conduzirem a um sentimento de frustração –, vai retornar a
filosofia da al-Qaeda. Já se sente a sua presença na Líbia, Chade, no Magreb, no Iémen, na Somália e estão a
avizinhar-se de Israel e do Egipto. Agora a Al-Qaeda vai conseguir mais seguidores em todo o mundo” (Espinosa,
A – “«Mientras sigamos sometidos a EEUU, continuará la violência»”, El País, Madrid, 14.05.11).
10
Tesón, Nuria – “Los islamistas de Egipto forman un partido politico”, El País, Madrid, p. 11.
20
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
queda da ditadura, onde foi calorosamente recebido pelos militantes da
sua organização política, tem dado diversas entrevistas a publicações europeias de referência e participado em congressos sobre o islamismo. Numa
entrevista ao jornal El País de 29 de Maio de 2011, Ghannouchi considera o
Partido turco da Justiça e da Liberdade como sistema de referência. O líder
islamita afirma respeitar o “estatuto pessoal” que consagra desde 1956 uma
certa forma de igualdade entre homens e mulheres na Tunísia, condena a
tortura, o extremismo e o terrorismo. O seu objectivo é “converter Tunes
num modelo que conjugue Islão e modernidade”, pois “o exemplo que
não deve ser seguido é a Argélia com todos os erros que foram cometidos
há 20 anos”11. No entanto, esta ‘conjugação’ levanta algumas dúvidas, se
tivermos em conta outra entrevista concedida ao jornal suíço Le Temps em
6 de Fevereiro de 2011 onde considera que “a laicidade pretende que
estamos ligados às coisas deste mundo cá de baixo e apela a um desenvolvimento económico e da equidade que não tem em conta a religião”. Esta
observação, apesar de aparentemente ser uma crítica ao modelo económico dominante que tem multiplicado as desigualdades sociais, revela
que o islamita tunisino continua, se bem que de forma mais sub-reptícia
que no passado, a rejeitar, de certo modo, a laicidade e o secularismo. De
resto, o En Nahda está a confrontar-se actualmente com uma corrente
salafista muito activa entre os jovens, o partido Hiz al-Tahir, que não foi
legalizado e cujos dirigentes defendem a criação de um califado islâmico e a
abolição dos partidos políticos. Segundo o semanário Courrier International de
12 de Março de 2011, os salafistas têm desenvolvido uma intensa actividade
centrada em slogans sectários e anti-semitas e atacado os estabelecimentos
que vendem bebidas alcoólicas e as mulheres que não usam véu12.
No Egipto, o salafismo político é representado fundamentalmente pelo
Al-Gamaa al-Islamiyia e Al-Jihad. Estes dois grupos optaram pela luta
armada contra o regime político egípcio deposto e uma brigada da Jihad
esteve envolvida no atentado de que resultou a morte do presidente Sadat.
A sua ideologia original é fundamentalista, já que consideram que a democracia é incompatível com o Islão, defendem a abolição da Constituição,
11
Cembrero, Ignacio – “Mi sueño es conjugar Islam y modernidad”, El País: Domingo, Madrid, 29.05.11, p. 8.
12
Basly, Rajaa – “Jusqu’où iront les islamites”, Courrier International, Paris, 12.03. 11, p. 38.
21
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
do Parlamento e das eleições e visam restabelecer um Califado que reúna
todos os muçulmanos. No entanto, os militantes dos dois grupos que se
encontravam nas prisões de Mubarak fizeram um acordo com o regime
deposto em que se comprometiam a renunciar à violência, o que lhes valeu
a libertação. Actualmente, o seu principal dirigente, Abboud Al-Zumar,
um coronel dos serviços secretos egípcios que foi um dos principais
responsáveis do planeamento do atentado contra Saddat, o que lhe valeu
uma pena de trinta anos de prisão, declarou à imprensa que o salafismo
político aceitará a democracia e respeitará os compromissos internacionais
do Egipto13. Inflexão táctica ou conversão real à democracia dependerão
da correlação de forças políticas e, particularmente, do sucesso das forças
laicas e sobretudo de um modelo de desenvolvimento orientado para a
redução das desigualdades e iniquidades sociais, fontes do extremismo e da
violência política.
A característica política comum dos dois países que iniciaram a ‘Primavera
árabe’ é a grande debilidade dos partidos laicos, a qual, se estende, de
resto, à generalidade das nações islâmicas, com particular destaque para a
Síria, em que a principal força de oposição ao regime de Bashar al-Assad
é a Irmandade Muçulmana. No Egipto, destaca-se a Frente Democrática
dirigida por Mohamed el-Baradei, organização política de inspiração
liberal que tem como sistema histórico de referência o Wafd, o partido do
nacionalismo liberal sob a monarquia egípcia. Os partidos de inspiração
socialista e social-democrática são praticamente inexistentes, enquanto as
organizações de inspiração comunista, de que se destaca o Partido Nacional
Progressista Unionista ou Tagammu, fundado por Khaled Mohieddin,
seguiram, nos últimos anos, principalmente sob a liderança do seu novo
líder, Refat al-Saed, uma política de acordo tácito com o regime de Mubarak
com o argumento de que os islamitas constituíam o inimigo comum, o
que contribuiu para o seu enfraquecimento. Na Tunísia, foi lançado o
movimento Pólo Democrático Modernista (PDM), em que se integra o
Partido Comunista tunisino, que tem como objectivo formar uma frente
de partidos laicos para enfrentar o En Nahda de Ghannouchi nas eleições
para a Assembleia Constituinte. De um modo geral, apesar da ‘Primavera
13
Fonte: Kandil, Hazem, New Left Review, Londres, Março/Abril 2011, pp. 52-53.
22
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
árabe’ se ter iniciado como um movimento laico, o islamismo político tem
recuperado posições e desmentido as previsões de todos os que – e não
foram poucos – previam que seriam ‘varridos’ da cena política14. Prova
disso é que no referendo organizado pelo Conselho Militar supremo para
alterar a Constituição egípcia legada pelo regime de Mubarak, mantém-se
o artigo 2º em que a sharia continua a ser a base da legislação. Na primeira
volta das eleições egípcias para a câmara baixa (Assembleia do Povo), que
abrangeu as principais zonas urbanas do país, os islamitas obtiveram uma
vitória esmagadora repartida pelo Partido da Justiça e da Liberdade, braço
político da Irmandade Muçulmana com 36,68% dos votos e pelos integralistas salafistas do Al Nur que obtiveram 24,36% dos sufrágios. Por sua
vez, na Tunísia nas eleições de Outubro para a Assembleia constituinte,
o En Nahda conseguiu obter 41,7% dos sufrágios, o que equivale a 90
deputados em 217, o triplo da formação política que ficou em segundo
lugar, o Congresso para a República (CPR), partido laico que representa
a esquerda nacionalista. A grande distância ficaram os restantes partidos
laicos: o Ettakol, de esquerda, com 21 deputados, a Petição Popular (PP)
de Hechmi Haadami, figura ligada ao anterior regime, com 19 deputados,
o Partido Democrático Progressista (PDP), centrista, com 17 deputados e
o PDM que obteve apenas 5 deputados. Isto significa que a estratégia do
PDM falhou, pois o voto nos partidos laicos acabou por se pulverizar, o
que contribuiu necessariamente para a vitória dos islamitas do En Nahda.
Tudo aponta para que as ‘revoluções árabes’ tenham contribuido efectivamente para o ‘tsunami’ islamita.
A questão étnico-confessional: da Síria ao Iémen
No mundo árabe podemos distinguir dois tipos de nações: as nações
com uma forte unidade nacional, de que se destacam o Egipto, a Tunísia e
Marrocos, e as que se caracterizam por divisões étnico-confessionais, como
o Iraque, a Síria, a Líbia, o Iémen e o Bahrein. Com a excepção do Iraque
invadido pelos Estados Unidos e transformado num Estado formalmente
democrático com uma componente étnico-confessional aparentemente
14
“Post-revolutionary Tunisia: Moving ahead”, The Economist, Londres, 16 de Julho de 2011, p. 41-42.
23
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
estabilizada, mas que pode ‘implodir’ em qualquer momento, este segundo
grupo de países está actualmente no centro das insurreições contra os
governos autoritários republicanos e monárquicos no Norte África e no
Médio Oriente. Entre eles, destaca-se a Síria que é, simultaneamente, a
chave da estabilidade e do statu quo no Médio Oriente, pelo que o estabelecimento da democracia no país governado pela família Assad constitui um
processo complexo que deverá ter em conta uma multiplicidade de variáveis que nada tem a ver, como alguns apressadamente adiantaram quando
os efeitos da ‘Primavera’ tunisina e egípcia começaram a repercutir-se noutros países das duas regiões, com a desagregação, seguida de uma
rápida conversão à liberal democracia, dos Estados da Europa de Leste que
se integravam na esfera de influência da União Soviética.
Após a queda do regime de Hosni Mubarak, a Síria constitui o modelo e
paradigma das repúblicas autoritárias do mundo árabe. Todos os elementos
que no Egipto e na Tunísia foram derrubados pelos movimentos pró-democracia permanecem incólumes ainda na Síria: o partido único, o
Baas, um presidente, Bachar al-Assad que sucedeu ao pai Hafez al-Assad,
o exército, cujas cúpulas são controladas por elementos próximos do presidente ou pelos seus aliados, e a polícia secreta, a Mujabarat, dividida num
complexo sistema de departamentos e subdepartamentos que exerce um
controlo minucioso sobre a sociedade civil síria. Este aparelho de segurança é, de certo modo, omnipresente, já que uma rede de agentes cobre
todo o país. Tal como sucedia nos países da Europa de Leste e no Portugal
do pré-25 de Abril, uma parte desta rede é constituída por ‘profissionais’
especializados na repressão, com um estatuto de ‘funcionários públicos’,
enquanto a outra parte consiste em informadores contratados, ou seja, em
mercenários pagos para delatar o mínimo sintoma de descontentamento
e oposição ao regime. Segundo as organizações defensoras dos direitos
humanos, a Síria é um dos países em que mais se pratica a tortura, estimando-se que em 30 anos teriam desaparecido dezassete mil pessoas. O
país constitui também um mosaico étnico-confessional. Governado pela
minoria alauita, de confissão xiita, a que pertence o grupo dirigente, 75%
da população síria é sunita. A Síria possui ainda minorias cristãs, drusas e
curdas cujos direitos têm sido preservados, por razões tácticas, pelo regime
da família Assad, como contraponto ao predomínio social do sunismo.
24
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
Alguns dados podem fornecer-nos um retrato do regime sírio. O pai
de Bashar al-Assad, o coronel Hafez al Assad, conquistou o poder em 1971,
derrubando um frágil regime derrotado pelas tropas beduínas do rei Hussein
da Jordânia após o ‘Setembro Negro’ que tinha culminado com a expulsão
da OLP da Jordânia. Em 1979, o tratado entre o Egipto de Anwar al-Sadat
e Israel rompeu a unidade pan-arabista. Apesar de ser um regime laico, a
Síria de Hafez al-Assad aliou-se ao regime teocrático de Khomeini, que tinha
derrubado o Xá Reza Palavi. Formou-se assim um novo eixo contra Israel e os
Estados Unidos que destronou a hegemonia de um Egipto cada vez mais dependente da ajuda norte-americana no mundo árabe. Durante a invasão israelita
do Líbano nos anos 80 do século passado, a Síria não apoiou, porém, a OLP,
mas o Hezbolah, o Partido de Deus, que resultou de uma cisão do partido xiita
libanês Amal. Actualmente, este é uma força hegemónica no seio da população
muçulmana do Líbano, partilhando o poder político com os representantes de
outras confissões e sendo patrocinado pelo Irão e pela Síria. O conflito com
o ramo sírio da Irmandade Muçulmana marcou a primeira metade dos anos
oitenta do século passado. A lei 49 de 7 de Julho de 1980 estipulava a pena
capital a todos os que não renunciassem por escrito à sua filiação na Irmandade
Muçulmana. Em Fevereiro de 1982, um levantamento na cidade de Hama foi
ferozmente reprimido. A cidade foi arrasada pelos tanques e artilharia sírios
que fizeram entre 15 e 20.000 vítimas. Segundo o jornalista britânico Robert
Fisk, a intervenção do exército foi precedida por actos de violência dos islamitas que massacraram famílias inteiras de responsáveis do Partido Baas15.
Outra característica do regime sírio foi o longo estado de emergência.
Estabelecido pelo golpe de Estado militar de 1963, foi levantado em 19 de
Abril de 2011. Na prática, foi imposto por uma ordem militar decretada
pelo Conselho Nacional de Revolução e não pelo Conselho de Ministros.
Durante mais de 30 anos, o Governo impôs o controlo da correspondência,
das publicações e de todos os meios de expressão antes da sua publicação, a
evacuação ou isolamento de determinadas regiões, a limitação dos horários
de abertura dos locais públicos ou o seu encerramento, a confiscação de bens
mobiliários e imobiliários, a restrição da liberdade de reunião, residência,
circulação e de passagem de pessoas em determinados lugares e em determi15
Ver: Fisk, Robert – “Trente ans de terreur”, Courrier International, 31.03.11, Paris, pp. 17-18.
25
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
nadas horas, a prisão preventiva de suspeitos ou de indivíduos considerados
uma ameaça à ordem e seguranças públicas e a autorização para investigar
todas as pessoas suspeitas em qualquer lugar e em qualquer momento. Como
a prisão preventiva não estava submetida a nenhum limite temporal, multiplicaram-se os tribunais de excepção em que os cidadãos, para além de não
conhecerem o conteúdo das acusações, não tinham direito a organizarem
a sua defesa e a recorrerem das decisões. O estado de emergência pôs em
causa o artigo 3º da Constituição da Síria que declara que “ninguém pode
ser torturado física ou mentalmente ou ser tratado de forma humilhante”16.
Apesar do levantamento do estado de emergência, a insurreição contra o
regime alauita de Bashar al Assad generalizou-se praticamente a todo o país.
Iniciada na cidade Síria de Deraa, esta estendeu-se até á fronteira norte do país
com a Turquia, com particular destaque para a martirizada cidade sublevada de
Jisr al Shugur, violentamente reprimida, tal como Hama, pelo exército e a artilharia síria. A rebelião síria já provocou milhares de vítimas, aumentando dia
após dia o número de refugiados que atravessa a fronteira síria em direcção à
Turquia. A repressão brutal, apesar das usuais reacções de indignação da comunidade internacional, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, não suscitou,
como na Líbia, nenhuma ‘guerra humanitária’ contra o regime sírio, o que mais
uma vez demonstra que não são, de facto, as intenções humanitárias que estão na
origem das intervenções bélicas das potências ocidentais, mas o peso estratégico
de um país no contexto regional. Neste sentido, a Síria de Bashar al-Assad não se
pode comparar à Líbia do coronel Khadafi, apesar desta ser uma grande produtora de petróleo. De facto, o risco de fragmentação e desmembramento da Síria17
pode desencadear uma situação incontrolável de guerra de todos contra todos e
16
Ver: Raee, Al – “Quarante-huit ans d’état d’urgence”, Courrier International, Paris, 31.03.11, p. 18.
17
Apesar da violenta repressão do regime militarista centrado no Partido Baas de Bashar el Assad e da guerra civil, que é
actualmente uma triste realidade, a situação na Síria não pode ser analisada de modo simplista. De facto, o exército, tal como
no Egipto, continua a ser a única instituição que garante a laicidade, enquanto a Irmandade Muçulmana síria, financiada
pela Arábia Saudita, tem contribuído decisivamente para polarizar as tensões e para alimentar a guerra civil. Defendendo,
tal como a sua homóloga egípcia, um Estado islâmico centrado na sharia, não pode jamais ser considerada uma alternativa ao
regime de Bashar el Assad. Se é verdade que o regime tem apresentado a ameaça islamita como pretexto para o desencadeamento da repressão e do morticínio, também é verdade que, para alguns, o perigo da constituição de um regime teocrático
islamita seria catastrófico tanto relativamente ao respeito dos direitos das minorias étnicas e confessionais, como representaria uma regressão brutal do modo de vida na Síria. Prova disso são as considerações de um analista político pertencente
à minoria drusa, recolhidas pela jornalista Angeles Espinosa, enviada especial do jornal El País em Damasco: “Certamente
que é necessária uma mudança política. Necessitamos de liberdade de imprensa, de partidos políticos para acabar com a
corrupção”. Acrescenta, porém, que o islamismo político não é a solução, já que “sob este regime posso beber uma cerveja
numa esplanada, ter uma namorada e declarar-me ateu sem que ninguém me possa fazer nada” (El País, 20. 11. 2011).
26
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
pôr em causa o statu quo numa região em que uma nova potência, o Irão, tende a
aumentar a sua influência e em que os Estados Unidos, apesar dos esforços do
Presidente Obama, se revelam cada vez mais impotentes para gerir os tradicionais
equilíbrios centrados na Arábia Saudita e no Egipto de Hosni Mubarak, principal destinatário da ajuda norte-americana no mundo árabe.
A Líbia é um país com uma organização política significativamente diferente
do Egipto, da Tunísia e da Síria. O regime do coronel Khadafi resultou de um
golpe de Estado militar que, em Setembro de 1969, derrubou a monarquia.
Nesta data, o país, apesar da sua extensão territorial, possuía apenas 2 milhões
de habitantes – actualmente tem cerca de 6 milhões – e era uma sociedade tribal
constituída por 75% de beduínos. Num congresso realizado em Maio de 1973,
Os novos dirigentes instauraram uma República árabe que tinha como objectivo consagrar o “poder do povo”, apesar de um ano antes, graças à lei nº17,
ter sido abolido o pluralismo, condição fundamental da democracia, já que foi
proibida a criação de partidos políticos. Nasceu assim a autodenominada União
Socialista Árabe que visava constituir uma espécie de ‘terceira via’ entre o capitalismo e o comunismo. Ao contrário do que acontece no Egipto, na Tunísia
e na Síria, o Presidente da República deu lugar ao ‘guia’, representado pelo
coronel Khadafi. Os partidos políticos são substituídos pelos comités populares que dirigem a administração. Em 1977, a direcção colegial do Conselho
de Comando da Revolução foi abolida. Em 2010, o coronel nomeou o filho
Saïf al-Islam ‘coordenador dos poderes populares’ preparando a transformação
da Líbia numa república hereditária, à semelhança da Líbia de Hafez al- Assad
e do Egipto de Hosni Mubarak. Na prática, a Líbia permaneceu uma sociedade arcaica, composta por 140 tribos – 85% dos habitantes pertence a uma
tribo, enquanto 15% não tem filiação – em que não existe verdadeiramente uma
sociedade civil e um Estado, como sucede no Egipto, na Tunísia e também na
própria Síria. O poder do ‘guia’ tinha como centro a cidade de Sirte, a 500
quilómetros de Tripoli, a capital, e como base a tribo Khadafia e a região da
Tripolitânia. Em contrapartida, os Zuwayya, uma das principais tribos da outra
região líbia, a Cirenaica, constituíram o núcleo da revolta contra o regime autoritário tribalista do coronel Khadafi e da sua prole18.
18
Fontes: Khechana, Rachid – “Soulèvement contre la bedouinocratie et son chef”, Le Monde diplomatique, Paris,
Abril 2011, pp. 18-19; Friedaman, Thomas L. – “L’eterna guerra tra clan rivali dietro la rivolta contro il colonello”, La Repubblica, Roma, 24.03.11, p. 19.
27
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
A intervenção da NATO na Líbia, apesar dos seus pretensos argumentos
humanitários, correu o risco de provocar a fragmentação do país, incentivando
a secessão da Cirenaica, numa situação que apresenta grandes semelhanças
com o Kosovo, actualmente modelo e paradigma do que se poderia designar
por ‘Estado falhado’. Para além da justificação para a intervenção militar não
ser convincente – O regime líbio ‘dispara sobre o seu povo’ foi o argumento
central quando outros regimes, como o da Síria, o do Bahrein e do Iémen,
fazem o mesmo e não são alvo do mesmo tratamento bélico ‘humanitário’ –,
não se conhece ainda verdadeiramente que forças de oposição representa hoje
o Conselho Nacional de Transição (CNT), apoiado pela NATO e que hoje
é a base do governo provisório líbio, presidido por Abdel Rahim al-Kib. É,
no mínimo, bizarro que em 17 de Junho de 2010 o ministro dos Negócios
Estrangeiros italiano, Franco Frattini, tenha assinado com o anterior presidente do CNT, Mustafá Abdel-Jalil, um acordo para prevenir a imigração
ilegal para Itália, quando este personagem não dispunha ainda de nenhuma
legitimidade política, já que não poderia ser considerado sequer chefe de
um governo provisório no exílio. De resto, a própria legitimidade da intervenção militar ocidental foi posta em causa por personagens insuspeitas,
de que se destaca Michael Walzer que, juntamente com outros intelectuais
norte-americanos, de que se destacaram Fukuyama e Michael Novak, apoiou
a doutrina da ‘guerra contra o terrorismo’ de George W. Bush numa “Carta
da América, as razões de uma luta”, publicada no jornal gaulês Le Monde de
14 de Fevereiro de 2002. Para este filósofo norte-americano, autor de uma
distinção pouco convincente entre ‘guerras justas’ e ‘guerras injustas’, não é
respeitada a “primeira regra do intervencionismo democrático” que consiste
em “não tentar ressuscitar um movimento de oposição que é incapaz de
suportar autonomamente os seus objectivos no terreno”19.
A queda e a execução sumária do coronel Kadhafi não se pode dizer que
tenha aberto ainda perspectivas para o estabelecimento da democracia na Líbia.
Antes de tudo, o próprio CNT é não apenas esmagadoramente composto por
membros provenientes de uma das regiões do país, a Cirenaica, mas também, de
certo modo, atravessado pelas divisões políticas, étnicas e tribais que caracterizam
19
Walzer, Michael – “«Questa volta è un errore»”, La Repubblica, Roma, 24.03.11, p. 45. Resta perguntar, se a
doutrina da ‘guerra contra o terrorismo’ também não foi um erro ainda maior.
28
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
o país. A principal é, certamente, a que opõe os democratas laicos aos islamitas,
de que se destacam os jihadistas, como o Grupo Islâmico dos Combatentes
Líbios e a própria Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI). O armamento dos
revoltosos por parte da NATO tem contribuído para favorecer estes grupos que
poderão contribuir para a desestabilização da Argélia, que sofreu uma violentíssima guerra civil, mas também da Tunísia, se o conflito durar muito mais tempo
ou se conseguirem, apesar da probabilidade não ser muito elevada, conquistar o
poder. Outro perigo é a divisão do país que poderá ter consequências funestas
sobre outros países limítrofes, em particular no Chade e no Níger, muito dependentes do regime do coronel Kadhafi, mas também na Mauritânia, em que os
tuaregues poderão seguir o ‘exemplo líbio’ e rebelar-se contra os respectivos
governos centrais com o objectivo de exigirem a sua autodeterminação. O CNT,
apesar do reconhecimento da chamada ‘comunidade internacional’ e sobretudo
da Grã-Bretanha, França, Itália e Estados Unidos, países que apoiaram a intervenção da NATO, já revelou a sua impotência no caso do assassinato do chefe
militar do Estado-Maior das forças rebeldes, Abdel Fattah Younes, que continua
envolto no mais denso mistério. Não se sabe ao certo qual a representatividade efectiva deste órgão e existem sérias dúvidas, apesar das promessas tanto do
Presidente Abdel Jalil como do anterior primeiro-ministro Mahmoud Jibril, de
que não haverá retaliações e execuções sumárias, tal como as que foram cometidas pelas tropas do coronel Kadhafi. Como se verificou, estas promessas foram
desmentidas na prática pela bárbara execução do coronel filmada em directo pelas
câmaras dos telemóveis dos ‘justiceiros’ islamitas. Por fim, não restam dúvidas de
que a ‘variável’ petróleo teve um papel determinante no desenlace do conflito.
Apesar da retórica humanitarista das potências intervenientes, o primeiro acto do
novo regime líbio, que adoptou a bandeira da monarquia derrubada pelo coronel
como símbolo da nova nação, foi a distribuição pelas grandes companhias petrolíferas britânicas, francesas, italianas e norte-americanas das concessões para a
exploração do ouro negro na Líbia pós-kadhafiana, como moeda de troca do
apoio militar concedido aos rebeldes pelos seus países de origem20.
20
A propósito desta vergonhosa hipocrisia que, sob a retórica humanitarista, esconde poderosos interesses
económicos, são válidos os argumentos do dramaturgo austríaco Peter Handke: “As democracias actuais podem
comportar-se, para além das suas fronteiras, como se fossem ditaduras. As democracias actuais, na realidade,
são as novas ditaduras, as ditaduras humanitárias e económicas: o mais hipócrita que existe. Vivemos numa
época de hipocrisia total, antes era a violência pura e dura que dominava, mas agora estamos perante uma
violência açucarada, não menos brutal” (“El País”, Babelia, 5. 11. 11, p. 4).
29
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
Outro país em revolta é o Bahrein. Esta monarquia do Golfo Pérsico
que é governada pela família real Al Khalifa de confissão sunita e pertencente à tribo dos Anizah e dos Utub tem, no entanto, uma população
maioritariamente xiita, o que a torna um peão no jogo geoestratégico da
região. Prova disso, foi a intervenção de tropas da Arábia Saudita no país
com o argumento de que a insurreição da população contra a monarquia
absoluta tinha sido promovida pelo Irão. No entanto, este argumento
não tem nenhuma legitimidade, já que a revolta popular não é de natureza confessional, pois junta tanto xiitas como sunitas na reivindicação de
reformas que acabem com o monopólio do poder da família reinante e
conduzam à realização de eleições democráticas. Deve ter-se em conta que
os Al Khalifa são proprietários privados de uma grande parte do país, não
existindo verdadeiramente distinção entre domínio público e domínio
privado. De facto, num país constituído por 33 ilhas não existe livre acesso
ao mar, porque a maior parte das zonas costeiras são de domínio privado.
Vinte por cento do território conquistado ao mar resultou de investimentos em empreendimentos imobiliários no comércio e no turismo uma
grande parte dos quais pertence à família reinante. Condição necessária
para a formação da democracia é não apenas a transformação desta monarquia absoluta em monarquia constitucional, mas o fim da promiscuidade
pré-moderna entre domínio público e domínio privado21.
Outro foco de rebelião no Médio Oriente é o Iémen do Presidente
Ali Abdulah Saleh. Esta república situada no sudeste da península arábica,
delimitada a norte pela Arábia Saudita e a oeste pelo Oman, é uma sociedade tribal e um dos santuários mais importantes da Al-Qaeda. Apesar
de ser um exportador de petróleo e de gás natural, o Iémen é o país mais
pobre do Golfo Pérsico com quase 40% da população situada abaixo do
limiar de pobreza. O presidente Saleh, que é membro da tribo Hashed,
a mais influente, governou o país durante mais de 30 anos. Uma rebelião xiita a norte e uma insurreição separatista a Sul, promovida ao que
tudo indica sob a influência da AQPU, o ramo da Al-Qaeda na península arábica, corre o risco de contribuir para a desintegração do país. As
forças do xeque Sadeq al Ahmar, que pertence à mesma tribo de Saleh,
21
Ver: Hadidi, Shobi – “Un problème de corruption avant tout”, Courrier International, Paris, 12.03.2011, p. 36.
30
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
revoltaram-se contra o presidente que, ferido nos combates, se refugiou
na Arábia Saudita, sendo substituído pelo Presidente interino Abd-Rabbu
Mansour Hadi, em 5 de Junho de 2011. Apesar deste ter solicitado uma
trégua à oposição com a promessa de retirar as tropas das ruas de Sanaa
e de se ter comprometido a negociar uma transição política que ponha
termo ao longo consulado de Saleh, a situação de guerra civil está longe
de se encontrar resolvida. O retorno de Saleh ao Iémen após o seu curto
‘exílio’ na Arábia Saudita, reforçou a reivindicação de eleições democráticas, que, como nos outros países submersos pela ‘Primavera Árabe’,
esteve na origem da rebelião. O Presidente iemenita não hesitou em
ordenar às forças repressivas sob o seu comando que disparassem sobre os
manifestantes num conflito em que se combinam divisões tribais e o aproveitamento da situação de iminente caos político pela Al-Qaeda. O Iémen
pode transformar-se num ‘Estado falhado’ com o risco de uma parte do
país poder vir a ser controlada por esta organização extremista. Eis como
a queda de Ben Ali e de Hosni Mubarak desencadeou no mundo árabe e
muçulmano um conjunto de transformações que pôs em causa os equilíbrios estratégicos em que se baseavam os regimes autoritários. No entanto,
o estabelecimento da democracia, sobretudo nos países em que existem
divisões étnico-confessionais e em que o extremismo islamita procura uma
oportunidade para se reforçar cada vez mais e ensaiar experiências de instituição de califados, é um problema muito mais complexo do que se pensava
quando a ‘revolução dos jasmins’ estalou na Tunísia.
O plano estratégico
As revoltas árabes e a exigência de democracia que lhes está associada
não podem ser separadas de um triângulo geostratégico que define a sua
especificidade relativamente a outros eventos, como a queda do Muro de
Berlim, onde alguns, numa primeira abordagem apressada, insistiram
em tentar descobrir analogias sem nenhum fundamento, tanto mais que
a transição para a democracia dos países europeus integrados na esfera do
‘socialismo real’ se realizou, com a excepção da Polónia, de forma relativamente pacífica. Os vértices deste triângulo são constituídos pelas reservas
de petróleo no norte de África e sobretudo no Médio Oriente, pelo
31
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
conflito israelo-palestiniano e pela emergência do Irão como potência
regional. As relações que se estabelecem entre estes três vértices tornam a
situação na região particularmente delicada e, sobretudo no caso da Síria,
mesmo explosiva, sendo os resultados imprevisíveis, se tivermos em conta a
ascensão das organizações e movimentos islamitas na Tunísia e no Egipto.
As reservas petrolíferas transformam a Arábia Saudita e as outras
monarquias do Golfo Pérsico a que se juntou o Iraque pós-Saddam
Hussein em centros estratégicos prioritários para os Estados Unidos e
a Europa Ocidental que, apesar da difusão de outras fontes de energia,
continuam com economias fortemente dependentes do consumo intensivo do ‘ouro negro’. Isto explica que os Estados Unidos, que são ainda
os maiores consumidores mundiais de hidrocarbonetos, embora a China
diminua cada vez mais a distância procurando parcerias em outras zonas do
globo ricas em petróleo, possuam no Golfo Pérsico uma grande multiplicidade de plataformas estratégicas, de que se destacam bases aéreas, navais
e de informação, postos avançados no Iraque e uma forte influência nos
aparelhos de segurança no Egipto, na Jordânia, em Marrocos e mesmo no
Iémen, em consequência da forte presença da Al-Qaeda neste país. A estabilidade dos fornecimentos de petróleo e também de gás natural constitui,
por conseguinte, uma necessidade imprescindível para o funcionamento
das economias capitalistas desenvolvidas que já enfrentaram nos anos 70
do século passado dois choques petrolíferos e se encontram actualmente
imersas numa crise global em que o aumento dos preços do petróleo, como
consequência inevitável da especulação no mercado das matérias-primas
alimentada pela instabilidade na região, constitui uma importante variável
geoestratégica. O dado novo é que o apoio aos regimes tirânicos do Golfo
Pérsico, de que se destaca a Arábia Saudita, já não é por si só suficiente,
pois um novo actor, o Irão, ameaça romper os equilíbrios tradicionais que
garantiam a hegemonia norte-americana na região.
A emergência do Irão e a difusão do xiismo, paradoxalmente potenciada
pela invasão norte-americana do Iraque, país cuja população segue maioritariamente esta confissão, dividiu a região em dois grandes blocos: dum
lado, os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), de que fazem
parte a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo; do outro, o eixo
hegemonizado pelo Irão, a que se juntam o Iraque xiita e sobretudo a Síria.
32
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
O confronto entre estes dois blocos é indubitavelmente o novo dado estratégico que põe definitivamente em causa todas as análises simplistas que
atribuíam ao ‘imperialismo’ norte-americano, com o seu apoio a Israel e
as suas bases militares e aéreas na região, a principal causa que impedia uma
alternativa aos conflitos, bloqueamentos e injustiças sociais e políticas nesta
região tão martirizada22.
O novo contexto tem na Síria o seu núcleo. A revolta generalizada contra
o regime de Bashar al-Assad desencadeou um processo de consequências
imprevisíveis. Apesar da legitimidade inequívoca das reivindicações da
oposição que visam acabar com o monopólio do poder do Partido Baas, a
formação de um governo de transição e a realização de eleições democráticas, a divisão étnico-confessional do país torna a situação social e política
no plano estratégico bem mais complexa do que na Tunísia e no Egipto.
Um eventual desmembramento e fragmentação da Síria poderão criar uma
situação de caos e conflito generalizados, potenciando movimentos secessionistas, tentativas de aproveitamento do CCG, com a Arábia Saudita na
‘vanguarda’, de reforçar a sua esfera de influência à custa do outro eixo
e a contra-resposta do Irão que não ficará impávido e sereno a assistir à
contracção do seu espaço estratégico. Antes de tudo, os curdos, minoria
presente no norte da Síria, sentir-se-ão cada vez mais encorajados, como
o exemplo iraquiano já o demonstrou, a realizar o sonho de formação de
um Estado curdo, que a Turquia não aceitará. Os sauditas já apoiam e
não deixarão de apoiar o ramo sírio da Irmandade Muçulmana e outros
movimentos islamitas sunitas para tentarem alterar uma correlação de
forças que lhes é cada vez mais desfavorável desde que o xiismo aumentou
a sua influência na região, como o prova o falso pretexto da invasão do
Bahrein. Em contrapartida, o Irão não poderá aceitar na Síria um regime
de inspiração sunita que significará um recuo brutal da sua influência na
região. Por fim, o triunfo de um regime sectário na Síria porá em causa
os direitos das minorias cristãs, drusas, curdas e judaicas que o regime de
Bashar al-Assad e do seu pai tem, por razões tácticas relacionadas com a
necessidade de manter aliados contra a maioria sunita, preservado.
22
Esta é a tese de Perry Anderson. Ver: Anderson, Perry – “On the concatenation in the arab world”, New Left Review,
Londres, Março/Abril, 2011, p. 7.
33
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
O conflito israelo-palestiniano completa este quadro preocupante. A
intransigência israelita e dos grupos fundamentalistas islâmicos directa e
indirectamente envolvidos no conflito, sobretudo o Hamas e o Hezebolah
libanês que recusam reconhecer o Estado judaico, tem impedido o avanço
de um compromisso político que conduza à formação de um Estado palestiniano. O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, para além de
ter encarado com grande cepticismo a queda do regime de Hosni Mubarak
que, apesar da sua retórica pró-palestiniana, constituía um defensor do
statu quo que favorecia os interesses do Estado israelita na região, manifestou-se tanto contra o acordo de reconciliação, mediado pelo Egipto
pós-mubarakiano, entre a Fatah e o Hamas, como contra a posição do
Presidente norte-americano Barack Obama que, de forma inédita e corajosa, defendeu que o Estado judaico devia regressar às fronteiras de 1967,
respeitando a Resolução 242 da ONU que abre perspectivas à formação
de um Estado palestiniano e à resolução do problema dos refugiados. O
acordo, que deverá ter como contrapartida o reconhecimento explícito
do Estado de Israel pelo Hamas, constitui uma condição essencial para a
formação de um Estado palestiniano verdadeiramente independente que
não seja uma espécie de ‘Bantustão’ rodeado por check points israelitas por
todos os lados e despojado de um mínimo de autonomia no plano económico e político. A posição do Presidente norte-americano, para além de ter
suscitado uma reacção conservadora do poderoso lobby pró-israelita norte-americano que se tem caracterizado como um dos principais obstáculos
ao reconhecimento dos direitos dos palestinianos na região, desencadeou
um conjunto de iniciativas por parte do Governo de Netanyahu com vista
ao seu boicote internacional. Em 10 de Junho de 2010, o jornal israelita
Haaretz publicou uma série de mensagens secretas enviadas pelo Governo
judaico aos seus embaixadores em que se defendia como “objectivo básico”
persuadir o “máximo número de países” a opor-se ao “reconhecimento do
Estado palestiniano”. Foi-lhes recomendado uma linha de argumentação
de que um reconhecimento em Setembro deste Estado pela ONU “viola o
princípio de que a única via para resolver o conflito passa por negociações
bilaterais”23. No entanto, apesar das inúmeras negociações bilaterais, Israel
23
Fonte: El País, Madrid, 11.06.2011.
34
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
não tem cessado de construir novos colonatos na Cisjordânia, inviabilizando, de facto, a possibilidade de construção de um Estado palestiniano.
Os cenários possíveis
O futuro é imprevisível, apesar das promessas e dos bons augúrios
dos primeiros tempos em que alguns pensavam que as nações árabes em
revolta transitariam de uma forma indolor para a radiosa democracia. No
entanto, como tentámos demonstrar, este optimismo tem sido desmentido pela incógnita que constitui hoje a Líbia pós-kahdafiana – país em
que, segundo a ONU, não existe ainda nenhum controlo sobre a circulação de armas muitas das quais podem cair em mãos de grupos islâmicos
integralistas –, a Síria, o Bahrein e o Iémen. Por sua vez, a crise actual das
economias egípcia e tunisina constitui um obstáculo à transição democrática, já que pode contribuir para agravar os problemas sociais e defraudar
as expectativas de uma melhoria das condições de existência que estiveram
na origem da queda do regime de Hosni Mubarak. A vitória dos islamitas
do En Nahda na Tunísia, apesar da promessa de respeitar a democracia,
suscita preocupações nas forças laicas que não esquecem a sua postura intolerante no passado na esfera dos costumes e o seu desejo irreprimível de
instaurar a sharia, o que contrasta nitidamente com o seu discurso moderado actual, visto por alguns como uma mera inflexão táctica24. Por sua
vez, a reforma constitucional de Marrocos, apesar de reflectir a correlação de forças na região, revela-se manifestamente insuficiente. Como já
24
Em entrevista ao jornal El País, dois democratas tunisinos, Gaddes e Zhgridi, não acreditam na rápida conversão à
democracia do partido islamita: “Recordo o discurso do En Nahda nos anos 80. Nada tinha a ver com o actual. Não
acredito que possam mudar tão radicalmente. Procuram ser populares para conseguir mais votos. É legítimo suspeitar
que quando estiverem na Assembleia se afastem do discurso moderado.”
“Perante vocês, jornalistas, fazem-se passar por cordeirinhos, porém formulam os seus verdadeiros propósitos nos
comícios, na sua imprensa e nos meios de comunicação em árabe. Torna-se claro que a médio e a longo prazo querem
instaurar a sharia” (Cembrero, Ignacio – “Tunéz: laicos frente a barbudos”, El País: Domingo, Madrid, 29.05.11, p.9).
Mais recentemente, já após as eleições para a Assembleia Constituinte, verifica-se que estas preocupações têm algum
fundamento. Assim, apesar da promessa de fidelidade à democracia e à laicidade de Ghannouchi (ver entrevista ao Le
Monde de 29 de Outubro de 2011), o aspirante a primeiro-ministro do En Nahda, afirmou que “estamos a viver um
momento histórico, divino, entramos no sexto califado”. Mais grave ainda é o risco que correm Nabil Karui, proprietário
de Nessna, a principal televisão privada do país, e os seus colaboradores, de serem condenados a três anos de prisão, por
terem sido denunciados por 140 advogados que partilham a ideologia islamista. O seu ‘crime’ foi o de “atentar contra os
valores sagrados, os bons costumes e alterar a ordem pública” por terem ‘ousado’ projectar o filme de animação Persépolis
sobre a revolução iraniana em que Deus é representado sob a forma de um ancião de cabelo branco sem barba (Fonte:
Cembrero, Ignacio – “Las provocaciones islamitas inquietan a los laicos de Tunes”, El País, 19.11.11, p. 4)
35
MUNDO ÁRABE EM REVOLTA
referiram os jovens do Movimento 20 de Fevereiro, o procedimento para
alterar a Constituição do reino não foi genuinamente democrático, pois
resultou de uma comissão nomeada pelo rei e não da eleição por sufrágio
universal de uma Assembleia Constituinte. Além do mais, exigem que
“o rei reine, mas não governe”25, opondo-se ao controlo dos aparelhos
de segurança por Mohamed VI e ao direito de decretar unilateralmente
o estado de emergência que lhe permitirá concentrar, de novo, todos os
poderes. Marrocos, apesar dos seus avanços, encontra-se ainda muito
distante da institucionalização de uma monarquia parlamentar segundo o
modelo europeu.
Tendo em conta a imprevisibilidade da situação social e política no
norte de África e no Médio Oriente poderemos distinguir três cenários. O
primeiro é o cenário mais pessimista, mas que constitui, infelizmente, uma
possibilidade em aberto: ‘débâcle’ das economias egípcia e tunisina, divisão
da Líbia após a queda de Khadafi, implosão da Síria com a consequente
guerra de todos contra todos, incapacidade dos norte-americanos gerirem
os equilíbrios estratégicos na região de que resultará uma ascensão do islamismo radical, um reforço da Al-Qaeda no Iémen, uma desestabilização
do Iraque, a que se juntará uma tentativa de formação de um Estado curdo
a que a Turquia se oporá violentamente. Irão e Arábia Saudita tentarão
neste contexto preservar ou alargar a sua esfera de influência. As soluções
autoritárias reforçar-se-ão, Israel usará como pretexto a instabilidade na
região e o possível reforço do eixo iraniano para impedir a formação de
um Estado palestiniano independente e os Estados Unidos não terão outra
alternativa senão preservar o que restar do statu quo anterior, apoiando
os seus tradicionais aliados contra o expansionismo iraniano e tentando
impedir o fortalecimento da Al-Qaeda na península arábica, no Iraque e
a sua incursão numa Síria transformada numa espécie de novo Líbano. As
intervenções militares das potências ocidentais e, em particular, dos Estados
Unidos, poderão multiplicar-se em consequência do caos geoestratégico
resultante da desintegração da Síria e da Líbia, o sistema de bases norte-americanas aéreas, navais na Arábia Saudita reforçar-se-á, a democracia
tornar-se-á uma miragem, o fundamentalismo islamita fortalecer-se-á
25
Cembrero, El –“La protesta árabe aceleró la reforma”, El País, Madrid, 18.06.11, p.3.
36
e os palestinianos verão, mais uma vez, adiada a possibilidade de constituírem um Estado independente. As ameaças de bombardeamento das
instalações nucleares por parte de Israel com o apoio dos Estados Unidos,
para além de demonstrarem que os norte-americanos continuam a seguir
uma política desastrosa na região, contribuem ainda mais para aprofundar
a instabilidade política e social e se forem concretizadas transformá-la-ão
num barril de pólvora que não tardará a explodir.
O segundo cenário é um pouco mais optimista do que o anterior, mas
preservará, no essencial, a situação anterior à eclosão da ‘Primavera árabe’.
Este caracterizar-se-á, fundamentalmente, pela formação na Tunísia e,
sobretudo, no Egipto de uma democracia tutelada pelos militares como
contrapeso à ascensão do islamismo político, que obteve uma vitória esmagadora na primeira volta das eleições egípcias para a Assembleia do Povo.
Neste contexto, manter-se-ão os poderes clientelares tradicionais, será
reintegrada no aparelho de Estado uma parte das figuras pertencentes aos
partidos dos presidentes derrubados que conseguiram oportunamente
fazer o seu ‘aggiornamento’, os aparelhos de segurança, polícia e serviços
secretos, adquirirão uma nova face, mas conservarão uma parte substancial
do seu poder repressivo de controlo sobre a vida dos cidadãos. O modelo
económico tradicional manter-se-á e as desigualdades sociais continuarão
a aumentar. O descontentamento e a revolta social não cessarão, o que
implicará muito previsivelmente o reforço dos movimentos islamitas e o
aumento do seu peso político, o enfraquecimento das organizações políticas laicas com um programa orientado para as questões da justiça social
que continuarão a ser monopolizadas pelos islamitas e o ressuscitar do
estado de emergência quando a situação económica e social atingir níveis
de conflitualidade que não possam ser geridos pelos tradicionais métodos
policiais repressivos.
O terceiro cenário – puramente hipotético – poderá ser designado por
democracia alargada. No plano político, uma transição para a democracia
com base na eleição por sufrágio universal de uma assembleia constituinte;
formação de um sistema pluripartidário centrado na limitação do poder
do Presidente da República ou do Rei e de um sistema eleitoral que garanta
uma verdadeira representatividade; uma legislação baseada em princípios
laicos e, complementarmente, uma distinção clara entre a esfera pública
37
e a esfera privada no que respeita à religião; institucionalização de uma
efectiva liberdade de opinião e de associação, integrando-se nesta última
não apenas a constituição de partidos políticos, mas também a formação de
sindicatos independentes e democráticos. Este conjunto de transformações democráticas deve também estender-se ao Irão, país em que surgiu,
em 2009, um forte movimento de contestação, entretanto sufocado, à
reeleição do Presidente Ahmadinejad e ao regime teocrático dos ayatollahs.
O plano político não pode, porém, ser separado do plano social e económico sem o qual a democracia se tornará cada vez mais formal e vazia de
sentido. Tal implica, antes de tudo, o fim dos privilégios dos grupos dirigentes e da promiscuidade entre a esfera pública e a esfera privada que
geram enriquecimentos ilícitos, sustentam a acumulação de uma parte
significativa da riqueza nacional em clãs, famílias e clientelas em que se
concentra o poder político e económico. Mas esta transformação apenas
poderá ter sucesso se for construído um novo modelo económico que
garanta emprego e desenvolvimento e contribua para a redução das desigualdades através do reconhecimento de direitos sociais básicos garantidos
pelo Estado. Apenas uma democracia com dimensão social poderá satisfazer
as expectativas geradas pela ‘Primavera árabe’ e abrir um novo capítulo não
apenas na história da região, mas também na história mundial, provando
definitivamente que os povos árabes estão maduros para se emanciparem
das tutelas políticas autoritárias e teocráticas que condicionaram durante
muitos anos a sua liberdade e autodeterminação.
38
40
Tunísia, Egipto:
que modelos para as transições no mundo árabe?
Virginie Collombier
D
esde 14 de Janeiro de 2011, parece evidente que a fuga para a
Arábia Saudita do Presidente tunisino Zine El Abidine Ben
Ali, expulso do poder por quatro semanas de protestos populares, terá um impacto no conjunto do mundo árabe. Pela
primeira vez, o povo tunisino provou que os árabes não estão irremediavelmente condenados à apatia política, que um movimento social pode nascer
e rapidamente alcançar uma extensão que lhe permita mobilizar uma
grande parte da população e provocar a queda dum regime autoritário.
Os tunisinos demonstraram que é possível recusarem submeter-se a dirigentes considerados ilegítimos e corrompidos, que é possível dizer ‘não, já
basta’. Para todos os povos da região, mas também para os seus dirigentes,
o impacto deste acontecimento é considerável, especialmente no plano
psicológico: o medo acaba de mudar de campo. Para os primeiros, o que
era até aqui apenas um sonho fora de alcance surge doravante na ordem do
possível. Para os segundos, uma corrida contra o tempo desencadeia-se:
estes vão tentar desmobilizar a contestação contra eles a montante, antes
que esta se amplie e se transforme em ameaça para o seu poder.
Com efeito, muito rapidamente a queda de Z. Ben Ali provoca uma vaga de
imitação nos países vizinhos. No Egipto, o movimento de contestação começa em
25 de Janeiro de 2011 por manifestações organizadas no Cairo e noutras grandes
cidades do país. Adquire progressivamente amplitude, o Presidente Mubarak e o
seu círculo mostram-se incapazes de gerir a crise. Para os manifestantes reunidos
na praça Tahrir do Cairo, transformada no epicentro da contestação no país,
não se trata de obter menos do que os seus vizinhos tunisinos: Hosni Mubarak
deve partir. Isso acontecerá em 11 de Fevereiro, logo que o presidente se demite e
cede o poder ao Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA).
Nas semanas que se seguem, será a vez da Líbia, do Iémen, do Bahrein,
depois a Síria de se inflamarem. Ali, no entanto, contrariamente ao que se
passou na Tunísia e no Egipto, os dirigentes resistem (por vezes com a ajuda
41
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
de regimes amigos, como por exemplo no Bahrein, em que os sauditas não
hesitam em enviar as suas próprias tropas para reprimir os manifestantes) e
o confronto entre as partes (manifestantes contra forças de segurança ou, em
maior grau, forças favoráveis ao regime contra forças hostis ao regime) assume
um aspecto particularmente violento e mortífero. A contestação dura, alarga-se, por vezes sob novas formas, sem que os opositores aos regimes instalados
consigam derrubar estes últimos nem forçar a entrada na fase de transição
política a que aspiram os seus desejos1.
Neste contexto, seis meses após o sucesso das primeiras revoltas árabes, a
evolução na Tunísia e no Egipto – e, portanto, o modo como a transição ali é
gerida – servirá de exemplo na região2. Por agora ainda, em numerosos países, a
ausência de alternativa clara aos regimes instituídos e o medo do vazio – a repressão
levada a cabo por estes últimos conseguiu refrear grandemente a capacidade dos
movimentos de oposição para se estruturarem – o medo do desencadeamento
de um ciclo de violências incontrolável e o risco que uma situação de caos tenha
um impacto desastroso na situação económica constituem bloqueios poderosos
à acção dos que aspiram, no entanto, a uma mudança política. A capacidade
das novas elites no poder em Tunes e no Cairo em estabilizar a situação e em
responder às reivindicações dos cidadãos – reivindicações políticas, mas também
económicas e sociais – deveria, por conseguinte, desempenhar um papel determinante no futuro das transições políticas do mundo árabe. Ora se os regimes
tunisino e egípcio apresentavam importantes semelhanças na sua estrutura e no
seu funcionamento logo que foram ‘decapitados’3, a mudança política iniciada
nos dois países assumiu, em seguida, rapidamente formas diferentes, sob o
impulso de grupos de diversos actores, mais ou menos organizados e influentes.
1
Apenas em Marrocos, em que a contestação ameaçava igualmente ampliar-se, parece ter sido encontrado um
compromisso entre o poder e a maioria dos manifestantes. O rei Mohamed VI, iniciando uma reforma significativa
da constituição, parece ter conseguido, por agora, jugular a crise.
2
Isto é particularmente verdadeiro para o Egipto, em consequência do seu peso demográfico e político, mas
também simbólico.
3
Logo que a crise se desencadeia, nos finais de 2010 – inícios de 2011, o “sistema Ben Ali” e o “sistema Mubarak” assentam
globalmente nos mesmos principais pilares: a presidência, isto é, o próprio presidente e algumas personalidades de confiança
que o rodeiam, as forças do ministério da Administração Interna, em particular a polícia, bem como os principais dirigentes do partido presidencial (o Partido Nacional Democrático no Egipto o Agrupamento Constitucional Democrático na
Tunísia). Um certo número de homens de negócios, entre os mais poderosos, adquiriram, por outro lado, um papel central
no dispositivo do poder, seja pelas suas ligações pessoais com o presidente (por exemplo, Belhassen Trabelsi na Tunísia) ou
pelas responsabilidades que lhes foram confiadas no seio do partido presidencial (por exemplo, Ahmad ‘Izz no Egipto) ou no
governo. Ora tanto em Tunes como no Cairo, nenhuma destas três instituições se mostra capaz de gerir a contestação.
42
VIRGINIE COLLOMBIER
Forças ‘revolucionárias’ pouco estruturadas mas poderosas
Um movimento largamente espontâneo
As revoluções tunisina e egípcia apresentam características comuns, tais como
o lugar central ocupado no desencadeamento das manifestações por uma juventude até então não politizada, a relativa ausência de forças políticas estruturadas,
ou ainda a utilização da Internet enquanto instrumento principal de mobilização.
Assim, na Tunísia, o movimento contestatário é em grande parte espontâneo. As
organizações políticas4, sindicais e associativas são surpreendidas pelo arranque
do movimento, mas sobretudo pela sua amplitude e extensão rápida ao conjunto
das regiões do interior do país. Inicialmente, as manifestações inscrevem-se mais
no registo da contestação social do que no registo propriamente político; estas
adquirem frequentemente uma forma próxima do motim. Como sublinham
Vincent Geisser e Amin Allal, “os manifestantes são maioritariamente «jovens»
dos bairros populares, animados por um profundo sentimento de desclassificação e de indignidade. São estes últimos que são os motores dos movimentos
contestatários”5, à imagem de Mohamed Bouazizi, que se suicida pela imolação
em 17 de Dezembro de 2010. A politização apenas intervém progressivamente, à
medida que a contestação aumenta e que é ‘enquadrada’ por ‘profissionais’. Os
partidos tradicionais desempenham um papel real, mas limitado: os militantes
da Ettajdid e do Partido Democrata Progressista (PDP), por exemplo, participam
nas manifestações, mas não têm um papel de direcção política. Os advogados,
em contrapartida, que insistem na defesa das liberdades e denunciam as exacções
cometidas pelas forças de segurança, e sobretudo o sindicato único, a União Geral
dos Trabalhadores Tunisinos (UGTT), tornam-se rapidamente actores-chave do
movimento6. Assim, logo que a UGTT declara a greve geral em todo o país em 14 de
Janeiro, várias centenas de milhares de pessoas juntam-se em Tunes e gritam “Ben
Ali, vai-te embora!”. Na mesma noite, o presidente foge para a Arábia Saudita.
No Egipto, as considerações propriamente políticas desempenham provavel4
Nomeadamente as principais formações da oposição legal: Ettajdid (Renovação), o Partido Democrático
Progressista (PDP) e o Fórum Democrático pelas Liberdades e o Trabalho (FDLT). As formações islamitas nem
sequer estiveram presentes no arranque do movimento.
5
Amin Allal e Vincent Geisser, “Tunisie. Révolution ou intifada populaire?”, in Mouvements, Junho 2011, acessível
em http://www.mouvements.info/Tunisie-Revolution-de-jasmin-ou.html.
6
Sobre o papel da UGTT na revolução tunisina, ver nomeadamente Allal et Géiser, artigo citado.
43
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
mente um papel mais importante a partir do desencadeamento da contestação.
Esta última intervém num contexto muito específico, pouco mais de um mês após
as eleições legislativas marcadas por uma vitória esmagadora do Partido Nacional
Democrático (PND), e a alguns meses apenas das eleições presidenciais de 2011.
As eleições de Novembro/Dezembro de 2010 arrebatadas com mais de 86% pelo
PND, constituíram uma afronta demasiado grande para muitos egípcios, particularmente os jovens das classes médias e superiores, que suportam cada vez mais
dificilmente a humilhação que o regime lhes faz sofrer através destes resultados7.
A perspectiva da eleição presidencial fomenta, por outro lado, a cólera dos que
receiam que esta ocasião permita a Gamal Mubarak, o filho mais novo do Presidente,
suceder ao seu pai. Estes dois elementos, combinados com a forte degradação da
situação económica sentida por uma parte importante da população, formam
um terreno já muito propício à conflagração8. A revolução tunisina forneceu a
centelha. Como na Tunísia, porém, o desencadeamento do movimento não é
obra de partidos ou de grupos verdadeiramente estruturados. A primeira manifestação é assim organizada em 25 de Janeiro de 2011 em resposta ao apelo de uma
coligação de jovens bloguistas, muitos dos quais provêm do Movimento dos Jovens
de 6 de Abril9 ou do grupo Facebook ‘Nós somos todos Khaled Saïd’10, mas que
não estão envolvidos em partidos políticos. A confraria dos Irmãos Muçulmanos
também não está na origem do levantamento e não participa enquanto tal neste
desde o início11, mesmo se a sua decisão de juntar-se ao movimento tem imedia7
Enquanto a maior parte dos observadores esperavam que determinados partidos da oposição não islamita, nomeadamente
o Wafd, obtivessem um número significativo de mandatos no decurso deste escrutínio, o PND arrebata 420 mandatos em
508 a atribuir. Apenas 15 mandatos retornam à oposição, dos quais 1 aos Irmãos Muçulmanos (que tinham obtido 88
nas eleições de 2005). A atribuição de alguns mandatos é contestada perante a justiça, e os 70 mandatos restantes vão para
candidatos eleitos enquanto candidatos ‘independentes’, mas, na realidade, também estes frequentemente ligados ao PND.
Para mais pormenores sobre os resultados, ver, por exemplo, http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/0/1321/Egypt/0/
Official-rsults---opposition,---NDP,---independents.aspx ou http://www.ahram.org.eg/The-First/News/52164.aspx.
8
A partir da eleição presidencial de 2005, marcada pelas manifestações da plataforma de oposição Kefaya (‘Já
basta’), a contestação política foi quase permanente, apesar da sua baixa intensidade (as manifestações apenas
juntam raramente mais de algumas centenas de pessoas). Paralelamente, a partir de 2007, o país conheceu uma
vaga sem precedentes de greves e de movimentos sociais. As reivindicações políticas e sociais não se tinham contudo
verdadeiramente reencontrado, apesar das tentativas feitas neste sentido pelo Movimento de 6 de Abril. Ver infra.
9
Coligação de grupos de oposição, o Movimento dos Jovens de 6 de Abril nasceu em 2008 sob a forma de um
grupo Facebook apelando a uma greve nacional em 6 de Abril para apoiar os operários da cidade industrial de alMahala al Kubrâ. Desempenhou igualmente um papel importante na campanha de Mohamed al-Baradei.
10
Gupo criado no Facebook em homenagem a um jovem bloguista morto pela polícia em Alexandria em Junho de 2010.
11
Um certo número de Irmãos Muçulmanos fazem, em contrapartida, parte de diversas coligações, nomeadamente de
bloguistas, que estiveram na origem da mobilização iniciada em 25 de Janeiro.
44
VIRGINIE COLLOMBIER
tamente um impacto decisivo sobre a amplitude da mobilização. Por outro lado,
se o epicentro da contestação é a praça Tahrir do Cairo, o movimento não se
limita à capital. Nesta última, as classes médias são o seu motor principal, mas a
composição sociológica dos manifestantes varia em função dos locais de contestação. Outras grandes cidades, tais como Alexandria, Mansoura no delta, ou ainda
Suez, são com efeito o teatro de manifestações maciças, em que os operários se
revoltam em massa e são objecto de uma repressão feroz.
Uma tomada de consciência de alcance considerável
Nos dois países, a contestação assume grandemente a forma de uma busca,
nomeadamente da parte da juventude, para recuperar a dignidade e a sua honra
ultrajadas. A cólera dos ‘diplomados desempregados’ tunisinos repercute-se na
revolta dos jovens egípcios provenientes das classes médias que não suportam mais
serem humilhados pelo regime (tanto no que respeita às suas condições de vida
quanto ao funcionamento do sistema político). A maior parte dos jovens que
estiveram na origem do movimento de contestação não pertencem a nenhum
partido, não se envolvem em nome de uma ideologia ou de uma pertença política
específica. Para estes, a participação na contestação é o resultado duma tomada
de consciência: cabe-lhes a responsabilidade de tomar o seu destino em mãos, de
tomar a palavra, de não deixarem mais que lhes sejam impostas decisões tomadas
por outros. Para eles, manifestarem-se, é participarem, tornarem-se parte activa
na decisão, e não apenas concordarem com o que foi decidido por outros.
Esta tomada de consciência, que se manifesta em pleno dia no mês de
Janeiro, terá consequências políticas importantes para o futuro, tanto no
Egipto como na Tunísia. Os cidadãos sabem a partir de hoje que são capazes
de dizer ‘não’, de recusar que lhes sejam impostos ‘chefes’ ou decisões. E
é esta a sua grande conquista política. Em todos os sectores da sociedade
manifesta-se a mesma revolta contra os chefes, superiores, os mais velhos…
Testemunham-no – por exemplo – tanto a legitimidade posta em causa
permanentemente pelos actores da transição política da Tunísia, como a
rebelião de inúmeros jovens membros dos Irmãos Muçulmanos perante a
direcção da confraria12. Nos dois países, este novo estado de espírito não
12
No mês de Julho, diversos jovens membros dos Irmãos Muçulmanos foram excluídos da organização depois de terem decidido
não se integrarem no partido da Liberdade e da Justiça, proveniente da confraria, e criarem o próprio partido, a Corrente Egípcia.
45
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
deixou de ter consequências, nomeadamente em termos da capacidade
dos cidadãos em manter a pressão sobre as autoridades encarregadas da
transição política. A resignação já não é aceitável: os manifestantes estão
firmemente decididos a não abandonar as ‘conquistas’ da sua revolução,
a não renunciar aos seus objectivos. Assim, é porque estes são capazes de
(se) mobilizarem de novo logo que a necessidade se faz sentir que obtêm a
mudança do primeiro-ministro e do governo de transição (este foi o caso
da Tunísia e do Egipto), ou a abertura de processos contra os altos responsáveis do regime.
O papel determinante dos ‘pilotos’ da transição
Todavia, se a capacidade dos manifestantes em pressionar o poder
desempenha um papel central no desenvolvimento da transição, a identidade dos actores que se colocam como ‘pilotos’ desta última revela-se
igualmente determinante. Assim, se nos dois países as forças armadas são
os actores principais da revolução – a sua passagem para o lado dos manifestantes torna-se, com efeito, determinante para a queda de Z. Ben Ali
e de H. Mubarak –, estas distinguem-se pela sua atitude e a sua estratégia
diferentes na fase de transição (ilustrando desta forma o papel muito diferente desempenhado pelos militares nos dois países antes da revolução).
Enquanto o exército tunisino regressa às casernas logo após o estabelecimento das estruturas encarregadas da transição, os militares egípcios
perfilam-se como protectores dos interesses do país e como responsáveis
em última instância pela condução dos acontecimentos, e tal antes mesmo
que o Presidente Mubarak seja forçado a abandonar o seu cargo. Isto teve
um impacto decisivo no modo como as forças políticas e sociais que foram
motores da revolução se associaram ao processo de transição.
Na Tunísia, a difícil procura de um consenso político
Na Tunísia, não há inicialmente nem ruptura institucional nem
ruptura constitucional. No dia seguinte à partida de Ben Ali, o Conselho
Constitucional nomeia, com efeito, o presidente da Assembleia Nacional,
Fouad Mebazaa, presidente interino da República (em conformidade com
o artigo 57º da Constituição, que não foi suspensa). Em 17 de Janeiro,
um governo de união nacional é investido. Dirigido por Mohamed
46
VIRGINIE COLLOMBIER
Ghannouchi, que ocupava o cargo de primeiro-ministro desde 1999, este
é composto por personalidades provenientes de dois partidos da antiga
oposição (PDP e Ettjadid), mais seis ministros de Ben Ali são igualmente reconduzidos nas suas funções (nomeadamente, os da Defesa, dos
Negócios Estrangeiros, das Finanças e da Administração Interna)13. A ideia
consiste em apoiar-se nas instituições existentes para evitar o vazio, associando simultaneamente a sociedade civil ao novo poder sob uma forma
consultiva. A partir de meados de Janeiro, três comissões abertas à sociedade civil e, em princípio, compostas por personalidades apolíticas são
destes modo criadas por Ghannouchi: a Comissão Superior da Reforma
Política, a Comissão sobre as Exacções e a Repressão e a Comissão sobre os
Desfalques Financeiros.
Esta estratégia choca com a oposição das forças que permanecem fora do
governo, em grande parte reagrupadas no interior do Conselho Nacional
para a Protecção da Revolução (CNPR). Este último apoia-se em particular na central da UGTT, na Ordem dos Advogados, na Frente de 14
de Janeiro14, mas também na Frente Democrata para o Trabalho e as
Liberdades (FDTL) e no movimento islamita An-Nahda. Reclama um
papel deliberativo no período de transição, insistindo no facto de que a
sociedade civil e a rua devem ser consideradas não um simples contrapoder,
mas parte integrante do poder. A oposição que contesta a legitimidade do
governo em tomar decisões e se prevalece de uma legitimidade revolucionária, reclama que ao CNPR é atribuído um papel quase legislativo durante
a fase de transição, da mesma maneira que ao governo. Este último é finalmente obrigado a ceder depois de que uma manifestação convocada pelo
Facebook juntou perto de 100.000 pessoas contra o governo de transição.
Em 27 de Fevereiro, a demissão de Ghannouchi assinala a falência da ideia
de uma transição baseada na continuidade constitucional: em 3 de Março,
a Constituição de 1959 e a eleição de uma Assembleia Constituinte anunciada para 24 de Julho. A Comissão Superior da Reforma Política, ampliada
13
A partir de 27 de Janeiro, Ghannouchi deverá por isso proceder a uma remodelação. Este abrir-se-á aos ‘tecnocratas’ e reduzirá consideravelmente o número de ministros membros do RCD no seu seio.
14
Situada à esquerda do xadrez político, a Frente de 14 de Janeiro é maioritariamente composta por membros do
Partido Comunista e pelo Movimento dos Patriotas Democratas, que agrupa diversas organizações de esquerda e
nacionalistas árabes.
47
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
e transformada em instância superior para a realização dos objectivos da
revolução, da reforma política e da transição democrática15, torna-se ela
própria numa espécie de ‘mini-Parlamento’. Encarregada de redigir a
nova lei eleitoral16 e de organizar as eleições, esta desempenha desde logo
um papel importante na transição. Se este método não está evidentemente
isento de imperfeições e não deixa de suscitar críticas – nomeadamente
através da contestação da legitimidade dos membros da Comissão a fazerem
parte desta última17 – permite a inclusão de uma grande parte das forças
políticas e sociais no processo de transição, e confere uma representatividade fidedigna às autoridades de transição.
No Egipto, a tutela política das Forças Armadas
As coisas desenrolam-se de modo muito diferente no Egipto, essencialmente porque as forças armadas não se retiram do jogo político depois de
terem intervindo para ‘defender a revolução do povo’. A partir de 10 de
Fevereiro, logo que decide reunir-se em sessão permanente sem o Presidente
da República, o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) dirigido
pelo marechal Tantawi18 posiciona-se com efeito como responsável em última
instância pela segurança do povo egípcio e a protecção dos seus interesses,
anunciando assim o importante papel que se prepara para desempenhar na
transição. No seu primeiro comunicado oficial, o CSFA afirma apoiar “as
reivindicações legítimas do povo”, suscitando interrogações quanto ao estado
das relações entre a hierarquia militar e o Presidente, e sobretudo quanto à
natureza da sua intervenção (trata-se de um golpe de Estado?)19. Se Hosni
Mubarak declara no próprio dia que permanecerá no poder até Setembro
15
Constituída por um conselho de peritos composto por juristas e por um conselho de instância superior juntando
personalidades provenientes das forças sindicais, políticas e associativas (nele incluídas a UGTT, a Ordem dos
Advogados e o An-Nahda).
16
Adoptada por unanimidade em 12 de Abril, a nova lei eleitoral prevê nomeadamente o princípio da paridade homemmulher e a inelegibilidade de personalidades com responsabilidades no seio do RCD ou nos governos do Presidente Ben Ali.
17
No decurso dos meses, os ataques multiplicaram-se contra certas personalidades liberais membros da Comissão.
Verdadeiras campanhas que visavam manchar a sua reputação foram organizadas contra estas últimas, com a justificação, por exemplo, que se tinham anteriormente dirigido a Israel.
18
Hussein Tantawi ocupa então o cargo de ministro da Defesa.
19
Para a tradução em inglês dos primeiros comunicados do CSFA, ver, por exemplo, http://www.nytimes.com/interactive/2011/02/10/world/middleeast/20110210-egypt-supreme-council.html?ref=midleeast.
48
VIRGINIE COLLOMBIER
(data da próxima eleição presidencial20) e que é seu dever assegurar uma
“transição pacífica”, foi desmentido no dia seguinte pelo vice-presidente
Suleiman21. Este último anuncia, com efeito, que “o Presidente Mubarak
decidiu demitir-se das suas funções de Presidente da República e encarregou
o Conselho Supremo das Forças Armadas de gerir os assuntos do país”22.
No seu quarto comunicado, difundido em 13 de Fevereiro, o CSFA
torna públicas as principais decisões que vão orientar a transição no
período que se avizinha: 1) a constituição é suspensa; 2) o CSFA assegurará a gestão temporária do país por um período de seis meses ou até
que as eleições legislativas e presidenciais ocorram; 3) o presidente do
CSFA representará este último tanto internamente como externamente;
4) A Assembleia do povo e a Assembleia Consultiva são dissolvidas; 5)
O CSFA governará por decretos-leis durante o período transitório; 6)
um comité será formado com o objectivo de emendar um certo número
de artigos da constituição e organizado um referendo popular; 7) o
governo de Ahmad Shafiq continuará a trabalhar até que seja formado
um novo governo; 8) serão organizadas eleições legislativas e presidenciais. O objectivo da hierarquia militar é muito claramente o retorno
mais rápido possível à estabilidade e à ordem institucional. O processo de
reforma constitucional desenrola-se assim a uma grande velocidade com
uma grande opacidade. Em 19 de Março, foi organizado um referendo
popular. Os eleitores são solicitados a aprovar oito emendas à constituição
de 1971 suspensa em Fevereiro. A participação é importante e o escrutínio um sucesso para os militares (o ‘sim’ arrebata 77% dos votos). No
entanto, enquanto esta votação deveria conduzir à reactivação da constituição sob a sua forma emendada, o CSFA anuncia em 30 de Março que a
transição será regida por uma “declaração constitucional provisória”cujo
texto se revela diferente do que foi aprovado por referendo menos de
20
À qual anunciou alguns dias antes que não se apresentaria, tal como o seu filho Gamal, até então previsto como o
seu possível sucessor.
21
Omar Suleiman, antigo chefe dos serviços de informação, foi nomeado para este cargo a 29 de Janeiro. Esta nomeação foi interpretada como um gesto efectuado pelo presidente Mubarak com o objectivo de acalmar a contestação.
Este tinha com efeito recusado até ao momento nomear um vice-presidente.
22
Para uma tradução em inglês da alocução de Omar Suleiman, ver http://www.nytimes.com/2011/02/12/world/
middleeast/12-suleiman-speech-text.html.
49
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
duas semanas antes23. Esta declaração constitucional enuncia em particular a repartição das competências entre o CSFA e o governo e prevê um
calendário para a transição24. A eleição das duas câmaras do Parlamento
é desde logo chamada a intervir nos seis meses, isto é, daqui até ao fim de
Setembro de 2011.
Desde o início, os militares apenas deixam um espaço relativamente
limitado aos outros actores da revolução na gestão da transição. Estes estão,
por assim dizer, ‘sós nos comandos’. Mesmo se o CSFA consulta diversas
vezes os representantes dos partidos políticos legais e os diversos grupos
mobilizados na praça Tahrir, Irmãos Muçulmanos incluídos, a partir
de Fevereiro de 201125, as discussões conservam um carácter largamente
informal. No início do mês de Fevereiro, um ‘Comité de Sábios’ formou-se sob a iniciativa do homem de negócios Naguib Sawiris e Ahmad Kamal
Abu’l Magd, um professor de Direito Constitucional. Agrupando personalidades como Amr Moussa26, Nabil al-Arabi27 ou Nabil Fahmi28, este
comité ambiciona colocar-se como mediador entre os militares e os manifestantes e apresentar um ‘roteiro’ para a transição. Apesar das tentativas
encetadas neste sentido, nenhum mecanismo de consulta foi entretanto
institucionalizado entre o CSFA e os diversos partidos e grupos políticos.
No momento da redacção da declaração constitucional, o CSFA contenta-se em conduzir consultas ad hoc com determinados responsáveis políticos
seleccionados por ele. De modo geral, ignora os apelos para institucionalizar um processo de supervisão da transição incluindo o conjunto das
forças políticas ou instituir um ‘conselho presidencial’ composto por
personalidades civis provenientes de todas as formações políticas para o
23
Sobre esta questão, ver nomeadamente Nathan Brown, Kristen Stilt, “A haphazard constitucional compromisse” in
Commentary, 11 de Abril de 2011, disponível em http://www. carnegie.ru/publications/?fa=43533.
24
Texto disponível em http://egyptelections. Carnegieendowment.org/2011/04/01/supreme-council-of-thearmed-forces-constitutional-announcement.
25
E isto antes mesmo que Hosni Mubarak abandone o poder. Em 6 de Fevereiro, Omar Suleiman reencontra assim
representantes dos partidos da oposição legal e dos Irmãos Muçulmanos, os membros do comité dos sábios recentemente e os líderes da juventude.
26
Amr Moussa é ainda secretário-geral da Liga Árabe quando se junta ao comité.
27
Antigo juiz do Tribunal Penal Internacional e representante permanente do Egipto nas Nações Unidas.
28
Antigo embaixador nos Estados Unidos.
50
VIRGINIE COLLOMBIER
coadjuvar durante o período interino. Logo que um ‘diálogo nacional’
é instaurado sob a égide do novo primeiro-ministro no fim do mês de
Março29, a declaração constitucional já foi redigida… e apresentada como
um ‘presente’ da hierarquia militar ao povo egípcio.
Nestas condições, o recurso à pressão da rua torna-se o modo de acção
principal das forças políticas e sociais logo que estas desejam ser escutadas
pelas autoridades de transição. Em meados de Julho, a retoma da mobilização e a ocupação da praça Tahrir pelos manifestantes desempenham um
papel importante na decisão do CSFA de fazer uma concessão relativamente
à constituição. Enquanto a maior parte dos partidos e das forças políticas
(com a excepção das forças islamitas) reclamam há semanas uma inversão
do calendário político – ou seja, a redacção de uma nova constituição antes
da organização das eleições – os militares anunciam que são favoráveis à
redacção de um documento que estabeleça um certo número de princípios
supraconstitucionais que deverão ser respeitados no momento da redacção
da nova constituição – e serão parte integrante desta última.
Para as forças ‘revolucionárias’ o desafio da adaptação a uma nova ordem
A capacidade dos manifestantes em permanecer mobilizados e em fazer
pressão sobre as autoridades de transição não é suficiente logo que se trata
de elaborar novas regras do jogo político, de construir um novo sistema. Se
durante a fase ‘revolucionária’ a juventude ‘não politizada’30 desempenhou
um papel central na mobilização através de estruturas fluidas tais como as
redes sociais, a capacidade dos manifestantes em se organizarem, em assegurarem a sua representação e participação no jogo político segundo as
modalidades ‘tradicionais’ vai constituir uma aposta importante durante
a fase de transição. Tanto a Tunísia como o Egipto, entram de hoje em
diante numa fase assinalada por prazos eleitorais determinantes. Na
Tunísia, a eleição de uma Assembleia Constituinte, inicialmente prevista
para 24 de Julho, depois adiada, é de hoje em diante marcada para 23
29
O diálogo nacional não é iniciado sob os auspícios do CSFA, mas do novo primeiro-ministro ‘Issam Sharaf.
Universitário e homem político, este último foi ministro dos Transportes de 2004 a 2005. Presente na praça Tahrir
durante a mais forte contestação, desfruta de uma boa imagem junto dos manifestantes, que evocam o seu nome como
possível substituto de Ahmad Shafiq. Em 3 de Março, o CSFA pede-lhe para formar um novo governo.
30
No sentido de não envolvida nos partidos políticos e não ideológica.
51
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
de Outubro. No Egipto, a eleição de um novo Parlamento (Câmara de
Deputados e Conselho Consultivo), inicialmente programada para o mês
de Setembro, foi igualmente adiada de um a dois meses e deveria concretizar-se daqui até ao fim do ano. Os novos deputados deveriam então
formar uma comissão encarregada de redigir uma nova constituição. A
eleição presidencial deveria ser organizada pouco depois. Neste contexto
a capacidade das forças políticas e sociais em organizarem-se e passarem
de uma fase de mobilização a uma fase de ‘estruturação das apostas’ é um
elemento essencial.
A polarização crescente entre islamitas e não islamitas
Ora nos dois países o consenso revolucionário esboroou-se um pouco
no decurso das semanas. Tanto na Tunísia como no Egipto, a cena política está cada vez mais fragmentada, mas também fortemente polarizada
entre as forças islamitas e não islamitas, cada uma defendendo de hoje em
diante agendas diferentes. O referendo sobre as emendas constitucionais
organizado pelo Egipto em Março passado fornece uma boa ilustração.
Opondo-se à grande maioria das outras grandes forças políticas ‘revolucionárias’, os Irmãos Muçulmanos (e em maior medida as forças islamitas)
fazem com efeito campanha a favor do ‘sim’, apresentando o voto a favor das
emendas como um “dever religioso”. Analogamente, opõem-se à reivindicação formulada pelas outras forças de oposição, que reclamam a redacção
de uma nova constituição antes da realização das eleições. Consideram com
efeito que é necessário respeitar a vontade expressa pela maioria da população na altura do referendo sobre as emendas constitucionais, e sobretudo
actuar de modo a que o Egipto encontre o mais rapidamente possível o
caminho da ordem e da estabilidade31.
Apesar da dinâmica de diálogo e de integração no jogo político iniciado
desde as revoluções, os partidos islamitas continuam a meter medo a uma
parte das elites e da população, nomeadamente porque são suspeitos de
ter uma ‘agenda escondida’ e de jogarem um ‘jogo duplo’ com o objectivo de se apoderarem do poder. Assim, o movimento tunisino An-Nahda
31
Estas tomadas de posição, próximas das que foram expressas pelo CSFA, suscitaram interrogações quanto à possibilidade de que um acordo tenha sido concluído entre os Irmãos Muçulmanos e os militares.
52
VIRGINIE COLLOMBIER
preocupa, particularmente os movimentos de esquerda, laicos e feministas, pelas suas posições passadas sobre o estatuto da mulher e a laicidade.
Analogamente, no Egipto, a confraria dos Irmãos Muçulmanos, que criou
oficialmente o Partido da Liberdade e da Justiça, suscita fortes inquietações em virtude das suas posições sobre as mulheres, os coptas e, em grande
parte, pela sua concepção de democracia. Se os partidários da integração
das forças islamitas no jogo político legal sublinharam a seu tempo32 os seus
benefícios – que, segundo eles, obrigaria estes movimentos a adequar-se à
realidade do poder e, por conseguinte, a adoptar posições menos radicais,
já que mais pragmáticas – a multiplicação dos actores religiosos nos campos
tunisino e egípcio leva-nos a revisitar esta análise. Os movimentos islamitas
‘tradicionais’, tais como o An-Nahda e os Irmãos Muçulmanos já não estão
mais sozinhos na cena política e a emergência de movimentos mais radicais
poderá conduzi-los a uma lógica de fuga para a frente, nomeadamente por
razões eleitorais, por receio de serem contornados e ultrapassados pelos
seus concorrentes. Tanto na Tunísia como no Egipto, com efeito, o desabamento dos sistemas de Ben Ali e Mubarak conduziu a uma liberalização
do campo político-religioso e actores até então reprimidos e relegados
para a clandestinidade agem desde hoje à luz do dia. Na Tunísia, enquanto
os militantes do Hizb ut-Tahrir33 realizaram em várias ocasiões manifestações de rua e orações colectivas na capital no decurso dos últimos meses,
o movimento salafista parece igualmente desenvolver-se. No Egipto, o
partido criado pelos Irmãos Muçulmanos está de hoje em diante confrontado com uma concorrência que emana de novos partidos criados pelos
dissidentes irmãos privilegiando posições mais liberais, mas também – e
provavelmente sobretudo – com a irrupção da movimentação salafista na
política.34
32
No contexto actual, a questão da integração dos islamitas no jogo político legal nem sequer se põe enquanto tal, é
um facto.
33
O Hizb ut-Tahrir (Partido da Libertação) foi fundado em 1953 em Amã. Partido com dimensão internacional, não
reconhece o princípio do Estado-nação e reclama a instauração de um califado islâmico. A secção tunisina do partido
foi criada em 1980, e imediatamente submetida a uma forte repressão por parte das autoridades. Os seus membros
negam toda a vontade de utilização da violência para atingir os seus objectivos políticos. O movimento não foi, porém,
legalizado desde a partida de Z. Ben Ali.
34
O partido Al-Nur foi, por exemplo, criado oficialmente em Junho passado.
53
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
Os novos partidos a construir para conduzir as aspirações dos cidadãos
A fragmentação da cena política ‘revolucionária’ não é, todavia,
apenas o resultado de um distanciamento crescente entre forças islamitas
e não islamitas. Enquanto os prazos eleitorais se avizinham, os diversos
grupos e líderes políticos mobilizados para tentar influenciar o curso da
transição desenvolvem de hoje em diante estratégias específicas – mais
individuais – com a perspectiva das eleições. A sua capacidade em desempenhar um papel na formação e no funcionamento do novo sistema
político dependerá, com efeito, da sua capacidade em obter deputados
para o Parlamento (ou no seio da Assembleia Constituinte no caso tunisino). Neste contexto, estão confrontados com vários grandes desafios: o
da organização, mas também os da legitimidade e da representatividade.
O desmoronamento dos sistemas de poder organizados por Z. Ben
Ali e H. Mubarak conduziu imediatamente a uma liberalização do campo
político e, em particular à eclosão de uma multidão de novas formações
provenientes de coligações, grupos políticos e indivíduos activos durante
a revolução. Estas pretendem desempenhar um papel na nova configuração política em vias de formação. Para o conseguir, devem antes de
tudo constituir-se como organizações estruturadas, depois dar a conhecer
a sua existência e o seu direito a participar no jogo político, obtendo
oficialmente o estatuto de partido, o que lhes permitirá participar nas
eleições e, portanto, tentar conquistar o poder (ou, mais precisamente,
uma parte do poder). A criação de novas formações muito numerosas
foi desde agora anunciada. No entanto, estas últimas encontram-se na
situação difícil de dever simultaneamente mobilizar os seus membros e
cidadãos com o objectivo de satisfazer as condições de registo enquanto
partido (no caso egípcio, por exemplo, isto significa recolher assinaturas
de 5000 membros fundadores originários de mais de 10 circunscrições, com pelo menos 300 signatários por circunscrição), conceber e
adoptar uma estrutura organizacional, conceber um programa político,
mas também definir uma estratégia eleitoral, seleccionar candidatos e
iniciar a sua campanha eleitoral… Para os movimentos que não existiam enquanto tais apenas há alguns meses e que devem, por outro
lado, continuar a fazer pressão sobre as autoridades de transição para
assegurar que a sua revolução não lhes será ‘roubada’, a tarefa revela54
VIRGINIE COLLOMBIER
se particularmente difícil. Nestas condições, a maior parte destas novas
formações farão mal em posicionar-se como verdadeiros concorrentes
perante algumas organizações antigas, estruturadas e desfrutando de um
determinado reconhecimento (isto é, de uma popularidade) junto da
população – tais como os Irmãos Muçulmanos egípcios.
A capacidade das novas organizações políticas tunisinas e egípcias em
obter a confiança da população e, portanto, em posicionar-se como
actores políticos e representativos constituirá um outro desafio determinante. A crise política entre as elites políticas e os cidadãos não foi,
com efeito, resolvida pelas revoluções. As antigas formações da oposição
legal foram frequentemente desacreditadas pela estratégia de compromisso/comprometimentos com os antigos poderes estabelecidos, e os
partidos que nasceram no pós-Ben Ali e no pós-Mubarak terão provavelmente dificuldades em desembaraçar-se de alguns defeitos que
caracterizavam os seus predecessores. No Egipto, do mesmo modo que a
revolução foi em grande parte iniciada pelas classes médias superiores e
uma certa juventude ‘globalizada’, são actualmente as elites provenientes
das mesmas classes sociais (as classes médias superiores e os intelectuais)
que estão mais envolvidas no processo de ‘party-building’, o que coloca
a questão da sua capacidade em comunicar com – e, por conseguinte, em
representar – uma parte importante da sociedade egípcia. Alguns jovens
tendo-se filiado em partidos políticos novamente criados declaram terem
ficado impressionados, desde as suas primeiras deslocações nos meetings
organizados fora do Cairo, pela distância que os separava das pessoas a
que se tinham dirigido. Para o ilustrar, basta que retomemos as palavras de um deles: “senti imediatamente que a minha aparência, o meu
vestuário, o meu aspecto, tudo lhes parecia estranho… Senti-o logo
de seguida nos seus olhares. Antes mesmo do começo da conferência,
uma mulher dirigiu-se a mim e disse-me: «o que é que vocês sabem dos
nossos problemas? Vocês nada sabem de nós»”35. Do mesmo modo, na
Tunísia, as populações das regiões desfavorecidas do interior do país não
se sentem representadas pelas elites políticas da capital. Os meios independentes e provenientes da oposição a Z. Ben Ali que ocupam hoje a
35
Declarações recolhidas junto de um militante do partido al-‘Adl. Entrevista com o autor, Cairo, Junho 2011.
55
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
maioria dos cargos políticos no período de transição reproduzem, com
efeito, muito significativamente a fractura entre as elites e uma grande
parte da sociedade que predominava na época do presidente destituído.
Como sublinha Vincent Geisser, “originário(a)s dos meios urbanos e da
média burguesia intelectual e liberal”, estas novas elites estão “separadas
socialmente das regiões do interior e dos grupos sociais que foram os
principais «desencadeadores» da revolução”36. À semelhança dos seus
homólogos egípcios, têm tendência para se colocarem como elites esclarecidas a quem cabe ‘educar’ o povo, torná-lo ‘consciente’ politicamente.
Segundo esta perspectiva, um trabalho considerável foi empreendido no
decurso dos últimos meses, tanto pelos novos partidos políticos como
pelos grupos de jovens que agem pela sua própria iniciativa, para ir ao
encontro dos cidadãos das diversas províncias do país. Todos reconhecem
que será necessário tempo para alterar a relação que a maioria das pessoas
mantém com a política: no Egipto, por exemplo, as filiações tribais e
familiares, bem como os instrumentos de influência constituídos pelo
dinheiro e as conexões com o aparelho de Estado permanecem elementos
determinantes na filiação política. No entanto, todos insistem na grande
importância das transformações em curso. Para eles, a construção de
sistemas políticos ‘democráticos’ levará tempo, mas a via em que egípcios
e tunisinos estão doravante envolvidos pode lá chegar.
Em perspectiva: alguns grandes desafios
Os cidadãos tunisinos e egípcios aprenderam indubitavelmente a dizer
‘não’. Na fase de transição actual, a capacidade que adquiriram de fazer
pressão, de se opor, deve de hoje em diante ser acompanhada por uma
capacidade de estruturar, de propor… e agir. As revoluções galvanizaram as
populações, suscitaram formidáveis expectativas de mudança – e de mudança
para melhor. Ora para muitos tunisinos e egípcios a esperança está a pouco
e pouco em vias de dar lugar ao desencantamento e à frustração.
A situação económica e social constitui um dos principais motivos do
seu descontentamento. Enquanto nos dois países esta questão desem-
36
Vincent Geisser e Michaël Béchir Ayari, “Tunisie, une révolution attendue?”, in Futuribles, no prelo.
56
VIRGINIE COLLOMBIER
penhou um papel central no desencadeamento da contestação, os
principais actores envolvidos na transição consagraram por agora muito
mais tempo e energia ao estabelecimento de novas regras do jogo político
(eventualmente susceptíveis de lhes serem favoráveis) do que a empreender reformas significativas nos domínios económico e social. Ora se
é evidentemente necessário repensar o sistema político para assegurar a
saída do autoritarismo e o estabelecimento de estruturas democráticas, a
ausência de resposta às reivindicações mais básicas dos cidadãos relativamente às suas condições de vida é dificilmente aceitável por estes últimos.
Os ‘tempos’ políticos de uns e de outros – o calendário e a sequência das
suas prioridades – não concordam, e tratar-se-á de um desafio considerável a superar para garantir o sucesso da transição em curso.
Enquanto os tunisinos e egípcios receiam ainda verem ser-lhes
‘roubada a sua revolução’, o papel dos actores da segurança (polícia,
serviços de informação, mas também do exército) no período de transição
revelar-se-á também determinante. Antes de contribuir – positivamente ou negativamente – para a queda dos sistemas Ben Ali e Mubarak,
desempenharam com efeito um papel central na manutenção destes
últimos. Tanto na Tunísia como no Egipto, as forças do ministério da
Administração Interna – que constituíram um dos principais actores da
repressão, tanto antes como durante a contestação dos fins de 2010inícios de 2011 – são hoje objecto de uma particular atenção por parte
das forças revolucionárias. Para além das sanções contra os polícias que
mataram manifestantes, estas exigem, com efeito, o estabelecimento de
uma reforma significativa e exercem importantes pressões neste sentido
sobre as autoridades de transição. As suas reivindicações, até hoje seguidas
de poucos efeitos concretos, serão, todavia, determinantes para garantir
uma transformação em profundidade dos regimes tunisinos e egípcio.
No Egipto, o papel específico desempenhado pelos militares na transição
conduz igualmente a uma reflexão sobre o lugar que será devolvido a estes
últimos no novo sistema político. Esta reflexão começou. Determinadas
forças políticas receando a chegada ao poder de uma maioria susceptível de ameaçar a democracia, reclamam assim que deve ser confiado ao
exército um papel específico de garante dos princípios da constituição.
A alta hierarquia militar tem no que lhe respeita insistido desde já no
57
TUNÍSIA, EGIPTO: QUE MODELOS PARA AS TRANSIÇÕES NO MUNDO ÁRABE?
imperativo de preservar a independência completa das forças armadas,
excluindo por isso todo o controlo parlamentar sobre o orçamento ou
as actividades destas últimas. Neste domínio, igualmente, o caminho a
percorrer será provavelmente longo, e a estratégia dos ‘pequenos passos’
sem dúvida a opção a privilegiar.
(tradução de Joaquim Jorge Veiguinha)
58
O Desastre da LSE
Hermínio Martins
O
mais notável exemplo do ‘impacto’ público exigido das universidades pelo Governo do Reino Unido foi, perversamente, a
enorme publicidade mundial recentemente obtida pela London
School of Economics and Political Science (LSE).
Durante algumas semanas (Fevereiro-Março), a LSE foi um centro
mundial de atracção mas não por boas razões. Pelo contrário, este foi o
primeiro escândalo verdadeiramente global de uma corporação universitária, certamente o primeiro a afectar uma universidade com o tipo de
reputação nacional e especialmente internacional que a LSE desfrutou
durante várias décadas.
O escândalo surgiu inicialmente com a doação pela Fundação dirigida
por Saif al-Islam Kadhafi, o filho favorito do coronel, de 1.5 milhões
de libras ao Centro para a Governança Global da escola. Aceite pelo seu
conselho directivo em 2009, a decisão foi mais tarde revogada devido à
torrente de comentários adversos e estridentes que esta aceitação provocou
nos media britânicos e estrangeiros.
O director da escola, Sir Howard Davis, que apoiou a decisão de aceitar
a doação, foi obrigado a demitir-se em 3 de Março, devido ao “dano reputacional” infligido à escola por “este erro de avaliação’. Simultaneamente,
uma investigação independente e exaustiva sobre o caso dirigida por Lord
Woolf, um ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi anunciada.
Desde que o Governo de Blair fez da Líbia uma nação razoavelmente
respeitável, muitas universidades britânicas envolveram-se em acordos
vantajosos para a educação e formação de líbios. Mas foi a LSE que, de
todas as instituições académicas britânicas, sofreu a maior reacção negativa contra as suas conexões líbias. A dimensão intelectual invulgar do seu
envolvimento líbio e a estatura dos professores implicados no caso podem
explicar porquê.
As declarações do professor Lord Giddens, o anterior director da LSE,
59
O DESASTRE DA LSE
em 2006 e 2007, foram provavelmente muito surpreendentes. Num
conjunto de artigos de jornal resultantes de duas visitas ao país, o sociólogo de renome mundial anunciou ao mundo que o governo de Kadhafi
era genuinamente benigno à medida que as ditaduras desapareciam e
expressou a sua convicção de que a Líbia poderia tornar-se a Noruega do
Norte África sob a direcção do coronel. Este viu mesmo paralelismos entre
a sua “Terceira Via” e os ensinamentos do Livro Verde de Kadhafi! (As
visitas foram organizadas por uma empresa de consultoria americana com
ligações a Harvard, que também trouxe eminências americanas, como os
professores Joseph Nye, Benjamin Barber e F. Fukuyama a Tripoli, com o
objectivo de melhorar a imagem da ditadura Líbia).
O famoso e prolífico teórico da globalização, o professor David Held,
fez a declaração absurda de que os valores democráticos estavam no cerne
das convicções de Saif Kadhafi e expressou a sua convicção de que este
iria conduzir a Líbia para a democracia. Também entrou no conselho de
administração da Fundação da Caridade Internacional e Desenvolvimento
de Kadhafi que fez a doação para o seu próprio Centro de Governança
Global na LSE.
Saif foi admitido na LSE como estudante licenciado, primeiro para um
mestrado e depois para um doutoramento. Possuía ou não as qualificações adequadas para ser admitido na LSE como um estudante licenciado?
A questão permanece obscura. Devia alguma vez ter sido admitido, fosse
ou não qualificado? Ao admitirem Saif, alguns tornaram-se cúmplices do
regime brutal do seu pai, deram ao clã de Kadhafi um ponto de apoio
numa prestigiada academia ocidental. Foi sempre uma decisão problemática, demonstrada, por exemplo, pela sua necessidade de um ou mais
guarda-costas quando assistia às aulas na universidade. A sua tese de doutoramento foi realmente escrita por si? Não está claro se o foi, e a questão
pode nunca vir a ser completamente esclarecida.
Um ano após a aprovação no doutoramento, a doação foi feita.
Evidentemente, muitas suspeitas surgiram no pequeno intervalo de tempo
decorrido entre a concessão de um doutoramento a uma pessoa e a aceitação de uma grande doação da parte desta mesma pessoa. O professor Fred
Halliday, um professor de Relações Internacionais na LSE que possuía um
amplo conhecimento da Líbia e era fluente em árabe, foi o único acadé60
HERMÍNIO MARTINS
mico que se pronunciou contra a aceitação. Este advertiu que a Líbia era
uma cleptocracia corrupta com escassas probabilidades de ser reformada
pelo clã dirigente. A sua advertência foi rejeitada.
Carecendo de grandes doações, com um reduzido financiamento do
Estado e privadas de doações filantrópicas no interior do país, as universidades do Reino Unido podem ser forçadas a aceitar ‘presentes’ de regimes
suspeitos. Mas algumas universidades, confrontadas com severas dificuldades financeiras, recusaram estas doações. A LSE estava em boa forma
financeira: não precisava desta doação específica para se manter à tona.
No fim de contas, eis um triste caso da incapacidade de uma universidade em resistir às tentações das grandes fortunas, supostamente sem
compromissos, mas que, de facto, mancharam a LSE (até o professor Lord
Desai, que tinha alinhado em tudo, fala agora de “dinheiro sangrento”).
Lamentavelmente para o bom-nome das ciências sociais, foi também um
caso em que teóricos sociais mundialmente famosos sucumbiram à ilusão
clássica de que poderiam transformar-se em mentores de ‘déspotas iluminados’ em países que desconheciam totalmente.
As universidades podem ser debilitadas tanto a partir de dentro como
a partir do exterior: uma única pessoa corajosa e lúcida, como o professor
Halliday, pode ser incapaz de impedir acções que abalam a credibilidade
mundial na integridade de uma universidade e dos seus professores. E
quando isto acontece, tudo está perdido.
(tradução de Joaquim Jorge Veiguinha)
61
PARLAMENTO
Portugueses, só mais um esforço!
Fernando Pereira Marques
N
uma das suas crónicas no “Público” Vasco Pulido Valente
afirmou, há tempos atrás, que talvez desde Costa Cabral nunca
um político foi tão detestado quanto José Sócrates. Não será
bem assim, e basta, por exemplo, lembrarmo-nos de Afonso
Costa. Além de que o decorrer da campanha e os próprios resultados eleitorais demonstraram que, afinal, não era tão generalizado esse sentimento
em relação ao anterior primeiro-ministro.
Todavia, o que me interessa aqui sublinhar é que, ao estabelecer tal
comparação – e o respeitado historiador sabe-o bem –, estava a fazer um
elogio que não sei se o antigo líder socialista merece. Porque Costa Cabral
foi um governante autoritário, chefe de clientelas e novo-rico do liberalismo1, mas que tentou pôr ordem num país caótico – nomeadamente do
ponto de vista administrativo e fiscal – e levar a cabo um programa modernizador. Uma convergência das oposições diversificada e populista – a
“Coalizão” –, acabaria por o derrubar levando a que só a Regeneração,
após a “saldanhada” de Abril de 1851, tentasse concretizar esse programa,
anos mais tarde, dentro dos condicionalismos existentes de atraso estrutural do Portugal oitocentista.
Será que foi o que se passou com José Sócrates? Foi ele impedido de
realizar a política, se não necessária, pelo menos possível na actual conjuntura, por uma coligação negativa das várias oposições e pela incompreensão
de vastos estratos da população?
Tentando responder a esta interrogação, seja-me permitido abordar
– sumariamente – vários aspectos que são: 1 - o contexto internacional; 2
– o contexto nacional; 3 - a conjuntura actual.
1 – A partir de finais da década de 70 entrou-se num novo ciclo do sistema
1
Os seus adversários, setembristas e afins, podiam ser mais suaves quanto aos métodos de governação, no resto não
eram muito diferentes.
63
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
capitalista, para o qual contribuíram factores como o choque petrolífero e
a dependência quanto a essa fonte de energia. Visando manter mais-valias,
que assim se viam reduzidas, sectores económicos e os seus prolongamentos
políticos iniciariam o processo de desmantelamento do modelo keynesiano
de Estado-Providência, adubado pelo sangue das duas guerras mundiais.
Desmantelamento que hoje atinge a sua máxima expressão.
Aquilo a que se chama mundialização ou globalização é a continuação
desse processo, e poderemos até dizer – parafraseando o velho Vladimir
– o seu estádio superior, num mundo onde se assistiu ao fim dos impérios coloniais e, consequentemente, se abriram novos mercados e se
liberalizaram as transacções financeiras, se renovaram formas de dominar
os países mais pobres e se afirmou a hegemonia militar e económica do
Estados Unidos. Tudo isto em simultâneo com uma verdadeira revolução
técnico-tecnológica na informação e na comunicação, com o fracasso
do comunismo no Leste europeu, e a progressiva integração na ordem
dominante das expressões ideológicas e sociais do movimento operário
nascido da industrialização. Políticas, agora em crise, ao serviço do capital
financeiro e especulativo, impuseram um modo de produção que tem o
hiperconsumismo como motor do crescimento e se baseia na exploração
da força de trabalho dos países menos desenvolvidos da Europa e de outros
continentes – em particular da Ásia.
Surgem, por estas razões, novas clivagens e fontes de desigualdade que
contribuem para enfraquecer as bases de sustentação das democracias, na
medida em que o poder político é, crescentemente, transferido para forças
não legitimadas, como são os grupos financeiros, a banca e os especuladores, que constituem essas entidades mistificadas e mitificadas designadas
por “mercados”. Ao mesmo tempo, no plano dos valores, banaliza-se o
relativismo ético nas relações sociais, destroem-se os laços de convivialidade humana, desagregam-se formas de organização social necessárias à
integração e à cooperação.
Dito de forma sucinta, e porventura mais explícita, generalizou-se um
estilo “hobbesiano” de vida em sociedade que conduz à supremacia do
mais forte, do menos escrupuloso, do mais corrupto, pois o objectivo das
economias não é o bem comum e o projecto de vida dos cidadãos reduz-se
ao consumir à outrance, imbecilizados e manipulados pelo sistema espec64
FERNANDO PEREIRA MARQUES
tacular de condicionamento colectivo mediático-televisivo à la Murdoch.
Acarretando isto regressão quanto às conquistas sociais e políticas do pós-guerra, a fragilização da democracia representativa, a massificação cultural
e, até, quanto ao meio ambiente e à Natureza, o desregulamento ecológico
põe mesmo em causa a sobrevivência das próximas gerações.
A ideia de construção europeia, velha e generosa aspiração de coexistência
entre nações que outrora se digladiaram, não escaparia a tais dinâmicas anti-humanistas e, por isso, a União Europeia é hoje uma espécie de sociedade
anónima gerida pelos países mais poderosos que actuam em função dos interesses dominantes na economia e na finança. União desunida, cada vez mais
à beira da implosão. A designação pelo acrónimo PIIGS das cinco economias
mais frágeis mostra bem a arrogância anglo-saxónica e germânica.
A Alemanha esquece-se que no século XX foi o país mais vezes em
bancarrota, ou próximo disso, e que só conseguiu dar o salto para o que
é hoje devido às injecções de capitais norte-americanos. Além de que
usufruiu do adiamento do pagamento das indemnizações justificadas pelo
saque e destruições do nazismo, as quais – de acordo com o estabelecido
– deviam ter vencido aquando da reunificação. Um dos países credores é
precisamente…a Grécia.
2 – No plano nacional a democracia chegou-nos com o 25 de Abril
de 1974 quando se entrava na fase final dos “trinta gloriosos anos” do
pós-guerra. Depois de um acidentado processo de estabilização político-económica, o nosso país, quando foi admitido na CEE, apresentava uma
soma de fragilidades e vulnerabilidades estruturais a diversos níveis: no do
sistema produtivo e empresarial; no das instituições democráticas; no da
formação, educação e qualificação; no da cultura e das mentalidades.
A história destes anos mostra-nos bem, por muito que custe às almas
generosas e bem-intencionadas, que a democracia não é uma mera construção jurídico-político-institucional, mas o resultado de mudanças
complexas e profundas de carácter sociocultural. Se por democracia entendermos uma efectiva separação dos poderes, secularização e laicização,
pluralismo partidário, primado da Lei, forte sociedade civil, participação
cívica, consentimento e confiança renovados por parte dos cidadãos,
direitos individuais, liberdades e garantias integralmente asseguradas,
justiça social, etc.
65
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
Ora, tem-se verificado como é difícil superar as sequelas de quase meio
século de regime autoritário e do que foi a nossa história do século XIX e
da primeira metade do XX. Ou seja, e abreviando, trinta e sete anos depois
do movimento dos capitães, temos uma sociedade civil extremamente
frágil, uma cultura cívica embrionária, um sistema político e um sistema de
partidos marcados por graves disfunções. Isto é, a democracia portuguesa
padece de sérias patologias.
Os dois principais partidos que se afirmaram numa bipolarização de
governo, se se podem designar como de massas do ponto de vista organizativo, são um misto de catch-all parties e de partidos oitocentistas. Assim,
passada a fase heróica das lideranças dos pais fundadores, tornaram-se
aparelhos pragmáticos de gestão de clientelas, de colocação de burocracias
na administração político-económica pública; organizações onde, com a
maior das naturalidades, as oligarquias que gravitam em torno dos vários
níveis do poder subvertem as regras democráticas a nível interno, falseando eleições, organizando sindicatos de voto, recorrendo às mais diversas
formas administrativas de controlo funcional. E as suas respectivas juventudes, em vez de formarem quadros imbuídos de uma exigente cultura
democrática, são de facto viveiros de aparatchiks que asseguram a reprodução
dessas oligarquias partidárias.
Pela sua natureza social e organizativa, que tecnicamente se poderá
designar de partido de quadros, o CDS/PP é um caso que se diferencia
das duas grandes forças do bloco central. Quanto à esquerda, comunista
e bloquista, alimenta-se do seu potencial de pressão. Particularmente o
PCP, devido a uma sólida base sindical; o BE desempenhando um papel
tribunício que noutros países cabe às forças extra-parlamentares. Deste
modo, ambos se têm auto-excluído da governação, o que penalizou, nas
últimas eleições, em especial os bloquistas.
Aos problemas com que se deparam as democracias um pouco por todo
o lado, juntam-se em Portugal estes elementos que nos são específicos; às
repercussões da crise do sistema económico-financeiro a nível internacional, acrescentam-se os nossos bloqueamentos devidos ao atraso secular,
às irracionalidades introduzidas na agricultura e na indústria, ao desbaratamento dos fundos europeus, à corrupção negocista proporcionada por
sucessivos governos. Casos de verdadeiro assalto ao erário público, como
66
FERNANDO PEREIRA MARQUES
os das PPP – para citar só este exemplo –, ou ainda outros de criminosa
promiscuidade entre o público e o privado de que emergiram os escândalos
do BPN e do BPP, dariam lugar, noutras democracias, a fortes sanções
judiciais e políticas.
No nosso país o cidadão médio tem uma relação esquizofrénica com
o Estado e a política, ainda marcada pelo sufocamento cívico das dezenas
de anos de salazarismo: detesta os “políticos” mas venera o poder e, no
fundo, considera uma injustiça não ser, se não ministro ou deputado, pelo
menos presidente da Junta de Freguesia. A comunicação social, por seu
lado, torna a vida política numa espécie de prolongamento dos confrontos
futebolísticos e muitos dos jornalistas – à excepção de bons profissionais
que são sempre…excepções – adorariam ser “políticos”, ou assessores de
um órgão de poder, maxime integrarem o gabinete do primeiro-ministro
ou Casa Civil do PR.
Escasseia, assim, uma visão crítica e lúcida sobre os verdadeiros
problemas com que o país se depara, é incipiente a cultura democrática e
funcionam mal os checks and balances fundamentais à saúde do sistema político. Por tudo isto – respondendo à questão enunciada no início –, é
claramente falacioso centrar no último governo todas as responsabilidades
pelo impasse a que se chegou. José Sócrates não foi um reformador como
tentou ser Costa Cabral. Ele, como já Guterres fizera, introduzindo uma ou
outra medida positiva inspirada no modelo social europeu – digamos assim
para facilitar –, limitou-se, no essencial, a gerir uma situação já viciada e,
na sequência do que atrás se disse, fê-lo com pragmatismo, detestando –
ele e a sua equipa – perder tempo com grandes ou pequenas questões de
carácter ideológico-programático, ou excessivos escrúpulos nos planos das
ideias, dos princípios e dos valores. Governar era preciso, esvaziando o
PS de qualquer vida interna ou de capacidade de definição estratégica (os
programas eleitorais e de governo são textos de circunstância produzidos a
toque de caixa por uns quantos autores de ideias gerais) e transformando
os seus membros – já nem será correcto dizer militantes – em meros figurantes na execução de objectivos traçados pelas agências de marketing.
As coisas até funcionaram enquanto a conjuntura internacional permitiu
engenharias contabilísticas e esconder sob o manto diáfano da fantasia,
veiculada nos prime time, as irracionalidades político-económico-financeiras
67
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
com que, entretanto, gestores públicos e privados, e muitos cavalheiros
de indústria, iam lucrando. Quanto ao cidadão comum – especialmente
das classes intermédias – utilizava os seus cartões de crédito generosamente
fornecidos por uma banca próspera e protegida que lhe prometia abrir as
portas de todos os paraísos.
3 - Devo dizer que as minhas convicções europeístas me levaram a
não valorizar devidamente as reservas de economistas lúcidos como João
Ferreira do Amaral que sempre considerou extemporânea a nossa integração no euro. E de facto ele tinha razão. O impacte da integração e o
desbaratamento dos fundos já contribuíra para nos tornar sobretudo um
mercado para as exportações de economias mais fortes – nomeadamente a
espanhola – e um mero prestador de serviços, pelo que a perda da moeda
nacional só agravou esta condição periférica e dependente. Tanto mais que
a ideia europeia, como já disse, se reduziu a um projecto mercantil liderado particularmente pela Alemanha enquanto economia dominante, que
pouco tem a ver com a construção cultural e social de uma Europa dos
povos, progressivamente liberta dos egoísmos nacionais.
Acresce a crise da mundialização financeira desregulada, onde a especulação raia o quase banditismo e grupos organizados, como as agências
de rating, são na realidade uma espécie de gangues legais (veja-se o documentário Inside Job) que impõem regras aos Estados. Deste modo, para
contrabalançarem o abanão sofrido em 2007/2008 e as rupturas havidas
nos próprios EUA, e para ao mesmo tempo enfraquecerem o euro, essas
agências e os interesses para que trabalham centraram a sua acção desestabilizadora nos países europeus do Sul, os mais frágeis. Mas não ficarão
por aqui, como já se viu ao começarem a atacar frontalmente a gestão do
Presidente Obama.
Chegámos assim à situação de crescente pressão sobre as finanças
públicas e à ajuda externa, com os conhecidos episódios que culminaram
na dissolução da Assembleia da República e na convocação de eleições antecipadas. Poder-se-ia ter evitado este desenlace? Dificilmente se escaparia à
necessidade de recurso ao exterior, pelas razões aduzidas relacionadas com
a estratégia da especulação internacional. Mas claro que a impaciência do
PSD e a imaturidade da sua liderança ajudaram a precipitar as coisas.
Deste modo, tecnocratas estrangeiros vieram vasculhar as contas nacionais
68
FERNANDO PEREIRA MARQUES
para nos dizerem o que o governo saído das eleições devia fazer no sentido
de desmantelar, ainda mais, o nosso embrionário Estado social, constranger
as classes médias, tornar mais pobres os pobres, e impor uma lógica monetarista e de protecção da banca segundo a cartilha ultraliberal. A Europa rica
da Senhora Merkel ameaça-nos com puxões de orelhas, e outros, como os
chamados “Verdadeiros Finlandeses”, disseram em voz alta o que muitos
europeus mais a Norte pensam. A crer no El Pais (18/4), Timo Soini, que
dirige esse partido, de facto o vencedor do último pleito eleitoral, afirmou:
“É inconcebível que os bens conseguidos aqui, sob a estrela do Norte, sirvam
para regalar a gente do Sul que vive ociosa deitada sob as oliveiras.”
Neste contexto de agravamento da perda de soberania na condução
da política económica e de gestão dos dinheiros públicos, assim como de
inevitável instabilidade social e política, impor-se-ia que predominasse o
sentido de Estado e do interesse nacional junto de todos os responsáveis.
Mas acontece que temos um Presidente da República medíocre que privilegia como veículo de actuação o facebook, diz banalidades frequentemente
contraditórias, e partidos – particularmente os dois maiores – que insistem
em caminhar para o abismo. Não só pela sua incapacidade em empreender
uma estratégia de emergência que salvaguarde a dignidade nacional, as
conquistas sociais e a necessidade de crescimento, mas também pela persistência na asneira e na picardia leviana.
A demonstrá-lo a forma como, mais uma vez, foram feitas as listas para
deputados e decorreram as eleições. Claro que seria difícil num período
tão curto superarem-se os vícios bem entranhados no funcionamento
desses partidos. Mas poder-se-ia ter já dado alguns sinais de mudança
que mostrassem, pelo menos, uma tomada de consciência. Em vez de um
esforço de definição consistente de linhas de actuação para o curto e o
médio prazo, não obstante o condicionamento imposto pelas organizações
externas que nos tutelam, assistiu-se ao anúncio de generalidades programáticas e a pronunciamentos tacticistas em todas as direcções. Quanto às
listas para deputados, repetiram-se as estafadas habilidades que no decurso
dos anos têm ilustrado a falta de consistência orgânico-ideológica e contribuído para a mediocridade do pessoal político-parlamentar segregado por
esses partidos (refiro-me aos dois do bloco central – nos outros a questão
põe-se de forma diferente). As listas são entendidas como um cozinhado
69
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
reunindo vários ingredientes: uma porção substancial de gente do aparelho
(incluindo da juventude) para que este funcione durante a campanha, uns
independentes para mostrar abertura “à sociedade civil” (um escritor aqui
– potencial ocupante da anódina pasta da Cultura -, um colunista acolá,
uma actriz noutro lado, um trânsfuga de outro partido devidamente reciclado), mais uns notáveis ungidos pela sua passagem pelo governo, ou pelo
mundo dos negócios, ou que se pretende surjam como garantes de competência. As “competências” de que já falava Gomes da Costa nos anos 20 do
século passado antes do 28 de Maio.
Será que alguém acredita que constituiu um factor de atracção eleitoral
para o PS a colocação nas listas, e por vezes no seu topo, de ministros e
secretários de Estado cessantes desgastados pelo poder e sem nenhuma
vocação para a actividade parlamentar? Não foi evidente que se tratou de
uma forma de os compensar no retorno às suas vidas profissionais, donde
em geral saíram aos trambolhões só porque não resistiram à sedução – por
vezes fatal – do poder? Seria muito difícil perceber que o PSD, ao ir buscar
Fernando Nobre, não só não iria capitalizar os votos por ele obtidos nas
presidenciais como, antes pelo contrário, agravaria a descredibilização do
sistema político, da instituição parlamentar e o cepticismo dos cidadãos em
relação ao funcionamento da democracia?
Mas se tem sido e continua a ser assim o funcionamento dos dois
maiores partidos, o que é que de facto determina a opção de voto dos eleitores? Há factores de diverso teor, como os matizes no discurso social, as
diferentes histórias e culturas partidárias. No entanto, por força do nosso
passado feito de despolitização e autoritarismo, a que não escapam mesmo
as gerações mais novas, tornam-se particularmente relevantes a personalidade do líder e a forma como o marketing o “vende”, mais a atracção de quem
detém ou potencialmente vai deter o poder.
Donde ter sido significativo que numa conjuntura como a actual, com
o desgaste sofrido pelo Governo e pelo primeiro-ministro, o PSD só tenha
conseguido nos últimos dias de campanha descolar da situação de empate
técnico existente durante semanas. E quanto aos resultados propriamente
ditos, como diria La Palice, é evidente que o PS perdeu porque o PSD
teve mais votos, mas contrariamente ao que li nalguma imprensa, não foi
a maior derrota depois da de 1985. Além deste ano (20,8%), percentual70
FERNANDO PEREIRA MARQUES
mente, em 1979, 1980, 1987 o PS obteve resultados inferiores (em 1991
Jorge Sampaio atingiu um ponto mais, 29,2%). Em número de votos, e em
relação a 2009, o PS perdeu cerca de 520 mil (quase tantos como os que viu
fugirem-lhe nesse ano em comparação com a maioria absoluta obtida em
2005), mas o PSD só subiu cerca de 490 mil e houve, em termos globais,
aproximadamente menos 130 mil sufrágios expressos (o BE viu o seu eleitorado reduzido em 270 mil votos). Sintetizando: Passos Coelho obteve
uma percentagem inferior a Durão Barroso em 2002 (40,1% e neste ano
mais 124 000 votos do que o PS). Estes números permitem-nos afirmar
que, como tem sido habitual no sistema de partidos existente, uma fracção
significativa do eleitorado flutuante do bloco central transferiu-se para o
pólo da alternância, outra fracção do eleitorado, que votou socialista em
2009, absteve-se ou dispersou-se por vários partidos, e muitos que nessa
altura optaram pelo BE regressaram à sua opção tradicional (socialista,
comunista ou outra). Por fim, e contrariamente ao que alguém também
disse, o PS não ficou reduzido ao seu eleitorado fiel, consolidado, de irredutíveis como os gauleses de Astérix, que é inferior aos 28,05% obtidos:
grosso modo, e tanto quanto estas estimativas são possíveis, esse eleitorado
corresponderá aos perto de 21% de 1985, ou a um pouco mais.
Em termos técnicos, utilizando a conceptualização do chamado “paradigma de Michigan”, não houve um “esmagamento” do PS pois a alternativa
que se lhe opunha era manifestamente frágil. Antes se assistiu a uma continuidade do sistema que se caracteriza pela alternância entre dois grandes
partidos. Quer se queira quer não, o PS continua a ser um deles, nenhum
outro – contrariamente ao que se passou em 1985 com o PRD – lhe disputou
tal lugar, donde ser importante o que no seu seio irá acontecer neste outro
ciclo entretanto aberto pela eleição de um novo secretário-geral. Sem os
socialistas não há alternativa institucional à coligação de direita que agora
nos governa, não há perspectivas de travar o desmantelamento do que nos
planos político, social e económico ainda resta das conquistas mais significativas do pós-25 de Abril.
A constituição do actual Governo evidenciou a frágil organicidade do
PSD que – como aliás também acontece com o PS – recorreu ao recrutamento daquela peculiar categoria no nosso sistema político que são os
“independentes”, ou seja, as tais supostas “competências” técnicas ou
71
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
académicas, quase sempre uma incógnita quanto à capacidade políticoadministrativa. De assinalar o exercício demagógico de emagrecimento
artificial do número de pastas ministeriais – que acabou por ter de ser
compensado pelo número de secretários de Estado, assessores/as, “especialistas”, chefes de gabinete hiper-remunerados/as, etc. –, sem que isso
obedecesse a uma decisão ponderada do ponto de vista da racionalidade e
dos objectivos. Quanto ao projecto político, rapidamente se precisou, se
dúvidas houvesse, que o escopo principal da maioria de direita é ser ainda
mais “troikiano” do que o diktat da chamada “troika, e, como grandes desígnios nacionais, têm-se ouvido coisas díspares como, no plano económico
– a crer em declarações daquele sorridente ministro da Economia importado do Canadá –, transformar o país numa Florida europeia, um destino
de sonho para os reformados europeus com poder de compra. Ainda
mais significativamente refiram-se as privatizações e a perda de posições
públicas em sectores estratégicos, o que só torna ainda mais vulnerável a
nossa economia à cupidez internacional.
Não deixou, pois, de ser patética a reacção do primeiro-ministro, do
governo, do PR e de outros responsáveis à actuação das agências de rating que
aparentemente eles julgavam rendidas ao luminoso governo PSD-CDS.
Finalmente, e contrariando – como era de esperar – algumas declarações
peremptórias durante a campanha eleitoral, recorre-se à via fiscal e a impostos
extraordinários sobre aquela pequena percentagem de portugueses que estão
acima do quase limiar da sobrevivência da maioria, ao mesmo tempo que se
deixam tranquilos os rendimentos do capital e os dividendos (o argumento
usual é de que se teme que, patrioticamente, quem possua capital o faça sair
do país se se aumentar a imposição fiscal). Aliás, são os contribuintes que
vão continuar a pagar desastres das gestões anteriores, como o do caso BPN,
negociata com que se banqueteou a fina flor do cavaquismo – e o próprio,
através daquela transacção de acções ainda mal explicada – e outros irão agora
lucrar associados a dinheiros oriundos da cleptocracia angolana.
Chegou-se a um ponto em que, iludindo tudo o que bom senso e os
fundamentos elementares da economia ensinam, Portugal corre o risco
de ser vítima da cura de estabilização financeira que lhe impõem – como
aconteceu há anos atrás com a Argentina – , dos cortes cegos na despesa
que ameaçam paralisar serviços, esvaziar funções, travar políticas multipli72
FERNANDO PEREIRA MARQUES
cadoras quanto à produção e ao emprego. Em resumo, está-se a impedir
qualquer dinâmica de crescimento só possível através do investimento
público e privado e do aumento da procura.
Os povos não se alimentam com a especulação que só aproveita aos especuladores, e é premente reconstruir o nosso tecido produtivo nos vários
sectores, pois é com a força de trabalho, a vontade e a inteligência que se faz
“a riqueza das nações”. Estamos a deixar de ser Portugal para tornarmo-nos
Portugalinho. Nestas circunstâncias é preciso fazer renascer o sentimento
da dignidade nacional, reencontrarmo-nos enquanto povo e ocupar o lugar
que nos acabe numa União Europeia que está paulatinamente a ser destruída
por dirigentes como a Senhora Merkel e o seu Freund Barroso.
O PS está comprometido com o programa imposto pelos controleiros
europeus e mundiais da finança, e por muito que se queira redimir de ter
ajudado a conduzir o país para este impasse, isso condiciona-o e limita-o. Por
outro lado, tanto no plano global como europeu, os governos estão sujeitos,
já o dissemos, à chantagem do banditismo financeiro. Consequentemente,
as mudanças que é necessário ocorram, estão dependentes de dinâmicas
mais gerais, a nível europeu e não só, que nascerão da mobilização dos povos
– incluindo o nosso –, e da reorganização estratégica da esquerda e dos
movimentos sociais, tradicionais ou de tipo novo. As democracias europeias
precisam não de um “choque liberal”, mas de um “choque social”.
Se não surgirem outros actores sociais e políticos, ou se os que à esquerda
ocupam a cena política não conseguirem repor no centro da sua acção os
valores da solidariedade, da liberdade, da igualdade, da democracia, dos
Direitos do Homem, da ética republicana, da laicidade, etc., etc. – tudo
aquilo por que se têm batido, no decurso de séculos, gerações e gerações
de homens e mulheres –, o que nos aguarda são formas de autoritarismo,
mais ou menos tecnológicas e comunicacionais. São reais e concretos os big
brothers que nos ameaçam, os verdadeiros detentores do poder que continuam a dominar com cinismo, a incentivar a ganância, a destruir os elos
comunitários, argumentando com a “novlíngua” da inversão de valores
que enaltece os chamados winners que sobrevivem esmagando os loosers,
quer dizer, os mais pobres, os mais fracos, os mais desprotegidos. Não se
trata de fazer a revolução – tranquilizem-se os pragmáticos e os socialistas
caviar (à portuguesa) –, mas chegados a este ponto de desmantelamento
73
PORTUGUESES, SÓ MAIS UM ESFORÇO!
dos avanços políticos e sociais conseguidos nos dois séculos passados,
tornaram-se objectivos prioritários nos planos nacional e europeu reinventar a Democracia e reconstruir o Estado-Providência, adaptado aos
tempos actuais. Dentro de uns tempos vai-se perceber ainda melhor o que
quero dizer com isto e tais objectivos até se tornarão quase revolucionários.
Entretanto, agora que o calor aperta, Portugueses, só mais um esforço,
sejamos patriotas e reduzamos a despesa…tirando a gravata! Feliz o país
que tão geniais governantes e “governantas” tem!
74
Do Estado Social ao Estado Assistencial
Joaquim Jorge Veiguinha
O programa do XIX Governo constitucional tem como lema “superar a
cultura de paternalismos e das dependências” e estimular “uma cultura de
responsabilidade e abertura” (p. 4). Resta saber, porém, que responsabilidade
e que abertura o Governo de coligação PSD/CDS tem em mente e se existem
indícios de uma efectiva superação da “cultura de paternalismos e dependências”, já que esta frase tem sido nos últimos tempos frequentemente utilizada
para legitimar o ataque aos direitos sociais que, segundo uma perspectiva
neoliberista, ‘sufocam’ a ‘livre iniciativa’ dos indivíduos na ‘sociedade civil’.
Caso contrário, estaremos perante um mero exercício de retórica sem consistência que esconde, sob a capa dos títulos grandiloquentes do tipo “Confiança,
Responsabilidade, Abertura”, frontispício do programa governamental, outros
objectivos, de que se destaca o desmantelamento do Estado social e, ao contrário
do que se promete, a construção de um Estado assistencial num cenário de
saudoso retorno pós-moderno ao 24 de Abril.
Desde logo, o Governo anuncia que a sua vontade de “cumprimento escrupuloso das medidas do FMI e da União Europeia” se caracteriza por uma maior
ambição no “processo de ajustamento da economia portuguesa” (p. 16). Esta
intenção do aluno diligente que põe o dedo no ar antes dos outros e aproveita
todas as sugestões do professor para fazer o melhor trabalho de casa, é geralmente
um sintoma de provincianismo e mesmo de insegurança. Sob a capa do excesso
de zelo, pode esconder-se uma agenda conservadora que, por mais que se tente
ocultar, acaba por revelar-se, com todo o esplendor, em plena luz do dia. E isso
torna-se claro quando, com a gravidade que trai todas as promessas grandiloquentes, o Governo propõe um esforço de consolidação orçamental em que
dois terços serão suportados pela redução da despesa e um terço pelo aumento
da receita (p. 17). Em termos gerais, uma das características das políticas de
direita é privilegiar os cortes na despesa relativamente à criação de condições de
uma maior justiça fiscal e tributária. O modelo e paradigma desta orientação são
actualmente exemplificados pelo Partido Republicano dos Estados Unidos que
75
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL
defende um corte drástico nas despesas sociais, consideradas sintomas de um
Estado que tende cada vez mais para o ‘socialismo’, e uma redução da carga fiscal
sobre os mais ricos. O Governo PSD/CDS não se atreve a tanto, mas não se
afasta muito deste figurino, mesmo quando as suas primeiras medidas contradizem as promessas do seu programa.
O recente imposto extraordinário que incide sobre os rendimentos do trabalho
e isenta escandalosamente os rendimentos do capital que, como os dividendos,
não têm nenhuma função de reactivação do investimento produtivo, não é mais
do que uma versão ‘soft’ das concepções do Tea Party norte-americano, revelando
uma iniquidade monstruosa num país em que as desigualdades na repartição da
riqueza são enormes. Não contente com esta medida que, ao que tudo indica, é
apenas um primeiro passo, o programa do Governo esclarece-nos sobre o seu
‘projecto’ fiscal e tributário: redução da Taxa Social Única (TSU), em conformidade com o ‘Memorando de Entendimento” (p. 12), que, no entanto, acabou por
abandonar, ‘compensando-a’ com o aumento unilateral, à revelia da negociação
sindical, de meia hora diária da jornada de trabalho do sector privado; “transferência de categorias de bens e serviços das taxas de IVA reduzida e intermédia para
taxas mais elevadas” (p. 22); e – eufemismo peregrino – “simplificação fiscal” (p.
23) que consiste sobretudo na redução do número de escalões do IRS e do IRC,
mas que se traduzirá, na prática, numa redução da progressividade dos impostos
directos, tendo provavelmente como horizonte possível uma flat tax sobre o rendimento, como já acontece em alguns países recentemente entrados na União
Europeia. Eis como, por detrás da retórica tecnocrática aparentemente neutra no
plano político, este Governo revela a sua verdadeira natureza: a ‘reforma estrutural’ do sistema fiscal ataca profundamente a sua função redistributiva e reforça
claramente o seu carácter regressivo e socialmente injusto.
Do lado da despesa, destaca-se sobretudo o princípio orientador da ‘libertação’ das empresas para o sector privado (p. 21). Esta ‘libertação’ traduz-se
numa vaga de privatizações já previstas no Memorando do Entendimento:
EDP, REN, TAP, ANA, área de seguros e áreas não estratégicas da CGD e
CTT. Mas o Governo revela-se mais ‘ambicioso’ do que a ‘troika’ neste ponto,
defendendo a ‘eventual concessão’ a privados de carreiras e linhas dos STPC, da
Carris e do Metro de Lisboa, a que se junta a “definição do modelo de privatização/concessão do operador ferroviário estatal” e a “sua efectiva concretização,
designadamente na actividade de transporte de mercadorias e suburbano de
76
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
passageiros” (p. 42), bem como a de um canal da RTP que terá efeitos catastróficos na qualidade de informação e revelar-se-á, como alguns operadores
privados já se aperceberam, financeiramente desastroso em consequência da
hipertrofia do mercado publicitário. A obsessão privatizadora deste Governo
nem sequer tem em conta os ensinamentos históricos mais recentes, como é
revelado, por exemplo, pela desastrosa alienação dos caminhos-de-ferro britânicos, em que a eficácia e as condições de segurança do sistema ferroviário da
velha Albion pioraram significativamente, desmentindo as perspectivas ideológicas dos seus mentores thatcherianos. O quadro da ‘redução de custos’ ou
da ‘racionalização’ da despesa é completado pela criação de um “programa de
rescisões por mútuo acordo” na Administração Pública, a que se acrescenta uma
‘renovada’ “política de recrutamento altamente restritiva, avaliada globalmente,
em articulação com os movimentos normais de passagem à reforma dos servidores do Estado” (p. 12). A preservação dos postos de trabalho na Administração
pública é deste modo posta em causa. Além disso, o programa do Governo não
esclarece o que entende por “movimentos normais de passagem à reforma” dos
funcionários públicos, pelo que é lícito interrogarmo-nos se estarão ou não
na calha novos aumentos na idade de aposentação, novas penalizações pelas
reformas antecipadas ou até mesmo a proibição destas últimas em nome da
‘sustentabilidade’, num sector em que os chamados ‘direitos adquiridos’ são
concebidos por alguns como ‘privilégios’ que importa ‘nivelar’ pelo menor
denominador comum, se não mesmo erradicar completamente do horizonte.
Entretanto, os trabalhadores ‘excedentes’ da função pública que passarem para
o quadro de mobilidade especial, passarão a receber 66,7% dois meses depois e
50% ao fim de um ano.
Em nome da ‘liberdade de escolha’
Uma das palavras-passe do programa de Governo PSD/CDS é a ‘liberdade
de escolha’ que se transforma em princípio estrutural das políticas sociais.
Relativamente ao Sistema Nacional de Saúde (SNS), o Executivo propõe
“fomentar um maior protagonismo dos cidadãos na utilização e gestão activa
do sistema, através do reforço do exercício de liberdade de escolha dentro de
regras de acesso pré-definidas e reguladas, designadamente entre operadores
públicos. O cidadão deve ser um protagonista activo no exercício do seu direito a
cuidados de saúde” (p. 76). Por detrás destas considerações pomposas esconde-
77
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL
-se, porém, o projecto, há muito acalentado pela direita, do ‘opting out’ do
SNS, o que significa o seu esvaziamento a prazo com a transferência de uma
parte dos cidadãos que têm poder económico para exercer o direito de ‘liberdade de escolha’ para sistemas privados de saúde e a redução de um SNS cada vez
mais subfinanciado aos cidadãos de menores recursos. A americanização pré-obamaniana do sistema de saúde é o alfa e o ómega deste projecto em que,
apesar da promessa da defesa de um SNS universal e tendencialmente gratuito,
se reduz misteriosamente a sua cobertura a um “plano de prestações garantidas” (p. 76). O programa do Governo nada nos diz sobre que prestações são
ou não garantidas pelo SNS, o que levanta desde logo suspeitas sobre a cobertura universal dos cuidados de saúde e dá lugar à abertura de novas ‘brechas’
privatizadoras no próprio sistema, de que a “concessão da gestão de hospitais a
operadores dos sectores privado e social” (p.110) constitui um primeiro passo.
O princípio da ‘liberdade de escolha’ estende-se também ao sector da educação
com o conceito de que o “serviço público de ensino” pode ser prestado por
escolas privadas não apenas em regimes de contratos de associação com o Estado,
mas também em regimes de contratos simples (p. 113), como já acontecia anteriormente. No entanto, O fecho de escolas públicas e a provável deterioração
da qualidade pedagógica resultante do prosseguimento da política desastrosa
de constituição de mega-agrupamentos pode criar argumentos para um alargamento das formas de financiamento estatal das escolas do ensino particular e
cooperativo através de uma operação ideológica em que o conceito de ‘ensino
publico’ tenderá a tornar-se cada vez mais impreciso e indefinido. Neste sentido,
o Governo já começou a ‘actuar’ aumentando o financiamento de 2130 turmas
das escolas privadas de 181. 600 milhões de euros em 2010/2011 para 253. 700
milhões euros em 2011/2012. Paralelamente, permite que os colégios privados
constituam turmas de 12 alunos, enquanto decreta o aumento do número de
alunos por turma nas escolas públicas do ensino básico e secundário.
O mesmo princípio orienta a política do Governo relativamente ao acesso
da população à rede dos transportes públicos. Neste âmbito, pretende-se
‘compensar’ o fomento da regressividade do sistema fiscal e tributário com a ideia
de que “devem ser encontradas formas de minorar eventuais aumentos tarifários sobretudo com os cidadãos de menores rendimentos através de medidas de
discriminação de preços” (p. 39). Uma das primeiras medidas do Executivo foi
um aumento brutal de 15% dos preços dos bilhetes dos transportes públicos,
78
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
que entrou em vigor a partir de 1 de Agosto. O anúncio de que a ‘equidade’
será restabelecida através de medidas de “discriminação de preços” em benefício
dos mais desfavorecidos põe sub-repticiamente em causa um sistema de passes
sociais de acesso universal. Embora o programa governamental nada adiante
a este respeito, a defesa de uma lógica de abertura às privatizações de importantes ramos do sector de transportes públicos aponta para a formação de um
sistema dualista: de um lado, os cidadãos de menores recursos que beneficiarão
de medidas de ‘discriminação de preços’, permanecendo, porém, envolto no
mais denso mistério o modo como estas serão concretizadas; do outro, os cidadãos que, não tendo direito à alegada ‘discriminação de preços’, terão que pagar
as ‘tarifas normais’. Repare-se que já o anterior Governo PSD/CDS tentou
acabar com os passes sociais. O anúncio destas novas medidas aponta no mesmo
sentido, apesar da retórica sobre o restabelecimento da equidade: como se pode
restabelecê-la se, simultaneamente, é promovido um sistema fiscal e tributário
cada vez mais regressivo? Assim se começa a desenhar-se a passagem do Estado
social ao Estado assistencial.
O sistema dualista tem como um dos principais campos de aplicação a
‘reforma’ da segurança social. Apesar do abandono da redução TSU, o Governo
PSD/CDS disponibiliza-se a efectuar uma estudo sobre “a introdução para as
gerações mais novas de um limite superior salarial para efeito de contribuição
e determinação do valor da pensão”, mas também a avaliação da “possibilidade de se introduzir contas individuais de poupança remuneradas no sistema
público para efeito de pensão de velhice, com contribuição definida por parte
dos trabalhadores e empresas e conversão à idade de reforma, tendo em conta
a longevidade e o crescimento económico” (p. 93). A introdução de tectos
contributivos para os futuros pensionistas, medida já anunciada pelo Executivo,
não apenas pode pôr em causa a tão apregoada sustentabilidade da segurança
social, mas também criar, de novo em nome da ‘liberdade de escolha’ para as
gerações mais novas, um sistema profundamente discriminatório: de um lado,
um sistema público de pensões subfinanciado destinado aos mais pobres; do
outro, um sistema centrado em seguros ou fundos de pensão privados, para
todos os que auferirem de um rendimento que supere o tecto contributivo
estipulado. A isto acrescentam-se ainda as ‘contas individuais de poupança’
baseadas num sistema de ‘contribuições definidas’, o que não é mais do que
uma tentativa de americanização da segurança social portuguesa. De facto, este
79
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL
sistema, baseado na capitalização bolsista, substituiu, nos Estados Unidos, o
de prestações definidas em que o trabalhador tinha, à partida, garantida uma
pensão de aposentação com base nos descontos efectuados, independentemente
da instabilidade dos mercados financeiros. Os 401 (K) à portuguesa – planos
de contribuições definidas dominantes em terras norte-americanas – anunciam assim triunfalmente a sua entrada em cena, em nome de uma ‘liberdade
de escolha’ que acaba por converter-se em último recurso para os que não
conseguem sobreviver com pensões públicas cada vez mais baixas e socialmente
desvalorizadas e podem subscrever esquemas privados de aposentação baseados
na ‘lotaria’ da capitalização. Deste modo, é posto em causa o direito universal a
uma pensão pública numa lógica regressiva centrada nas desigualdades de poder
económico que complementa a da ‘simplificação’ do sistema fiscal e tributário. E com o ar mais natural deste mundo o governo estima que em 2030 o
sistema público de pensões centrado na repartição implodirá, o que representa
a admissão de uma regressão civilizacional intolerável: cada um por si a divina
providência por todos, eis o seu lema neste capítulo.
A desregulamentação das relações laborais
Relativamente às questões laborais e do emprego, o programa do XIX
Governo constitucional diz defender “uma legislação laboral que fomente a
economia e a criação de emprego, que diminua a precariedade laboral e que
esteja concentrada na protecção do trabalhador e não do posto de trabalho”
(p. 26). Antes de tudo, não se percebe como a protecção do trabalhador pode
ser separada da protecção do posto de trabalho, já que o Governo enuncia a
intenção de diminuir a precariedade laboral. De facto, colocar a tónica sobre a
protecção do trabalhador e considerar menos importante a protecção do posto
de trabalho é uma forma habilidosa de pôr em causa a estabilidade e segurança
no emprego ao mesmo tempo que se anuncia a intenção contrária. Assim, a
situação de ‘emergência social’, para a qual existe, como veremos, um alegado
programa de combate, serve de pretexto para o que os contratos a termo que
caduquem nos próximos doze meses possam ser renovados (p. 27). Mas isto
significa precisamente que a promessa de diminuir a precariedade laboral é
prontamente desmentida com o alargamento dos contratos atípicos à custa de
formas mais estáveis de contratação. Esta medida é, porém, apenas o primeiro
passo para uma desregulamentação das relações laborais e para o esvaziamento
80
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho (IRCT).
Relativamente à duração do trabalho, o Governo defende que o banco de
horas pode ser estabelecido “por acordo individual ou grupal, sem necessidade de previsão em IRCT e de funcionar por períodos plurianuais” (p. 28).
Segundo o nº 1 do art. 480 do Código de Trabalho (CT), “o empregador deve
afixar em local apropriado da empresa a indicação de instrumentos de regulamentação colectiva aplicáveis”. A dispensa desta necessidade relativamente a
uma questão tão importante como o banco de horas retira aos trabalhadores
o controlo mínimo que poderiam exercer sobre a duração do trabalho, já que
todo “acordo individual ou grupal”, podendo ser celebrado à revelia dos acordos
colectivos de trabalho, não passará de uma espécie de acordo ad hoc cuja informalidade beneficia em última instância as entidades patronais que podem impor
as suas condições para desregulamentar o horário de trabalho numa situação
em que o medo de perder o emprego fragiliza a capacidade dos trabalhadores
para defender os seus direitos laborais. Complementarmente, e tomando como
pretexto o alinhamento com “práticas internacionais de países de referência”,
o programa do Governo PSD/CDS, pretende adequar o tempo de trabalho
suplementar “às necessidades das empresas e do trabalhador”, o que se traduz
pela abolição da “dupla compensação” – 50% na primeira hora extraordinária
e 75% para as seguintes – já prevista no Memorando do Entendimento. Este
deixa aos trabalhadores a ‘opção’ entre uma “remuneração suplementar”, que
será significativamente menor do que no passado, e a “concessão de tempo
equivalente (ou majorado) de descanso (com um limite máximo anual) ou
férias” (p. 28). Esta ‘opção’ acaba por pôr em causa o direito à remuneração do
trabalho suplementar que não pode ser compensado por um tempo de descanso
ou de férias não apenas porque aquele é inseparável da jornada de trabalho, mas
também porque o estabelecimento do banco de horas tende cada vez mais a ser
definido arbitrariamente pela entidade patronal.
A desregulamentação das relações de trabalho atinge o seu apogeu com o
alargamento do âmbito dos contratos temporários. Segundo o nº 1 do art. 180º
do CT, “o contrato de trabalho temporário só pode ser celebrado a termo resolutivo, nas situações previstas para a celebração do contrato de utilização”. Este
contrato pode ser estipulado pela empresa que utiliza o trabalhador apenas “para
satisfação de necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente
necessário à satisfação dessa necessidade” (CT, art. 140º, nº1). O programa
81
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL
governamental visa ‘banalizar’ a celebração deste tipo de contratos que podem
ser realizados “sempre que houver uma verdadeira necessidade transitória de
trabalho” (p. 28). Além do mais, os contratos de trabalho temporário podem
tornar-se cada vez mais informais, já que é defendida “a possibilidade de prescindir de justificação, desde que respeitados certos limites percentuais deste tipo
de contratação, face ao total de trabalhadores da empresa” (p. 28). Este conjunto
de medidas pressupõe uma ideologia que privilegia a individualização das relações laborais em detrimento da contratação colectiva e aposta no alargamento
dos contratos atípicos. A resposta ao desemprego não pode, porém, passar pelo
alargamento da precariedade e instabilidade laborais, frequentemente associadas a baixos salários e, consequentemente, a um poder de compra reduzido,
completamente insuficiente para estimular a procura interna que é a base de
sustentação do emprego, bem como pelo aumento do horário de trabalho de que
se destaca a meia hora suplementar no sector privado que, pode transformar-se
na acumulação de um ‘crédito’ até 10 horas sobre cada trabalhador. Este crédito
poderá ser distribuído pela entidade patronal pelos dias úteis da semana ou então
concentrar-se num dia que “não seja de descanso semanal obrigatório”, o que
equivale a dizer que os trabalhadores serão forçados a fornecer gratuitamente 10
horas de trabalho num sábado por mês (4 x 2H 30), ultrapassando, por conseguinte, as 48 horas de trabalho que é o limite legal máximo do horário laboral
na UE. Mas o Governo está sempre predisposto a invocar um pretenso estado
de ‘emergência social’ para introduzir medidas em que o inevitável preço a pagar
pela alegada redução da taxa de desemprego consiste num trabalho carente de
direitos ou com direitos substancialmente restringidos.
Emergência social ou precariedade social?
Considerando que o país “vive hoje uma crise social”, o Governo propõe um
“programa de emergência social” em que se promete que “ninguém será deixado
para trás” (p. 81). Esta louvável intenção entra, porém, em contradição com
a ausência de políticas sociais redistributivas. A própria designação ‘programa
de emergência social” trai as benévolas intenções governamentais, pois todo o
Estado social que se preze dispensa, com a excepção da ocorrência de catástrofes
naturais imprevistas, a declaração de estados de emergência. De facto, as políticas
sociais redistributivas não visam limitar prejuízos, mas melhorar as condições
de vida de todos, nem tomam como pretexto o agravamento da situação das
82
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
pessoas com maiores carências para deixar os outros entregues a si próprios,
em nome de um conceito de ‘responsabilidade social’ que se transforma num
mero resíduo do axioma da ‘liberdade de escolha’. O programa do Governo
partilha uma ideologia que considera inevitáveis as desigualdades sociais e que,
por conseguinte, tende a desresponsabilizar o Estado na criação de uma sociedade mais inclusiva. A desregulamentação das relações laborais, a regressividade
do sistema fiscal e tributário, a redução do âmbito universal SNS centrado nas
misteriosas ‘prestações garantidas’, a inviabilização da maioria das urgências nos
hospitais públicos em consequência da redução de 50% do limite anual horas
extras dos médicos, a fusão e encerramento de hospitais públicos enquanto os
hospitais privados proliferam como cogumelos, a privatização parcial da segurança social através do estabelecimento de tectos contributivos e da introdução
de contas individuais de poupança em que as reformas futuras dependem da
aleatoriedade das aplicações na Bolsa, apontam para um desmantelamento do
Estado social e para a sua conversão em Estado assistencial.
A característica central do ‘programa de emergência social’ é a transferência
da responsabilidade social do Estado para outros sujeitos e a total ausência de
propostas estruturadas de política social. Prova disso é que a “base da estrutura”
que visa garantir que “ninguém fica para trás” será transferida para as “autarquias (sinalização das situações de acompanhamento e controlo)” ao mesmo
tempo que lhes são cortados financiamentos, enquanto “na sua gestão devem
participar as IPSS e as organizações da sociedade civil” (p. 86). Mas isto significa que não existe verdadeiramente um programa integrado de combate às
situações de pobreza, mas apenas um conjunto muito vago de medidas avulsas,
de que se destaca a “criação de bolsas de voluntários” que se empenhem em
‘causas sociais’ como a constituição dos banco alimentares e o apoio à terceira
idade nos seus domicílios. Nada nos move contra o voluntariado. Antes pelo
contrário, apreciamos enormemente a dedicação, a entrega e o espírito de solidariedade das pessoas que se dedicam a ajudar os outros numa época em que se
difunde cada vez mais um individualismo exclusivista. No entanto, não é através
de apelos ao voluntariado ou às ‘iniciativas’ da sociedade civil que se resolvem
os problemas resultantes do agravamento das desigualdades sociais. Tais apelos
denotam uma concepção assistencialista de intervenção social que acaba por
legitimar as assimetrias sociais que afirma querer combater. A isto se acrescenta
ainda para completar o quadro a obrigação de “prestação de trabalho comuni-
83
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO ASSISTENCIAL
tário pelos beneficiários do RSI” (p. 90), bem como a criação de “programas
dirigidos à inserção de desempregados com mais de 55 anos, através de acções de
formação profissional específica, com o objectivo de fornecer as competências
adequadas para o desempenho de funções de apoio social, no quadro da Rede
Nacional de Solidariedade” (p. 30). Deste modo, se abre a porta, em nome da
‘emergência social’ e de uma ‘Rede Nacional de Solidariedade’ de contornos
indefinidos, a uma concepção que considera o subsídio de desemprego não
como um direito, mas como uma mera contrapartida de uma prestação que de
voluntária se transforma em obrigatória. De facto, o ministro da Solidariedade
Pedro Mota Soares, já disse que a todos os que se recusarem a prestar o trabalho
de ‘emergência social’ em lares, creches e outros equipamentos serão retirados
os subsídios de desemprego (Ver: DN, 6.08.2011). Além do mais, a entrada
destes ‘colaboradores’ forçados a baixo preço contribuirá para reduzir ainda
mais os já muito baixos salários dos trabalhadores das instituições privadas de
solidariedade social.
Em conclusão, o programa do Governo PSD/CDS aponta para o aprofundamento de um preocupante dualismo social: dum lado, uma minoria opulenta
cada vez mais exígua; do outro, uma zona de exclusão e pobreza sociais destinatária
de políticas assistencialistas ou de um programa de ‘emergência social’. Entre uma
e outra situa-se uma zona intermédia de contornos indefinidos e com expectativas tendencialmente decrescentes em que vigora o princípio da ‘liberdade de
escolha’, complementado por um conceito de ‘responsabilidade social’ em que o
número cada vez menor dos que possuem capacidade aquisitiva podem satisfazer
a sua ‘boa consciência’ distribuindo pelas instituições privadas de solidariedade
social as sobras do seu ‘bem-estar’ para aliviar o ‘mal-estar’ dos indigentes desprovidos de direitos e dependentes da caridade institucionalizada: alimentos para os
bancos contra a fome, vestuário usado e mesmo medicamentos. Os primeiros e
os terceiros estão muitas vezes fora de prazo, pois, como diz o ditado, “a cavalo
dado não se olha o dente” e constitui um sacrilégio que os pobres e doentes sejam
mal agradecidos. Nesta verdadeira ‘terra de ninguém’ os cidadãos serão avaliados
segundo a sua capacidade e poder económico, já que as prestações do Estado
social serão cada vez mais reduzidas. Para poderem ter acesso às prestações não
garantidas de um SNS cada vez menos universal, estes deverão subscrever seguros
privados de saúde, bem como planos privados de pensão centrados na capitalização para não ficarem reduzidos a pensões públicas cada vez mais reduzidas.
84
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
Não sendo indigentes, não terão acesso à ‘tarifa social’ dos transportes públicos,
mas deverão suportar preços diferenciados conforme os rendimentos. Da mesma
forma, não terão direito a receber as sobras dos medicamentos em final de prazo,
medida de ‘emergência social’ enunciada em 4 de Agosto de 2011, para reduzir
os desperdícios e ajudar os mais pobres dos cada vez mais pobres, mas deverão
pagar uma percentagem cada vez maior dos medicamentos em primeira mão que
consomem, já que as comparticipações estatais tenderão a reduzir-se cada vez
mais. Assim, se retoma, de novo, o tristemente célebre lema de um membro do
governo cavaquista: “Quem quer saúde que a pague”.
A transformação regressiva do Estado social em Estado assistencial basear-se-á num empobrecimento generalizado da população considerado como uma
inevitabilidade. Não é verdade que, apesar da retórica do programa do Governo
sobre a promoção do emprego, o ministro das Finanças considera ‘natural’ que
a taxa de desemprego atinja 13, 5% em 2012 – estimativa subavaliada se tivermos
em conta os cortes salariais na função pública, o aumento do horário de trabalho
no sector privado, a brutal quebra do investimento e a redução da procura nos
mercados para onde se dirige a maior parte das nossas exportações – e que apenas
comece a descer lentamente em 2013? Não explica, porém, como nestas condições socialmente restritivas, contrárias à criação de emprego e à dinamização da
procura interna, se poderá reduzir o défice público para 3% em 2013, quando
já se torna muito difícil cumprir a meta de 4,5% acordada com a ‘troika’ em
2012. A sobretaxa de 50% sobre o 14º mês que incide exclusivamente sobre os
rendimentos de trabalho e poupa escandalosamente os rendimentos do capital,
em 2011, corte dos subsídios de férias e natal dos funcionários públicos em
2012, o aumento brutal de 15% das tarifas dos transportes públicos e a redução
em estudo da rede pública de transportes metropolitanos revelam claramente
que o Governo do PSD/CDS não está minimamente preocupado com a justiça
social nem com a repartição equitativa dos sacrifícios necessários para equilibrar
as contas públicas. As políticas de redistribuição social dos rendimentos, pilares
do Estado social, são substituídas pela caridade privada institucionalizada que
legitima, na prática, uma desigualdade e precariedade sociais que não param
de crescer. Tempos sombrios se avizinham: o processo de degradação e fascização sociais e a dependência dos mais fragilizados relativamente aos que detêm
alguma forma de poder ou de predomínio avançam a passos de gigante.
85
IDEIAS
Precisamos de mais Europa contra a Crise*
Guilherme d’Oliveira Martins
N
ão há organizações humanas irreversíveis e a União Europeia,
apesar de resultar de uma obrigação de sobrevivência, não
escapa a esta consideração. Desde o pós-guerra, vivemos hoje o
momento mais perigoso para o equilíbrio do velho continente.
Não falo só das dificuldades económicas, que são superáveis, mas sim das
repercussões políticas da perigosa fragmentação social a que se assiste. A crise
das dívidas soberanas na Europa é essencialmente política, uma vez que resulta
da tentação fragmentária e dos egoísmos nacionais – agora evidentes, quando
a memória da destruição europeia da primeira metade do século XX vai-se
esvaindo, mostrando-se as novas gerações pouco atentas à exigência de lançar
planos e políticas audaciosos, visando assegurar os equilíbrios e uma coordenação de vontades para defender os interesses vitais europeus. A Europa é um
continente heterogéneo, que não pode ter a tentação de realizar uma união
artificial. Não há uma nação europeia, mas sim uma união de Estados e Povos
livres e soberanos. As duas legitimidades, dos Estados e dos cidadãos, têm de
ser preservadas. Daí que sejamos confrontados com o desafio de distinguir,
em nome da subsidiariedade, os objetivos nacionais e supranacionais. Por
isso, a ideia de governo económico da União obriga a compreender que a
coesão económica, social e territorial terá de resultar de iniciativas comuns
de investimento e emprego, de medidas tendentes à justiça distributiva e do
fortalecimento de instrumentos de democracia supranacional, capazes de
envolver os cidadãos e de reforçar a legitimidade do exercício.
A Europa não poderá ser vista como uma associação de formigas e cigarras, na
imagem da fábula de Esopo, cheias de má consciência ou de momentâneo brio.
Não basta proclamar a virtude da disciplina das despesas públicas, é indispensável
colocar o rigor e a exigência permanentes ao serviço de uma economia europeia
saudável, em que cada um seja capaz de desempenhar o seu papel – adequando os
*
Este texto foi redigido segundo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
87
PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE
recursos às finalidades, para que as necessidades económicas sejam satisfeitas de
acordo com os recursos disponíveis. E o certo é que é indispensável percebermos
que o «efeito europeu» deve funcionar, permitindo que, em conjunto, possamos
superar a grave crise que atravessamos. Só em conjunto poderemos ter respostas.
Cada um por si, apenas poderá encaminhar-se para o desastre. E o mesmo se
diga se a União Europeia se limitar a dar receitas, sem se comprometer com a
tarefa essencial de ajudar na ação de curar. Como lembra Jean-Paul Fitoussi: «os
programas de rigor sucedem-se a um ritmo acelerado nos países ditos “da periferia”, até se propagarem hoje ao centro da Europa». (Le Monde, 21.7.2011). É,
no entanto, preciso perceber que o rigor é positivo se não se tornar depressivo e
insuscetível de ajudar a recuperação. Como em qualquer terapia, temos de evitar
a todo o custo que o enfermo, não morrendo da doença, seja condenado pela
cura. Os erros passados (a ilusão contabilística, o crédito sem freio, a especulação
indiscriminada) não podem dar lugar ao salve-se quem puder.
Precisamos de uma sábia ligação entre uma disciplina durável e a preservação de medidas sociais que atenuem as desigualdades e realizem a equidade e
a eficiência. A subalternização das políticas sociais e da coesão económica terá
efeitos dramáticos. E Fitoussi lembra ainda: «a solvabilidade – a capacidade de
reembolsar as dívidas de cada um – é uma questão de futuro: depende, é um
truísmo, da importância das receitas futuras, comparadas às somas que convém
reembolsar. Programas de austeridade muito exigentes reduzem as perspetivas
de receitas, enquanto as taxas de juro muito elevadas aumentam as anuidades
de reembolso». Temos, assim, de recusar a tentação de agravar os programas
de resgate, preferindo preservar a sustentabilidade das finanças públicas em
ligação com a recuperação económica. Sustentabilidade e recuperação são faces
de uma mesma moeda. Os responsáveis da zona euro não podem continuar a
brincar com o fogo, correndo o risco de precipitar a Europa e o mundo numa
crise ainda maior, que os especuladores (em busca de ganhos fáceis) visam
induzir, como se tem visto nos últimos dias, não só na Europa, mas também
nos Estados Unidos. Numa palavra, não podemos pedir a responsabilidade
das cigarras, enquanto cultivamos a irresponsabilidade das formigas. É mesmo
disto que se trata – num mundo que parece funcionar às avessas.
Os sinais que se perfilam no horizonte são cada vez mais preocupantes. A
globalização, com as suas virtudes e defeitos, traz-nos a rápida transmissão
88
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
das enfermidades. A Europa e os Estados Unidos da América vivem um
momento muito difícil, em que os erros se acumulam (e se reproduzem)
e, em vez de sinais duráveis de recuperação, há, a cada passo, sintomas de
agravamento de todas as incertezas. O certo é que há um exercício para
o qual não tem havido respostas satisfatórias, que corresponde à necessidade de harmonizar as medidas de consolidação orçamental e de controlo
das dívidas dos Estados e das economias com a promoção de investimentos
reprodutivos e de emprego, capazes de pôr as economias a funcionar com
crescimento económico e melhor desenvolvimento humano.
Se voltasse ao mundo, John Maynard Keynes, um liberal aberto, ciente da
importância da cultura e da coesão, conhecedor do género humano, estudioso
e prático do curto prazo e da complexidade do equilíbrio económico (fora
das tentações unívocas e simplificadoras dos clássicos, como Jean-Baptiste Say),
depararia, para seu grande espanto, com os erros simétricos dos seus pretensos
amigos e adversários. Os amigos esqueceram-se de integrar a noção de procura
efetiva no contexto do mercado sem fronteiras, envolvendo a complementaridade entre a ação das políticas públicas e a responsabilidade dos agentes
económicos. Afinal, para Keynes, o crédito público teria de ser momentâneo
e não sistemático, devendo ser reduzido em situações de pleno emprego – e
aí não tem havido o «fine tuning» exigido pelo acompanhamento cuidado
das conjunturas. Os adversários têm cometido o erro de sinal contrário, incapazes de entender que a estabilidade de preços deve ser alcançada através da
compreensão dos diversos tipos de equilíbrio – ora de pleno emprego, ora
de subemprego. Numa palavra, a falsa vulgata keynesiana tem prevalecido,
esquecida da lição fundamental do mestre de Cambridge – segundo a qual a
estabilização da conjuntura obriga a uma atenção permanente à evolução volúvel
e inesperada da procura efetiva global. Se regressarmos à leitura atenta da obra
de Keynes facilmente percebemos que há muito que os decisores fundamentais
esqueceram o seu alcance e as suas passagens fundamentais.
Olhemos com atenção os casos europeu e português. Lembremo-nos do
memorando do triunvirato (UE – BCE – FMI). Diga-se, em abono da verdade
que os objetivos aí consagrados são corretos e devem ser cumpridos. As medidas
de disciplina e rigor das Finanças Públicas devem ser aplicadas, considerando
que o objetivo essencial é reencontrar o caminho do crescimento económico
e do desenvolvimento. A dívida pública deve ser consistentemente reduzida,
89
PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE
com mais eficiência económica e mais e melhor emprego. Estamos perante
uma exigência lançada à economia real (pública e privada), impondo-se evitar,
a todo o custo, o agravamento da tendência depressiva da economia. Se não
dermos possibilidades às economias periféricas de crescer, apenas estaremos a
agravar os problemas de todos. A indústria alemã precisa do mercado europeu,
as economias europeias precisam da coesão económica, social e territorial da
União, a economia global será gravemente afetada se o euro falhar. Daí que,
quando se ouve o discurso do fim do euro, o que se passa é que quem o cultiva
ajuda neste momento a fragilização da União Europeia.
O euro é uma tábua de salvação, desde que haja vontade e coragem
para assumir o governo económico europeu, mais necessário que nunca.
Aliás, percebeu-se bem que a lógica depressiva na Europa já se transmitiu
aos Estados Unidos (num estranho jogo de espelhos) – podendo anunciar
uma recessão na economia mundial. Como se vê com a Itália e a Espanha, o
ataque dos especuladores ao euro seguiu a bem conhecida técnica do salame.
A começar nos elos frágeis, houve a tentação de pensar que os mercados se
satisfariam com a oferta aos predadores de algumas ovelhas, mais ou menos
inocentes. No entanto, os lobos não se satisfizeram. O primeiro resgate da
Grécia não funcionou porque não houve a capacidade de entender que se
exigiria a antecipação de medidas que protegessem a moeda única e que pressupusessem uma autêntica solidariedade, que não existiu.
Todos estamos, contudo, no mesmo barco. Só a Europa (se existir e se
se coordenar) pode evitar uma recessão mundial com efeitos imprevisíveis.
Impõe-se que cada um cumpra o seu papel: que as medidas disciplinadoras se
liguem a decisões inovadoras e à criação de riqueza. Eis por que razão a disciplina das Finanças Públicas deve ser cada vez mais rigorosa – desde que haja
capacidade criadora de riqueza e de emprego, e se favoreça a coesão social, a
confiança e a justiça distributiva. As Finanças Públicas são um instrumento
ao serviço das pessoas, não podem tornar-se um fim em si. Daí a importância
das políticas sociais em ligação com o aperfeiçoamento da legitimidade política do exercício – como tem insistido Pierre Rosanvallon. Só haverá. Deste
modo, futuro para a Europa social se o rigor e a justiça se completarem.
Permitam-me ainda uma reflexão complementar. O tema está na ordem
do dia: surgem diversas propostas no sentido de introduzir nas constituições
90
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
europeias limites formais no tocante à dívida pública e ao défice orçamental.
Diga-se em abono da verdade que as preocupações subjacentes são legítimas.
Pretende-se, afinal, evitar surpresas futuras no tocante à estabilidade do euro
resultantes da indisciplina orçamental. Theo Weigel, Ministro das Finanças
alemão, em 1997, pretendeu atingir esse objetivo através do que designou
como Pacto de Estabilidade, que seria um instrumento internacional autónomo com força própria, de natureza intergovernamental, que constrangeria,
mercê da existência de sanções, os Estados-membros do Euro. Tal não viria a
ser aceite pelo Conselho Europeu, prevalecendo a lógica supranacional, traduzida na aprovação de regulamentos sobre os défices excessivos, que conhecemos
como Pacto de Estabilidade e Crescimento, e que foram alterados em 2005,
para darem (e bem) ênfase sobretudo ao endividamento público e à equidade
intergeracional. Muitos consideram, porém, esses regulamentos da União
Europeia insuficientes na sua força dissuasória. Daí a insistência na necessidade
de introduzir nas Constituições dos países membros da União limites constitucionais expressos – à imagem e semelhança da regra de ouro constante na
Lei Fundamental alemã. Reza o artigo 115º. 2 da Grundgesetz: «As receitas e
despesas devem ser equilibradas basicamente sem recorrer a créditos. Este princípio é cumprido, quando os recursos provenientes de créditos não ultrapassem
0,35 por cento em relação ao Produto Interno Bruto nominal. Adicionalmente,
há de ter-se em conta os efeitos de uma evolução conjuntural que não corresponda à situação normal de altas e baixas simétricas». Em Inglaterra, por outro
lado, a Constituição material inclui, desde 1997, por decisão do Governo de
Tony Blair, quando Gordon Brown era Chanceler do Tesouro, a regra de
ouro segundo a qual «o Governo contrairá crédito apenas para investimento e
não para financiar despesa corrente». Facilmente percebemos que as soluções
possíveis são sempre muito diversificadas, deparando-se, a cada passo, com as
variáveis múltiplas e imprevisíveis presentes nas políticas de finanças públicas.
De facto, a tentativa de solucionar problemas políticos conexos com condicionantes económicas e sociais complexas merece uma especial atenção, uma vez
que é um engano pensar-se que uma suposta «inconstitucionalidade» da Lei do
Orçamento poderá evitar a indisciplina financeira e fiscal. Impõe-se, assim, dar
especial atenção à política (politics e policy) não a confundindo com técnica. Nesse
sentido, por exemplo, a ação dos Tribunais de Contas e organizações superiores
de controlo, em especial quando há instrumentos de fiscalização prévia quanto às
91
PRECISAMOS DE MAIS EUROPA CONTRA A CRISE
operações de maior dimensão e quando há a possibilidade de acionar a responsabilização financeira dos agentes e exatores orçamentais, revelam-se de maior
eficácia – sobretudo se os instrumentos disciplinadores do Tratado da União
Europeia funcionarem (pela existência de sanções efetivas, segundo um princípio de igualdade entre todos os Estados). Ora, a Constituição da República
Portuguesa não só consagra o reconhecimento, com todas as consequências, do
fenómeno supracional da União Europeia, integrando na nossa ordem jurídica
o direito comunitário, mercê de um fenómeno de partilha de soberanias (onde
se integra o regime de responsabilidades quanto aos défices excessivos e limites
da dívida pública), mas também assume um sistema de responsabilidade financeira, baseado no Tribunal de Contas e na participação deste na rede europeia
englobando o Tribunal de Contas europeu.
Há, pois, na Constituição material portuguesa um sistema que consagra,
desde já, a existência de limites claros quanto à dívida pública e ao défice
orçamental. E quais são eles? Nos termos dos Tratados e dos regulamentos
aplicáveis: 3 por cento do PIB para o défice e 60 por cento quanto à
dívida pública. Estes compromissos estão claros e a sua definição não deve
oferecer dúvidas – devendo ter consequências sancionatórias no âmbito de
um governo económico da União. No entanto, importa compreender a
crítica justa feita por Jacques Delors, desde o início, à aplicação formalista
de critérios basicamente monetários. A União Económica e Monetária só
pode funcionar se for económica, isto é, se integrar as políticas de coesão
social e de justiça distributiva, em articulação com a estabilidade monetária. Ora, a consagração de limites formais nas Constituições obriga a criar
mecanismos rígidos de consequências imprevisíveis, sobretudo em países
da coesão, como Portugal, em que a disciplina e a convergência económica e social têm de ser vistas lado a lado. Nesse sentido, a inclusão de
uma norma formal na Constituição revela-se falível, por duas razões: ou
porque confunde um desiderato político com uma interpretação técnica,
ou porque não teria em consideração a dinâmica da evolução económica
numa Europa mais concorrencial, mais coesa e justa, que a prática e a jurisprudência comunitárias terão de concretizar. Se a Constituição material
consagra já os limites europeus, então consideremo-los, adicionando-lhes
a coordenação do governo económico europeu! É mais prudente e eficaz.
92
O Trágico Regresso das Direitas*
Alfredo Margarido
N
a Europa as eleições sucedem-se levando aos mesmos resultados:
aumento do número de eleitores que abandonam as esquerdas
tradicionais, preferindo-lhes os vários matizes e sobretudo da
extrema-direita nacionalista e populista. Face a esta vaga, falsamente inesperada, as esquerdas mostram-se desarmadas, na medida em que
uma parte delas renunciou de maneira explícita ao vocabulário e ao projecto da
esquerda, como se verificou no caso francês, tendo Leonel Jospin anunciado
que o seu programa eleitoral não seria socialista (!).
Esta situação não poder ser explicada sem o recurso à história, na medida em
que não estamos perante um movimento súbito e desordenado, mas antes face à
acumulação de vagas que, lenta mas constantemente, anunciaram a reconversão
de uma fracção das populações europeias ao vocabulário da extrema-direita. Se
o racismo sempre foi uma constante da Europa cristã e branca, se o anti-semitismo aparece apenas como uma variável interna desse racismo, não podemos
deixar de mostrar a nossa surpresa perante a violência da metamorfose.
Do ponto de vista da história, seria fácil regressar ao nazismo, já que este
oferece, com os seus campos de concentração e a destruição total e deliberada
de alguns segmentos das populações europeias – judeus à frente, logo seguidos
por ciganos, homossexuais, doentes mentais, marcha funesta que levava na
cauda os “políticos” comunistas e anarquistas antes de quaisquer outros
– o modelo perfeito da arianização, ou a branquização da Europa. Parece
contudo indispensável evocar algumas outras circunstâncias europeias.
Uma das consequências ideológicas mais funestas da guerra opondo, dentro
do quadro amplo da segunda guerra mundial, os russos aos alemães, foi a aceitação de uma oposição firme e declarada entre os “dirigentes”, evidentemente
perversos, e o “povo”, ou seja, os “soldados”, inocentes apenas vítimas da perversão
*
Este texto de Alfredo Margarido encontrava-se em carteira. Apesar de algumas passagens estarem desactualizadas, o
artigo é, em termos globais, de grande actualidade. Por isso, decidimos publicá-lo a título póstumo. Informamos os
leitores que, nos próximos números, poderemos publicar na Finisterra novos textos do espólio do autor.
93
O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS
dos dirigentes. Tal foi o ponto teórico afirmado dia e noite nas emissoras russas
recorrendo ao alemão. O seu autor foi um subpai do povo, Molotov, que teve a
seu cargo a gestão dos negócios internacionais da defunta União Soviética.
Os dirigentes soviéticos nem sequer se deram à tarefa de verificar que os
dirigentes nazis não matavam ninguém: eram os “inocentes”, os soldados da
Wehrmacht que destruíam e torturavam os russos, os judeus antes de quaisquer outros, mas depois os comissários políticos e, enfim, todos os que falavam
russo, viviam na Rússia e deviam ser destruídos, pois não podiam deixar de ser
comunistas. A verdade, porém, é que esta angelização do “povo”, reforçada pela
“diabolização” dos dirigentes, forneceu uma grelha ideológica onde se eliminou
todo e qualquer elemento dialéctico, que ainda continua a funcionar.
Basta observar a tristeza compungida de alguns comentários provindos da
esquerda burguesmente bem comportada: em França, os operários não teriam
receado votar na extrema-direita, o que deve ser interpretado como uma espécie
de movimento contra-natura, aceitando-se que o proletariado pertence naturalmente à esquerda. O código genético do proletariado seria de natureza a
impor esta única orientação, pondo termo a qualquer forma de livre-arbítrio.
Basta ler os comentários da imprensa durante esse período, para estarmos em
condições de nos dar conta desta “naturalização” das escolhas políticas.
Esta maneira de ver as coisas apoia-se mais numa concepção biológica, ou
para-biológica, do que na coerência das escolhas políticas. Tais comentadores
ignoram aos que parece a velha e sempre actual lição de Karl Marx: não se deve
confundir a “situação” de classe com a “consciência de classe”. E um certo número
de marxólogos consagram um amplo esforço para descrever as diferentes formas
de alienação que pesam sobre os homens que trabalham. A eliminação de Karl
Marx, considerado responsável pelas malfeitorias de Estaline e dependentes,
contribui de maneira evidente para a opacidade teórica em que estamos a viver.
Tanto mais que a “situação de classe” produziu alguns sólidos frutos teóricos,
como no caso do “foco”, caro aos cubanos e a Régis Debray, que acreditava que
o “instinto” revolucionário estava presente nos trabalhadores dominados ou
colonizados, como também se pode ainda hoje ler na obra teórica de Frantz
Fanon. Confiando à natureza o que pertence ao trabalho político, acabou por
se renunciar à simples análise dos parâmetros da mundialização, que conseguiu anular o esforço teórico indispensável à análise das tensões existentes.
Ora como esquecer que o etnocentrismo, sendo embora um conceito do século
94
ALFREDO MARGARIDO
XIX, constitui um dos pilares mais activos da relação entre o Mesmo e o Outro? A
sobrevalorização dos valores do grupo – do mesmo – exige a desvalorização paralela
dos valores do Outro. Podemos encontrar um belo exemplo deste mecanismo em
Heródoto, em Euterpe, que compara algumas práticas egípcias com a dos gregos, para
concluir que, dadas as diferenças, “os egípcios não eram homens”. Esta desumanização não pode deixar de arrastar consigo o seu comportamento: o enselvajamento.
A Europa que possui há milénios fortes sentimentos anti-semitas, reforçou-os com o anti-islamismo. Durante séculos o Mediterrâneo multiplicou as
guerras provocadas pelas religiões e, de resto, continuamos nos nossos dias
mergulhados na violência irracional desses afrontamentos. Como se a diferença religiosa não fosse suficiente como fonte de conflitos, acrescentaram-se
as diferenças somáticas, que serviram entre o mais para justificar e reforçar,
pelo menos a partir do século XV, a escravatura africana e o tráfico de escravos.
Não podemos esquecer que a liquidação dos judeus pelos nazis alemães foi
precedido pela violenta repressão exercida pelo exército vermelho soviético,
organizado por Trotsky, não só contra os “anarquistas”, mas sobretudo contra os
“nacionalistas”, isto é, os defensores dos valores nacionais, que tinham acreditado
que a solução federalista podia conduzir à exacerbação desses valores nacionais que
o Império só podia ter maltratado, procurando erradicá-los de maneira definitiva. Como se a Revolução só pudesse ser possível quando decidida a eliminar a
própria originalidade social e cultural das populações. Talvez pressentindo esta
violência, Karl Marx fora incapaz de explicar a Vera Zassulitch qual podia ser a
contribuição do mir na organização futura do campo russo ou soviético.
Se a Alemanha pôde liquidar seis milhões e meio de judeus, modificando
para sempre a estrutura antropológica e cultural da Europa, tal se deveu à existência desse anti-semitismo, que já multiplicara os progroms e que permitira
que a França levasse a cabo um progrom militaro-judicial no “affaire Dreyfus”.
Foi necessária a associação do Vaticano com os Estados Unidos e a Alemanha
para proceder a esta liquidação maciça, que pode contar com cumplicidades
tanto teóricas como logísticas de quase todos os aparelhos políticos europeus.
Arthur Miller conta nas suas Memórias que o anti-semitismo do Estado-maior norte-americano impediu que fossem bombardeadas as linhas de
caminho-de-ferro que levavam aos campos de concentração, mantendo em
funcionamento normal este instrumento sem o qual não teria sido possível
esvaziar a Europa de judeus, transformados em fumo nos vários campos de
95
O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS
concentração instalados a leste da Europa. Ou seja, a burocracia de Eichman
foi servida pela cumplicidade objectiva do estado-maior norte-americano,
mau grado a intervenção apaixonada dos judeus instalados na Suíça.
O após-guerra complicou muito as situações, pois que a reconstrução assim como
a reestruturação da produção, exigiam força de trabalho numerosa, vigorosa e disciplinada. O remédio para esta situação já fora enunciado no imediato após-primeira
guerra mundial: era indispensável importar trabalhadores. Os italianos permitiram
que a construção civil francesa recuperasse rapidamente, tal como os polacos forneceram os trabalhadores para as actividades mineiras, sobretudo no que se refere ao
carvão ou ao potássio. Não sem uma contribuição modesta dos portugueses.
Face às destruições provocadas pelos bombardeamentos e outras operações
destruidoras, foi necessário voltar a importar trabalhadores estrangeiros, a partir
de 1945. A Europa do plano Marshall foi também a Europa do trabalho emigrado.
As cidades foram recuperando o seu perfil clássico, e pouco a pouco as populações,
mesmo se não enriqueceram, passaram a poder comprar uma fracção do supérfluo
com que sempre tinham sonhado. O “dois cavalos” permitiu que o proletariado e
fracções da pequena burguesia pudessem comprar o seu “carrinho”.
Importar trabalhadores, quer dizer aceitar novas regras sociais, pois se trata
de corpos, de línguas, de religiões, de cozinhas e até de vestuário diferentes.
A coabitação foi possível, como lembram algumas memórias (por exemplo,
Cavana), enquanto os emigrantes aceitaram os guetos, isto é, a instalação à
margem da cidade. A política dos “arrabaldes” (as banlieues), permitiu dividir
as populações em dois grupos que só contactavam nos transportes e nos armazéns: instalou-se uma fronteira fria entre os dois grupos de produtores. Esta
situação agravou-se, no caso dos portugueses, com a criação dos “bidonvilles”,
os famosos bairros de lata onde, durante anos, os portugueses esperaram que a
sociedade francesa lhes permitisse instalar-se no espaço social urbano.
À medida que, graças também ao trabalho dos emigrantes, a Europa enriquece,
descobre a necessidade da intolerância. Ouvi há dias o jovem cabo-verdiano agora
promovido na Holanda devido ao assassinato do dirigente da extrema-direita Pim
Fortuyn. O que pretende ele? Pois simplesmente o encerramento das fronteiras,
para impedir a instalação na Holanda de novos emigrantes. Deve esperar-se que
os mais antigos, entre os quais ele se conta, se instalem confortavelmente. Uma vez
isso feito, poder-se-á então rever as regras impostas ao controlo da emigração.
A Holanda votou agora, assegurando um resultado histórico à lista Pim
96
ALFREDO MARGARIDO
Fortuyn, dirigente assassinado em Roterdão a 6 de Maio. Tal como se verificara em França, a emigração foi um dos cavalos de batalha do debate eleitoral.
Em França, o debate está marcado pela forte presença de muçulmanos
oriundos das antigas colónias francesas – Argélia, Marrocos e Tunísia –, mas
também pela presença crescente de trabalhadores oriundos da África negra,
que continuam a optar pelas vias tradicionais da emigração, que a primeira
guerra mundial abrira aos africanos dependentes do processo colonial.
O facto de se registar em França a existência de regiões mais duramente racistas,
sublinha a dupla importância das populações francesas provenientes da África do
Norte – les rapatriés, ou os pieds noirs, entre os quais se contavam alguns pieds rouges – que
continuam a chocar-se com os antigos colonizados, muçulmanos na sua maior parte,
mesmo se se regista uma forte tendência para abrandar o ritmo e a pureza das práticas
religiosas ortodoxas. Nesta região, é a guerra colonial que continua e que não parece
destinada a apaziguar-se. Não esqueçamos que Jean-Marie Le Pen foi oficialmente
pára-quedista (Le lieutenant Le Pen) na Argélia, sendo acusado – embora sem provas – de
estar associado a práticas de tortura e a crimes violentamente antimuçulmanos.
Uma das questões essenciais reside nos dias de hoje num duplo descrédito: não
haveria diferença entre a esquerda e a direita, pelo que na escolha seria não só impossível como absolutamente inútil. Se tal se diz, devemos contabilizar o peso e o sentido
desta afirmação.É evidente que esta dissolução da diferença deve ser atribuída à
esquerda, que não procede ao trabalho de análise política, deixando acreditar a ideia
de que o mais importante reside na competência dos gerentes dos diferentes aspectos
da sociedade moderna. Assim, por exemplo, as famosas listas de espera nos hospitais
seriam quase só a consequência da imperícia dos administradores dos hospitais.
A falta de estudos sistemáticos até permite que esta ideia seja correntemente aceite quando estamos perante uma situação que deriva de situações
sociais e técnicas inéditas. Os portugueses só agora começam a descobrir
o corpo e as práticas da medicina preventiva. Por outro lado, a segurança
social permite-lhes consultar os médicos, quer com boas razões, quer sob a
pressão dos seus próprios fantasmas. O que aumenta de maneira evidente
a recursos aos médicos e aos hospitais. Por boas, por excelentes razões, que
contudo, ainda não conseguiram encontrar a resposta política adequada.
Os governos socialistas são responsáveis pela despolitização deste problema, sendo
Correia de Campos um dos gestores que se mostrou incapaz de compreender o alcance
das suas intervenções. Ao proceder à despolitização, os ministros obrigam a esquerda
97
O TRÁGICO REGRESSO DAS DIREITAS
a renunciar aos seus valores próprios, fornecendo à direita um diploma de superioridades gestionária, que tem sido constantemente exibido, mesmo se não podemos
de momento contar com resultados largamente credíveis. A cultura da esquerda só
pode ser crítica, mas ao renunciar à análise polémica das situações, a esquerda deserta
expressamente os seus valores, contribuindo para a atonia do político.
Voltemos, por isso, a algumas lições dadas durante o século XIX, e que se
prolongam no século XX. Quem poderá esquecer que os modelos anarquistas
tanto fecundaram as ideias políticas, como aquelas, aparentemente mais modestas,
da estética? Quem poderá ignorar que existe uma ligação directa entre a utopia de
Charles Fourier e a proposta plástica de André Breton? Ora como compreender
a organicidade desta ligação, se renunciarmos ao seu veemente conteúdo político? A direita vive, como todos os necrófagos, devorando cadáveres das ideias da
esquerda. O grande esforço da esquerda deve por isso centrar-se na necessidade
de regressar ao terreno das suas ideias próprias que acreditam na revisão crítica das
propostas teóricas, não esquecendo de proceder à análise do peso do quotidiano.
Não nos iludamos: se a esquerda pode, em França, barrar o caminho de Le
Pen, foi servindo-se de um mediador, o Sr. Jacques Chirac, que a esquerda
considera com razão ser um ladrão e um vigarista de alto coturno. Ou seja, para
se defender do inferno, a esquerda democrata e republicana, foi obrigada a eleger
uma personalidade diabólica não só medíocre, mas visceralmente desonesta, que
soube contudo empurrar para a primeira linha a sua mulher, que provém da
nobreza provincial, e a sua filha, que procura feminizar uma campanha caracterizada pela mobilização dos velhos ratos de rabo pelado que nos últimos vinte
anos macularam com nódoas indeléveis o corpo frágil da República.
Retomemos pois o lento trabalho político. Ninguém nasce politicamente
determinado, mesmo se Aristóteles acreditava na existência de um corpo predestinado à escravatura. Mas não acreditemos que o homem possa ser definido como
um simples “animal político”. A consciência de classe depende do trabalho crítico
levado a cabo pelo indivíduo associado aos demais. Se a escolha politica é certamente individual, não pode contudo separae-se das escolhas colectivas. Se não
podemos apostar na “consciência colectiva”, noção hoje muito despojada de valor,
operatório, já podemos contudo aceitar que a decisão individual depende da nossa
articulação com a sociedade global. A atomização da sociedade parece sobrevalorizar
as escolhas individuais quando, na verdade, a degradação do colectivo, ou antes do
comum, impede que o homem ascenda ao imo da sua própria humanidade.
98
Uma Nova Política1
Pedro Miguel Cardoso
A
dicotomia Esquerda/Direita está enraizada no pensamento
político contemporâneo e tem inerente um simbolismo que
foi forjado em lutas e debates históricos. Além disso é utilizada com abundância, o que nos coloca perante a questão:
serão de facto úteis estes conceitos? Num mundo que muda a um ritmo
acelerado quando comparado com outras épocas históricas, quais são os
desafios cruciais que na actualidade se colocam à Política em geral e aos
partidos políticos em particular? Este texto pretende por um lado traçar
um breve roteiro histórico do debate Esquerda/Direita e apontar algumas
questões fundamentais com que se confrontam as nossas sociedades, nomeadamente na sua dimensão económica e política. Tanto a Esquerda como a
Direita são interpeladas a dar uma resposta.
I. As origens da Esquerda e Direita
A génese histórica dos conceitos políticos de Esquerda e Direita ocorre
na Revolução Francesa. Os defensores do Antigo Regime sentavam-se à direita do rei e os opositores à sua esquerda. Assim a Esquerda está
intimamente ligada desde a sua génese conceptual a um propósito de questionamento e contestação da ordem vigente e a Direita a uma lógica de
conservação dessa mesma ordem (do Status Quo). Por isso mesmo em sociedades fortemente hierarquizadas, estratificadas e reprimidas, as forças de
Esquerda assumiram desde muito cedo o combate por uma sociedade mais
livre, socialmente dinâmica, onde todos tivessem oportunidades mínimas
de acesso a bens materiais, educativos e culturais. Nas primeiras décadas do
século XIX toda a Direita era conservadora e toda a Esquerda era liberal. A
1
Texto apresentado no âmbito do curso “Esquerda e Direita” promovido pela Fundação Res Publica em 2010.
99
UMA NOVA POLÍTICA
Direita defendia os privilégios, as tradições, o regime vigente, enquanto que
a Esquerda batia-se por mudanças no plano político, social e económico.
II. O Capitalismo e o Socialismo
Com a revolução industrial e com o imperativo de produzir cada vez
mais e de acumular capital, as condições de trabalho atingiram níveis de
indignidade. Os horários prolongados de trabalho, os salários de miséria,
a má habitação, contribuíram para cenários de degradação humana. O
trabalhador era o elo mais fraco de todo um sistema produtivo que aspirava
à máxima rentabilidade e eficácia. Os problemas sociais e humanos numa
sociedade capitalista em crescimento acelerado constituíram as sementes
para a afirmação das correntes de pensamento socialistas, que defendiam a
intervenção do Estado na promoção da classe trabalhadora e na correcção
das injustiças sociais.
A partir de certa altura, ser de Direita passou a significar defender além
das tradições, a propriedade privada, e ser de Esquerda defender a causa da
redistribuição socialista. O liberalismo quase desapareceu da cena política.
É de salientar que nos Estados Unidos da América, onde as ideias socialistas
nunca tiveram grande adesão, a Esquerda continuou a ser identificada com
a defesa do liberalismo, sobretudo social. O liberalismo se por um lado
defende a propriedade privada e a liberdade económica, também defende
a liberdade em matéria de costumes. Somos herdeiros desta história.
Continuamos a colocar o socialismo na Esquerda e o conservadorismo na
Direita. Tendemos a colocar o liberalismo na Direita quando acentuamos
a relevância que esta dá à propriedade e ao mercado. Mas sabemos que o
liberalismo está à Esquerda sempre que se opõe ao gosto pelas hierarquias
e tradições dos conservadores. Portanto, a Direita pode ser conservadora e/ou liberal e a Esquerda pode ser socialista e/ou liberal. Depois de
analisarmos a diversidade ideológica chegamos à conclusão que há várias
esquerdas e várias direitas (Rosas, n.d.). Existirá alguma característica definidora que unifique a diversidade de um campo e de outro?
Segundo Norberto Bobbio (1994), o critério mais adoptado para distinguir a Direita da Esquerda é a sua diferença de atitude perante o ideal da
100
PEDRO MIGUEL CARDOSO
igualdade. A Esquerda tem uma atitude mais favorável à igualdade do que
a Direita. Mas isso não significa que a Esquerda pretenda eliminar todas
as desigualdades ou que a Direita as queira conservar a todas. A Esquerda
tende a considerar que a maior parte das desigualdades é de carácter social,
produzidas pela civilização e não pela natureza, enquanto a Direita enfatiza
o seu aspecto natural, considerando que o artificial é o conceito de igualdade. De um lado, estão aqueles que consideram que os homens são mais
iguais do que desiguais, do outro, aqueles que consideram que eles são
mais desiguais do que iguais.
Ao longo do século XX assistimos ao fracasso dos regimes ditos comunistas e depois de 40 anos de guerra fria, o sistema internacional entrou
num período de transição caracterizado pela hegemonia norte-americana
e pela prevalência de um sistema liberal – capitalista. Segundo Rosas (n.d.),
uma razão para a persistência da dicotomia pode estar na sua utilidade
cognitiva, no espaço político plural dos regimes liberais - democráticos.
A divisão em Direita e Esquerda permite uma simplificação mental desse
espaço e facilita a constituição de alternativas aos detentores do poder.
III. Os desafios cruciais da actualidade
Segundo Soromenho – Marques (1998) os movimentos sociais que se
geraram ao longo do século XIX e foram ganhando uma posição de hegemonia que se tornou completa ao longo do século XX, como por exemplo,
o movimento nacionalista, o movimento social reformista (em especial a
social-democracia de Lassalle) e o movimento social revolucionário (os
comunismos), possuíam um conjunto latente de valores fundamentais
comuns que iam para além dos seus diferentes textos programáticos. Estes
movimentos sociais clássicos, acreditavam na bondade incondicional do
progresso científico e técnico, ignorando a eventual existência de efeitos
colaterais indesejáveis; acreditavam que o eixo organizador da vida política
passava pela conquista do poder de Estado; eram movimentos escatológicos,
do fim da história (ex. a defesa das nações sem fissuras nem lutas de classes, o
fim da exploração do homem pelo homem, etc.); encaravam a política como
uma luta contra os inimigos (os capitalistas, os aristocratas, os vermelhos,
101
UMA NOVA POLÍTICA
os opressores imperiais, etc.). Resumindo, eram optimistas em relação às
virtualidades do progresso técnico e ao papel emancipador do Estado. Ao
longo do século XX estes movimentos procuraram realizar a sua utopia.
Analisando a experiência histórica podemos tirar ilações colocando
algumas questões. Não devemos questionar a dimensão quase sagrada que
tem o progresso tecnocientífico nas nossas sociedades? Esse progresso não
trouxe apenas coisas boas e talvez esteja na altura de colectivamente adoptarmos uma dose acrescida de vigilância e humildade para que as descobertas
científicas não se virem contra a civilização que as gerou. Será que devemos
colocar todas as nossas esperanças no Estado? Aquilo que verificamos é que
o Estado-Nação não tem hoje capacidade para responder aos múltiplos
desafios, muitos deles globais, que se lhe colocam. E será o paraíso na Terra
realizável? Olhemos para o século XX e podemos verificar os resultados
alcançados por aqueles que tentaram tão ambicioso desígnio. Estamos sim
confrontados com questões relacionadas com a sustentabilidade do nosso
estilo de vida e com as ameaças ambientais que colocam em causa as condições dadas como certas por aqueles que aspiravam ao paraíso na Terra.
Com os cenários a apontarem para que em meados do século XXI a
população humana global ronde os 10 mil milhões de pessoas, torna-se
crucial criarmos um novo paradigma de desenvolvimento. Assim para
evitarmos situações de ruptura e colapso necessitamos: de uma política
demográfica mais racional e adequada ao carácter limitado dos recursos
alimentares; de proteger e promover a biodiversidade, como base da
inovação biotecnológica de que depende a indústria alimentar e farmacêutica; salvaguardar o genoma humano contra as tentativas de manipulação
ilegal; vigiar os impactos ambientais que ocorram no âmbito das pesquisas
e aplicações associadas aos organismos geneticamente modificados; internalizar no preço dos produtos os seus custos ambientais; rever as políticas
fiscais e de subsídios de forma a estimular as práticas agrícolas sustentáveis;
promover hábitos culturais e estilos de vida amigos do ambiente; perceber
a ameaça que pode significar uma crise alimentar para a paz internacional
(Soromenho - Marques, 2005).
A questão da sustentabilidade ecológica será uma das questões centrais
com que se confrontarão as sociedades humanas durante os próximos séculos.
Por isso, ela tem que estar presente na reflexão política e os partidos políticos
102
PEDRO MIGUEL CARDOSO
terão que lhe dar uma resposta. Superar esta crise é um grande desafio e exige
que questionemos dogmas, pensemos criativamente e sejamos determinados
na acção. Por exemplo, será que a qualidade de vida implica um crescimento
económico contínuo? Diferentes especialistas têm notado a insustentabilidade de uma qualidade de vida assente na degradação ambiental, mostrando
que a partir de um certo limiar o Produto Interno Bruto (PIB) pode continuar
a subir enquanto a qualidade de vida e de ambiente diminuem. Já o economista Kenneth Boulding dizia com alguma ironia e dispensando tradução:
“Anyone who believes exponential growth can go on forever in a finite world is either a madman
or an economist”. De facto num mundo com recursos finitos não é razoável
pensar que o crescimento económico pode continuar para sempre. Como
refere Tim Jackson (2009), economistas antigos como John Stuart Mill e
o próprio Keynes já previam um tempo no qual o crescimento económico
tinha que parar. O trabalho pioneiro de Herman Daly2 sobre a economia em
estado estacionário surge nesse mesmo sentido. Será possível a prosperidade
sem crescimento? O crescimento tem sido, até agora, um mecanismo que
previne o colapso. Em particular as economias de mercado têm colocado
um elevado ênfase na produtividade laboral. Os desenvolvimentos tecnológicos contínuos fazem com que de um ano para o outro menos pessoas
sejam necessárias para produzir os mesmos bens. Enquanto a economia se
expande não há problema com o factor produtividade laboral, mas quando a
economia não cresce surgem as pressões relacionadas com a manutenção dos
postos de trabalho. As pessoas perdem os seus empregos, há menos dinheiro
na economia, as empresas vendem menos, o Estado arrecada menos receitas
e tem que aumentar as suas despesas, é uma espiral de recessão. Por isso as
respostas políticas às crises económicas são mais ou menos unânimes de que
a recuperação significa estimular o consumo e uma retoma do crescimento
económico. Estas evidências conduzem-nos a um inconfortável e verdadeiro
dilema: se o crescimento pode ser insustentável, o decrescimento parece ser
instável. Será por isso necessária uma reinvenção da forma como a economia
funciona, de modo a garantir a prosperidade sem crescimento.
Outra grande questão deste século e provavelmente dos próximos é a
correcção das desigualdades sociais a nível nacional e global. É inaceitável
2
Daly, Herman (1972). The Steady State Economy. London: W. H. Freeman and Company Ltd.
103
UMA NOVA POLÍTICA
que num mundo com tanta riqueza produzida, largos estratos populacionais
continuem a viver na pobreza. Como salienta Santos (2007) as três pessoas
mais ricas do mundo controlam mais riqueza do que os 600 milhões de
pessoas que vivem nos países mais pobres. As desigualdades entre os países
mais desenvolvidos e os países em desenvolvimento estão a crescer. Desde
meados da década de 1970 até 2000 o PIB aumentou em praticamente todas
as regiões no mundo, excepto na África Subsariana. As maiores taxas de crescimento deram-se nos países mais ricos da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico e na Ásia Oriental. No entanto e segundo um
relatório3 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a razão
entre o PIB per capita dos países mais ricos e mais pobres está a aumentar: em
1820 era cerca de 7, aumentou para 11 em 1910, para 30 em 1960 e em 1997
tinha o valor de 74. E como acrescenta este mesmo autor, a pobreza não é
apenas um problema de países em desenvolvimento, uma vez que significativas franjas da população dos países desenvolvidos vive com carências a
vários níveis (alimentação, saúde, educação).
Para enfrentar estes enormes desafios, necessitamos de mobilização e
coragem política, tanto à Direita como à Esquerda. A Esquerda tem uma
responsabilidade acrescida dado o seu património histórico e dos esforços
que desenvolveu para questionar, combater e/ou reformar o capitalismo.
As desigualdades e a insustentabilidade do modelo socioeconómico vigente
devem ser os seus grandes adversários. Há um caminho de luta por mais igualdade social e sustentabilidade económica e ambiental que se abre ou melhor,
que continua aberto para os partidos que se reivindicam de Esquerda.
IV. Considerações finais
Num mundo em acelerada mudança, os desafios são complexos,
exigentes e interpelam-nos a pensar e a agir de forma inteligente, tanto a
nível individual como a nível colectivo. É fundamental revalorizar e credibilizar a política como espaço de debate, de definição das opções colectivas
3
DUnited Nations Development Programme (1999). Human Development Report 1999. United Kingdom: Oxford
University Press.Ltd.
104
PEDRO MIGUEL CARDOSO
e de defesa do bem comum. Em vez do primado da economia necessitamos do primado da política. A economia deve ser colocada ao serviço das
pessoas e não o contrário. Necessitamos também de novas formas de fazer
política. Em vez dos conflitos artificiais que muitas vezes ocupam a cena
política precisamos de cooperação e respeito entre adversários, coragem
política para enfrentar certos interesses particulares e de uma visão colectiva de médio – longo prazo. Mas os partidos políticos só o conseguirão
fazer se abandonarem a lógica do poder (e da oposição) a qualquer preço
e se contarem com uma comunicação social de qualidade que abandone
a lógica do imediatismo e do sensacionalismo. Uma comunicação social
que compreenda o seu importante papel de informação mas também de
formação, que não ceda à tentação de entrar no jogo político.
No âmbito do debate Esquerda/Direita é importante não diabolizar
nenhum dos campos, a evolução é simultaneamente conservadora e progressista (como referem muitos estudiosos da evolução da vida na Terra). As
sociedades devem conservar o que têm de bom e procurar mudar o que
têm de mal ou aquilo que já não serve. Julgo que faz sentido, sem reduzir
o pluralismo e a diversidade, apelar a uma lógica de cooperação e compromisso entre partidos políticos para fazer face aos desafios cruciais do nosso
tempo. Em suma, uma nova política.
V. Referências bibliográficas
Bobbio, Norberto (1994). Direita e Esquerda - Razões e Significados de Uma
Distinção Política. Lisboa: Editorial Presença.
Jackson, Tim (2009). Prosperity Without Growth? The Transition to a Sustainable
Economy. United Kingdom: Sustainable Development Commission.
Rosas, João Cardoso (n.d.). Direita / Esquerda. In Dicionário de Filosofia
Política e Moral, Instituto de Filosofia da Linguagem (http://www.ifl.pt).
Santos, Filipe Duarte (2007). Que futuro? – Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento
e Ambiente. Lisboa: Gradiva.
105
UMA NOVA POLÍTICA
Soromenho-Marques, Viriato (1998). O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise
Global do Ambiente. Mem Martins: Publicações Europa – América, Lda.
Soromenho-Marques, Viriato (2005). Metamorfoses. Entre o Colapso e o Desenvolvimento Sustentável. Mem Martins: Publicações Europa – América, Lda.
106
A Constituição e o Futuro:
Revisões Constitucionais Inconstitucionais?
Paulo Ferreira da Cunha
I. Os Factos e o Direito
1. Mudar as regras, mudar o(s) sentido(s)
Imagine que no fim de semana os responsáveis pelo trânsito lhe mudavam
os sentidos. Uma cidade, apenas uma cidade, pode tornar-se um labirinto,
e um pandemónio, de um momento para o outro.
Na segunda-feira, o cidadão que sonolentamente pega no carro ainda
com gosto a café na boca e olhos colados às pálpebras, repara, com espanto
(e certamente não sem indignação) que a sua própria rua deixou de ter
dois sentidos. E vai redescobrindo, como que pé ante pé (não vá entrar
por via proibida) o trajecto até ao emprego a cada esquina e cruzamento.
Imagine-se que o vizinho do lado fará o mesmo. E o vizinho do vizinho.
Chegará tarde ao emprego. Mas, como a cidade mudou para todos, não
foi só ele. Foi a cidade em peso. Todos chegaram tarde, mal-humorados,
mal dispostos.
E a pergunta está nos lábios de todos: mas para quê? O que se ganhou
com a mudança?
Não que os cidadãos sejam conservadores. Mas, como o célebre dentista,
acreditam que é melhor conservar um dente que arrancá-lo. Além de que
mudar para pior dá trabalho e tem custos. Por isso é tão vazio o simples
discurso da “mudança”.
Ninguém entendeu na cidade o porquê da reviravolta. Uns, mais intelectuais, inventaram umas teorias, sobretudo para se promoverem como
inteligentes. Mas só os deslumbrados neles acreditaram. Ninguém os levou
a sério, e trataram de procurar encontrar um caminho de volta a casa, o
que não foi fácil.
Imagine agora que na semana seguinte voltava tudo a mudar. E assim
sucessivamente.
107
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
2. Frenesim revisionista
De tempos a tempos, joga-se para a ribalta mediática a possibilidade de
revisão constitucional. Não ocorre apenas nos períodos em que constitucionalmente tal é possível. Ocorre sobretudo quando as agendas políticas
de alguns políticos acham oportuno agitar esse magno problema. Cremos
que alguns pensarão que assim se livram do corriqueiro da chicana política.
A revisão constitucional, aí está um tema de Estado, algo de elevado.
E de facto assim é. Mas isso não significa que, sendo a Constituição de
magna importância, as propostas de revisão, só por si, o sejam.
Já tivemos nada menos que sete revisões à nossa Constituição. Número
cabalístico. Há tempos, um reputado constitucionalista falava da necessidade de acabar com o frenesim revisionista constitucional. Estamos de
acordo. Não por este ou aquele projecto, mas por todos.
O afã em mudar a Constituição é tal que só lembra a mudança dos sinais
de trânsito. E o que era permitido passa a proibido, e vice-versa. Porque a
Constituição é a grande reguladora do trânsito político e jurídico na República.
É óbvio que numa cidade, como numa Constituição, qualquer que ela
seja, por muito boa que ela seja (e a nossa é mesmo muito boa já), é sempre
possível melhorar. Nenhuma cidade tem o tráfego perfeitamente regulado.
Há congestionamentos a evitar, semáforos a afinar, um sinal que caiu ou
está prestes a ficar ilegível...
Mas uma coisa são acertos de pormenor, outra coisa uma revolução
por via de revisão. Admite-se até, se muito bem pensado e amplamente
discutido, o repensar de algumas instituições e institutos de vulto, mas não
absolutamente caracterizadores de um regime e de um sistema social.
Seria, por exemplo, possível, além do exemplo já dado, constitucionalmente agilizar a institucionalização da regionalização, que é uma reforma
de fundo permanentemente adiada, e que constituiria uma mudança
qualitativa na nossa democracia, sempre excessivamente tributária ainda
(mesmo – e quiçá sobretudo – no plano do simbólico e do imaginário) da
“cabeça imperial”, hoje sem império.
Neste parágrafo, como é óbvio, falou também a paixão pessoal e a opção
política, mas não deixou de pesar a leitura da Constituição, que é pela
regionalização, cuja estrutura, aliás, em grandes linhas consagra. Não para
que se mantenha utopia, mas que se venha a volver em concretização.
108
PAULO FERREIRA DA CUNHA
3. Do que se poderia rever
Damos o exemplo de mais pontos que ganhariam, a nosso ver, em ser
revistos. Não são propriamente pormenores. Têm até grande dignidade.
Pessoalmente, a nossa experiência portuguesa e a análise do que tem
sucedido pelo mundo fora persuadiu-nos que o referendo nacional, que
não estava no texto original, não só tem tido uma formulação deficiente
como não ganha nada em sair do nível local. Mas não seríamos, neste caso,
o primeiro a lançar a pedra da mudança...
Outra situação que mereceria ser repensada, mas que também, por
si só, não implica “morte de homem”, é a auto-limitação da capacidade
educativa do Estado. Compreensível a seguir ao 25 de Abril, saindo-se de
um regime autoritário, e com a lembrança da Mocidade Portuguesa e dos
livros únicos escolares.
O Estado democrático obviamente não pode ser confessional, nem ter
uma filosofia, nem uma estética, etc. Mas isso não significa que não possa e
não deva promover a educação cívica, as virtudes e os valores constitucionais,
a educação para a cidadania e para os Direito Humanos. E o mesmo se diga
da Educação para a compreensão do nosso Património, português, europeu
e universal: artístico, literário, e histórico. À luz de uma visão restritiva e
fundamentalista da nossa Constituição, o Estado deveria abster-se demais.
Mas não pode, não deve. Aí está um ponto para uma ampla discussão de
grande nível sobre as funções do Estado no plano ético e educativo.
Há sempre mudanças de maior ou menor vulto que poderiam ser encaradas. Mas não vem nenhum mal ao mundo se não forem feitas já. E mais:
se o preço de retocar o que esteja eventualmente menos bem for abrir a
porta a revisões devastadoras, é preferível, de longe, deixar tudo intocado.
Contudo, mesmo mudanças como as que referimos – regionalização,
referendo e função educativa do Estado -, todas podendo ser de vulto,
não ferem (pela sua própria temática: poderiam ferir no projecto concreto
– como aliás qualquer mudança, como é óbvio) em nada os limites materiais de revisão constitucional, as chamadas “cláusulas pétreas” que é
vital ter em conta nas revisões, uma vez acautelados os limites formais e
procedimentais.
109
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
4. As Propostas de Revisão bombásticas
É evidente que revisões como as que referimos, salvo, talvez, uma aceleração da institucionalização das regiões por via constitucional, por exemplo,
são pouco aptas a concitar grande celeuma mediática, pelo menos sem uma
orquestração muito cuidada.
As propostas de revisões constitucionais com mais eco são, precisamente,
as que distorceriam, descaracterizariam por completo a nossa Constituição.
E é isso que se tem feito, embora da parte de grupos sem muito eco, que
contudo vêm a sua voz reforçada pela ousadia das suas propostas (todas
inconstitucionais, está bom de ver).
Rever a Constituição instituindo o Presidencialismo (e puro e duro),
acabando com o Tribunal Constitucional, ou então acabando com a “proibição de regresso à monarquia” (via obrigatoriedade da “forma republicana
de governo” – o que contudo tem que se lhe diga interpretativamente), são
tudo reformas institucionais suficientemente bombásticas para darem um
minuto de fama aos seus arautos – que bem sabem que não terão grande
eco junto dos parlamentares com poderes constituintes. Pelo menos em
princípio. Mas cuidamos que em fim também.
Mas há um outro ponto de revisão constitucional inconstitucional que
pode dar visibilidade mediática, embora não acreditemos que seja popular.
É uma mudança não de regime ou de sistema político, mas de sistema
social e económico. Ela tem sido sistematicamente martelada pelos que,
depois de uma primeira “conversão” forçada e na verdade não sincera a um
“socialismo” moderadíssimo e adjectivado (por pressão dos tempos revolucionários em 1974-1975), passariam a ver nas marcas verbais de socialismo
na Constituição o princípio de todos os males.
É certo que a primeira versão da Constituição, em 1976, terá quiçá
abusado de algum jargão, oscilando os especialistas (de Marcelo Caetano a
Sottomayor Cardia e a outros1) se propendia mais para o marxismo se mais
para o anarquismo. Contudo, todos esses exageros verbais seriam abundantemente podados nas revisões ulteriores, e logo na primeira.
1
Cf. FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Ideologia e Utopias nas mais recentes Constituintes Brasileira e Portuguesa: Algumas linhas de
leitura, Actas do VIII Colóquio Antero de Quental, São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil, in “Estudos Filosóficos”,
DEFIME – Departamento das Filosofias e Métodos, Universidade Federal de São João D’El Rei, n.º 3, Julho /
Dezembro de 2009, pp. 263-276.
110
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Hoje o que resta do socialismo é, como parece ter já afirmado a voz
autorizada de Manuel Alegre (a quem se deve a redacção do Preâmbulo),
uma alusão inicial que representa, isso sim, o Estado Social.
O Estado Social democrático e de direito, entenda-se. Porque Marcelo
Caetano já começara na senda declarada de um Estado social, embora autoritário, uma transmutação modernizada do Estado “corporativo” salazarista2.
O que está em causa, é, pois, o Estado social. Ele não é apenas simbolizado na expressão “socialismo”, hoje isolado bastião verbal no Preâmbulo.
Ele está presente em toda a Constituição, e é a sua marca ideológica (socialmente muito consensual, aliás – ainda hoje) e o seu programa económico,
social e cultural.
5. Revisão dos direitos sociais e subsistência do Estado social
A questão está em saber se atacando, ainda que cirurgicamente, pontos
nevrálgicos dos direitos fundamentais económicos, sociais e culturais, logo
atacando o cerne do Estado social, ao longo do articulado na Constituição ele
ainda subsistirá. Atacando, por exemplo, o princípio da igualdade entre todas
as pessoas (independentemente dos múltiplos factores de diferença, que são
também os de discriminação), ou o princípio da universalidade do Serviço
Nacional de Saúde, ou a gratuitidade tendencial de toda a escola pública.
O modelo que está por detrás dessas alterações, que podem parecer até
razoáveis em tempos de “vacas magras”, é o modelo anti-Estado social, é
a ideologia da teologia de mercado, anarco-capitalista ou neoliberal. Mas
há diferenças essenciais entre reversão essencial e ruptura, de um lado, e
medidas de excepção, no respeito pela Constituição, do outro lado. Pode
em tempos de crise haver sacrifícios e cortes, mas não se podem colocar
em causa os princípios e os valores constitucionais. Assim, desde logo
os sacrifícios, a fazerem-se, têm de ser justos, equitativos, universais, e
temporários. Senão, quebra-se a própria confiança e a esperança, motor
de progresso e de saída da crise. Rasgar-se-ia assim a Constituição não com
a empávia do contra-revolucionário assumido, mas, quiçá, com a vergonha
do arrependido ou do derrotado.
2
Sobre os vários estados sociais, v. BONAVIDES, Paulo — Do Estado Liberal ao Estado Social, Prefácio, 8.ª ed., São Paulo,
Malheiros, 2007, p. 25, p. 184.
111
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
Permitir que um só desses pontos simbólicos e nevrálgicos da
Constituição seja substituído por uma formulação, ainda que pretensamente neutra, de cunho neoliberal, é mutilar o edifício, desvirtuar-lhe a
traça, torná-lo vulnerável e partir-lhe um dos pilares que o sustentam. A
neutralidade é sempre invocada pelos mesmos que procuram afirmar-se
pela negação, ou pela dissimulação, ou seguir na sombra do pensamento
dominante, embora hipocritamente e com todas as reservas mentais, esperando melhores dias. Veja-se o processo baptizado como exdenomination,
forma de mistificação por auto-negação ou colagem que Barthes denunciou nas suas Mythologies3, e que tanto ocorreu durante os tempos mais
quentes das revoluções em Portugal (lembremo-nos dos “adesivos”, para
não falar no PREC - Processo Revolucionário em Curso).
O formalismo jurídico não é, assim, neutro, mas, hoje em dia, a forma
jurídica de uma política neoliberal, ainda que os seus aplicadores estejam
completa e sinceramente convictos de que esse formalismo é que é a forma
jurídica propriamente dita (e portanto a correcta) de “aplicar o Direito”,
enquanto uma metodologia consentânea com os novos tempos que alguns
dizem já neoconstitucionalistas (ou mesmo pós-neoconstitucionalistas
para alguns) seria um maneira antijurídica, errónea, e política (pecado
dos pecados!) de ser jurista. Contudo, há muito tempo já que Morton J.
Horwitz com muita agudeza explicou o que se passa:
“A principal condição social necessária ao florescimento do formalismo jurídico em uma sociedade é que os grupos de poder dessa sociedade
tenham grande interesse em disfarçar e abolir a inevitável função política e
distributiva do direito.”4
Há sempre, mesmo no direito posto, tão amado pelo positivismo legalista, um direito pressuposto5, e pressupostos que influem no direito – e que
(parece impossível) os juristas só há relativamente pouco tempo começam
a desvendar, saindo, finalmente, de uma menoridade de séculos... Antes
3
BARTHES, Roland — Mythologies, Paris, Seuil, 1957, ed. port. com prefácio e trad. de José Augusto Seabra,
Lisboa, Edições 70, 1978, p. 206 ss..
4
HORWITZ, J. Morton — The Transformation of American Law, reed., 1992, p. 266, apud POSNER, Richard A. — Overcomig
Law, Cambridge, Harvard University Press, 1995, trad. port. de Evandro Ferreira e Silva, Para Além do Direito, São Paulo,
wmf Martins Fontes, 2009.
5
V. GRAU, Eros Roberto — O Direito Posto e o Direito Pressuposto, São Paulo, Malheiros, 1996.
112
PAULO FERREIRA DA CUNHA
de mais, é preciso compreender mesmo o que significa ser o Direito um
“discurso legitimador”.
E não se diga que a Constituição promete uma cornucópia de mordomias
que não pode, razoavelmente, concretizar (nem ela, claro, nem realmente
os governos), e que, assim, os maus e ilusórios direitos expulsam os bons.
Esta última asserção é verdadeira, mas não são direitos ilusórios os que
possam não ser momentaneamente concretizados na sua máxima latitude.
O Direito Constitucional é hoje uma ciência e uma técnica apuradíssimas
que permitem por um lado reduzir direitos em confronto, assegurandolhes, por concordância prática, a cada um, apenas um círculo mínimo
de concretização. E ainda, por outro lado, pelo princípio da reserva
do possível, podem em cada momento ser avaliadas as possibilidades de
concretização, e em que medida, de direitos que reclamem, por exemplo,
Finanças mais estáveis e risonhas.
Nenhum Estado (nem o nosso) foi alguma vez à falência por causa da
sua Constituição. Mas seria muito estranho que os adeptos de que o mundo
ande por si mesmo, deixando andar e deixando passar, sem regulação,
conseguissem triunfar colocando na nossa lei fundamental, que todas as
outras determina, um qualquer marco da sua fé desreguladora.
Para que querem os neoliberais uma Constituição económica, social
e cultural? Apenas para dizer que não existe. E que tudo está, afinal, nas
mãos de quem tiver mais força, em cada momento. Nas relações laborais,
conforme o braço de ferro entre patrões e trabalhadores. Nas relações
políticas, conforme o resultado de cada nova eleição.
Ora precisamente as Constituições existem para evitar que o programa
nacional (e transgeracional, histórico, espera-se) de um País mude ao sabor
de cada eleição pontual, para que os Países tenham um projecto de mais longo
prazo. E também porque entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a
liberdade que oprime e a lei que liberta. E não foi um socialista quem o disse,
foi Lacordaire, que era um clérigo liberal, mas obviamenter não neoliberal.
Léon Bourgeois dizia há mais de um século que os partidos estão sempre
atrasados em relação às ideias. Este mesmo ano, Alfredo Bosi acrescentou
que também em relação às suas próprias6. Mas pior é haver os que recuam.
6
BOSI, Alfredo — Ideologia e Contra Ideologia, São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
113
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
Num país como o nosso, em que os principais partidos são o socialista,
o social democrata, e um partido democrata cristão (que invoca, por isso,
como inspiração a doutrina social da Igreja católica), não deveria haver,
em princípio, muito desacordo quanto a um programa social mínimo e
quanto ao Estado social. Se o vírus do neoliberalismo, parasitário, não
andasse a contaminar alguns (uns mais que outros, é certo), ao ponto de
mudarem de bandeiras. Espera-se apenas que, num futuro que se deseja
próximo, todos se reencontrem na sua ideologia própria.
6. Inconsticionalidade das Revisões Inconstitucionais
Uma revisão constitucional que pusesse em causa algum dos elementos
estruturantes do Estado Social seria uma ruptura inconstitucional, uma
revolução sob capa de revisão. E se, por absurdo, o Parlamento, ainda que
pela devida maioria e no devido tempo e pelo devido modo a deixasse passar,
deveria ser (no seu cerne, porque sempre pode haver à mistura elementos
inócuos no plano da materialidade constitucional, e passíveis de revisão
constitucional constitucionalmente válida) considerada inconstitucional
pelo Tribunal Constitucional, que para tanto tem plena competência, e,
no caso, teria também o dever de o fazer.
Ora não é necessário ser constitucionalista encartado para compreender porquê.
E depois, é preciso compreender o que se esconde por detrás do discurso
revisionista que proclama (ainda hoje, depois de tudo o que se passou e se
está a passar) as maravilhas do Estado mínimo (ou um eufemismo para dizer
o mesmo). Os seus adeptos nunca foram realmente contra o Estado, e dele
têm, aliás, por toda a parte, recebido a salvação da falência, depois das últimas
crises. Dão que pensar estas linhas de Giuliani Neto, sempre iconoclasta:
“O mundo do capitalismo industrial, nas duas últimas décadas, construiu o discurso do Estado mínimo. As práticas neoliberais nunca abriram
mão do controle sobre o Estado. Todavia, um capitalismo de nova feição,
financeira, derivado daquele outro, construiu um ambiente para si e, neste
espaço imaginário, que chamou mercado, tomou uma tal de auto-regulação como meio eficiente para gerir seus interesses”7.
7
GIULIANI NETO, Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo torto do Direito e da Política, p. 67.
114
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Porém, parece tratar-se sobretudo de pragmatismo pro domo. Os
teóricos liberais parecem ser, segundo Kolm, pouco mais que “aprendizes
de feiticeiros”:
“Le libéralisme économique, apparemment défendu par les analyses
rafinnées des marchés déployées par des économistes, repose in fine sur
une sociologie de l’Etat primaire et d’amateurs. (...) Ce sont des généralisations sans justification à partir de cas spécifiques (parfois, de plus,
exagérés ou même mythiques) du bas journalisme, de la ‘sagesse populaire’
en un sens qui calomnie ces deux termes, des ragots que l’on accepte que
parce qu’ils confortent des préjugés (ou soutiennent des intérêts).”8
E quanto ao Estado mínimo dos bons velhos tempos liberais (que
acabariam por converter não poucos liberais a políticas sociais), nunca olvidaremos o diagnóstico do agudo filósofo jesuíta Lúcio Craveiro da Silva:
“O capitalismo nascente nos alvores do séc. XIX arrastou consigo a proletarização de uma multidão de operários arruinados pela luta da concorrência
das novas fábricas, e obrigados, por isso, a trabalhar por salários de fome.
Dada a quase completa ausência de legislação social e protectora dos trabalhadores, o que repugnava à doutrina liberal, esta proletarização desembocou
numa tal pobreza material e moral do mundo do trabalho que a sua descrição
nos deixa horrorisados ao lermos os inquéritos do tempo.”9
II. A Política e a Sociedade
1. O Consenso Político do Estado Social
Ainda que fosse possível mudar juridicamente a constituição nesse
sentido desregulador e anárquico, tal seria um erro político. Que se voltaria
contra os que viessem aprovar essa (contra-)revolução.
Há, neste caso, como já se viu, duas concepções opostas de sociedade.
Por um lado, temos a concepção social da Constituição da República
Portuguesa em vigor, que nesse ponto (estamos já a descontar os excessos)
8
KOLM, Serge-Christophe — Le Libéralisme moderne, Paris, P.U.F., 1984, p. 174.
9
KCRAVEIRO DA SILVA, Lúcio — “Marxismo, Filosofia da Libertação”, in Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga,
Faculdade de Filosofia de Braga, 1994, p. 365.
115
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
de algum modo uniu todos os constituintes sem excepção do ponto de vista
ideológico. O próprio CDS – Centro Democrático Social, único partido
que votaria contra a Constituição no seu todo (tinha apenas 15 deputados)
não só defendia na altura um “socialismo orginal” como uma “sociedade
sem classes”, como a sua matriz ideológica era (e pelo menos em parte ainda
será hoje) a democracia cristã, que, baseada na doutrina social da Igreja, é
claramente favorável ao Estado social, como dissemos já.
E do PSD - Partido Social-Democrata (que falava, no seu primeiro
programa, quando ainda PPD – Partido Popular Democrático -, até de
inspiração marxista, além de outras) à UDP – União Democrática Popular de inspiração maoísta, passando pelo PCP – Partido Comunista Português
- marxista-leninista e pelo seu compagnon de route (na constituinte por vezes
mais extremista) MDP – Movimento Democrático Português – , ao PS –
Partido Socialista – socialista democrático, olhando as respectivas matrizes
ideológicas, todos seriam concordes com essa perspectiva latamente e
não sectariamente social. Esse seria o grande denominador comum até,
porque, no plano político, havia divergências institucionais e de valores
políticos muito grandes, que propiciaram então a divisão entre os auto-denominados “partidos democráticos” e os demais... A Constituição,
que logo se disse compromissória, fundou-se também nesse compromisso
sobre o modelo de sociedade: nem uma sociedade do salve-se-quem-puder liberal, nem uma sociedade totalitária e colectivista.
Podada, como dissemos, mais de uma fraseologia que de uma verdadeira deriva menos pluralista e de economia social de mercado em termos
efectivos, a Constituição sempre se integrou, e depois da primeira revisão
mais ainda, no modelo social europeu. Essa é a sua grande matriz. Ela nos
liga à Europa social, essa que na verdade despertava a nossa admiração (e
até inveja) quando nela não estávamos integrados. Essa que precisa urgentemente de renascimento, pois sob a ameaça da burocracia, da tecnocracia
e da contabilidade egoísta. Há também que olhar o nosso sonho europeu e
de o redespertar, em bases sociais.
2. O Consenso Social do Estado Social
Sociologicamente (quer dizer: a nossa sociedade, o povo em geral, maioritariamente) aderimos a esse modelo do Estado social, o modelo social
116
PAULO FERREIRA DA CUNHA
europeu. Todos, praticamente, sem diferenças de partidos, com excepções
minoritaríssimas, de que já falaremos.
E que modelo é esse? É o de um verdadeiro Estado social, democrático,
não um Estado providência todo-poderoso10 e sufocando a iniciativa, mas
de um Estado coordenador e protector dos mais desfavorecidos, regulador,
redistribuidor da riqueza em alguma medida, e capaz de ser a confiança
de cada um no futuro, pois a cada um, de forma regulada, pode valer no
infortúnio: na doença, na velhice, na invalidez...
Trata-se assim de um Estado com serviços de saúde, com escola pública, de
qualidade e cobertura suficientes, com prestações de desemprego, reforma, etc.
De muitos quadrantes há vozes que não alinham no bota-abaixo rude da
aniquilação do Estado social. Pelo contrário.
Voz autorizada do pensamento económico, certamente insuspeito de
socialismo, João César das Neves inclina-se contudo para o social, e afirma
com clareza os seus pontos de vista.
Num artigo de divulgação, dirigido aos meios católicos, começa por
sublinhar um facto que alguns se obstinam em escamotear:
“A sociedade moderna manifesta continuamente um desejo de mais,
não de menos Segurança Social”11.
E a sua explicação de índole psico-sociológica para as reacções, ou algumas
delas, ao problema da Segurança Social é interessante, e pode servir para
ponderação. O mais relevante é que, ao contrário dos contínuos profetas da
desgraça (que pressagiam catástrofes se não se tomarem já amanhã - ou ontem
- medidas severamente contrárias aos trabalhadores, aos consumidores, aos
não possidentes), revela uma situação de facto muito mais tranquila:
“Portugal já não tem uma crise séria na Segurança Social. Mas ninguém acredita nisso. A razão é muito curiosa. Os políticos dramatizaram a situação financeira
para justificarem o rompimento das promessas e a população acreditou quando
falavam em falência da Segurança Social. Tomadas as medidas, os políticos dizem
agora que o futuro está assegurado. Mas nisso ninguém acredita”12.
10
Cf., para desfazer confusões, v.g., FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Direito Constitucional Geral, máx. p. 259 ss.
11
CÉSAR DAS NEVES, João — Segurança Social, in “Família Cristã”, ano LVI, n.º 5, Maio de 2010, p. 20.
12
Ibidem, p. 21
117
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
Problema é que de novo se começaram a ouvir políticos falar em múltiplas falências de vários sistemas públicos, em diversos países. E depois veio
o ataque “dos mercados” e o espectro do FMI começou a ser invocado, e
depois chegaria mesmo a Portugal. É curioso que na fase dos primeiros
problemas bancários, dizia-se que o mercado estava mal, mesmo muito
mal. Assim colocou o problema Giuliani Neto:
“O Mercado, este ente tratado como se fosse uma pessoa de carne e osso,
entupiu-se de dinheiro, empanturrou-se de sonhos humanos, buscou
casas em garantia, hipotecou esperanças e, narcotizado com seu próprio
prazer, matou-se; overdose... Overdose de ganâncias, de inescrupolisidades, de falta de limites e de responsabilidades”13.
Depois, o autor relata que os “liberalóides de plantão” (sic) se teriam sumido
debaixo dos “cobertores estatais”. Sim, aí buscaram agasalho às primeiras brisas mais
frias, e aí permaneceram até que os dinheiros públicos removessem a bola de neve
que geraram. Mas há o resto da história: Depois, já refeitos e quentes, regressaram.
“Afinal, o Estado não é tão mau assim” – pensaram. E voltaram a apedrejá-lo.
E agora já “os mercados”, passaram a ser a dor de cabeça de toda a gente,
sobretudo nos países sob mira. Depois da Grécia e da Irlanda, Portugal. E
já se fala da Espanha, da Béligica... Parece que o dito Mercado recuperou,
com as injecções de dinheiros na banca... e passou ao plural. Além da
análise económica e financeira destes problemas (para que somos incompetententes), haveria uma outra análise a empreender: a retórica e mediática.
Mas a solução não é demissão do Estado. É precisamente nestes momentos
críticos que os pobres e a própria classe média necessitam mais do auxílio, da
rede protectora, do Estado Social.
E há, sem dúvida, mesmo para o jurista (e não só para o político), confortável nas suas fórmulas, tantas vezes, um dilema ético que não poderá deixar
de pôr-se: Fará ele ou não uma “opção pelos pobres”? Não é uma dessas
opções de classe vetero-marxistas, com toda a sua carga. Mas é um desafio
de coragem, como bem afirmou Gomes Canotilho, comentando um dos
que esse problema dispararam à quietude dos juristas14. No fundo, há uma
13
GIULIANI NETO, Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo torto do Direito e da Política, p. 25
14
GOMES CANOTILHO, José Joaquim — O Direito dos Pobres no Activismo Judicial, in Direitos Fundamentais Sociais, coord. de J.
J. Gomes Canotilho, Marcus Orione Gonçalves Correia, Érica Paula Baracha Correia, p. 33.
118
PAULO FERREIRA DA CUNHA
“responsabilidade social dos juristas”, só que essa não se traduz, como a das
empresas, em dádivas e apoios a causas sociais. Mas num posicionamento.
Ao contrário dos seus caluniadores, embora em todos os sistemas haja
excepções e aproveitadores das malhas do sistema, a essência deste tipo
de Estado não é o parasitismo social, o definhamento do empreendimento, o prémio da preguiça, o quietismo deletério, ou o assistencialismo
miserabilista. Ele existe porque, ao contrário do que dizem tantos neoliberais, ainda não curados (são incuráveis) pela prova real da derrocada
da economia de casino à vista pelas crises recentes, provocadas de forma
já reconhecidamente criminosa (e com condenados), os pobres não são
marginais incapazes, os célebres “perdedores” (losers) porque incompetentes, “madraços”, etc. Há sobretudo pobres – e sempre os teremos entre
nós, conforme diz o Evangelho15 – porque há a caprichosa deusa fortuna, há
sorte e má sorte. E quando a má sorte bate à porta de qualquer um, sim, os
impostos de todos devem servir para acudir a esse. Independentemente de
ter contribuído muito ou pouco. Isso é solidariedade, isso é fraternidade,
isso é, também, justiça social, palavras que para os neoliberais mais consequentes nem sequer sentido têm16. O que dá a verdadeira dimensão da sua
mentalidade e mundividência. E contudo a verdadeira justiça é também
justiça social, segundo alguns. E até para Tomás de Aquino: “Toda justiça
é social uma vez que a existência humana é sempre coexistência.”17...
Obviamente que a velha regra do “não faças ou não queiras para os
outros o que não quererias que te fizessem” seria, se bem aplicada, de
grande pedagogia. A grande lição para os neoliberais seria verem-se numa
socieade desertificada de Estado, doentes, velhos, desempregados, em
todas as condições de debilidade em que regateiam apoio aos demais. Mas
não lha podemos desejar sequer, porque mesmo um neoliberal merece
protecção social, pela sua própria dignidade de pessoa. E mais: apenas pela
sua simples condição de ser humano.
15
Jo. XII, 8.
16
Cf., desde logo, a indagação de HAYEK, Friedrich A. — Was heisst ‘sozial’?, in AA. VV., Masse und Demokratie, Erlenback
/ Zurique / Estugarda, Eugen Rentsch, 1957, p. 71 ss.
17
SANTOS, Prof. Ribeiro dos — Programa de Filosofia do Direito, s/l (Brasil), s/e, 1968, pp. 177-178. Cf. ainda, sobre esta
matéria, FERREIRA FERNANDES, Sérgio Fernando — Justiça Particular e Justiça Social, dissertação de mestrado na Faculdade
de Direito da Universidade do Porto, sob nossa orientação defendida em 10 de Dezembro de 2010, policóp.
119
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
Mas bem vistas as coisas, à parte quiçá alguns Pedros Cem, que do alto das suas
torres erigidas sobre grandes fortunas, eventualmente desafiem a Providência
(não o Estado providência) a fazer naufragar a frota da sua afluente riqueza18,
o curioso, o paradoxal, é que frequentemente os teóricos mais extremados
desta teoria impiedosa não correrão muitos riscos porque nem sequer são
empresários, e em muitos casos não passam de intelectuais bem consolidados
nos seus empregos públicos que eram (antes da sua influência se começar a
fazer sentir nesse âmbito, pelo menos) praticamente inamovíveis e vitalícios.
E em alguns casos, embora informalmente, também hereditários.
O fenómeno neoliberal é sobretudo uma moda intelectual, com
arroubos demagógicos e populistas localizados, como as tiradas sobre o
uso “despesista” dos impostos de todos e outras do género. Contudo, sem
grande impacto quando se pense duas vezes, porque qualquer pessoa sensata
prefere que haja alguns abusos de subsídios a mais a quem não mereça do
que não ter para si nenhuma protecção quando chegar a hora. A crítica é a
de atirar o bebé fora com a água suja. A forma sensata de tratar o assunto é
fiscalizar, é reprimir os abusos, é gerir com rectidão e parcimónia benefícios sociais gerais, e não cortar a torto e a direito, mais a torto que a direito,
entenda-se. A solução é, realmente, a de, pelo exemplo primeiro, e pela
inspecção e pela punição dos abusos, depois, implantar uma ética republicana, ou, se se preferir uma expressão mais inócua (embora perdendo
vigor), uma ética pública, estadual, ou constitucional19.
Num momento em que já todos estamos severamente a pagar a conta
dos desvarios e desmandos da economia internacional de casino, de clara
inspiração neoliberal, uma receita de desmantelamento do Estado social é
paradoxal e descabida. E não se vê como possa mobilizar realmente quem
quer que seja, por si mesma.
É evidente que terá sempre o apoio dos indefectíveis e dos tácticos das
lideranças partidárias que a propuserem. Mas será que chegará às próprias
bases partidárias? Temos as maiores dúvidas.
18
Há um saboroso poema de sabor popular de GOMES DE BARROS, Leandro — A Vida de Pedro Cem, v. http://
pt.wikisource.org/wiki/A_Vida_de_Pedro_Cem.
19
As expressões poderão a alguns parecer mais inócuas, mas nem sempre as propostas que encerram. Cf., v.g.,
MONTEJANO, Bernardino — Ética Pública, Buenos Aires, Ediciones del Cruzamante, 1996; SCHMITT, Carl —
Staatsethik und pluralistisher Staat, in “Kantstudien”, n.º 35, Berlim, 1930, pp. 28-42.
120
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Obviamente o consenso será geral contra gastos sumptuários, contra má
gestão, contra beneficiários do beco dos milagres. Mas haverá no eleitorado
dos partidos que têm uma matriz ideológica social, e até social-democrata
(ou democrata-cristã...) entusiasmo por um desmantelamento do Estado
e do seu carácter protector?
O eleitorado dos nossos partidos do arco constitucional – de todos
eles, da esquerda à direita – não é sociologicamente neoliberal, muito
pelo contrário. Já se tem visto até na investigação da maneira de ser do
português médio até um excesso de apego ao Estado, e uma vocação para
o funcionalismo público, que não faria mal abanar com algum rasgo de
“empreendedorismo” (palavra em si horrorosa, mas conceito útil)20.
É possível que um punhado de intelectuais, cremos que nem sequer uns
tantos grandes empresários (porque a nossa economia sempre foi muito
dependente do Estado) e alguns financeiros (ou candidatos a tanto) adiram
de alma e coração a este “choque mental”. Porque o seria. Mas não o Povo
Português. E seremos o primeiro a reconhecer que nem sempre pelas
melhores razões.
Mas não apenas o povo mais pobre, como a própria classe média, e até
a média-alta, habituaram-se a ter o seu centro de saúde, os seus medicamentos mais baratos que o preço reclamado pela indústria farmacêutica,
o seu hospital quase sem custos, a sua escola gratuita até certo ponto, e o
seu subsídio de doença e a sua reforma garantida. Como resistiriam estas
coisas à queda do seu grande defensor, a Constituição social que temos?
Não resistiriam.
No fundo, o neoliberalismo acaba por fazer pior que o simples mudar
absurdo dos sinais de trânsito: o neoliberalismo acaba com eles. E então, como
há quem nada respeite, imagine-se o que seria a vida social sem regras.
Laissez faire, laissez passer – grande lema liberal – é muito bom quando se
tem um carro potente e caro que amedronte até quem tem sobre nós prioridade. Para os demais, é só a lei da selva.
Mudar a Constituição, para quê? Para um consequente neoliberal o
bom seria não haver mesmo Constituição nenhuma.
20
Cf. algumas referências interessantes v.g. in ARROJA, Pedro — Gestão Cientifica em Portugal. Em Defesa de John Brown, in “IV
Jornadas Luso-Espanholas de Gestão Científica”, vol. I, Porto, 1988, p. 205 ss.
121
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
III. A Constituição e o Futuro
1. Esvaziamento da Constituição: Dinamitar as Cláusulas Pétreas
Amigas e defensoras da Constituição são as normas que a protegem
contra a sua descaracterização, ou o seu hara-kiri. Desde logo, as normas
de blindagem à mudança perversora, as normas dos limites materiais de
revisão, que na nossa Constituição primeiramente se sedeavam no art.
290.º e hoje constam do art. 288.º.
“Cláusulas pétreas” é uma metáfora evidente, que logo nos explica
do que se trata. São – ou deveriam ser – limites intransponíveis, ou, no
mínimo, obstáculos da maior dureza, que só se levam de vencida a dinamite ou à bomba.
É sabido que tivemos em Portugal uma ultrapassagem de uma situação de algum estrangulamento político e de alguma debilidade de força
normativa da Constituição (por um processo, aliás comum, de déficit de
democraticidade contextual no exercício do poder constituinte: veja-se os
pactos MFA-partidos, ou o sequestro da Assembleia Constituinte) por via
de uma “dupla revisão” constitucional. Mas esse processo terá que ser visto
como excepcional. As cláusulas pétreas foram nele como que dissolvidas,
para deixar passar uma revisão constitucional que, sem isso, seria claramente inconstitucional. E cremos que havia disso óbvia consciência.
De novo se fala (e de novo se falará sempre, enquanto este tipo de normas
de protecção da Constituição existirem, em qualquer país) de contornar,
de uma forma ou de outra, esta blindagem constitucional, que é o cerne da
auto-defesa da lei fundamental.
Os argumentos são consabidos, e repetem-se de uns países para os
outros. São sobretudo os argumentos do progresso, da adaptação, do
realismo, e até da “democraticidade”, entendida como um sismógrafo das
potenciais opiniões da ventosa plebis, que, assim, não consentiriam nenhum
contrato social durável, antes as leis deveriam estar à mercê das maiorias
do momento. Pressupondo-se, contudo, que tais maiorias seriam favoráveis à desregulação e ao total domínio da coisa pública pelos poderes
económicos.... Resumida, é essa a “moral” imoral dos projectos de
desconstitucionalização, e até de ataque à jurisdição constitucional. A qual,
contudo, se quiser continuar prestigiada, por todo o mundo, haverá de
122
PAULO FERREIRA DA CUNHA
saber resistir à sua instrumentalização ou à subserviência, mais até a ventos
político-económicos que a pessoas ou governos em concreto.
Os métodos de revisão em causa, esses, seriam: ou de novo a dupla
revisão, ou mesmo a eliminação do ou dos preceitos que prescrevem as
referidas cláusulas pétreas: em Portugal, o art. 288.º da Constituição da
República Portuguesa.
Não sabemos qual o mais grave. Agora que de há muito se encontram
sanados quaisquer excessos do primeiro texto constitucional, a dupla revisão
seria claramente uma fraude à Constituição, e absolutamente indesculpável. Do mesmo modo, a supressão do referido artigo constituiria uma
porta aberta a todas as desconstruções e mutilações constitucionais. Seria,
na verdade, o princípio do fim da presente Constituição, ou de qualquer
uma que de tal processo fosse vítima.
2. Alternativa à Revisão: Uma Nova Constituição?
« Un peuple a toujours le droit de revoir, réformer et de changer sa
constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les générations
suivantes ». Neste art. 28.º da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, aposta como Preâmbulo à Constituição francesa de 1793, há muita
sabedoria, i.e., há nela muito senso comum. É evidente que nenhuma
Constituição é eterna. Contudo, uma coisa é a realidade fáctica, histórica,
outra coisa é a realidade normativa. Historicamente, toda a mudança de
Constituição (salvo casos raríssimos, como a Carta Constitucional francesa
de 1830 e a Constituição gaulista de 1958) é traumática, é revolucionária,
e tem períodos de vazio constitucional. Como afirma Didier Maus,
“Du point de vue de l’histoire constitutionnelle européenne, on
constate qu’en general les changements de constitution correspondent à
de très profondes transformations politiques, notamment des périodes
historiques différentes: on passé d’un régime monarchique à un régime
républicain, d’un régime liberal à un régime communiste ou vice-versa
(…) En général, il s’agit d’un signe de transformation beaucoup plus que
politique: sociétal.”21
21
MAUS, Didier — La Ve République, hier, aujourd’hui, demain, in Renouveau du droit constitutionnel, Mélanges en l’honneur de Louis Favoreu,
Paris, Dalloz, 2007, p. 822.
123
A CONSTITUIÇÃO E O FUTURO: REVISÕES CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS
Isto significa que os povos (ou os grupos activistas que os conduzem)
mudam, efectivamente, as constituições, mas no risco da subversão e da
revolução, da ilegalidade face às constituições anteriores. Evidentemente,
há casos, como o da constituição francesa de 1958, em que se opera uma
transição constitucional em que se gera um consenso (contudo com vozes
discordantes) sobre o modo de alterar as regras do jogo. E assim, o art.
90.º da Constituição francesa de 1946, sobre a revisão constitucional,
foi revisto, permitindo um novo texto constitucional, feito sobretudo na
sombra dos gabinetes do Governo, sob tutela do presidente. Dupla revisão,
técnica sempre perigosa e potencialmente subversora. E método de criação
constitucional muito pouco democrático.
Seria possível um consenso das forças políticas portuguesas para alterar o
art. 288.º, que, além dos pontos concretos intocáveis da Constituição, implica
a proibição geral e total de mudar de Constituição dentro da ordem, da legalidade, do regime instituído? De forma alguma tal nos parece possível.
A chave do problema é o Partido Socialista, que sempre tem sido um
defensores da Constituição, que (na versão presente, mas mesmo muito na
original) a ele e (em bem menor grau) ao PPD/PSD fundamentalmente se
deve. Mas imaginem-se as reacções do PCP e o Bloco de Esquerda perante
uma tentativa de mudança de Constituição rasgando os limites da presente.
Todos os partidos têm interesse em manter o regime, e uma ruptura
desse género não se sabe ao que poderia levar, além de a pertença à União
Europeia ser um garante contra aventureirismos antidemocráticos e anti-constitucionais, como seria o caso. Só o CDS votou contra a Constitução,
e depois com ela foi convivendo, apesar de críticas pontuais, que nunca
puseram em causa o regime.
Durante mais de 30 anos, apenas grupos de extrema direita ou para ela caminhando se manifestaram radicalmente contra a Constituição (sendo de presumir
que grupos de extrema esquerda sejam também desafectos a ela, mas estes não
se preocupam com reivindicações juridistas, que consideram certamente
“burguesas” – pelo que desta inimizade constitucional se não ouve falar).
Não cremos, assim, que a grande autoridade moral de grandes pais-fundadores da Constituição, e a memória de outros, possa permitir que um programa
social e democrático, de qualquer partido ou grupo de partidos se desvincule
da defesa da actual Constituição. Sob pena de perder a face e a memória.
124
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Só um grande desconhecimento das virtualidades auto-regeneradoras
deste texto tão aberto e tão generoso poderia levar a atravessar o Rubicão de
uma ruptura. Apesar dos proverbiais “brandos costumes” dos Portugueses,
uma ruptura constitucional poderia ser o princípio da guerra civil que se
evitou em 1975, precisamente com o compromisso constitucional. Por
certo não uma guerra civil clássica, obviamente. Mas sérias convulsões
sociais nos esperariam, decerto, se o nosso viver socialmente protegido e
dignificado viesse a ser substituído pela selva, pela lei do mais forte.
Para quê mudar o fato que nos está bem, e que, em alguns aspectos,
nem sequer foi usado suficientemente (como nos direitos sociais)?
À pergunta “poderá haver uma nova Constituição?” devemos responder,
pois, sim e não.
Sim, porque a História não pára, e é impossível à normatividade suster a
evolução: benéfica ou nociva. E pode, de facto, mas não de direito, fazer-se
inconstitucionalmente e artificialmente uma nova Constituição ainda durante
o “prazo de validade” histórico desta: prazo esse que é indeterminado.
Não, porque a nossa ordem jurídica, a normalidade institucional, o
normal funcionamento das instituições democráticas que o presidente
da República deve defender e por que deve velar, não permite mudar de
Constituição. Apenas rever a presente, nos seus estritos termos.
Mudar de Constituição seria mudar de regime. E para isso é preciso,
sempre, uma revolução ou uma contra-revolução - recordemos. Por vezes,
há formas eufemísticas de o dizer, e mesmo de o fazer. Mas a ideia é sempre
a mesma: uma mudança substancial no estado das coisas, nos modos de
governar, na relação entre quem manda e quem não detém o poder, nos
direitos dos cidadãos, e no projecto nacional.
Uma Constituição não é como uma moda, que muda por pressão social
volúvel para ter de mudar, para ser in, chic ou moderno, etc.. Seria bom que
olhássemos para a longevidade de algumas constituições e mesmo de algumas leis
(como os nossos dois códigos civis), como exemplos, e nos lembrássemos que,
num tempo democrático, como o nosso, em que as revoluções se tornam, pela
força das coisas, raras (como bem lembrava Tocqueville), também as mudanças
radicais dos pactos ou contratos sociais por isso mesmo terão de ser excepcionais.
E que todas as mudanças, a fazerem-se, têm de ser para aperfeiçoar o modelo,
não para o contrariar. Muito menos para o subverter ou lhe dar fim.
125
CULTURA
Mediocridade, partidocracia, mérito e democracia
Fernando Mora Ramos
A
mediocridade não tem obra, suga a alheia. Não é uma identidade
activa, prospectiva, é aquela forma sem vértebra, hábil em mexer
cordéis que a pessoa do oportunista ou instituição manobram nas
águas turvas de um caminho que se trilha sem sobressaltos, de modo
garantido, fermentando o bloqueio dos processos, sacaneando o parceiro, o outro
ou outra entidade, e disso colhe o que procura como lucro privado e íntimo – o
medíocre é perito na oportunidade, é oportunista, e não concorre com o outro
pela qualidade da coisa pelo jogo da alternativa, o medíocre corre com o outro
pela via do bastidor, do truque, é chico-esperto. Ele é o pilar da imobilidade e
na imobilidade tem a sua renda – nada melhor que um deslize dos prazos das
obras, que um reajuste orçamental, que um poleiro inútil, pouco visível e pago
em senhas de presenças, viatura, refeições, horas fora de horas, salário directo no
NIB, férias, prémios de desempenho pela invisibilidade competente, etc.; nada
melhor certamente que a criação necessária de uma Fundação desnecessária, que
uma comissão que se prolonga por objectivos não atingidos e plena de reuniões
não realizadas, nada melhor que fingir na simulação bem urdida a mudança para
que tudo fique na mesma. É aquele do discurso que se cola à ocasião que, não o
obrigando a nada, o mantém à tona garantindo-lhe as benesses tramadas ocultamente e fazendo fluir o pequeno e o grande tráfico em que está envolvido.
A mediocridade não produz riqueza, é improdutiva, porque justamente na
média apenas se concretiza o que a inércia concede e não aquilo que, inventado –
sair da crise é invenção e não aplicação de receitas anteriores –, o futuro necessita: a
tal riqueza própria criada que, investida em democracia, poderia viabilizar um país
livre e não uma bagunça descoordenada em que justamente reinam os mais medíocres, daqueles que também ganham as eleições porque espelham um desígnio
da média que vota na média e da bagunça que é seu habitat – o ambiente em que
as coisas crescem como viroses, doença ideológica conformista, é o habitat da política portuguesa que, sem verdadeiras rupturas, não encontrará respostas saudáveis
ao que tem de enfermo. Os medíocres adoram as águas turvas e nesta opacidade
127
MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA
ambiente prosperam, nada melhor que manobrar em lugar oculto, em estranhas
associações, em reuniões de três e de cinco, em plataformas negociais de interesses
privados de grupo, aí residindo o espaço de decisão dos verdadeiros poderes. De
um espaço a outro o medíocre faz o seu caminho. Da loja para o grupo, do grupo
para o partido, do partido para o voto concelhio, do voto concelhio para o geral.
Da eleição para o cargo na empresa, da empresa para o Ministério e vice-versa,
assessor, administrador, consultor, executivo de topo, chefe de gabinete, membro
de conselho de administração com cargo não executivo, director-geral, presidente
do conselho de administração, secretário de Estado, accionista anónimo de capital
saqueado por via habilmente legalizada, predador imobiliário e mesmo usurário:
eis os meandros. Quantas donas Brancas não singraram com o aval das instituições
mais supostamente sérias, ungidas de auréola moral e de auréolas de outro tipo,
religiosas e a da infalibilidade tecnológica aliada a uma competência que nunca se
traduz em melhoria, nem em resultado palpável, nem tem dimensão humana?
Será a democracia, a democracia do voto? Não, não é. Porque quase metade
da população não vota, isto é, quase metade não reconhece esta democracia
como uma democracia e nela não se faz representar. Como um corpo sem as
patas de trás, com meio pulmão e um coração mecânico que se arrasta para uma
debilidade cada vez maior. Se aos que não votam se juntarem os votos brancos e
nulos há uma vasta massa de criaturas fora do sistema que, na realidade, não vota
na média e que portanto não se identifica com a mediocridade instalada, mesmo
que o sistema em que reinam os que fazem da média o seu poder os caracterize
como desistentes, irresponsáveis e outros epítetos. Estes fora do sistema não
são necessariamente a maioria silenciosa de Spínola, nem a massa amorfa dos
supostos absentistas do voto, nem são tão diferentes de uma grande parte dos
que votam e que o fazem sem opinião, por puro mimetismo ou empurrados por
terceiros, mesmo obrigados e alguns levantados da cama, quase mortos, para a
ela regressarem e para expirarem sem a paz merecida dos momentos terminais,
depois da cruzinha preenchida no cacique mais ou menos familiar.
Os que não votam são mais do que os epítetos que lhes querem colar à
pele e são muitos, são a maior maioria e uma maioria feita de imensas diversidades – é um estudo por fazer e ninguém o faz, menos ainda os sociólogos,
estes teriam de ir para o verdadeiro terreno e constituir equipas esforçadas e
persistentes, mais do que manipular segundo as circunstâncias amostras ditas
paradigmáticas ou dados estatísticos mais que suspeitos a favor de teses que são
128
FERNANDO MORA RAMOS
anteriores à própria investigação para confirmarem os seus estudos académicos nada experimentalistas. Estas zonas por investigar, estes buracos negros
da democracia, continuam cuidadamente fora de ser objectos de investigação,
e portanto nas profundezas do ignoto por razões obviamente do sistema que
só tende à reprodução das malformações convenientes a quem o estrutura
laboriosamente nos limiares promíscuos da relação entre público e privado.
Os que não votam são, seja como for, a prova de que a democracia dos medíocres não os consegue convencer a que votem, trinta e tal anos depois, ou de que
nem lhes chega o desejo de votar sequer através da voz institucional e massificadora do direito de votar – os partidos também não saem de votações baixas, vistos
os números –, o que significa que há quem esteja fora do sistema por precariedade total e que por essa razão, que esta democracia não combate de modo que a
aprofundasse, nem sequer acede ao voto, mesmo perante o proclamado direito
a saltar-lhe em frases publicitárias frente aos olhos cegos – no país da estatística
somos não sei quantos alfabetizados, até licenciados (cujos canudos se adquirem
na versão de Bolonha como produtos brancos de supermercado), mas no país
real somos maioritariamente iletrados e incapazes de criar riqueza libertadora.
Nos partidos abundam os fiéis que apenas fazem número, mesmo que nos
partidos exista um potencial de transformação dos próprios partidos justamente
junto dos que são apenas os marginalizados seguidores não fiéis. Os partidos
praticam o simulacro da pluralidade mas são partidos cujos eleitores votam os
secretários gerais em votações na casa dos noventa por cento, à moda das tradições de homogeneidade acéfala que conhecemos. Dos outros, dos elementos
dos partidos e seus aliados ditos independentes, directamente sistémicos, há que
indagar quantos agem pelo interesse geral e com que competências. Quantos
parlamentares produzem de facto matéria legislativa? Quantos intervêm? Que
qualidade tem o material produzido? Quem fala disso ou analisa isso? Quantos
têm posições próprias, reflexão sobre as matérias que supostamente conhecem?
Ensaios, estudos, análises? Não basta ser capaz de levantar o braço, nem basta
ser capaz de reproduzir um discurso que o chefe proferiu antes. Cada deputado deveria ser um partido para quem o elegeu, o verdadeiro representante da
categoria glocal – global e local –, como diria Marc Augé.
À verdadeira escola, à verdadeira cultura, não escaparia a tal criação de
riqueza que libertaria o país, o que não é apenas uma conversa de crescimento
com uns quantos algarismos percentuais para satisfação de cabeças estatísticas.
129
MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA
Porque a essa escola só pode corresponder uma cultura – resultado também
da escola estética, da prática e fruição das formas de conhecimento específicas
desses discursos fundamentais – da qualificação constante com incidência
económica, no quadro de uma política do mérito eleita como regra democrática e ambiente crítico – o respeito desta formulação colocaria que percentagem
da actual classe dita política no desemprego, ou no devido emprego?
Assim sendo, uma grande parte de portugueses não vota por estar fora desta
democracia e por não reconhecer na lógica representativa, tal como é praticada e
manipulada, uma verdadeira dignidade e verdade de representação, sentem-se
exteriores ao sistema, excluídos da política como ela é praticada pelos que se autonomeiam políticos e pelo sistema que também os nomeia desse modo. A delegação
de interesses num suposto grupo de pessoas proposto por partidos e que é escolhido
dentro dos partidos por uma via absolutamente privada – são associações privadas
com vocação pública, o que não significa representação do interesse público – para
ulteriormente ser ungido pelo voto da eleição geral, é um mecanismo que na realidade funciona de modo corporativo e segundo interesses que não respeitam a
representação mas que, pelo contrário, são expressão de formas de desenvolvimento
de tráfico dentro dos partidos e entre as capelas partidárias e as empresas e também
de outros interesses, nomeadamente salariais e de cargos – o cargo de deputado
europeu o mais ambicionado, claro. Fora deste esquema não há verdadeiramente
partido algum, já que nos partidos que apenas acedem aos poderes públicos e não
aos poderes empresariais e financeiros, o mecanismo interno de selecção de candidatos e de acesso aos poderes internos deixa muito a desejar e não procede de modo
que funde competências político-técnicas, nem paradigmas de funcionamento
interno democrático capazes de gerar trabalho e obra como dedicação ao país e ao
planeta. Os candidatos não são sujeitos a critérios de verdadeira exposição e combate
democráticos, são objecto de listagens e de lutas de lugares, de hierarquias, sendo
raro o espaço de uma verdadeira pluralidade de opinião e posicionamentos geradora
de dinâmicas não dirigidas de modo dirigista e resultados de lógicas mais que de
antagonismo de conjuntura. O trabalho lento, diverso e íntegro de um verdadeiro
projecto concreto de alternativa futura não surge com a consistência da projecção
possível na prova prática, há programas de partidos totalmente indigentes e ainda
mais sectores da realidade ignorados nos próprios capítulos que se lhes dedicam. O
caso da cultura é paradigmático e nunca nada se diz sobre as políticas do património,
dos museus, da língua, das artes plásticas, do cinema, do audiovisual, do teatros, das
130
FERNANDO MORA RAMOS
artes performativas em geral, da criação, da internacionalização, do livro, da divulgação e animação culturais, da inscrição no território das estruturas de criação como
componentes da identidade contemporânea nacional e do espírito de tradição
universalista europeu, da articulação entre as artes como profissões e os ensinos
como um caminho para lá se chegar, etc., nunca nada se diz sobre a importância
dos clássicos, mas finalmente fazem-se declarações pomposas sobre as potencialidades económicas de Pessoa como marca e do inglês técnico para nos abrir a porta
do paraíso. Nenhum partido tem dentro de si uma verdadeira capacidade de experimentação do futuro e lamentavelmente nenhum deles desenvolve na sociedade
civil um verdadeiro campo de experimentação social em antecipação do que de facto
desejaria desenhar como futuro, mesmo de um modo apenas “apontado”, a partir
da própria realidade organizativa interna partidária e adjacente. O decréscimo de
forma organizativas próprias de modelos de sociabilidade democráticos, tais como
as mutualistas, as formas cooperativas e autogestionárias, as universidades populares e outras formas organizativas de livre iniciativa – organizações privadas sem fins
lucrativos – são hoje em dia, no todo social, formas residuais ou de entretenimento
terapêutico/social, e mesmo os sindicatos não se desenvolvem verdadeiramente
como um vasto campo de cultura alternativa sob formas organizadas socializadoras,
para além do combate político no estrito sentido da oposição ao poder governativo
de um modo muitas vezes apenas como contraponto mecânico, puramente reactivo
e não autonomamente activo e livre, potência de futuro.
Os partidos, para serem partidos que representassem o interesse geral teriam de,
no plano interno, funcionar de forma abertamente democrática e segundo as leis
gerais da exposição e do debate abertos. Seriam casas do exercício da política como
ciência pública da governação do que é comum. Uma organização não pode ser
parcialmente oculta no seu modo de vida associativo privado e reivindicado como
tal como ideal para si mesma e depois, em condições determinadas, representar o
interesse nacional e geral. É uma contradição nos termos, uma impossibilidade. Os
interesses representados para serem gerais não podem gerar-se nas microestruturas
de simbioses identitárias, de fulanizações humoradas e de pequenos interesses, os
interesses imediatos dos próprios. Os partidos são geridos por lideranças e o seu
sistema de voto interno é, como se sabe, manobrado ao ponto de existirem dentro
dos partidos formas de tráfico dos cargos a que se candidatam, inclusive sabendo-se
de candidatos que pagaram para serem candidatos a determinados cargos.
Claro que os partidos se podem organizar como quiserem e fazer as reuniões que
131
MEDIOCRIDADE, PARTIDOCRACIA, MÉRITO E DEMOCRACIA
entenderem como entenderem, mas não podem, por essa via da sua vida interna,
reivindicar uma legitimidade de representação do interesse geral. Ao interesse geral
só pode corresponder uma identificação absoluta com o que ele é e isso significa,
para além de exposição clara às regras da democracia transparente, que os cargos
públicos a que se candidatam, parlamento e governo, não deveriam ter, nem corresponder, a nenhum tipo de privilégio nem de salário elevado, mais elevado que o
comum dos mortais – o combate dos partidos nunca seria, deste modo, por nada
que o comum do cidadão não pudesse fruir e almejar pelo seu trabalho normal. O
verdadeiro representante do interesse público não deve estar acima dos seus concidadãos quanto a meios de vida, nem gozar de nenhum tipo de privilégio.
A democracia não se coloca estas questões porquê? Pela simples razão de que é
um sistema que serve apenas directamente parte dos que votam, mais ou menos,
e os partidos que são proprietários da democracia – é uma democracia para os
partidos e não para o interesse de todos. O interesse de todos está longe de poder
ser representado pelos partidos e por isso a democracia é muito mais do que os
partidos são, embora o sistema remeta para estes o exercício do poder político
de uma forma absolutamente imperfeita para aos tempos que correm. A necessidade de encontrar formas pós-partidárias de representação do interesse geral
está em cima da mesa e é de uma urgência vital. O que acontece na realidade está
para além do que os partidos podem e são. Outras formas de exercício do poder
dos cidadãos são necessárias de modo a que a inscrição da participação dos cidadãos na vida colectiva se faça como a crise o exige. Ainda recentemente o provou
a manifestação da “geração à rasca” cujo primeiro resultado é o da superação da
própria condição geracional em que surgiu, o que é um sinal extraordinário de
possibilidades futuras. O potencial de mudança da força surpreendente que ali
emergiu não encontra formas de participação adequadas à sua própria força de
mudança. A sua força de mudança corre o risco de se esgotar no nada.
Num sistema democrático estes sinais de presença e de actividade positiva política encontrariam os seus mecanismos de inserção dinâmica, transformadores,
canais abertos á participação e neles os qualificados, os mais capazes e com provas
dadas, obras de transformação criativas, seriam reconhecidos pelo mérito do que
realizam e por essa via eleitos como líderes de projectos, como mais capazes, como
líderes sociais. Mais que uma campanha eleitoral o que deveria guindar alguém a
eleito seria a sua obra, ter realizado mudança, coisas palpáveis, ser um criador de
formas de liberdade e qualificação da vida dos outros e da riqueza comum.
132
Shakuntala Irreconhecível
João Soares Santos
«A melhor prova da grandeza de um poeta é a
incapacidade dos homens em viver sem ele».
Arthur W. Ryder
1. A primeira peça de teatro originariamente redigida em sânscrito (Sanskrita) e prácrito (Prakrita = «original», «natural», «comum»,
«usual», termo que abarca os dialectos vernaculares da Índia, aparentados entre si, embora com pronunciações diferenciadas) traduzida para
uma língua europeia foi «Shakuntala do Sinal de Reconhecimento»
(«Abhijnana Shakuntala»)1 sendo o responsável William Jones. Vertida
para Inglês em 1789, esta obra («Sacontalá or the Fatal Ring») apareceu
impressa em Calcutá dois anos depois de Jones centrar nela a sua atenção e
cinco após a fundação da Asiatick Society na mesma cidade. Sucederam-lhe
duas edições em Londres (1790 e 1792) e uma em Edimburgo (1796). Um
campo literário até então inacessível ao público europeu adquiriu proeminência e lançou um fulgor de respeitabilidade sobre os candidatos à
decifração do sânscrito e à divulgação das obras escritas neste idioma. Em
1791 Georg Forster trasladou o texto de Jones para Alemão (2ª. edição
em 1803) e mostrou uma cópia a Goethe e a Johann Herder. A partir
da mesma fonte bibliográfica britânica A. Bruguière apresentou a sua
versão francesa (1803) e Luigi Doria, baseando-se na impressão francesa
e inglesa, uma tradução italiana (1815). Recomendada por um brâmane
chamado Radhakanta, Jones leu e transferiu inicialmente o texto desta
peça para latim que «assume uma enorme semelhança com o sânscrito»
e depois, «palavra a palavra», para Inglês. Apesar de considerar esta obra
como «uma das maiores curiosidades que a literatura da Ásia trouxe até
nós», julga aceitável que, sem danos, a mesma possa ser parcialmente alterada, deslocando o terceiro acto para o segundo, o sexto para o quinto,
haja a supressão da conversa entre Dushyanta, o rei de Hastinapura, com
Mathavya, a figura cómica (Vidushaka) e do segmento longo de galanteio
entre este soberano e Shakuntala no eremitério.2 Jones utilizou a variante
Bengali do texto. Esta foi a primeira versão ou recensão conhecida no mundo
133
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
Ocidental, tendo edições de Antoine de Chézy (Paris, 1830) e Richard
Pischel (Kiel, 1877).
Estão actualmente documentadas quatro (ou cinco) recensões desta
peça: a Bengali e a Kashmiri, de corpo literário mais extenso, presumivelmente
destinadas à cena, a Nagari ou Devanagari e a dravídica, mais abreviadas,
depreendendo um registo somente para leitura, acrescentando-se por
vezes a Maithili (dialecto do Bihar, próximo do Bengali). Com dissemelhanças entre si, apesar de apenas estas adaptações terem sido preservadas,
a perturbação deleitosa causada pela tradução ou pela tradução da tradução
da fonte Bengali alteou o nome deste dramaturgo e poeta aos píncaros
da arte literária mundial. A repercussão dos aplausos entusiásticos dos
eruditos europeus ajudou a colocar o idioma sânscrito, hostil ao saber
comum, na agenda dos estudos universitários. As vaidades intelectuais
retiraram proveito deste autor e da sua expressão verbal. Numa época em
que os textos indianos estavam ainda pouco propagados e a compreensão
das línguas deste país era deficiente, os sábios europeus apreenderam
este exógeno cativante num enquadramento colonial e de transformação
dos autóctones. Num processo de mudança do Outro em vantagem dos
padrões de civilização do ocupante, a descoberta e o reconhecimento artístico de «Shakuntala» resultou de uma genuína fascinação que muitas vezes
permitiu um aproveitamento para o exercício jactancioso de exibição de
saber e para a promoção individual. Neste período, a tradução modelava
a fonte ao gosto e aos preconceitos estéticos instalados, sacrificando ou
deturpando noções culturais indianas bem como os aspectos lexicais e estilísticos que as manifestavam. As limitações do tradutor evidenciavam-se
em incorrecções no modo como veiculava ou comentava no seu idioma
vocábulos, frases e sentidos, em omissões de regras formais, de segmentos
mais complexos ou censuráveis por indecência ou obscenidade, na camuflagem de hábitos e convenções, na incapacidade de transmitir as inflexões
e timbres próprios de cada situação. A tradução manifesta o que o seu autor
julga ser a Índia e as pretensões que com o seu trabalho tem em relação
a ela. Kalidasa contribuiu para a autoridade filológica, crítica e literária
de elites europeias. Arrebatou e catalisou discursos egocêntricos. Muitas
vezes a necessidade do erudito falar sobre si mesmo abafava o assunto sem
o elucidar ou problematizar.
134
JOÃO SOARES SANTOS
Antoine de Chézy, titular da cadeira de sânscrito no Collège de
France, fundada por Louis XVIII em 1814, na introdução à sua tradução
de «Shakuntala» («La Reconnaissance de Sacountala», a partir de um
manuscrito da biblioteca do rei, Paris, 1830) elogia-se por ter conseguido
superar as grandes dificuldades proporcionadas pelo léxico sânscrito.
Glorifica o seu esforço, saber, escrúpulo e meticulosidade para exprimir
em Francês esta obra-prima. Num estilo enfatuado, realça também que,
para satisfazer o leitor, para lhe dar aquilo que ele espera ser uma dramatização indiana, não hesitou em mutilar e aplanar este exemplo de haute poésie.
As páginas preliminares do livro terminam com uma exaltação da sua falecida mulher, uma criatura que ele «viu definhar dia a dia preenchida por
uma calma e resignação admiráveis e não experimentando outras lástimas
que as de me abandonar».3 A «pauvre Thérèse» que, na sua «terrível
agonia» final, tinha com mágoa mais viva «o temor que, no meu desalento, não pudesse acabar este trabalho e que regozijava quando, após mil
esforços, conseguia terminar uma parte.»4
Depois da sua primeira edição de «Shakuntala» («Sakoontalá or the
Lost Ring, an Indian Drama», 1855) segundo a versão Devanagari, Monier
Monier-Williams (1819-1899) reviu a obra e concluiu que «após um severo
exame crítico de todas as palavras, apenas detectei alguns pontos menores
insignificantes – e estes apenas na introdução e notas – para os quais uma
alteração parecia desejável».5 Admite ter, nalguns casos, tomado demasiadas
liberdades com o texto original mas, pensando na alternativa, optou por
uma solução dirigida a um leque mais abrangente de leitores e não somente
a sanscritólogos e estudantes do idioma. Assume ter em consideração um
público mentalmente cingido por valores europeus, destinatários para os
quais é imprescindível um tradutor capaz de transmitir o melhor possível
as ideias orientais, de lhes fornecer uma indumentária conformável com os
cânones ocidentais de gosto. Considera ainda que a mesma não se adequa
a dramatizações num palco. Manifesta as suas reservas no que concerne às
iniciativas ocorridas na Índia de adaptar para cena a sua versão da peça.
O teatro de Kalidasa devolvido aos Indianos em Inglês não lhe parece um
desfecho muito correcto para a obra. Contudo, não pode ser por si escamoteado o sucesso obtido por esta tradução em algumas partes da Índia,
entre um público ligado à administração colonial Britânica. Segundo ele,
135
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
William Jones não apresentou «Shakuntala» de modo a ir ao encontro das
circunstâncias da época e o seu trabalho foi realizado «a partir de manuscritos corruptos (os melhores que então podiam ser procurados) nos quais
a vigorosa fraseologia de Kalidasa foi ocasionalmente enfraquecida, as suas
delicadas expressões de amor refinado colocadas numa roupa inconveniente e as suas ideias, grandes na sua simplicidade, diluídas por repetições
ou amplificações.»6 Pelo contrário, o seu exercício de transposição verbal
patenteia a versão mais pura da composição dramática, à qual acrescenta
abundantes notas «suficientes para responder às exigências do erudito não
oriental».7
Este princípio de atalhar e maquilhar material literário, ao invés
de condignamente o clarificar, mantém-se ao longo do século XIX. A
tradução de Abel Bergaigne, mestre de conferências da Faculdade de Letras
de Paris e Paul Lehugeur, professor do Liceu Charlemagne (Paris, 1884)
responsabiliza-se por querer «não fatigar inutilmente o leitor»,8 remetendo cortes, disfarces e rasuras para o apêndice e omitindo porções que
«podem passar por interpoladas». Consoante os seus apetites e agrados,
muitos indivíduos sem o talento literário para edificar uma peça como
«Shakuntala», não sentem embaraço em eliminar secções de texto naquilo
que enaltecem como sendo uma obra-prima. Kalidasa é oferecido em
sacrifício por tradutores e sanscritólogos a um público subentendido como
preguiçoso ou com capacidades de inteligibilização restringidas. Para não
cansar de um modo supérfluo o leitor, o texto do dramaturgo é facilitado, tornado acomodatício em nome do rigor científico e de receptores
alegadamente inaptos para apreender a obra tal qual como é. Bergaigne e
Lehugeur encurtaram a peça «sem outra preocupação que a do sentido
estético de um leitor Francês».9
Como muitos outros, Maurice Pottecher no « L’Anneau de Sakountala»,
adaptado por si em verso Francês e representado no Théâtre du Peuple de
Bussang (Paris, 1914) coloca a preferência pessoal em primeiro plano e não
hesita em aplicar modificações, em vestir a peça com uma nova roupagem
«para que aquilo que ela tem de imortal e de encantador seja melhor
saboreado por um auditório moderno».10 Crê que uma intervenção deste
calibre, que uma reinvenção de «Shakuntala» não atraiçoa a obra, que
a falta de fidelidade a um expoente máximo da literatura não implica
136
JOÃO SOARES SANTOS
deslealdade ou indelicadeza. Pelo contrário, sustenta a sua atitude como
um tentame arrojado que visa evidenciar a verdadeira e durável beleza da
mesma.11
Ao longo do século XIX o interesse pelo teatro sânscrito e por
«Shakuntala» em particular exprimiu-se em numerosas edições, em
estudos e opiniões diversas sobre a literatura indiana, em composições
poéticas e em espectáculos de teatro, ballet e ópera. Para além dos autores
já mencionados, Wilhelm Gerhard (1820), Bernhard Hirzel (1833) e
Hippolyte Fauche (1854) elaboraram transferências linguísticas a partir da
recensão Bengali e Ernst Meier (1852), Friedrich Rückert (1867), Carolus
Burkhard (1872) e Edmund Lobedanz (1878) a partir da versão Devanagari.
Dos resultados obtidos a partir destes registos indianos derivaram outras
traduções publicadas por toda a Europa.
Em 1867 P.-É. Foucaux apresentou uma tradução da peça de Kalidasa
baseando-se na edição de Monier Monier-Williams. Uma tradução livre
de «Sakountala» não suportada pelo texto de Kalidasa mas pelo episódio
referente à sua história, contido no Livro I (Adi Parva) do «Mahabharata»,
apareceu feita pelo mesmo em 1894. Receando que uma conversão rigorosa
pudesse repelir o leitor francês, Foucaux que se «esforçou por respeitar o
fundo e a forma»,12 decidiu «misturar alguns traços emprestados do drama
de Kalidasa “La Reconnaissance de Sakountala”».13 O seu propósito «foi
explicar certas obscuridades e adoçar a rudeza da lenda antiga».14
2. A trasladação pioneira na língua Portuguesa de «Shakuntala» foi
empreendida por Guilherme de Vasconcellos Abreu (1847-1907). A edição
bilingue15 teve apenas uma tiragem de cinquenta exemplares e nela somente
consta o prólogo e o primeiro acto da peça, num total de sessenta e duas
páginas. Abreu era bacharel em matemática pela Universidade de Coimbra
e engenheiro naval. Deslocou-se a França e à Alemanha para consolidar
conhecimentos no domínio linguístico e cultural sobre a Ásia. No relatório
acerca do primeiro ano de estudos orientais feitos em França e Alemanha,
enviado de Paris em Janeiro de 1877 a João de Andrade Corvo, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e dos da Marinha e Ultramar,
enuncia que chegou a Paris em Maio de 1875, foi aluno de Abel Bergaigne
na Escola dos Hautes Études, num curso de História da Literatura Antiga
137
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
da Índia. Antes de seguir para a capital francesa, Abreu tentou traduzir
extractos do «Ramayana» e o episódio de Nala e Damayanti, incluído no
«Mahabharata». Admite a sua carência de «método rigoroso por cuja falta
tudo é estéril».16 Em Paris menciona ter-se debruçado na tradução de um
conto de Vetala (refere-se ao «Vetalapanchavimshatika», «Os 25 Contos
do Demónio» ou «do Vampiro») e do «Hitopadesha» («Instruções
Úteis», uma compilação de narrativas). Seduzido pelo prestígio académico
de Martin Haug (1827-1876) deslocou-se depois para Munique, no final
de Agosto, conhecendo-o a 3 de Setembro de 1875. Porém, logo após este
encontro, o professor de Literatura e Língua Sânscrita Clássica e Védica
e de Gramática Comparativa adoeceu. O seu estado de saúde «piorava
cada dia e, sobretudo depois do Natal, Haug não era mais o homem dos
primeiros dias».17 Abreu foi igualmente atingido por uma enfermidade,
perdendo a tão almejada oportunidade de estudar aprofundadamente com
esta personalidade. No termo do mês de Abril de 1876 retornou a Paris.
«Envelheci em cinco meses mais de cinco anos».18 No período situado
entre fins de Outubro e finais de Março as suas aprendizagens decorreram
«no meio de sofrimento» especialmente «terrível».19 Voltou para esta
cidade «mais para convalescer do que para estudar».20 Conseguiu ter
algumas lições privadas com Bergaigne pois «a doença veio logo pôr-lhe
estorvo».21
Neste relatório endereçado à tutela propõe que o governo observe com
atenção «a acção civilizadora da Inglaterra no Hindustão, se não quiser ver
perdidas com desonra as suas colónias na Índia».22 Defende que os administradores daqueles territórios devem conhecer os seus administrados. Está
convicto que o empenho no estudo da Índia será um factor indispensável
para a civilizar, para promover a sua renovação, para a modernizar. Esta
diligência de conhecer um objecto com o desígnio de o mudar, pois não é
conveniente a sua preservação ou aceitação, ilustra em si um contra-senso.
Se uma cultura nos suscita admiração tal como é porque a pretendemos
transformar? Na perspectiva de Abreu o interesse do povo colonizado era
ser subjugado pela vontade do colonizador, implicando esta atitude passiva
de obediência e assimilação um suposto benefício do primeiro em relação
à superioridade do segundo.
O relatório seguinte de Vasconcellos Abreu, assinado com a data de 21
138
JOÃO SOARES SANTOS
de Janeiro de 1878, dedicado ao Marquês D’Avila e de Bolama, Presidente
do Conselho de Ministros, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios
do Reino, dá conta da sua actividade entre Novembro de 1876 e Maio de
1877 em Paris. Nele alude à persistência da sua enfermidade, o constante
padecimento, o fracasso parcial dos intentos da sua viagem. Depois do
falecimento de Haug e das escassas lições com Bergaigne, partiu para Lionsur-Mer na Normandia. Em Outubro regressou a Paris e a sua condição
física agravou-se. Segundo ele, de entre os que houve e mais lhe convinham
seguir, os cursos de sânscrito realizavam-se às oito da manhã. Era Inverno,
estava doente e viu-se resignado a ter de se concentrar nos estudos sozinho,
indo por vezes à universidade assistir a lições sobre temáticas diversas.
Reuniu assim dados complementares entendidos como «indispensáveis
não a quem se propunha a traduzir Sânscrito, Zenda ou Marathi, mas a
quem se proponha saber alguma coisa de etnologia sem cujo estudo não se
pode ser Orientalista».23 Tendo recebido apoio financeiro do Estado para
ir para o estrangeiro, Abreu parece ressentir a sua frustração e incómodo
por a realidade experimentada não ter correspondido às suas expectativas.
«Ainda que em minha consciência entendesse não perder o meu tempo
nem gastar mal o dinheiro da nação, pareceu-me dever oficiar declarando
que, por não poder seguir o curso que desejava com Bergaigne, estava estudando o sânscrito só comigo. E nesse sentido oficiei».24
Nesta sua exposição alude também ao drama «Shakuntala», traduzido
por Monier Monier-Williams (edição de 1867), ao convite recebido pelo
Marquês D’Avila e de Bolama para reger a cadeira universitária de Glótica
e, no âmbito do ensino público, propõe a introdução ao estudo da língua
e da literatura sânscrita, enquadrada na «sublime ciência» da sociologia
em Lisboa, no Porto e em Coimbra. Realça a pertinência de uma cadeira
de sânscrito e de glótica bem como a necessidade de reformas no ensino
superior. A aprendizagem deste instrumento de comunicação, o sânscrito,
bem como das línguas vernáculas da Índia, parece-lhe fundamental para
«o efeito de uma boa administração colonial».25
Quando escreveu o «Manual para o Estudo do Sãoskrito Clássico»
(1883), Abreu era Presidente da Secção Asiática da Sociedade de Geografia
de Lisboa, membro da Sociedade Asiática de Paris, da Academia Indochinesa
de Paris, lente de Sânscrito no Curso Superior de Letras em Lisboa e
139
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
sócio honorário efectivo e correspondente de outras sociedades científicas, literárias e artísticas. No tomo II, secção III deste manual, intitulado
«Chrestomathia de Textos em Sãoskrito Clássico», selecciona entre os
poetas líricos Kalidasa e alguns versos (94 a 112) do seu poema «A Nuvem
Mensageira» («Meghaduta»), o qual designa como «A Mensagem» e
um extracto de «Shakuntala» («Xakuntalá», Acto I e Acto V), a partir da
recensão Bengali publicada por Richard Pischel (1877). O que aparece referenciado como Acto I é o mesmo texto do prólogo e Acto I da sua edição de
1878. Em posfácio, assinado com a data de Julho de 1891, Abreu lamenta
que, não obstante ter sido dada à estampa em 1883, a «Chrestomathia»
só foi publicada em 1891 e «muitas foram as causas que para isto concorreram; de entre elas basta que cite uma: o desamor com que os estudos
históricos e muito especialmente os filológicos são tratados nas regiões
oficiais em Portugal».26
Os exercícios usados no tomo I do volume II do «Curso de Literatura
e Língua Sânscrita Clássica e Védica» são adopções com permissão de uso
do «Leitfaden für den Elementarcursus des Sanskrit» (1883) de Georg
Bühler da Universidade de Viena. Com humildade, Abreu manteve-se
informado sobre a actividade dos sanscritólogos europeus e as suas aulas
seguem o modelo de Haug e de Bühler. Deplora a sua frágil saúde e o país
com as suas «más vontades». Sonha como gostaria que fosse a realidade
nacional quase como a desculpar aquela na qual estava inserido. «Oxalá
que por este meu esforço se compreenda breve em Portugal a utilidade dos
estudos clássicos; e que em futuro próximo possa quem vier depois alargar
mais a estrada que se abre agora, e que por ela sigam afoitos no trato das
letras viandantes que se esqueçam, quais romeiros felizes, do bordão. Por
enquanto só muito à puridade se pode dizer que sem estes estudos não
há estudos sérios da Literatura, da História, de boas letras em Escolas de
Letras e portanto não os haverá no instituto designado para este fim entre
nós, o “Curso Superior de Letras”».27
Em 1884, no Curso Superior de Letras, havia cerca de quarenta alunos e,
para além de Literatura Sânscrita, Védica e Clássica, constavam disciplinas como
História Universal e Pátria, Filologia Comparada ou Ciência da Linguagem,
Literatura Grega e Latina, Literatura Moderna, Filosofia, História Universal
Filosófica. Na direcção dos estudos filológicos estava Adolfo Coelho.
140
JOÃO SOARES SANTOS
No período da governação de Salazar, o sânscrito, entre outras línguas,
foi leccionado na Escola Superior Colonial, depois designada por Instituto
de Estudos Ultramarinos e Instituto Superior de Ciências Sociais e Política
Ultramarina.
Na Faculdade de Letras de Lisboa no ano lectivo de 1991-1992 inscreveram-se no curso de sânscrito cerca de trinta alunos dos quais metade foi
assídua. Na Páscoa restaram três e no final do ano dois. 28
José Júlio da Exaltação Costa (1870-1956), professor e secretário de
Tribunal Administrativo Fiscal e de Contas em Goa, editou uma tradução
de «Shakuntala de Kalidassa» (Pondá, 1911), recorrendo a uma tradução
inglesa. Mariano Gracias referiu que «entre grande número de traduções
que conta este belo poema, em quase todas as línguas cultas, há uma em
prosa, directamente vertida do Inglês, do meu ilustre amigo e conterrâneo José Júlio da Costa, que é uma das mais fiéis e bem feitas».29 Este
depoimento contradiz referências publicadas sobre esta tradução apontando-a como seguindo Fauche. Costa estudou Inglês em Bombaim e
leccionou este idioma no Instituto Liceal Particular em Divar. A «Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» (vol. XXVI) no artigo não assinado
sobre «Shakuntala» (com a grafia «Sakuntalá»), «drama lírico da literatura indiana pós-védica», apenas menciona a «boa versão em prosa de
José Ferreira Martins entre «outras de menos valor feitas em Goa». Esta
obra de Ferreira Martins (1911) foi republicada pela Imprensa Nacional
de Angola em 1925 com outro prefácio. Na sua primeira edição Martins
elogia outros tradutores deste texto com destaque para Monier MonierWilliams (aparecendo sempre escrito Mornier-Williams) e Fauche «que
o verteu em Francês, língua dos namorados, mais rica e mais bela que a
inglesa e algo moldada para obras desta natureza».30 Com um fôlego grandiloquente afirma, sem reservas, que Kalidasa era contemporâneo de Jesus
Cristo, mais velho quarenta anos e que nasceu e foi criado na corte do Rajah
Vikramaditya, um espírito lúcido apaixonado na leitura dos Vedas que «se
fundam na guerra entre os Kurus e os Panchlas».31 Este soberano, segundo
ele, era admirador «do Valmiki» que compôs «Ramayana» e apreciador do
«Mahabarata». Ferreira Martins enaltece Kalidasa como poeta, prosador,
como «fino perscrutador da alma humana» e «Shakuntala» como «um
dos monumentos mais grandiosos da literatura Védica»,32 ajuntando que
141
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
«o brilho das imagens, a formosura dos conceitos e a pureza da moral
que encerra o drama evangeliza-o».33 Para caracterizar a protagonista usa
como termo comparativo um poema «feito com mão de mestre» de Bruno
Vasconcellos chamado «O Último Respigo»:
«Na pagina – Mulher – páro e cogito…
Aos seis, botão de rosa; aos dez encanto;
Aos doze maravilha; aos quinze mitho;
Aos vinte sentimento; aos trinta pranto.
Algumas vezes cêra, outras, granito;
Agora, repulsão; logo quebranto;
Em affecto, os extremos do infinito;
No amor, cegueira; no rancor, espanto.
Se, pois, um voto universal eleva,
Pelos séculos fóra, em toda a parte,
Ao supremo prestigio a filha de Eva:
Que talento ousaria decifrar-te,
Esphinge audaz, mixto de luz e treva
Obra Prima de Deus, o Sol da Arte?! 34
Este tradutor da tradução de Mornier-Williams equipara esta última
com as obras de William Shakespeare. «Se Shakespeare tem no mundo
literário um lugar de evidência, não inferior terá Mornier-Williams que
nessa tradução em que mostra o seu grande cabedal de conhecimentos
evidencia-se como escritor de altos recursos, de forma sugestiva e o seu
fino temperamento de poeta».35
Na edição de 1925, Ferreira Martins louva os atributos da Índia. Este
território «é uma chama ardente sufocada pelas cinzas acumuladas em
séculos de estádio, onde em convulsão confrange e palpita, surgindo em
galas louçãs que farão deslumbrar outros povos».36 A Índia é um país que
«descansa apenas no regaço dos sois cálidos, após um labutar de muitos
séculos».37 Neste novo prefácio declara que nada sabe sobre Kalidasa,
142
JOÃO SOARES SANTOS
sendo por isso difícil «fixar a época da sua existência dentro de um limite
mais ou menos plausível».38 Refere opiniões que situam a vida deste autor
entre o século VIII a.C. e o século VI d.C. e lendas que o identificam como
sendo «uma das nove pérolas que marchetavam o manto de púrpura do
Rajá Vicramaditi» ou um «Rajá de Kashmira» ou «um idiota, para afinal
mostrar que é só aos entes sobrenaturais que ele ficou devendo o dom da
poesia».39 Em rodapé anota que nas obras de teatro indiano antigo, em
geral o diálogo das personagens principais era em verso sânscrito e das
mulheres e figuras secundárias em prácrito. Numa fluência verborreica,
procura com a pompa oca dos vocábulos dar uma aparência de erudição.
Os dramas indianos «bebem a largos sorvos do fluido da História romântica dos gloriosos feitos de seus antepassados».40 Sobre Kalidasa declama
que «os episódios de todos os seus poemas épicos e dramas, são metal
bruto extraído das inesgotáveis minas da literatura sânscrita, que ao toque
da varinha mágica do poeta, se transformam em ouro puro, brilhante.
Arrancando o mármore bruto das pedreiras dos tempos anteriores a si,
Kalidaça soube brunir e cinzelar as toscas pedras e com elas erguer um
monumento de admirável estrutura, onde juntou o divino ao profano,
irmanou o belo ao grandioso».41
Como fetiche de engrandecimento, reporta aos elogios de Goethe,
Humboldt, Horriwts (supostamente E. P. Horrwitz), Schlegel, Harder
(supostamente Herder), Lassen, Lamartine, Fauche, Fançoney, Williams,
etc. No halo de autoridade irradiado destes nomes consagrados, Martins,
num rasgão lírico constata que no drama de Kalidaça a mulher «é grácil
como a arequeira, tão doce e encantadora como o botão de lírio numa
noite de prata, iluminada pelos brandos raios da lua».42 Inclui nesta versão
o prólogo da peça (ausente na edição anterior) e procede a pequenos ajustes
no texto de 1911.
Em 1919 a Imprensa da Universidade de Coimbra publica «Xacuntala,
Drama Sânscrito de Calidaça», traduzido por Bernardino Gracias e com
uma introdução de Monsenhor Sebastião Dalgado (1855-1922). Dalgado,
um Goês formado em direito canónico e romano na Universidade de S.
Apolinário em Roma e doutorado em teologia por concessão especial do
papa em 1884, veio ocupar o cargo de professor de sânscrito no curso
leccionado por Vasconcellos Abreu após o falecimento deste. De Janeiro
143
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
de 1908 até à sua morte, a cadeira universitária esteve assegurada por este
homem de notável erudição que, entre outras obras lexicográficas de referência escreveu um «Dicionário de Concani-Português» (Bombaim,
1893), um «Dicionário de Português-Concani» (Lisboa, 1905), o
«Glossário Luso-Asiático» (Coimbra, 2 Volumes, 1919 e 1921) ou os
«Rudimentos da Língua Sânscrita (Gramática, Textos e Vocabulário) para
uso dos alunos no Curso de Sânscrito da Faculdade de Letras de Lisboa»
(1920). Traduziu o «Hitopadesha» («Hitopadexa ou Instrução Útil») a
partir do sânscrito com uma introdução de Vasconcellos Abreu (Lisboa,
1897) e «Nala e Damayanti» (Coimbra, 1916). Com agravados problemas
de saúde, consequentes de arteriosclerose e intoxicação úrica, na véspera
do seu óbito, acamado e com as pernas amputadas, ainda reviu as provas
tipográficas do livro «Provérbios Concanis».
Na introdução de «Xacuntala», Dalgado aborda a natureza do teatro
sânscrito, as recensões desta peça («a Devanágari, mais concisa, a Bengalina
mais difusa, a Dravídica e a Caxemirense»)43 bem como as traduções existentes. Salienta que «alguns dos apreciadores não eram sanscritistas para se
deliciarem com as belezas e os encantos na sua límpida fonte, nem tinham
diante dos olhos uma versão rigorosamente efeituada, mas interpretações do sentido, pálidos reflexos».44 Parece insinuar que o contágio de
glorificação de «Shakuntala» foi em grande parte um modo de os enaltecedores se vangloriarem através de Kalidasa. Sublinha que a «profunda
e duradoura» impressão causada em Goethe dependeu de uma tradução
precursora (a de Jones), em si com algumas restrições na exacta observância
relativamente à matriz, depois transferida para Alemão. Segundo ele, as
traduções feitas têm um valor relativo. «Raríssimas são as que se podem
considerar mais ou menos literais».45 Jones pensou «interpretar o texto em
linguagem corrente», Monier Monier-Williams em «adaptá-lo ao teatro
europeu», Bergaigne em «acomodá-lo ao gosto moderno do público
em geral» e, por isso, «não podiam necessariamente (e confessam-no)
ater-se com fidelidade ao protótipo».46 Esta conduta tem a vantagem de
«fornecer o dono do restaurante o que sabe ao paladar, são ou estragado,
dos fregueses cosmopolitas»47 e o inconveniente enorme de ocidentalizar
e modernizar algo cuja natureza não é essa. «Quem não gosta de caril
indiano não o come. Mas não se lhe há-de dar qualquer mixórdia com tal
144
JOÃO SOARES SANTOS
nome, como não seria dar gato por lebre. O ninho de pássaro é ninho de
pássaro, e não geleia de mão de vaca; o manduco (rã grande) é manduco,
não é frango. O meu ideal acerca de produções sânscritas clássicas é uma
trasladação possivelmente verbal, como a da Bíblia, conservando na substância e na forma o sabor e o aroma oriental (…).48 Se uma viagem à Índia
e à época do autor incomodam, então o melhor é ficar em casa. A ausência
de veracidade pode ser conveniente mas isso não exime o testemunho de
ser uma falsificação ou mentira. «Um autor, ainda que tenha vivido há
quinze séculos, creio que tem o direito imprescritível a que a sua obra não
seja profanada ou deturpada».49 Dalgado toma uma atitude firmemente
elucidativa. «Shakuntala» não deve ser desfigurada pelas fantasias e pelas
transigências de quem sobre ela incide. A tradução deve ser um trabalho
que respeita o talento do autor. Entre as versões que conhece, Dalgado
prefere a de Monier-Williams. «O que é obscuro explica-se e justificase em anotações».50 Apresenta um exemplo da transferência de Monier
Monier-Williams e o verdadeiro sentido da fonte.
«Por exemplo, Calidaça diz, em substância, que a gazela, perseguida pelo
rei, parecia antes voar que correr. Monier Williams traslada-o em verso:
«See! In his airy bounds he seems to fly,
And leaves no trace upon th’ elastic turf».
Mas o que o poeta exprime exactamente pelas suas palavras é o seguinte:
«Olha! (pasya; cf. Lat. spice, ingl. spy). Por causa da saltação (-plutatvat
cf.
¯
gr.¯ pléo, lat. pluit) alta (ud-; cf. zende uz, irland. uas, os em compos.) e avançada (-agra-; cf. gr. ákron) prossegue (pra-yati;
cf. lat. pro e it) muito mais
¯
(bahu-tara, comparativo) no ar (viyati, locativo), pouco (stokam) na¯ terra
(urvyam: lit. «a extensa»; cf. gr. eurús, irland. uras)». -A máxima liberdade
que se toma na escola, analisado o texto, é dizer: “Por causa dos seus altos
(direcção vertical) e largos (direcção horizontal) saltos prossegue muitíssimo pelo ar, pouco por terra”.
Não se harmoniza bem com a vernaculidade da língua portuguesa semelhante trasladação? Paciência! Em compensação, interpreta-se com fidelidade
não só a mente do autor, mas também a sua expressão e o seu estilo. E não pode
desejar mais o estudante de sânscrito e o amante da literatura oriental».51
145
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
Ao receber a proposta de Bernardino Gracias de converter «Shakuntala»
para o idioma nacional, respondeu «que somente uma versão literal lhe
faria honra e seria oportuna. Dar-lhe-ia seguramente muito mais trabalho
mas teria, à proporção, mais merecimento».52 Mais adiante, Dalgado
consigna que «o público português actual pouco ou nada aprecia os estudos
orientais, sem embargo de tantas e tão gloriosas relações que a nação teve
com o Oriente, e de tantos indianistas de primeira plana que produziu, tão
considerados pelos estrangeiros, como Duarte Barbosa, Fernão Mendes,
João de Barros, Castanheda, Garcia da Horta, Gaspar Correia, Camões,
Diogo do Couto, Gaspar da Cruz, Fernão de Queiroz.
Não se nota na classe ilustrada pelo menos o mesmo interesse que se
manifesta na Bélgica, na Dinamarca ou na Noruega. Julga-se talvez que o
Orientalismo é nebuloso, pueril ou inútil; mas outro é o juízo dos entendidos. O leitor ordinário lê por passatempo, ou por luxo, e não com o
empenho de adquirir novos conhecimentos; a leitura leve e superficial
satisfaz, portanto, plenamente o seu gosto».53
Eça de Queirós (1845-1900) de um modo breve atestou o insípido
panorama orientalista português, o gosto ignorante ou a entediante banalidade da maioria dos seus discursos. Para ele, por volta de 1862 ou 1863
«conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então, em
Coimbra, um distintivo de superioridade e elegância intelectual. Os Vedas,
o Maabarata, o Zendavestá, os Edas, os Nibelungen, eram os livros sobre
que nos precipitávamos com a gula tumultuosa da mocidade que devora,
aqui, além, um trecho mais vistoso, sem ter a paciência de se nutrir com
método» («Um Génio que era um Santo», «Notas Contemporâneas»,
obra póstuma, 1909). Esta falta de vinculação efectiva, de diligência e de
perseverança na continuidade deste tipo de estudos prevaleceu até aos
nossos dias. O tom de leviandade refulge na tradução de Ruy Sant’Elmo de
«Shakuntala» («Xacuntalá», Nova Goa, 1941). Apesar de mencionar as
edições anteriores da peça (excepto a de Vasconcellos Abreu), o autor, se de
facto as consultou, parece ter esquecido a introdução de Sabastião Dalgado
pois assume fazer «uma adaptação libérrima do drama às exigências do
teatro susceptível de representação».54 Não manifesta qualquer prurido em
considerar que as obras antigas devem ser actualizadas, justificando-se com o
interesse de um público destinatário que «não tem tempo nem preparação
146
JOÃO SOARES SANTOS
para as ler»55 e assim «ficaria privado de fazer delas uma ideia sequer».56
Embora ter uma ideia não seja o mesmo que ter o usufruto profundo de
um texto cheio de subtilezas, o tradutor advoga, não sem estar cônscio da
polémica atitude que toma (e esta caucionar qualquer opção medíocre),
ser preferível conhecer superfícies do que não conhecer. Com uma conveniente modéstia que delata a sua incompetência em tratar adequadamente
o texto de Kalidasa, admoesta: «resolvemos abater o camartelo sobre a obra
venerável».57 Não julgando ser o utensílio de demolição usado para bater
na reverenciada obra a causa de uma mutilação ultrajante, redime-se logo
de seguida do acto pois, apesar de tudo, pensa ele, a ideia mater do drama
permaneceu intacta. Sant’Elmo decide em nome do leitor, supostamente
incapaz, o que entende ser para ele mais adequado. Sendo ele também um
receptor, o primeiro leitor da sua tradução, com a qual comunica com
os destinatários, os argumentos expostos para a sua solução conversora
veiculam um retrato do seu calibre intelectual. Confessa a sua miopia em
relação à cultura indiana, a sua estreiteza no conhecimento de «psicologia
indiana», relatando ser um «mero espectador». Tal limitação não invalida a presunção ou a esperança de «ter sido possível aproveitar, com mais
ou menos fidelidade, tudo o que concorria para caracterizar o ambiente
psíquico da época, que ainda é fundamentalmente, o de hoje».58 Procura
depois, pela citação de outros autores, descrever os atributos definidores
do «oriental». Por fim sugere que «este conto de fadas» fosse adaptado à
ópera e desafia Ivo Cruz e Rui Coelho para aceitarem a sua proposta.
3. A temática das traduções para Português de «Shakuntala» interessou Anil Samarth, um indiano a viver em Portugal e em cujo currículo
consta uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (1995-1998) para
uma investigação sobre as relações socioculturais entre a Índia e Portugal
nos séculos XIX e XX e a docência da cadeira de sânscrito na Universidade
Independente (1999-2000). Num muito descuidado artigo intitulado «Sakuntala – um Drama em Sânscrito: Traduções em Português»,
usa como principal referência de informação o texto da «Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira» copiando as incorrecções nela existentes. Defende
sem explicar que «hoje está confirmado que [Kalidasa] viveu mais ou
menos no ano 375 da nossa era. Esta confirmação é feita pela análise do seu
147
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
estilo literário».59 Reproduzindo sem mencionar a «Enciclopédia», diz
que Goethe referiu no «Fausto» o drama «Shakuntala». «Esta atracção
estendeu-se a outros vultos da literatura europeia como Herder Fauche
ou Shakespeare, nascendo daí a grande voga que Sakuntalá teve na Europa
do século dezoito para o século dezanove, sem embargo de haver na Índia
outro poema de kalidaça de maior efeito lírico, como o víkrama-urvaci».60
Ao longo de cerca de duas páginas, resume a peça, literalmente como consta
na «Enciclopédia» e, por exemplo, descreve que no terceiro acto «o bobo
gracejando, tenta dissuadi-lo [o rei] por a jovem não ser filha de reis»61 e
que, nesse mesmo acto «um asceta amaldiçoa a donzela e profere a fórmula
da magia, em virtude da qual Sakuntalá não será reconhecida pelo rei esposo que apenas se lembrará dela por virtude de um anel».62 De facto,
quer na versão dita cénica quer na literária, Mathavya, o bobo (Vidushaka),
não aparece em cena no terceiro acto nem há qualquer maldição proferida.
Samarth escreve ainda que no quarto acto «o rei volta à sua capital onde
espera a vinda da sua jovem e formosa esposa»,63 embora nesta divisão da
peça Dushyanta, o monarca, esteja ausente. Nela, o que em síntese sucede
de crucial é a maldição de Durvasas sobre Shakuntala, causando esta que
Dushyanta, o seu amado esposo, a olvidasse. Anil Samarth relata existirem três recensões de «Shakuntala» aditando que a edição de 1878 de
Vasconcellos Abreu contém apenas «cinquenta cópias com citações do
sânscrito original em caracteres devanagri. Tanto quanto sei, é a primeira
tradução do drama indiano em língua portuguesa».64 Efectivamente, nesta
edição, somente o prólogo e o primeiro acto estão impressos e numa paginação bilingue, ficando do lado esquerdo o texto nos idiomas indianos e
do lado direito a tradução em Português. Sem fundamentar, afirma igualmente que «por muitas razões», o livro mais significativo na nossa língua
foi escrito por Ruy Sant’Elmo (Abílio Augusto de Brito e Nascimento)
como suporte de um espectáculo teatral estreado no Cine Teatro Nacional
em Panjim, Goa, no dia 4 de Dezembro de 1941, num enquadramento de
angariação de fundos para uma campanha contra a tuberculose e vertido e
apresentado em Marathi no mesmo local por estudantes a 19 de Dezembro
do mesmo ano. Por fim, destaca como «mais importante» que «antes de
1941, as traduções de Xacuntalá em marathi, concani e inglês foram feitas
a partir do original em sânscrito. Mas a versão portuguesa de Xacuntalá
148
JOÃO SOARES SANTOS
de Ruy Sant’Elmo, atraiu tanto a atenção de autores e tradutores que foi
traduzida em marathi, concani e inglês. A língua portuguesa parece ser a
única língua europeia a partir da qual Sakuntalá, que conta cerca de vinte
séculos, foi a traduzida para línguas indianas».65 Os disparates de Samarth
não merecem mais dispêndio de comentários.
Bernardino João Salvador Gracias (1889-1966), indiano, discípulo
de Sebastião Dalgado na Faculdade de Letras, interessou-se pelo teatro
sânscrito publicando «Do Teatro na Literatura Indo-Àrica» (Imprensa
da Universidade, Coimbra, 1928) e por Kalidasa, traduzindo também o
poema «Meghaduta» («A Nuvem Mensageira», Lisboa, 1925). Este foi,
no ano seguinte, abordado por Mariano Saldanha, médico, professor de
sânscrito no liceu central de Nova-Goa («Mêghaduta ou a Mensagem
do Exilado») e substituto de Sebastião Dalgado na cadeira de sânscrito
na Universidade. «Exceptuando certas expressões cuja nudez forte foi
velada por um ‘manto diáfano’»66 o autor «esforçou-se por aproximá-la
o mais possível do original, a fim de manter o cunho do pensar indiano,
mesmo com algum sacrifício da dicção portuguesa, mas não ao ponto de
sair uma versão tão literal, que tornasse fastidiosa a leitura».67 Sublinha
que Xacuntalá, «a suprema criação de Kalidasa», já tinha sido «apresentada ao leitor português por três traduções»68 e sintetiza as opiniões
biográficas vigorantes sobre este dramaturgo, expondo-as sem nenhuma
certeza, embora sugira como data plausível para a sua existência o século
V, durante o auge da dinastia Gupta. Saldanha trabalha a partir da edição
de Kashinath Pathak, de Wilson, de Nandargikar, das traduções inglesas e
outras, bem como o comentário de Mallinatha. Apresenta da página 69 a
114 a matriz em sânscrito com notas de trasladação.
Telo de Mascarenhas no volume «Kailâsha, Contos e Lendas do
Hindustão» (Edições Oriente, Lisboa, 1937) narra em seis páginas o
enredo de «Shakuntala», bem como no livro «A Mulher Hindu». O
mesmo selecciona, traduz e prefacia «Mestres do Conto Indiano» da
colecção Antologias Universais (Portugália Editora, sem data) no qual insere
o conto «Sakuntalá» de Rabindranath Tagore. Em «A Mulher Hindu»,
apresenta um conjunto de ensaios «breves e singelos, sem a pretensão
de ser erudito»69 e compara-se a um «obscuro pescador de pérolas»70
que «trouxe a lume pequenas maravilhas de precioso quilate»71 mas que
149
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
«não as soube polir e facetar com engenho e arte, para lhe emprestar o
oriente de sonho e a irisada luz faiscante que lhes é própria»72 O livro versa
sobre personagens femininas da literatura indiana, descrevendo a narrativa de Sita, de Savitri, Damayanti e de Shakuntala (6 páginas impressas
para esta última, reproduzindo integralmente o texto publicado no volume
«Kailâsha») contendo ainda um capítulo sobre a poetisa Mira Bai, a poetisa
e política Sarojini Naidu e escritos sucintos sobre música, dança, teatro,
literatura erótica (destacando o «Kama Sutra», o «Ananga Ranga», o
«Gitagovinda» e o «Ciclo das Estações» de Kalidasa) e literatura jurídica.
Estabelece uma analogia entre os dramas de Kalidasa e «flautas encantadas
ecoando na espessura da floresta»73 e identifica Shakuntala com «a meiga
donzela do ermitério do Santo Kamadevá, delicada como uma liana e pura
como a água lustral dos tanques sagrados, que oferta ao rei Duchanta, a
quem ama perdidamente, com a hospitalidade do seráfico retiro, o seu
corpo de fogo e o seu coração de neve».74
Com o «desejo de fazer pela Índia, esta sonhada terra do Oriente que
desde os meus tempos de infância encheu o meu espírito com a luz fulgurante do facho luminoso da Época dos Quinhentos e que por isso quiz ver e
conhecer de perto, alguma coisa de útil»,75 Agostinho de Carvalho escreveu
«Índia Milenária, Terra de Impérios», a sua primeira obra em prosa.
Interessado pelos costumes e vida deste povo, o autor tinha previamente
publicado no Diário de Luanda e no Jornal da Índia crónicas intituladas
«Lendas da Índia». Neste livro que incide sobre «acontecimentos e figuras
de maior vulto», «dando-lhes uma auréola de merecida glória e numa
forma literária em que a história, conservando o seu cunho de autenticidade, deixa de ser uma lamurienta ladainha de pesadas narrações para
se tornar uma descrição romântica em que, guardando-se a verdade dos
factos, êstes se apresentem com leveza que prenda o leitor através de certos
episódios que só por si encerram beleza eterna a que só falta dar-lhes a tinta
ligeira duma forma literária apropriada ao quadro»,76 dedica duas páginas
a Shakuntala e duas a Kalidasa. A ele chama «astro de primeira grandeza» e
«príncipe dos poetas no lirismo e o Shakespeare indiano no género dramático»,77 resumindo a peça «Shakuntala» e o poema «Meghaduta».
Silvina da Troya Gomes no prefácio de «Contos Indianos» alude a
Çâkuntalâ «como uma das mais lindas obras literárias da Índia antiga,
150
JOÃO SOARES SANTOS
doce e trágica, humana e inconcebível, com toda a fantasia oriental».78
Neste texto, a autora, apesar de editar um livro com o seu nome, admite
logo no início a sua dificuldade em escrever, falta de gosto e de inspiração
e evoca os versos cantados por Beatriz Costa no filme «Aldeia da Roupa
Branca» («três camisas [aliás, corpetes], um avental, sete fronhas e um
lençol») antes de começar a discorrer sobre literatura indiana. Sobre a
heroína da peça de Kalidasa balbucia: «… talvez daqui a pouco eu consiga
ver Çâkuntalâ… Çâkuntalâ, toda a Primavera, todos os perfumes, todas
as beberagens inebriantes! O meu corpo caminha, mas a minha alma fica
para trás, como a seda dum estandarte que se leva contra o vento».79 O
prefácio termina com esta frase: «E agora, por favor, não me preguntem
onde aprendi isto tudo…»80
No século XIX realizaram-se 46 traduções em 12 línguas diferentes da
peça «Shakuntala»,81 adaptações aos palcos de ópera, de ballet e de teatro
que remotamente lembravam Kalidasa. Uma boa tradução exige uma
correcta interpretação. Dados fidedignos sobre a teoria e a prática teatral
indiana eram escassos neste século. Noções adulteradas ou insuficientes
sobre a cultura deste país repercutiram-se no modo como era expressa. Os
signos linguísticos de uma dramatização depreendem pensamentos sobre o
mundo numa concepção de teatro. Uma estrutura profunda por detrás dos
vocábulos precisa ser compreendida para que a transferência destes para
outros idiomas desloquem consigo os processos e hábitos mentais do autor,
as convenções inerentes à acção no espaço cénico e uma elucidação sobre
os elementos que o integram. «No seu melhor a tradução de poesia deve
assemelhar-se ao processo de decantar [pouring] um muito volátil e evanescente líquido [spirit] de um receptáculo para outro. Uma parte do fluido
original ficará sempre sujeito a algum desperdício e evaporação».82 No
afã de julgar ter descoberto um filão na entrada da mina, muitos letrados
prospectores de «Shakuntala» rapidamente quiseram, com algumas das
pepitas encontradas, exibir provas exteriores de riqueza. Parece hoje trivial
afirmar que o acolhimento da Índia em geral e de «Shakuntala» em particular no século XIX e XX, bem como muito do fogo-de-artifício que sobre
esta peça rebentou no firmamento dos intelectuais serviu para deslumbrar
e promover muitos olhares ignorantes. A Índia foi uma coutada onde, por
ofício ou por entretenimento, muitos homens perseguiram espécimes por
151
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
vezes mais para mostrar o troféu nas suas casas e instituições ou os seus dons
de caçador do que para valorizar a coisa capturada. O tema interessa menos
que aquele que elabora o discurso. Traduzir só glorifica o intermediário
se a fonte for honrada. A ambiência linguística de um autor conserva a sua
genuinidade ontológica e cultural. O tradutor interpreta essa realidade e
recodifica-a no seu léxico. A fidelidade neste exercício de decifração e de
substituição implica um entendimento alargado, uma empatia, sem deixar
de permitir margens de subjectividade. Não justifica porém esta actividade o apagamento do texto original, a ocultação da voz do agente pela
arbitrariedade dos intentos e abrangência de compreensão do mediador.
Traduzir significa preservar a integridade do objecto. Sem deixar traços de
uma presença incómoda, o mediador reescreve. Se for bom neste trabalho
de transferência, suscita a vontade de ler no idioma original, estimula o
interesse pela plasticidade da matriz.
Poeta singular e atemporal, Kalidasa foi motivo de traduções plurais. No
assombro e estima do Ocidente estava traçado o horizonte de contingência
dos que o abordaram. Estas traduções espelharam a admiração pelo autor
indiano e as reverberações do raciocínio de eruditos modelados e eleitos
por uma cultura diferente. Desvendado por quem realiza a decifração, pelas
palavras do intérprete, Kalidasa foi explorado e transaccionado num meio
restrito. A dificuldade da língua tornou-o um segredo precioso, só acessível aos homens doutos que, graças ao qual, se regeneraram. Desvirtuada
com soluções menos diligentes de superação da resistência linguística,
«Shakuntala» foi aligeirada para ser entendida. A distanciação tornou-a
mais familiar. Coberta com outras vestes e maquilhagem, na sua fisionomia
não transpareceu a nitidez da pureza inicial.
4. Kalidasa («Kali» + «dasa», literalmente «escravo de Kali») foi,
segundo a tradição, uma das nove gemas ou jóias (Navaratna) da corte de
Vikramaditya («sol de bravura»), um hipotético soberano de Ujjain (cidade
de Madhya Pradesh, antiga Avanti), fundador da época Vikrama (cerca do
ano 57 a.C.), responsável pela expulsão dos Shakas (nome genérico dado a
povos estrangeiros do Noroeste, mormente as tribos Citas) e reinou em
quase todo o norte da Índia. Este monarca, do qual nada se sabe, havendo por
isso dúvidas sobre a autenticidade histórica da sua associação como mecenas
152
JOÃO SOARES SANTOS
ao dramaturgo, era, à semelhança de outros governantes, apreciador de
literatura. Entre as obras atribuídas a Kalidasa estão dois poemas (Khanda
Kavya) intitulados «A Ronda das Estações» («Ritusamhara») e «A Nuvem
Mensageira» («Meghaduta»), duas epopeias (Maha Kavya) intituladas «A
Linhagem de Raghu» («Raghuvamsha») e «O Nascimento de Kumara»
(«Kumarasambhava») e três peças de teatro (Natya) intituladas «Malavika
e Agnimitra» («Malavikagnimitra»), «A Heroína Urvashi» ou «Urvashi
Ganha pela Valentia» («Vikramorvashi») e «Abhijnana Shakuntala».
Por vezes a conjectura da autoria estende-se aos poemas «O Sucesso de
Nala» («Nalodaya»), «A Construção da Ponte» («Setubandha») e «A
Embaixada perante Kuntaleshvara» («Kuntaleshvaradyuta»).
O teatro sânscrito divide-se em dez formas maiores (Rupakas) e dezoito
formas menores (Uparupakas). As primeiras segmentavam-se em Nataka (um
género inspirado nas epopeias, nos Puranas ou em eventos históricos e do
qual faz parte o drama sobre Shakuntala), Samavakara, Vyayoga, Dima, Ihamriga,
Utsrishtikamka, Prakarana, Prahasana, Bhana e Vithi. Apesar de, por conveniência,
ser designado por teatro sânscrito, este só é falado em sânscrito por personagens divinas, brâmanes ou soberanos e príncipes. Os restantes intervenientes
exprimem-se em prácrito e em dialectos regionais. As mulheres de elevado
estatuto social proferem nos trechos líricos vocábulos em prácrito antigo
chamado Maharashtri e nas outras secções da narrativa em Shauraseni, juntamente
com os servos de categoria superior e as crianças. Entre outros dialectos
prácritos vigorantes nas peças está o Magadhi (enunciado por servos da residência real), o Avanti (por jogadores e trapaceiros), o Abhiri (por pastores de
vacas), o Paishachi (por carvoeiros) ou o Apabhramsha («corrompido», conectado com pessoas da mais baixa extracção social e estrangeiros).
Entre as personagens do elenco prevalecem qualidades emocionais e
intelectuais dispostas por tipologias (Nayaka Bheda). Os deuses e heróis que
os encarnam (como Rama) têm «uma constituição ideal e nobre, uma alma
com elevação, firmeza e clemência, são inabaláveis nas acções e possuem uma
disposição psíquica extremamente harmoniosa»84 (Dhirodatta). Os monarcas
são alegres, moderados, afáveis, sensíveis, apreciam as artes requintadas
(Dhiralalita, em que «Dhira» = «firme», «seguro», «constante» + «Lalita»
= «encantador», «gentil»). Os generais e ministros manifestam condutas
orgulhosas, invejosas, jactantes, enganadoras (Dhiroddhata). Os brâmanes e
153
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
mercadores são figuras calmas, serenas, probas, inclinados para o desfrute
artístico (Dhiraprashanta). No que concerne ao relacionamento amoroso
separa-se o Nayaka delicado ou cavalheiresco (Dakshina), do fingido (Shatha),
do desavergonhado (Dhrishta) e do fiel (Anukula). Entre a classificação das
mulheres (Nayika Bheda) diferencia-se as deusas (Divya), as rainhas (Bhavati), as
de superior condição social (Kulangana) e as cortesãs (Ganika). No amor elas
podem ser firmes, constantes, controladas (Dhira), encantadoras, voluptuosas e de coração leve (Lalita), enérgicas, vivas, arrebitadas (Udatta) e modestas
(Nibhrita). Entre as mulheres casadas encontramos as dedicadas aos esposos
(Sviya), quer quando são jovens (Mugdha), quer quando têm uma idade mais
avançada, embora possam abordar o cônjuge com alguma aspereza (Madhya)
ou quando têm uma idade madura (Pragalbha). Em resenha, podemos ainda
incluir no rol de figuras dramáticas vários companheiros e auxiliares do
protagonista (Pataka e Prakari) como o cómico (Vidushaka), o parasita (Vita), o
massagista (Pithamarda ou Anunayaka), o servo ou serva (Cheta e Cheti), a mensageira (Duti), os membros do séquito real, entre os quais bardos (Vaitalikas e
Magadhas), o camareiro do paço (Kanchuki) que vigia o harém, guarda a armadura e a coroa do monarca e personagens femininas secundárias que apoiam
a heroína como as amigas (Sakhis), a ama (Dhatri), etc.85
O teatro sânscrito conserta porções líricas as quais têm diferentes
combinações rítmicas com diálogos em prosa. Divide o encadeamento da
sua trama em actos e segmentos (Sandhi), mudando estas últimas quando
entra ou sai uma personagem. As peças representavam-se no salão de música
(Sangita Shala) dos palácios e dirigiam-se a uma audiência cultivada que não
se conciliava com trivialidades artísticas. Ao ter como destinatários estas
elites de gosto apurado, o dramaturgo elaborava, segundo as convenções
firmadas, composições que apelavam a todas as subtilezas da compreensão,
obras deliberadamente penetrantes contemplando os matizes e a disponibilidade para pequenas surpresas estéticas.
Nos méritos teorizados sobre poesia podemos enunciar a sugestionabilidade, a capacidade de conectar ou unir referências, de algo prevalecer
depois de se dissipar (como um aroma), de esconder significados ou dar um
duplo sentido (Shlesha); a clareza fulgurante (Prasada = «claro e brilhante»,
«distinto»); a ligação concordante das partes, capaz de provocar uma
inteligibilização não confusa (Samata); a doçura (Madhurya = «doce», «melo-
154
JOÃO SOARES SANTOS
dioso», «que suscita afectos suaves», «beleza sofisticada»); a existência de
algo especial que completa ou que se junta ao sentido pretendido (Samadhi);
o sentido ou a coisa tornada perceptível ao assistente sem ter ambiguidades que o distraiam daquilo que a faz ser como é (Arthavyakti, «Artha =
«relacionado com uma coisa ou objecto» + «Vyakti» = «manifestação»,
«aparência», «marca de distinção», «sinal que individualiza»); a força
da mensagem conseguida graças a uma cuidada selecção de vocábulos (Ojas
= «força, «vigor», «habilidade», «energia»); a harmonia formal obtida
pela correcta conjugação das palavras (Saukumarya = «ternura», «delicadeza»); a elevação temática e do sentimento a transmitir (Udara = «nobre»,
«elevado», «ilustre») ou o poder de causar deleite (Kanti = «beleza»,
«encanto», «esplendor», «desejo»). Segundo o «Ornamento da
Poesia» («Kavyalamkara») nesta arte deve constar a habilidade do autor em
veicular o que parece não querer dizer, a negação de uma coisa para insinuar
uma alternativa, o dom de usar engenhosamente a metáfora, a hipérbole
(Atishayokti = «em gradação ascendente», «sobreabundante»), o contraste
(Vyatireka = «diferença», «exclusão», «contraste»). No «Espelho da
Poesia» («Kavyadarsha») de Dandin (séc. VI), o poeta, após muito estudo
e dedicação, evidencia o seu talento pela transmissão da essência do assunto
sobre o qual está a incidir. Oculta enquanto deixa emergir, confessa por via
indirecta, nega para afirmar com mais ênfase, elogia através da repreensão.
O conceito de Dhvani («som», «eco», «reverberação», «alusão», «dar
a entender»), importante no teatro sânscrito, implica uma complementaridade entre o que é verbalmente tangível e o que não é. O poeta redige
para o seu público vocábulos que, em si, devido à sua própria natureza,
já possuem um poder sugestivo e explora nas suas opções de articulação
um efeito empático. A tradição indiana refere três tipos de Dhvani: quando
na literalidade da ordem lexical ou semântica está latente outra ideia ou
assunto (Vastudhvani), quando se adorna o significado de modo a intensificar
o seu impacto (Alamkara) e quando os significados induzem estados psíquicos
e usufruto afectivo (Rasadidhvani).
O poeta sânscrito deve ser alguém portador de génio (Pratibha), deve ter
muita cultura (Vyutpatti), ter muita prática (Abhyasa), ser um conhecedor do
mundo, das artes e da literatura em especial, dos tratados indianos, da política,
da gramática, da semântica, da métrica, possuir a aptidão de apreciar e de criar,
155
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
ser um amante do saber. Por intermédio das formas ele emana essas faculdades. A sua obra demonstra ou prova as suas privilegiadas competências.
Segundo o «Natya Shastra» existiam três espécies de auditórios: o de
configuração rectangular (Vikrishta), o quadrado (Chaturashra) e o triangular (Tryashra), cada um podendo ter uma dimensão ampla (Jyeshtha), para
as divindades, média (Madhyama), para as figuras reais e pequena (Kaniyasa)
para a gente comum. O Vikrishta Madhyama é considerado o melhor (62 x 32
Hastas = medida do cotovelo à ponta do dedo médio). Respeitava regras
de comprimento e de organização. Este rectângulo era dividido em duas
partes iguais, ficando numa das metades o auditório, o lugar de acomodação da assistência (Prekshaka Nivesana) e na outra o pavilhão do palco
(Rangamandapa) com a boca de cena (Ranga), tendo esta uma área central
(Ranga Pitha) e duas laterais (Mattavaranis) e, por detrás, separado por uma
cortina, os bastidores ou a cabeça do palco (Ranga Sirsha) onde se encontrava
a plataforma da orquestra (Kutapa Vedika). Um painel decorado sobre uma
parede de tijolo delimitava a área do palco de uma porção posterior oculta
chamada «quarto verde» (Nepathya) no qual os actores procediam à maquilhagem e daí se deslocavam para a zona de interpretação, passando por duas
portas laterais cobertas por um pano (Pati ou Apati). Entre a boca de cena e
os bastidores havia uma cortina (Yavanika) e, atrás dela, antes da intriga se
desenrolar, os intervenientes realizavam rituais e proferiam orações. Os
pilares dispostos por todo o espaço cénico deviam ser erigidos após cerimónias adequadas. Os lugares do auditório estavam dispostos em escada. O
rei ou a figura presente de maior realce sentava-se na parte oriental, à sua
direita os ministros, os poetas, os críticos, os astrólogos e, à sua esquerda,
os mercadores e as mulheres do harém. Os membros da comitiva real eram
colocados a norte e os brâmanes a sul. Nas orlas do auditório distribuíam-se
os militares de patente alta, apreciadores, panegiristas e guardas. As representações ocorriam em festividades públicas ou particulares, por exemplo,
na ocasião do nascimento de um sucessor, na comemoração de uma vitória,
numa festa religiosa ou na inauguração de uma nova residência. Os actores
e actrizes eram geralmente da classe brâmane e com vínculos familiares.
Por vezes os papéis femininos eram interpretados por homens. Havia
convenções de indumentária, de adereços e de maquilhagem para as diferentes personagens. Circunstancialmente usavam-se máscaras. A música
156
JOÃO SOARES SANTOS
acompanhava sempre as representações pois esta causava prazer (Ranjana)
na recitação do texto (Pathya) e nos movimentos da figura dramática. Para
além dos religiosos e políticos, o propósito central do teatro consistia em,
pela conexão dos factores envolvidos, suscitar Rasa («sabor», «qualidade
deleitosa») uma emoção que prevaleça e em cujas modalidades consta o
amor (Shringara), o heroísmo (Vira), a repugnância, a aversão (Bibhatsa), a
ira (Raudra), a alegria (Hasya), o terror (Bhayanaka), a piedade (Karuna) e o
maravilhamento (Adbhuta).
Rasa infere o usufruto maravilhado do espectador, o efeito de deslumbre
artístico que suplantou a experiência comum, o regozijo da fruição de um
estado psíquico emancipado de uma consciência direccionada, o prazer do
sabor demovido da imagem do objecto que o causa.
O nome Kalidasa aparece associado a uma obra. «Tudo o resto é ficção
tirada do seu próprio nome».85 As transposições desta peça para línguas
ocidentais enalteceram-no como autor e engrandeceram os seus tradutores e investigadores. «A má tradução é a que não faz justiça ao seu texto
de partida, por motivos óbvios e numerosíssimos. A ignorância, a precipitação ou as limitações pessoais fazem com que o mau tradutor interprete
erroneamente o original. Falta-lhe o domínio da sua própria língua que
é uma condição indispensável da representação adequada. Equivocouse estilística ou psicologicamente ao escolher o seu texto: a sua própria
sensibilidade e a do autor que está a traduzir são demasiado discordantes.
Quando surge uma dificuldade, o mau tradutor procede por elisão ou
paráfrase. Quando o tom lhe parece elevado, exagera. Onde o autor é
ofensivo, arredonda as arestas (…). A tradução falha quando e onde não
compensa, quando e onde não estabelece a equidade radical. O tradutor
apreendeu e/ou apropriou-se de menos do que aquilo que havia no texto.
Traduz diminuindo. Por vezes, opta por dar corpo e reiterar plenamente
apenas um aspecto ou outro do original, fragmentando, distorcendo a
sua coerência viva segundo as suas próprias necessidades ou segundo a sua
própria miopia».86
157
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
Referências:
1 – «Abhijnana» significa «recordação», «lembrança», «verificação», indica um sinal
ou um testemunho de recordação. Shakuntala é reconhecida por causa desse sinal (um anel).
2 – «Sacontalá or the Fatal Ring: an Indian Drama by Cálidás», incluído na obra «The
Works of Sir William Jones», Vol. IX, John Stockdale e John Walker, London, 1807
3 – Antoine de Chézy (Tradução), «La Reconnaissance de Sacountala, Drame Sanscrit
et Pracrit de Calidasa», Librairie Orientale de Dondey-Dupré Père et Fils, Paris, 1830
4 – Idem
5 – Monier Monier-Williams (Tradução), «Sakoontalá or the Lost Ring, an Indian
Drama Translated into English Prose and Verse from the Sanskrit of Kálidása», Routlege,
London, 1898
6 – Idem
7 – Ibidem
8 – Abel Bergaigne e Paul Lehugeur, «Sacountala, Drame en Sept Actes mêlé de Prose
et de Vers», Librairie des Bibliophiles, Paris, 1884
9 – Idem
10 – Maurice Pottecher (Tradução), «L’Anneau de Sakountala, Légende Dramatique
en 7 Actes d’après Kalidasa», Librairie Paul Ollendorff, Paris, 1914
11 – Idem
12 - P.-É. Foucaux (Tradução), «Sakountala», E. Dentu Éditeur, Paris, 1894
13 – Idem
14 – Ibidem
15 - «O Reconhecimento de Chakuntalá», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, 32x36 cm
16 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Relatorio acerca do Primeiro Anno de
Estudos Orientaes feitos em França e Allemanha», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878
17 – Idem
18 – Ibidem
19 – Ibidem
20 – Ibidem
21 – Ibidem
22 – Ibidem
23 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Relatorio Apresentado em Cumprimento
das Determinações da Portaria do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 16 de Março
de 1875», Imprensa Nacional, Lisboa, 1878
24 – Idem
25 – Ibidem
26 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Manual para o Estudo do Sãoskrito
Clássico», Tomo II: «Chrestomathia», Imprensa Nacional, Lisboa, 1891
27 - Guilherme de Vasconcellos Abreu, «Exercícios e Primeiras Leituras de Sámscrito
(Apêndice ao Manual)», Imprensa Nacional, Lisboa, 1898
28 – Luís Filipe F. R. Thomaz, «Estudos Árabo-Islâmicos e Orientais em Portugal»,
158
JOÃO SOARES SANTOS
«Povos e Culturas», Nº. 5, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão
Portuguesa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1996
29 - Mariano Gracias, «Terra de Rajáhs», Casa Editora a Luso-Indiana, Bombaim, 1925
30 – José F. Ferreira Martins (Tradução), «Sakuntalá», Imprensa Nacional, Nova
Goa, 1911
31 – Idem
32 – Ibidem
33 – Ibidem
34 – Ibidem
35 – Ibidem
36 - José F. Ferreira Martins (Tradução), «Xakuntalá», Imprensa Nacional, Angola, 1925
37 – Idem
39 – Ibidem
40 – Ibidem
41 – Ibidem
42 – Ibidem
43 – Monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, introdução de «Xacuntala, Drama
Sânscrito de Calidaça, Traduzido do Original por Bernardino Gracias», Imprensa da
Universidade, Coimbra, 1919
44 – Idem
45 – Ibidem
46 – Ibidem
47 – Ibidem
48 – Ibidem
49 – Ibidem
50 – Ibidem
51 – Ibidem
52 – Ibidem
53– Ibidem
54 – Ruy Sant’Elmo, «Xacuntalá, Adaptação Livre da Obra Imortal de Kalidassa»,
Tipografia Central, Nova-Goa, 1941
55 – Idem
56 – Ibidem
57 – Ibidem
58 – Ibidem
59 – Anil Samarth, «Sakuntala – um Drama Sânscrito: Traduções em Português»,
Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 117ª., números 1-12, Lisboa, Janeiro
- Dezembro de 1999
60 – Idem
61 – Ibidem
62 – Ibidem
63 – Ibidem
159
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
64 – Ibidem
65 – Ibidem
66 – Mariano Saldanha (Tradução), «Mêghaduta ou a Mensagem do Exilado», Casa
Editora Livraria Coelho, Nova-Goa, 1926
67 – Idem
68 – Ibidem
69 – Telo de Mascarenhas, «A Mulher Hindu (Ensaios)», Edições Gleba, Lisboa, 1943
70 – Idem
71 – Ibidem
72 – Ibidem
73 – Ibidem
74 – Ibidem
75 – Agostinho de Carvalho, «Índia Milenária, Terra de Impérios», Tipografia
Rangel, Bastorá, 1942
76 – Idem
77 – Ibidem
78 – Silvina de Troya Gomes (Selecção e Tradução), «Contos Indianos», Editorial
Gleba, Lisboa, 1945
79 – Idem
80 – Ibidem
´¯
81 – Dorothy Matilda Figueira, «Translating the Orient: The Reception of Sakuntala
in Nineteenth-Century Europe», State University of New York press; Albany, 1991
82 – Monier Monier-Williams opus cit.
83 – Ver Tarla Meha, «Sanskrit Play Production in Ancient India», Motilal
Banarsidass, Delhi, 1995
84 – Idem
85 – Lyne Bansat-Boudon, «Le Théâtre de Kalidasa»,
¯
¯ Gallimard, Paris, 1996
86 – George Steiner, «Depois de Babel – Aspectos da Linguagem e Tradução»,
Relógio d’Água, Lisboa, 2002
160
JOÃO SOARES SANTOS
Anexo
Tradução segundo a recensão Bengali de «Abhijnana Shakuntala» por
Guilherme de Vasconcellos Abreu, contida na edição de 1878 da Imprensa
Nacional.
O texto em itálico e negrito corresponde a partes em verso.
Personagens deste excerto da peça:
O Director (Sutradhara)
Uma Actriz, esposa do Sutradhara
O Cocheiro do rei (Suta)
Dushyanta, Rei de Hastinapura
Shakuntala
Anasuya, amiga de Shakuntala
Priyamvada, amiga de Shakuntala
Ascetas
Prologo
Propiciação
Nas oito fórmas em que Chiva se manifesta: - Agua, primeira producção
do productor; - o Fogo, que leva a oblação offerecida segundo as regras
prescriptas; - e o Brâhmane que a offerece; - o Sol e a Lua que ambos o
tempo determinam;- O Ether, que penetrando tudo, é perceptivel pelo
ouvido; - a Terra, que dizem ser «a origem de todas as sementes»; - O
Ar pelo qual respiram os entes vivos; - propicio vos proteja o Supremo
Senhor!
(Depois da propiciação)
O Director da Scena
Basta de delongas! (Olhando para o postscenio) Nobre Dama, se o arranjo do
postscenio está ultimado, n’esse caso vem para aqui.
Uma Actriz
(Entrando)
Eis-me aqui, Senhor! cumpra-se a tua ordem.
O Director
Eis uma assembléa em crescido numero de verdadeiros conhecedores, ó Nobre Dama! Perante ella temos de representar a nova obra
161
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
scenica, composta pelo illustre Kálidása, chamada o reconhecimento de
Chakuntalá. Que, portanto, cada um desempenhe a sua parte do melhor
modo possivel.
A Actriz
Em virtude da tua boa direcção, Senhor, nada por certo ha de faltar.
O Director
(Sorrindo-se)
Eu te digo, ó Nobre Dama, a verdade:
A arte de fazer representar uma obra scenica, jamais a considero
eu perfeita, em quanto a satisfação dos entendidos não chego a ver
completa. Que de si proprios desconfiam os que mais saber possuem.
A Actriz
É bem verdade! Que o senhor ordene o que ha a fazer já sem mais
demora.
O Director
Que outra cousa ha a fazer immediatamente, ó Nobre Dama, senão bem
dispor os ouvidos dos assistentes por meio de uma canção?
A Actriz
E qual das estações hei de eu tomar para assumpto do meu canto?
O Director
Evidentemente a que ainda ha pouco começou e nos convida a gosar.
Canta um canto ácerca do verão. Em verdade agora é o tempo é o tempo
em que um fresco banho regala, e das bignonias em flor os aromas
trazem as brizas dos bosques; o somno em cada sombra tem logar
propício; é cheio de encantos o caír da tarde.
A Actriz
(Canta)
Como as damas se enfeitam gentilmente, reparae, com grinaldas de
flores de chirixa nas pontas de cujos estames delicados a abelha mal
tocou por um instante.
O Director
Admiravelmente cantado, ó Nobre Dama! Toda a assembléa está immovel,
como se fosse uma pintura, por tal fórma se lhe prende em delicias coração e
sentidos! Que peça devemos representar para lhe sermos agradaveis?
A Actriz
162
JOÃO SOARES SANTOS
Não é verdade que por vós, Senhor, foi já determinado se representasse
hoje a melhor de todas as peças scenicas, o reconhecimento de Chakuntalá?
O Director
É verdade! estou lembrado. Tinha-o esquecido agora n’este momento.
Mas porque?
Tão extraordinariamente enlevado estava eu pela cadencia do teu
canto arrebatador, qual o rei Duuxanta pela gazella veloz.
(Dito isto sáem ambos)
Acto I
Entra em scena sobre um carro de arco e frechas na mão, perseguindo uma gazella, o Rei
acompanhado do Súta.
O Súta
(Considerando o rei e a gazella)
Ó Longevivaz!
Quando os meus olhos lanço sobre a antilope mosqueada de preto e
para ti de arco retezo, parece-me ver em pessoa, aqui presente, o Deus
Chiva armado do pináka perseguindo uma gazella.
O Rei
Bem longe nos tem trazido, ó Súta, aquella antilope!
N’este instante ella
volta engraçada o pescoço dirigindo o seu olhar angustiado para o
carro que a segue de perto. E com medo das frechas toda se encolhe,
como se uma parte do seu corpo quizesse esconder na parte anterior.
Da sua bôca aberta de cansaço, cáe, ainda por comer, a herva que ella
deixa no caminho. E taes saltos impetuosos vae n’elle dando, que mal
toca o chão só fende os ares.
(com surpreza) Como é que apesar de a seguir ella se me encobre e mal a vejo?
O Súta
O Longevivaz! O terreno é desigual; e porque tive de caçar as redeas do carro
se retardou o movimento. Eis rasão por que se te esconde a antilope perseguida.
Agora que se roda em terreno igual não haverá difficuldade a alcançar.
O Rei
Solta pois as rédeas.
163
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
O Súta
Como ordenas, Ó Longevivaz! (Fingindo apressar o movimento do
carro) Olha, ó Rei, como
soltas as redeas, os peitos dos cavallos se avançam sem que os possam
tocar as nuvens de poeira levantadas. Como elles levam immoveis as
pontas dos pennachos e caídas as partes flexiveis das orelhas. Correm
sobre o caminho, ou voam por cima d’elle, os teus cavallos?!
O Rei
(Alegremente)
Por certo vão os cavalos passar além da gazella: pois
tudo o que me parece á vista ser pequeno, toma de repente grandes
dimensões; une-se logo n’um todo o que ao meio julgo partido; o que
de natureza é tortuoso aos olhos se me afigura rectilineo; não deixa a
rapidez do meu carro nada ao longe ficar, nada ao lado de mim permanecer um só momento.
(No postscenio) Eh! eh! ó rei! não mates a antilope do eremiterio, não a mates!
O Súta
(Prestando ouvido e olhando)
Ó Longevivaz! E é n’este momento em que a frecha ajustada ía partir,
que os dois ascetas, a quem não viamos, veem pôr-se de per meio entre ti
e a negra antilope!
O Rei
(Assustado)
Colhe as redeas !
O Súta
Assim se cumpra, ó Longevivaz!
(Dito isto o executa)
(Em seguida entra com um discipulo um anachoreta)
O Anachoreta
(Erguendo o braço)
Eh! eh! ó rei! Esta gazella pertence ao eremiterio!
Por certo tu não deixarás caír, por certo não! essa frecha prestes a ser
disparada, sobre o tenro corpo da gazella; seria um fogo ardente sobre
balseira de flores. O que vale a misera vida dos fracos veadinhos contra as
bem emplumadas settas que fazes caír penetrantes?! Retira de prompto
164
JOÃO SOARES SANTOS
essa que já tinhas ajustada. São as vossas armas para proteger opprimidos,
não para ferir innocentes!
O Rei
(Com reverencia)
Retiro-a! (faz como o diz)
O Asceta
(Com alegria)
O que acabas de fazer é proprio de ti, magestade, que és descendente
da estirpe de Puru e luz dos Indras dos homens! Assim possas tu obter um
filho que impere em toda a redondeza!
O Rei
(Reverente)
Acolho as tuas palavras brahmanicas!
Os Dois Ascetas
Ó rei, saíamos ambos n’este momento para buscar a lenha. Este eremiterio, que aqui vês nas margens do rio Máliní, é do nosso Guru Kânua; e
o protege, qual divindade tutelar, Chakuntalá. Entra n’elle, se com isso te
não desvias de algum dever, que bom acolhimento ali te espera.
E notando que livres de obstaculos, os ricos de austeridades praticam
os ritos sagrados segundo as prescripções, conhecerás o effeito potente da
protecção d’esse braço vincado de vergões da corda do teu arco.
O Rei
E está lá a esta hora o pater-familias?
Os Dois Ascetas
Agora mesmo, tendo confiado a sua filha o dever de bem receber os
hospedes, partiu para o Somatirtha a fim de acalmar o destino que a ella
lhe é adverso.
O Rei
N’esse caso quero-a ver, e ella, conhecido o meu respeito, fallará de
mim ao Maharxi.
Os Dois Ascetas
E nós agora nos pômos a caminho. (O anachoreta parte com o discipulo).
O Rei
Ó Súta, toca os cavallos, quero visitar o eremiterio puro e purificar-me
a mim mesmo.
165
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
O Súta
Assim o cumpro, ó Longevivaz! (Finge dar impulso ao carro).
O Rei
(Olhando para todos os lados)
Ainda quando se não tivesse ouvido de ninguem, se vê que isto são
pertenças vizinhas da floresta sagrada.
O Súta
Como assim?
O Rei
Não o vês? Aqui
Os grãos de arroz silvestre, que estão ao pé das arvores, cáem de
cima dos ninhos, de dentro dos buracos onde estão os papagaios com
os filhinhos, que os soltam de seus bicos. Em differentes logares se
vêem ainda untuosas as pedras quebradoras dos fructos da ingudí. E
por terem adquirido inteira confiança, as gazellas, andando com passo
inalteravel, ouvem indifferentes o rumor. Os carreiros, que vão dar
aos tanques da agua santa, se conhecem bem marcados por traços que
ali deixaram as fimbrias gotejantes dos valkalas dos eremitas.
E tambem:
Pelas aguas dos canaes, agitadas pelos ventos, são os pés das arvores
regados.
A côr dos vividos renovos está mudada pelo ascendente fumo da manteiga
dos sacrificios; e ali em frente, onde a herva santa foi cortada, andam sem
medo, vagueando em socego, os filhos das antilopes.
O Súta
Tudo o mostra.
O Rei
(Tendo avançado um pouco)
Ó Súta, não vá isto ser causa da perturbação do eremiterio. Pára o carro!
eu desço aqui.
O Súta
Estão puxadas as redeas. Desça Vossa Longevidade.
O Rei
(Depois de descer examinando-se)
Ó Súta! Nas florestas das mortificações entra-se com vestidos humildes.
166
JOÃO SOARES SANTOS
Toma portanto os meus adornos e o meu arco. (O Súta recebe-os) Que os
cavallos estejam refrescados e com o dorso esfregado quando eu voltar da
visita aos moradores do eremiterio.
O Súta
Assim será executado. (Sae)
O Rei
(Approximando-se e olhando)
É este o eremiterio. Vou entrar. (No momento de o fazer, indicando um presagio) Oh!
Isento de paixões é o eremiterio, e todavia eu sinto o braço estremecer;
que resultado me virá d’aqui? E certo que as portas dos acontecimentos
futuros se abrem por toda a parte.
(No postcenio) Para aqui, para aqui, queridas amigas!
O Rei
(Prestando o ouvido)
Silencio! Aqui n’este pomar á direita soou como que uma voz. Bem!
Vou certificar-me. (Approximando-se e olhando).
Ah! são as filhas dos eremitas que para aqui se dirigem com regadores
apropriados ás suas mãos a fim de regarem as arvores novas.
Oh! que doce olhar o seu!
Estes corpos esbeltos das virgens dos eremiterios é difficil de encontrar nos gyneceos reaes! oh! quanto em formosura as trepadeiras dos
bosques excedem as trepadeiras de meus jardins.
Vou observal-las d’este abrigo sombrio. (Fica observando-as.)
(Logo entra occupada em trabalhos de jardinagem Chakuntalá com as suas duas
companheiras)
Uma d’Ellas
Parece-me, querida Chakuntalá, que ao nosso pae Kânua são mais
queridas as arvores do eremiterio do que tu mesma, a quem tão delicada,
como a flor da maliká, elle incumbe de encher de agua as covas de rega.
Chakuntalá
Não, minha amiga! não é só por cumprir a ordem de um pae; eu sintome a ellas presa com amor de irmã.
(Imita o regar)
Priyamvadá
Querida Chakuntalá, bastante agua têem estas arvores do eremiterio
167
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
que dão flor durante o estio. Reguemos as outras para as quaes o tempo da
flor já passou, que por isso maior será o dever de desinteresse.
Chakuntalá
Lindamente o aconselhas, minha amiga.
(Representa o acto de ir regar as arvores)
O Rei
(Áparte)
Como assim? Aquella é Chakuntalá a filha de Kânua? (Sorrindo-se) Ah!
que desavisado foi n’isto o veneravel Kânua obrigando-a a trazer vestido o
valkala.
E quer o Rixi habituar ás fadigas asceticas este corpo tão bello e
encantador sem arte!...
É quasi pretender elle cortar com o fio da folha do lotus, da folha da
azul nymphea, os ramos da acacia dura.
Bem! Fico ainda entre as arvores sem que ella suspeite que a observo.
(Conserva-se escondido)
Chakuntalá
Minha querida Anusúyá, Priyamvadá atacou-me de mais o valkala;
aperta-me; alarga-m’o tu.
(Anusúyá desaperta-o)
Priyamvadá
(Gracejando)
Accusa unicamente o vigor da tua juventude, a que é devido o forte
desenvolvimento dos teus seios, ó querida amiga.
O Rei
Ella disse a verdade.
O valkala, a que sobre as espaduas prende um gracioso nó, encobrelhe a redondeza de seus dois peitos.
O seu corpo juvenil, de que elle não deixa ver todo o esplendor, é
como flor opprimida por folha que já murchou.
Todavia improprio como é da sua idade um corpete e alburno, nem por
isso lhe não fica engraçado adorno. Porque:
O lotus é ainda bello abraçado ao chaivala, e a lua mais formosa
com suas manchas escuras.
Este corpo gentil é ainda mais gracioso com o valkala grosseiro.
168
JOÃO SOARES SANTOS
Mas o que não será adorno no meio dos attractivos de figura tão c1onairosa?
Chakuntalá
(Olhando em frente)
Queridas amigas, aquella arvore, com os ramos agitados pelo vento,
como se fossem uns dedos a acenarem, parece querer dizer-me alguma
causa. Pois vou ter com ella.
(Assim o faz)
Priyamvadá
Fica ahi um instante, minha Chakuntalá.
Chakuntalá
Para que?
Priyamvadá
Afigura-se-me ver com a mangueira um cipó enlaçado emquanto estás
junto d’ella.
Chakuntalá
Se tu te não chamáras Priyamvadá (que diz cousas amaveis).
O Rei
Priyamvadá não o exagerou. Que em verdade d’ella
os labios têem a frescura de uns gômos novos, os braços semelhamse a umas vergonteas flexiveis. É como flor a juventude mimosa que se
prende a seus membros.
Anusúyâ
Querida Chakuntalá, e esta navamáliká que se casou com o sahakára e a
que déste o nome de «Luz dos bosques!?»
Chakuntalá
(Tendo-se dirigido para ali e contemplando com amor)
Como é encantador o enlace completo d’estas duas plantas! Ó minhas
companheiras! A navamáliká toda viçosa, cheia de flores, e o sahakára,
convidando ao goso, todo coberto de fructos!
(Fica contemplando-as)
Priyamvadá
(Sorrindo-se)
Sabes tu, Anusúyá, por que rasão Chakuntalá olha com tanto enlevo
para «Luz dos bosques?»
Anusúyâ
169
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
Não posso adivinhar. Dize-m’o tu!
Priyamvadá
É que ella está pensando: - Assim como «Luz dos bosques» se uniu a
uma tal arvore, assim eu possa encontrar o marido que desejo.
Chakuntalá
Tal desejo te anda em teu proprio coração!
(Inclina o regador)
Anusúyâ
E aquelle cipó madhaví, que o nosso pae Kânua creou por sua propria
mão como te creou a ti, o esqueces tu, Chakuntalá?
Chakuntalá
Mais facilmente me esqueceria eu de mim. (Approximando-se do cipó, com
alegria) Oh! que maravilha! que maravilha! Priyamvadá, tenho a contar-te
uma causa bem agradavel.
Priyamvadá
Agradavel para mim, o que? amiga!
Chakuntalá
O cipó madhaví está todo em flor desde baixo, n’esta estação impropria.
Ambas
(Correndo para ali)
Pois é verdade?!... realmente?!...
Chakuntalá
É verdade! Não o vêdes vós mesmas?
Priyamvadá
(Com alegria, depois de se haver certificado)
E agora, tambem eu tenho a dizer-te alguma cousa agradavel: - Em
breve será o teu casamento!
Chakuntalá
(Enfadada)
É assim exactamente o desejo que sentes em ti.
Priyamvadá
Não! não! não fallo o a rir! Do nosso pae Kânua o ouvi eu: que isto é
um signal manifesto de bom prenuncio para ti.
Anusúyâ
Por isso, ó Priyamvadá, Chakuntalá rega com tanta affeição o cipó madhaví.
170
JOÃO SOARES SANTOS
Chakuntalá
Esta planta é a minha irmã, e tanto basta para que eu a regue. (Continua
a regal-a.)
O Rei
Oxalá que ella seja por sua mãe de origem differente da de seu pae. Mas
não ha que duvidar.
Não ha que duvidar: é a esposa propria de um kxattriya aquella a que
tanto deseja esta minha alma nobre; em caso sujeito a duvida, a norma
elo homem justo é o impulso do coração.
Todavia eu me farei informar d’isto com a precisa certeza.
Chakuntalá
(Assustada)
Ai!... uma abelha saída d’entre as flores da navamáliká volteia á roda do
meu rosto.
(Mostra-se perseguida pela abelha)
O Rei
(Ancioso)
Para onde a abelha vae, para ahi vão attrahidos os olhos formosos d’ella.
No franzir inquieto das sobrancelhas, o medo lhe ensina, a ella que
ainda não ama, a volver olhos de amor.
(Impaciente).
Enquanto tu abelha, os seus olhos pestanejastes repetidas vezes tocas sem
lhes deixares quietos os cantos exteriores; e suavemente zumbes pairando
ante os ouvidos como por lhe dizeres algum segredo; e d’ella, que agita a
mão a sacudir-te, o labio inferior sorves, fonte de delícias, ficando satisfeita; esmaga-nos o coração o desejo insaciado de conhecer a verdade.
Chakuntalá
Livrai-me vós ambas, amigas, d’essa abelha importuna!
Ambas as Amigas
(Rindo)
Livrarmos-te nós?! Lembra-te para isso de Duuxanta; aos reis incumbe
proteger os bosques sagrados.
O Rei
Bella occasião esta para eu me deixar ver!... - Não ha que receiar!...
(Detendo-se no meio da falla) D’este modo saber-se-ha que eu sou o rei... Bom!
171
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
far-me-hei tomar um hospede.
Chakuntalá
Esta teimosa não desiste!... Vou-me d’aqui embora!... (Dados breves
passos, olhando para um e outro lado) Ah! que aborrecimento!... para
onde eu vou para ahi me segue!... defendei-me pois!....
O Rei
(Indo-lhe ao encontro subitamente)
Ah!
Quem governando na terra um Pauravez reprimidor dos que se
comportam mal, é esse que commette irreverencia contra as candidas
virgens do eremiterio?!
(Ficam todas algum tanto confusas ao verem o rei)
Anusúyá
Não é grande o mal, Senhor, na verdade. É apenas a nossa querida
companheira assustada por causa de uma abelha, e toda afflicta.
(Dito isto, faz ver Chakuntalá)
O Rei
(Approximando-se de Chakuntalá)
Augmenta a tua santidade?
(Chakuntalá embaraçada fica sem responder)
Anusúyá
É agora motivo ter de receber tão distincto hospede.
Priyamvadá
Bemvindo sois, Senhor!... Minha querida Chakuntalá, vae! traze de
casa, para offerecer ao hospede, fructos e o que compõe o argha. Esta será
a agua para seus pés.
O Rei
Está perfeita a hospedagem pelas vossas palavras summamente gratas.
Anusúyá
Queira então o Nobre Senhor descansar aqui da sua fadiga, assentandose n’este banco de saptaparna tão fresco de si proprio.
O Rei
Por certo estaes fatigadas tambem do vosso trabalho irreprehensivelmente executado. Assentae-vos ali um instante.
Priyamvadá
172
JOÃO SOARES SANTOS
(Baixo)
Querida Chakuntalá, é proprio de nós honrarmos os hospedes. Vem
pois, assentemo-nos.
(Assentam-se todos)
Chakuntalá
(Para comsigo)
Como assim?!... sinto-me eu agora, á vista d’este individuo, possuida
de emoção impropria da floresta dos penitentes?
O Rei
(Contemplando-as a todas)
O cordial acolhimento que me fazeis, rivalisa com a vossa juventude e
formosura.
Priyamvadá
(Baixo a Anusúyá)
Quem será este personagem d’aspecto conspicuo e affavel que pela sua
doce conversação diffunde uma cortezia magestosa,?
Anusúyá
Curiosa estou eu de saber o mesmo. Vou interrogal-o. (Alto) A confiança
que o vosso doce fallar, Senhor, nos inspira, dá-me coragem para vos perguntar
qual é a estirpe de Rádjarxis que se honra com a vossa illustre pessoa, e que paiz
se sente agora triste pela vossa ausencia? Que motivo de bom auspicio vos traz,
a vós tão delicado, a despeito de tantas fadigas, ao bosque da penitencia?
Chakuntalá
(Comsigo)
Aquieta-te meu coração! Adivinhou-te os desejos Anusúyá!
O Rei
(Comsigo)
Que farei n’este momento? Direi quem sou? ou, antes, devo occultalo? (Depois de ter reflectido) Seja assim, pois. (Alto) Diva Graciosa! eu sou um
Vêdavit. Tenho a meu cargo a administração da justiça na cidade do rei da
raça de Puru, e vim a esta floresta sagrada por desejo de ver o eremiterio.
Anusúyá
Os ascetas observadores do dever têem em ti o seu defensor.
(Chakunlalá mostra-se confusa por amor)
Ambas as Companheiras
173
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
(Notando os gestos do rei e de Chakuntalá; baixo a esta)
Querida Chakuntalá, se o nosso pae aqui estivesse hoje presente ...
Chakuntalá
Que seria então?
Ambas
Faria este distincto hospede completamente feliz por meio de tudo o
que é a essencia da sua vida.
Chakuntalá
(Com enfado fingido)
Ide-vos d’aqui! Podeis suppor quanto vossos corações cogitarem. Não
darei mais ouvidos ás vossas palavras.
O Rei
Tambem nós perguntâmos, Divas Graciosas, alguma cousa concernente
á vossa amiga.
Ambas
Senhor, muito nos obriga a tua pergunta.
O Rei
Sua austeridade Kânua vive em constante ascetismo. Como é que esta
vossa amiga é a sua filha?
Anusúyá
Escuta, Senhor! Um Rádjarxi de extraordinarios merecimentos, cujo
nome é Kauchika.
O Rei
Sua austeridade Kauchika...
Anusúyá
É o pae da nossa amiga. Mas, porque tendo sido exposta, o reverendo
Kânua tomasse a seu cuidado creal-a, é este o seu segundo pae.
O Rei
«Exposta» dizeis, e isso nos dá curiosidade. Desejâmos ouvir o caso
desde o principio.
Anusúyá
Ouve, Senhor! No tempo em que aquelle Rádjarxi vivia nas mais austeras
penitencias, os deuses, conta-se, já um tanto apprehensivos, enviaram-lhe
a Apsará, por nome Menaká, dotada, do poder de fazer quebrar os votos de
penitencia voluntaria.
174
JOÃO SOARES SANTOS
O Rei
Tal é o receio que os deuses têem das austeridades alheias? D’ahi
então?...
Anusúyá
D’ahi quando veio o tempo encantador da primavera, elle ao ver aquella
formosura, que era como um veneno...
(Ao dizer isto mostra-se enleiada)
O Rei
O resto adivinha-se. A vossa companheira é evidentemente a filha de
uma Apsará!
Anusúyá
É verdade! ...
O Rei
Ella bem o mostra!
D’entre as filhas de Manu por certo nenhuma podia ter dado nascimento a tão grande formosura.
A luz radiante e trémula, que anda no sol e mais astros, e fende as
nuvens no espaço, não irrompe da face da terra!
(Chakuntalá conserva-se de olhos baixos com expressão de enleio e pejo)
O Rei
(Para si)
Ainda bem! correm livremente as minhas esperanças!
Priyamvadá
(Sorrindo-se dirige-se a Chakuntalá)
Bem se percebe que este Illustre Senhor deseja ainda dizer alguma cousa.
(Chakuntalá com um gesto de mão censura a sua companheira)
O Rei
Adivinhastel-o precisamente, Diva Graciosa. Por desejo de ouvir toda a
fausta historia ainda nos resta alguma cousa a perguntar.
Priyamvadá
E porque hesitar? Bem certo é que á gente dos eremiterios se dão as
ordens sem acanhamento.
O Rei
Pergunto pois:
Se o voto que a vossa amiga fez de viver anachoreta, sem conhecer o
175
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
amor, deve ser guardado só até ao tempo proprio de realisar casamento;
ou se tem de viver sempre com as antilopes femeas, tão amadas por ella,
e em cujos olhos formosos vê outros como os seus!
Priyamvadá
Senhor, o cumprimento dos deveres religiosos d’esta virgem é dirigido
pelo seu Guru Kânua, cuja tenção é dal-a a marido digno d’ella.
O Rei
(Para comsigo, com alegria)
Exulta meu coração! a duvida n’este momento acaba de ser dissipada. O
que receiavas ser fogo, é pedra preciosa em que se póde tocar.
Chakuntalá
(Como que zangada)
Anusúyá, Vou-me embora, eu!
Anusúyá
Porque?
Chakuntalá
Vou dizer á nossa respeitavel Gautamí quão indiscreta está sendo
Priyamvadá na sua conversação. (Levanta-se)
Anusúyá
Minha amiga, não é proprio dos habitantes do eremiterio ausentaremse quando lhes parecer, deixando um hospede distincto antes de satisfeitas
as obrigações da hospedagem.
(Chakuntalá parte sem responder)
O Rei
(Comsigo)
Ela parte! (Indo a levantar-se como que desejoso de a deter, contém-se) Ah! como o
movimento de um espirito amoroso se denuncia no movimento do corpo!
A mim, na verdade,
Deteve-me a cortezia no impulso que me levava a seguir a filha do Muni;
E sem me ter levantado do logar onde estou, parece-me ter partido e já voltado.
Priyamvadá
(Detendo Chakuntalá)
Cruel! não te é permittido o ires-te embora!
Chakuntalá
176
JOÃO SOARES SANTOS
(Franzindo as sobrancelhas)
E porque não?!
Priyamvadá
Deves-me a rega de duas arvores; desobriga-te d’isso e podes partir.
(Obriga-a a voltar)
O Rei
Eu bem vejo que a Diva Graciosa vossa companheira está cansada de
regár as arvores. Porque em verdade lhe
descem as espaduas de cansaço, e, de tanto ter regado, vêem-se-lhe
as palmas das mãos e os braços excessivamente vermelhos.
A respiração apressada além do natural, ainda lhe está levantando
o seio em ondulações.
Uma rede formada das gotas da transpiração, em toda a fronte,
impede o balançar das flores de chirixa que lhe enfeitam as orelhas.
Sem fita que já perdeu, segura com uma das mãos os cabellos
desgrenhados.
Assim pois vou eu libertal-a da sua divida.
(Dito isto entrega o annel que tira do dedo. As duas companheiras recebem-no, e lendo as
lettras do nome olham uma para outra)
O Rei
Não estejaes suppondo o que não é. Este annel é um presente do rei.
Priyamvadá
Não cleveis portanto, Illustre Senhor, deixal-o saír do vosso dedo.
Fique ella livre da sua dívida pela palavra de Vossa Nobreza.
Anusúyá
Minha querida Chakuntalá, ao espirito compassivo d’este Nobre Senhor,
ou antes Rádjarxi, deves tu o ficares livre. Para onde irás tu agora?...
Chakuntalá
(Comsigo)
Não deixaria de saír se tivesse força sobre num.
Priyamvadá
Porque não sáies agora?
Chakuntalá
Em que dependo ainda de ti? Quando bem me aprouver, então é que
hei de saír.
177
SHAKUNTALA IRRECONHECÍVEL
O Rei
(Contemplando Chakuntalá; para si)
Sentirá ella por mim o que eu sinto por ella! Ainda bem! que felizmente
assim o posso pensar!
Sem as fallas misturar com as minhas fallas, está tão attenta em
mim, que, só por me escutar, bem me responde.
A sua face não volta para a minha, e, todavia, só em mim, quasi
sempre, tem objecto o seu olhar.
(No postscenio) Eh! eh! ó ascetas! Dae-vos pressa em defender os animaes
do eremiterio! que perto anda divertindo-se á caça o rei Duuxanta.
Eis que já a poeira, batida pelos cascos dos cavallos, se levanta como
nuvem de gafanhotos pelo sol do occaso alumiada, e vem caír sobre
as arvores do eremiterio, em cujos ramos os humidos valkalas estão
suspensos.
O Rei
(Comsigo)
Ah! As tropas que me procuram e põem em alvoroto o eremiterio! (Outra
vez no postscenio) Eh! eh! ó ascetas! Pondo em confusão velhos, mulheres e
creanças se approxima
um elephante, que, assustado ao ver um carro ele guerra, e tendo,
d’um formidavel impulso, quebrado um dente no tronco de uma arvore
que se lhe antepunha no caminho, enleiado por ter vindo prender-se
na sebe de sarmentos que arrancou á força, a grei das antilopes dispersa,
e material impedimento da nossa penitencia, o eremiterio arrasa.
(Todos ouvindo isto se levantam assustadamente)
O Rei
Oh! quão criminoso sou no mal que estou fazendo aos anachoretas. Eia
pois! obstemos ao mal!
As Duas Companheiras
O elephante espavorido nos encheu de susto, Senhor! Permitte-nos,
pois, que partâmos para casa.
Anusúyá
(Dirigindo-se a Chakuntalá)
Querida Chakuntalá, a nossa respeitavel Gautamí, deve estar assustada.
Vae pois; apressemo-nos todas.
178
JOÃO SOARES SANTOS
Chakuntalá
(Fazendo como se não podesse andar)
Ah!... Sinto-me com os membros entorpecidos!...
O Rei
Parti sem receio, sem receio, ó Divas! e nós faremos todos os esforços
para que o eremiterio não esteja por mais tempo em alarme.
As Duas Companheiras
Reconhecemos perfeitamente quem tu és, Magestade. Perdoa-nos agora
a mediocridade em servir-te de que somos culpadas. E perguntâmos-te,
Senhor, se a hospedagem impropria, que confessâmos, é ainda assim
motivo bastante de tornares a visitar-nos?
O Rei
Mas não, não! Dou-me por bem recebido com vos ter visto, ó Divas!
Chakuntalá
Anusúyá, molestei um pé n’uma ponta de herva kucha, a fimbra do meu
vestido está presa a um ramo de kuruvâka. Esperae por mim até que me
desembarace.
(Dito isto e dirigindo um olhar para o rei parte com as companheiras)
O Rei
(Suspirando)
Partiram todas! Bom! Agora parto eu! Desde que vi Chakuntalá sinto
fraco desejo de voltar para a cidade, pelo que vou fazer acampar o meu
sequito não longe de eremitério… Não tenho forças para me esquecer de
Chakuntalá, que todo me preoccupa!
Vae para diante o corpo, apenas volta para traz o coração inquieto; é
como a seda da bandeira levada contra o vento.
(Sáem lodos)
Assim é o Acto I intitulado – A Caçada -
179
SOLTOS
A Dança Clássica Khmer
João Soares Santos
«É impossível ver a natureza humana
ser levada a esta perfeição».
Auguste Rodin, referindo-se às danças de Khmer (1906)
S
ituado na península Indochinesa,
o Camboja é um país com
uma aérea de cerca de 181
000 km2 rodeado a Norte e a
Oeste pela Tailândia, a Noroeste pelo
Laos, a Leste e a Sul pelo Vietname,
tendo ainda a Sudoeste uma porção de
superfície litoral banhada pelo Golfo
da Tailândia. Os principais estuários
fluviais são o Mekong e o Tonlé Sap. Os
Khmer constituem a maioria étnica da
população. A religião predominante é
o Budismo Theravada. Neste território
desenvolveram-se os reinos hindus de
Funan e de Zhenla (séculos I a VIII) e,
entre os séculos VI e XV, floresceu o
império Khmer cujo período áureo ou
clássico costuma ser cronologicamente
datado entre os séculos IX e XIV.
Esta esplendorosa civilização Khmer
adoptou valores culturais indianos e
exerceu uma significativa influência
nos espaços geográficos adjacentes. Em
1860 Henri Mouhot (1826-1861),
naturalista Francês e explorador,
curioso e maravilhado contemplou as
ruínas de Angkor, indagando às populações locais quem tinha edificado
tão prodigioso complexo arquitectónico. Recebeu como resposta, na
sua opinião justa, a insinuação de
que devia ter sido a obra de gigantes.
A época dita de Angkor (deformação
de «Nokor», por sua vez um termo
derivado do sânscrito «Nagara» =
«cidade importante») inicia-se com
Jayavarman II (802-c.835) e termina
com a conquista e saque desta cidade
e região em 1431 pelo povo Thai. Os
artistas da corte real são levados em
cativeiro para Ayutthaya e, apesar da
sua condição subalterna perante o
novo jugo político, continuaram a
exercer predomínio cultural na modelação das preferências estéticas da elite
governante, a nova potência regional.
A aura esplendorosa da monarquia
Khmer apagou-se sob a supremacia
Thai. Obrigada a deslocar-se para a
área de Phnom Pen, sob a regência
de Ang Chan I (1516-1566), com a
capital em Longvek, esta voltou a recuperar alguma prosperidade e fulgor.
Foi nesta época que Frei Gaspar da
Cruz (c. 1520-1570), missionário
Português, com desígnios de cristia-
181
A DANÇA CLÁSSICA KHMER
nização, contactou com a soberania
Khmer. Em 1569 os Birmaneses
atacaram e depredaram Ayutthaya. O
soberano Ang Duong (1841-1859)
procurou revigorar o património
coreográfico Khmer, introduzindo-lhe mudanças.
A par dos laços já firmados com
Chineses e Indianos, no século XVII
e XVIII os Khmer estabeleceram relações com os Portugueses, Espanhóis,
Franceses, Ingleses e Malaios. No
século XVIII, parte do território
do Camboja, a área meridional
do delta do Mekong, foi anexada
pelos Vietnamitas. Em 1863 o país
tornou-se um protectorado Francês,
integrando, juntamente com o Laos e
o Vietname, as colónias da Indochina.
Em 1945 os dirigentes proclamaram a
independência só de facto conseguida
em 1953. A partir de 1969, durante
o conflito do Vietname (1955 -1975),
o Camboja foi alvo de bombardeamentos dos Estados Unidos.
Em 1970, Norodom Sihanouk
foi deposto pelo general Lon Nol,
causando o evento uma guerra civil
culminando em 1975 com a ascensão
ao poder dos Khmer Vermelhos,
iniciando-se um regime de insanidade liderado por Pol Pot. Até
1979, altura da sua queda e controlo
Vietnamita (cessado em 1991), o país
atravessou um período de terror no
182
qual, por exemplo, as escolas e os
templos foram quase todos encerrados, o dinheiro abolido e suprimida
a maioria das actividades artísticas.
Os herdeiros vivos das antigas tradições artísticas foram considerados
inimigos do Estado, acabando
presos e torturados, transportados
para «campos de reeducação» ou
dizimados. Estima-se que entre 80
a 90% dos dançarinos, músicos,
actores e dramaturgos deste país
tenham perecido durante esta
ditadura. Grande quantidade de
documentação bibliográfica relacionada com as artes foi destruída. Em
Paris um grupo de dança dirigido
por Bopha Devi (n. 1943), filha de
Norodom Sihanouk, manteve-se em
exercício no degredo, regressando à
pátria após o afastamento de Pol Pot
(o exílio real durou de 1970 a 1991).
Outros artistas encontravam-se em
campos de refugiados na Tailândia
e outros tantos refugiaram-se nos
Estados Unidos. Apesar do enorme
dano cultural sofrido, o Camboja
tem feito notáveis diligências para
superar a memória destes tempos
e para restaurar a sumptuosidade e
o refinamento das suas manifestações artísticas clássicas. Os apoios
institucionais têm permitido uma
revitalização dos géneros e nas últimas
três décadas as digressões interna-
JOÃO SOARES SANTOS
cionais receberam um acolhimento
muito caloroso do público.
As artes cénicas Khmer remontam
às práticas palacianas do período de
Angkor. A mais antiga referência à
prática de dança neste território é
uma inscrição em sânscrito datada
do século VII. Entre estes géneros
aristocráticos o mais importante é o
Lakon Kabach Boran ou Lakon Luong interpretado no passado exclusivamente
pelas esposas, concubinas ou parentes
do monarca. Tradicionalmente esta
companhia feminina de corte só
interpretava em privado no espaço de
alojamento do soberano, na presença
deste, da sua família e de convidados
ilustres, durante festividades matrimoniais, aniversários, coroações,
celebrações oficiais, cerimónias religiosas ou para entretenimento. Só
uma vez por ano, durante vários dias,
as bailarinas exibiam em santuários no exterior as suas coreografias,
rendendo veneração aos antepassados e às entidades sobrenaturais.
A função simbólica das suas danças
era prestar homenagem e propiciar
as forças que ultrapassam a compreensão humana para assim ritualmente
garantir felicidade ao reino. As
mulheres desempenhavam papéis
masculinos e femininos e, consoante
as suas características anatómicas,
tinham aprendizagens centradas
num só tipo de personagem. A rainha
Sisowath Kassamak Neary Roth (c.
1903-1975), mãe do rei Norodom
Sihanouk (nasceu em 1922, reinou
entre 1941 e 1955 e de 1993 a 2004),
introduziu homens no elenco para
assumirem as figuras de macaco no
Reamker (o «Ramayana» Khmer),
diminuiu o tempo das coreografias
para as destinar a um público mais
vasto e utilizou esta arte como veículo
diplomático. Com esse propósito,
nos anos 60 do século XX, o Ballet
Real do Camboja realizou espectáculos por várias cidades do mundo,
dispondo então a companhia um
total de 254 pessoas distribuídas por
tarefas distintas. A principal bailarina era a princesa Bhopa Devi. A 27
de Junho de 1964 apresentaram o
Reamker no Théâtre Sarah Bernhardt
em Paris (actualmente Théâtre de
la Ville) acompanhando a visita
oficial do então seu chefe de Estado,
Norodom Sihanouk, ao único país
do Ocidente com o qual nessa altura
ainda mantinha relações cordiais.
O repertório do Lakon Kabach Boran
consiste em danças abstractas, sem
conteúdo narrativo (Robam) e coreografias dramatizadas (Roeng) nele
se integrando o Reamker, mitos
e lendas, histórias contidas nas
«Jatakas» (descrevendo as vidas
anteriores do Buda Gautama) ou o
183
A DANÇA CLÁSSICA KHMER
ciclo narrativo de Panji (conhecido
no Camboja por Enao ou Eynao).
De salientar nas danças femininas
de corte a elegância e a delicadeza
dos movimentos corporais de pé ou
de joelhos, as subtilezas das mãos
e do olhar, as maravilhosas indumentárias de seda e brocado e os
ornamentos dourados e prateados
(incrustações no tecido, braceletes,
coroas, diademas, cintos, fivelas,
jóias pendentes, brincos, máscaras,
armas ou leques), criando a globalidade de estímulos uma ambiência
onírica e hipnótica. O corps de ballet
desloca-se com uma requintada
serenidade com o apoio da música
do ensemble instrumental Pinpeat,
composto por uma espécie de
xilofone com lâminas de bambu
suspensas e encurvadas sobre uma
armação de madeira, parecendo
uma embarcação (Roneat Ek), uma
variedade de xilofone arqueado
semelhante ao anterior mas com
teclas de madeira e um tom mais
grave (Roneat Thung), um metalofone
disposto na horizontal com lâminas
de ferro (Roneat Dek), dois conjuntos
de dezasseis gongos com um bolbo
superior, paralelos ao chão, sustentados por uma armação semicircular
no meio da qual se senta o músico
(Kong Vong Touch e Kong Vong Thom,
sendo o primeiro mais pequeno
184
que o segundo), um tambor com a
forma de barril com duas superfícies
de percussão assente num suporte
(Sampho), dois grandes tambores
(Skor Thom), uma espécie de oboé
(Sralay) ou uma flauta de bambu
(Khloy), um par de címbalos digitais
que pontuam o ritmo (Chhing), um
coro e os seus solistas.
Podemos usar para verbalizar
a experiência de assistir à performance das bailarinas do Ballet Real
do Camboja as palavras do antigo
cronista Khmer que, descrevendo
a construção de Angkor, aludiu às
esculturas das Apsaras: «o olho não
se fatiga, a alma fica envolta numa
agradável sensação, o coração jamais
se sacia».1
Parecida com o género anterior
mas com atributos mais vigorosos, a
outra expressão de dança de corte existente neste país, somente interpretada
por homens, destinada a representações no exterior para o povo, é o
Lakon Khol. Nela as figuras de macacos
e de demónios (Rakshasas) presentes
no Reamker utilizam também máscaras.
Conjectura-se que a sua origem possa
ser as dramatizações de marionetas de
sombras (Nang Sbek Thom).
Entre as lendas que relatam
a origem do Camboja podemos
destacar quatro. A primeira versa
sobre a fundação do reino e de
JOÃO SOARES SANTOS
Angkor Thom através do casamento de Prah Thong, um príncipe
indiano exilado, com uma Nagi, a
filha do soberano dos Nagas locais.
A segunda refere a chegada de um
brâmane chamado Kaundinya,
procedente da Índia, que casou
com «Folha de Salgueiro» uma
rainha autóctone à qual impôs o
uso de roupa. Uma terceira incide
sobre um rei leproso, belo e jovem,
glorioso nas suas expedições militares e que tinha quatro mulheres
favoritas às quais concedia todas
as vontades. Um dia abandonou o
luxo palaciano e partiu sozinho com
elas numa viagem de descoberta
do mundo. Por fim, uma outra
narrativa sobre o aparecimento da
dinastia Khmer menciona Kambu,
um eremita ou príncipe a quem
Shiva ofereceu Mera, uma ninfa
celeste (Apsara), como esposa. Desta
união surgiu a genealogia real
Khmer que governou um território designado por Kambudesa
(«país de Kambu» ou «nascido
de Kambu») mais tarde abreviado
para Kambuja. A junção do nome
«Kambu» e «Mera» originou o
termo «Khmer». «A Lenda da
Criação do Reino Khmer», o título
do espectáculo que o Ballet Real do
Camboja apresentou no dia 4 de
Junho de 2010 no XVI Festival de
Músicas Sagradas do Mundo em Fez
(Marrocos) tinha esta última récita
como tema coreográfico. A composição inicial foi da rainha Kassamak,
revista na actualidade pela sua neta,
a princesa Bhopa Devi. Este ano o
Ballet Real comemora o vigésimo
aniversário do seu renascimento
(1991-2011) e apresenta-se em
digressão pela Europa com as dez
melhores bailarinas interpretando
as melhores peças coreográficas
do repertório clássico Khmer.
Em Julho estiveram em Bergerac
(região da Aquitânia) no Festival do
Verão Musical e no Festival Sfinks,
na cidade de Boechout, região de
Antuérpia (Bélgica).
JSS
185
A DANÇA CLÁSSICA KHMER
Referências:
1 – Referido por Henri Marchal, «Les
Temples d’Angkor», Albert Guillot, Paris,
1955
186
A Honra Perdida do Major Silva Pais
Fernando Pereira Marques
T
erminou com uma
absolvição (em Julho de
2011) o processo desencadeado pela queixa
de familiares do último director da
PIDE/DGS, o major Silva Pais, contra
os responsáveis (Carlos Fragateiro,
José Manuel Castanheira, Margarida
Fonseca Santos) pela adaptação ao
teatro de um livro sobre a filha desse
dignitário do Estado Novo, que esteve
em cena há uns anos atrás no D.
Maria II. A razão principal invocada
pelos queixosos era de que, na peça
em questão, se afirmava que o major
teria ordenado o assassínio do general
Humberto Delgado.
Diga-se, desde já, que este julgamento pouca atenção mereceu por
parte dos nossos media, pois para o
ruído neles dominante outras questões foram mais relevantes. Mas
sublinhe-se também, em contrapartida positiva, ter sido demonstrado
que a Justiça ainda funciona com
algum bom senso.
Não conheço o livro e não vi o
espectáculo teatral, por isso desconheço os termos como neles foi
abordada a questão geradora do
litígio. Mas abstraindo da liberdade
de criação e em se ficcionar sobre a
realidade, além do que já está historicamente comprovado quanto a
esse acto criminoso do regime e da
sua polícia política, só por absurdo
se pode pretender que o chefe
supremo da dita, que despachava
regularmente com o presidente do
Conselho de Ministros, podia estar
inocente na complexa operação que
conduziu o malogrado general para a
armadilha onde perdeu a vida (com
a sua secretária brasileira). Operação
acompanhada por detalhada planificação, que obrigou à intervenção de
vários agentes provocadores e de uma
brigada expressamente enviada para
Espanha com o objectivo, obviamente, ou de deter ou de neutralizar
essa figura destacada da oposição,
então um símbolo mobilizador das
esperanças de muitos dos que recusavam o regime.
Todavia, mesmo que por hipótese
académica esses agentes e essa brigada
tivessem agido por conta própria
– insista-se no disparate da hipó187
A HONRA PERDIDA DO MAJOR SILVA PAIS
tese –, pretender argumentar junto
dos tribunais com o bom nome de
um indivíduo que durante longos
anos foi responsável por sistemáticos atentados aos direitos humanos,
que liderou todo um sistema de
perseguição, denúncia e repressão,
é ofender não só a inteligência dos
portugueses, mas sobretudo insultar
as muitas vítimas, desaparecidas
ou ainda vivas, dessa polícia e do
regime de que foi principal instrumento. Não deixa de ser irónico,
convenhamos, que o princípio do
primado da Lei a que hoje recorrem
esses familiares, era aquele mesmo
princípio que os membros da PIDE/
DGS, nas suas diversas funções e
qualidades, declaravam com jactância
não chegar às salas do último andar
da António Maria Cardoso onde
decorriam os interrogatórios (antes
da mudança para Caxias).
Todos sabemos que a superioridade moral da Democracia reside no
respeito pelos direitos, liberdades e
garantias. E também sabemos que
até os mais execráveis indivíduos ao
serviço de regimes que assentavam
no medo e na violência organizada
têm família à qual as suas culpas não
são extensíveis. No entanto, esses
indivíduos, com diferentes níveis
de responsabilidade, ao ocuparem
cargos públicos e institucionais no
188
sistema repressivo e sendo conscientemente executores de acções contra
a dignidade das pessoas e dos povos,
não podem isentar-se dessa responsabilidade. Deveriam entre nós,
como noutros lados aconteceu ou
está a acontecer, terem respondido
por isso. E digo deveriam, porque,
como sabemos, por uma série de
circunstâncias – que aqui não cabe
aprofundar –, após a instauração do
regime democrático em 25 de Abril
de 1974, de facto, e objectivamente,
usufruíram de uma escandalosa
impunidade. Recordem-se os juízes
dos Tribunais Plenários que terminaram calmamente a suas carreiras
com todas as regalias, e dos agentes
da PIDE/DGS que tiveram direito a
receber as suas pensões como banais
funcionários públicos.
Contrariamente a alguns corações
sensíveis não interpreto isto como
um sinal positivo que nos diferenciaria de outros povos. Considero
antes que são manifestações de falta
de memória e de pundonor, bem
na continuidade da passividade que
ajudou a que em Portugal subsistisse uma das mais longas ditaduras
contemporâneas. Neste contexto
se percebe melhor, por exemplo,
o actual revivalismo em torno de
Salazar, a forma acrítica, para não
dizer panegírica, como se aborda
FERNANDO PEREIRA MARQUES
a guerra colonial, enquanto que
se remete a luta pela Democracia
quase para os rodapés dos livros de
História e se consideram os que
recusaram contribuir para a mistificação ultramarina como maus filhos
da pátria. Só assim, neste clima,
onde se confundem e esbatem princípios e valores, se percebe que os tais
familiares tenham ousado avançar
com semelhante processo. O major
Silva Pais terá direito ao bom nome
póstumo enquanto indivíduo privado
e no que à sua intimidade e dos seus
diz respeito – é assim que deve ser em
Democracia –, mas não existe “bom
nome” a preservar em tudo o que ao
desempenho de um cargo público,
durante longos anos, se refere.
Talvez deste fait divers se possa tirar
um bom tema para uma tragicomédia à portuguesa que se poderia
chamar qualquer coisa como: “A
Honra Perdida do Major Silva
Pais”...
189
190
Oo Indignados e a Crise da Liberal Democracia
Joaquim Jorge Veiguinha
E
m 12 de Março de 2011,
milhares jovens, convocados por um movimento
designado por ‘Geração
à Rasca’ manifestaram-se em Lisboa
contra a precariedade laboral e o
plano de austeridade negociado pelo
governo de José Sócrates, o FMI, o
Banco Central Europeu e a Comissão
Europeia. Dois meses depois, em 15
de Maio, cerca de 20.000 pessoas
ocupavam a praça Puerta del Sol
de Madrid. Retomou-se assim um
movimento que, iniciado em Lisboa,
se estendeu a outras cidades espanholas e teve ramificações em outras
urbes europeias – Atenas, Bruxelas,
Berlim, Paris, Londres –, atingindo
o seu apogeu na primeira semana de
Agosto no país vizinho. Inspirado no
pequeno livro Indignai-vos do francês
Stéphane Hessel e por um panfleto
espanhol do mesmo tipo, este movimento tem como palavra ordem e
reivindicação central ‘democracia
real, já!’ e apanhou completamente
desprevenido o governo e a classe
política espanhóis.
Rapidamente o movimento 15-M,
como ficou conhecido, alastrou a
outras grandes cidades espanholas,
de que se destacou Barcelona, que
juntou à palavra ordem madrilena o
slogan ‘ninguém nos representa’ que
complementa a reivindicação central
deste movimento de indignação.
Em 19 de Junho, desencadeiam-se
manifestações em toda a Espanha
contra o ‘pacto pelo euro’, assinado
pelos 17 países da zona Euro, em
que se impõem compromissos sobre
a moderação salarial, a flexibilidade laboral, a restrição das despesas
com as pensões e a coordenação das
políticas orçamentais no sentido da
imposição de draconianas medidas
de austeridade. Os indignados espanhóis prevêem cortes brutais nas
despesas sociais e traçam as grandes
linhas estratégicas do movimento.
Este pretende ser cada vez mais ‘horizontal’, opondo-se a uma direcção
hierarquizada, aprofundar a descentralização com o objectivo de penetrar
nos bairros de Madrid, coordenar as
manifestações nas diversas cidades
espanholas e expandir-se internacionalmente. O seu modo de
191
OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
intervenção consiste na confluência
de marchas que, partindo de outras
cidades, deverão confluir, em 23 de
Julho, em Madrid. O movimento
15-M aposta fundamentalmente na
desobediência civil e na acção directa
de ‘raiz pacifista’, como referem
alguns dos seus representantes.
Porém, em 15 de Junho, uma
concentração junto do parlamento
catalão em protesto contra a aprovação do ante-projecto orçamental
da Catalunha terminou com insultos
e tentativas de agressão aos deputados
que foram obrigados a ser transportados de helicóptero para entrarem
no plenário. Dos confrontos com
as forças de choque dos Mossos
d’Esquadra, a polícia catalã, resultaram 36 feridos ligeiros, dos quais
três agentes, sendo detidas quatro
pessoas. Esta primeira mancha no
‘currículo’ do movimento dos ‘indignados’ não lhes retira, porém, o seu
carácter predominantemente pacifista e não violento. Segundo um dos
porta-vozes do 15-M, Aid Sanchez,
“o povo levantou-se, estamos a
dizer aos políticos e aos banqueiros
que não nos representam” (Público,
20.06.11). É de sublinhar que no
país vizinho a taxa de desemprego dos
menores de 25 anos atinge 43,5% e
que 44% dos licenciados executam
tarefas que requerem uma qualifi192
cação inferior à que obtiveram nos
seus estudos universitários.
Em 23 de Julho confluem na
emblemática Puerta del Sol seis
marchas de ‘indignados’ que na
totalidade percorreram 3000
quilómetros e 200 povoações para
anunciar e discutir as suas reivindicações. Esta estratégia tem notáveis
semelhanças com o movimento de
‘ida ao povo’ nos finais do século
XIX na Rússia czarista, em que
milhares de pessoas das grandes
cidades partiram para os campos
para esclarecer os camponeses ainda
submetidos ao regime de servidão.
Em 20 de Junho, inicia-se a rota
do Leste que partiu de Valência e
passou por 29 povoações em 24
dias. Quatro dias depois, iniciou-se a rota do Noroeste, proveniente
de Santiago de Compostela e, no
mesmo dia, começou a sua jornada
a do Norte, a partir de Bilbau, e a
do Nordeste que saiu de Barcelona.
Em 25 de Junho, foi a vez da rota do
Oeste que partiu da Estremadura e a
do Sul que zarpou de Málaga. No dia
25 de Julho, realizou-se no Palacio
de Cristal del Retiro o I Fórum social
15-M, em que foi debatida a estratégia do movimento para o Outono.
Em 5 de Agosto, uma carga policial acabava com uma concentração
de indignados em frente da sede
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
do Ministério da Administração
Interna em Madrid. No dia
seguinte, inspirados pelo movimento dos indignados espanhóis,
250.000 manifestantes protestaram em Tel-Aviv, em Israel,
contra os preços incomportáveis
dos alugueres das habitações – um
aumento de 250% em 6 anos – e
contra a degradação das condições
pedagógicas nas escolas – uma
média de 40 alunos por turma, a
que os professores não podem dar
a atenção adequada. O escritor
israelita David Grossman sintetizou assim este movimento de
indignação israelita: “As pessoas
esfregam os olhos e começam
a abrir-se a esse algo, todavia
indefinível e impredizível, inclusivamente indescritível, mas que
está adquirindo forma através
de slogans resgatados de princípios do tipo «o povo exige justiça
social» e «queremos justiça e não
caridade» e outros sentimentos
recuperados de épocas anteriores
(…) pela primeira vez em muito
tempo, voltamos a respeitar-nos a
nós próprios como cidadãos individuais e como povo de Israel”1.
As considerações do escritor isra-
elita suscitam-nos, antes de tudo,
algumas reflexões sobre as causas dos
movimentos do tipo 15-M. Estes
são fruto do agravamento das desigualdades sociais, de que resulta o
enfraquecimento cada vez maior
da coesão social, e traduzem-se, no
plano político, na crise da liberal
democracia cada vez mais subordinada à ditadura dos mercados
financeiros que põe em causa, com
as suas curas de austeridade, não
apenas o emprego e o crescimento
económico, mas também as políticas sociais e redistributivas que
garantiam a estabilidade e o bem-estar sociais de largas camadas dos
estratos inferiores da classe média
assalariada e da população trabalhadora. Num ensaio que analisa a
instabilidade social na Europa entre
1919 e 2009, os professores Jacopo
Ponticelli e Hans-Joachim Voth, da
Universidade Pompeu Fabra, em
Barcelona, concluem, fundamentados por uma ampla base dados, que
nestes 90 anos “os cortes nas despesas
públicas aumentaram significativamente a frequência de distúrbios, de
marchas antigoverno, greves gerais,
assassinatos políticos e tentativas de
derrubar a ordem estabelecida”2.
1
El País, 7.08.2011.
2
Cit. por, Naim, Moisés – “Test: Advine el país!”, El País, 14.08.11, Madrid, p. 4.
193
OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
Um movimento global
Em 17 de Setembro cerca de
2000 pessoas iniciam em Nova
Iorque o movimento ‘Ocuppy Wall
Street’, contestando que 1% dos
norte-americanos possuam 40% da
riqueza, 46 milhões estejam abaixo
do limiar da pobreza e 50 milhões
não tenham seguro médico. Em
15 de Outubro, manifestações
de indignados realizaram-se em
diversas capitais europeias. Em
Londres, cerca de um milhar de
pessoas concentraram-se nas escadarias de catedral de S. Paulo que
se situa perto da Bolsa da capital
britânica; em Bruxelas, realizou-se uma marcha com a participação
de 6000 pessoas, mas a polícia
encerrou sem pré-aviso os locais
que serviram de centros de mobilização dos indignados, apesar de não
se terem registado actos de violência
durante o desfile. Em Berlim, mais
de 10.000 pessoas percorreram a
avenida Unter den Linden, ostentando cartazes e faixas em grego,
espanhol, inglês e alemão e cerca
de 5000 pessoas realizaram um sit
in em Francoforte, junto da sede
do Banco Central Europeu; em
Madrid, 46.000 pessoas concentraram-se na praça Puerta del Sol
e nas imediações e efectuaram
uma marcha que durou mais de
194
quatro horas em Barcelona; em
Lisboa, 12.000 pessoas, segundo a
polícia, e 25.000 pessoas, segundo
os
organizadores,
realizaram
uma manifestação que terminou
junto da Assembleia da República,
protestando contra a austeridade
que recai exclusivamente sobre os
rendimentos do trabalho, o FMI,
os políticos e o Governo em que a
palavra de ordem mais difundida,
“Não é a nossa dívida não a pagaremos”, revelava uma ignorância e
uma irresponsabilidade radicalista
enormes; Em Roma, uma manifestação de pacífica de 200.000
pessoas foi, porém, manchada pelos
distúrbios provocados por grupos
minoritários violentos que desencadeou a reacção tardia da polícia
de que resultaram 70 feridos
muitos dos quais nada tinham a ver
com os arruaceiros que estiveram
na origem do desencadeamento da
carga policial.
O que está verdadeiramente em
jogo é a capacidade que a liberal
democracia
do
pós-Segunda
Guerra Mundial até à queda do
Muro de Berlim dispunha para
resolver os conflitos sociais pela via
político-institucional. Esta capacidade só ‘funciona’ quando os níveis
de desigualdade social não ultrapassam determinado limite. Caso
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
contrário, o frágil elo que conecta
representantes e representados é
ameaçado, o que tem como principal consequência, primeiro, um
crescente absentismo político nas
eleições legislativas, depois, uma
ruptura que ora pode traduzir-se
em explosões de violência seguidas
de pilhagens, como sucedeu, em
Agosto, em Londres, ora num novo
tipo de manifestações de protesto
que contrapõem a democracia
directa à democracia representativa,
exigindo, como os ‘indignados’
espanhóis, ‘democracia verdadeira,
já!’ e em que o clássico mandato
representativo entra em crise. É
neste sentido que deve ser interpretada a palavra de ordem dos
jovens de Barcelona “ninguém nos
representa”.
Democracia directa ‘versus’ democracia representativa?
Resta-nos analisar duas interpretações opostas sobre este
fenómeno relativamente inédito
que nos poderão ajudar a emitir um
juízo crítico sobre o seu impacto
social. Para o filósofo espanhol
Daniel Innenarity, “as nossas sociedades estão cheias de pessoas que
são «contra», enquanto são cada
3
vez mais raros os que são «por»
alguma coisa de concreto e identificável. O que é hoje mobilizador são
as energias negativas de indignação
e de vitimização. Todo o problema
consiste em saber como fazer-lhes
frente. É o que Pierre Rosanvallon
designou por «era da política negativa», em que os que se opõem
não o fazem como os rebeldes
ou os dissidentes do passado, na
medida em que a sua atitude não
traça nenhum horizonte desejável,
nenhum programa de acção. Neste
contexto, o problema consiste em
distinguir a cólera regressiva da
indignação justa, e de pôr esta ao
serviço de movimentos eficazes e
transformadores”3.
Embora esteja, em parte, de
acordo com o último parágrafo
da análise de Innerarity, não se
pode dizer que os movimentos do
tipo 15-M não lutem por objectivos identificáveis e se limitem a
explorar um sentimento ‘negativo’
de vitimização. Antes de tudo, a
‘negatividade’ pode, em certos,
momentos transformar-se em factor
de transformação social, já que a
reconciliação com o presente não é
mais do que o conformismo reprodutor que aceita como inevitáveis
Courrier International, 26.05. 2011
195
OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
o agravamento das desigualdades
sociais e mesmo, como já se difunde
em certos círculos, o desaparecimento a prazo do próprio Estado e
modelo social europeus. De resto,
o movimento madrileno do 15-M,
os manifestantes de Tel-Aviv, de
Nova Iorque e de outras grandes
cidades europeias, ao definirem
com alguma clareza o que não
querem – não à subordinação do
político ao económico e do económico ao financeiro, não às políticas
de austeridades que, em nome da
redução dos défices públicos e do
combate a uma inflação cada vez
mais baixa sacrificam o emprego de
milhões de pessoas e hipotecam o
seu futuro, pela satisfação de necessidades cada vez mais prioritárias de
habitação, que não podem transformar-se num luxo de poucos, e
também de uma educação pública
de qualidade, em que o sucesso
pedagógico não deve ser subalternizado relativamente às restrições
orçamentais – apontam, de certo
modo, uma via, se bem que ainda
pouco clara e algo imprecisa, para
a construção de uma economia
e sociedade melhores – expressa
pela exigência de justiça e não de
caridade assistencialista que gera
4
Público, 20.06.11.
196
dependência – e não apenas para a
limitação dos prejuízos resultantes
das políticas anti-sociais do neoliberalismo dominante. De facto,
sem um descontentamento que
transporta consigo um pouco de
utopia não é possível uma abertura
de horizontes sem a qual o mundo,
para utilizar a frase do poeta, não
“pula e avança”.
No pólo oposto de Innenarity,
situa-se o sociólogo português
Boaventura Sousa Santos para quem
“os movimentos mais criativos da
democracia raramente ocorreram
nas salas dos parlamentos: ocorreram nas ruas onde os cidadãos
revoltados forçaram as mudanças do
regime ou a ampliação das agendas
políticas”4. Este juízo peca por
sobrevalorizar o momento extra-institucional da rebelião ou da
revolta cujo carácter ‘inorgânico’
e relativamente desarticulado lhe
retira poder de intervenção e tende
a cristalizar-se em reivindicações
efémeras e pouco sustentadas politicamente que, ao contrário do que
afirma o sociólogo da Faculdade de
Economia de Coimbra, podem ser
manipuladas ou conduzir a resultados contrários aos pretendidos:
por exemplo, o 12-M português
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
deu um importante contributo
para a vitória da direita nas eleições legislativas e o 15-M espanhol,
pode, ao que tudo indica, favorecer
a conquista de uma maioria absoluta
pela direita espanhola nas próximas
eleições de Novembro. As limitações
de movimentos deste tipo residem
precisamente na sua incapacidade
para encontrarem uma mediação
entre o momento extra-institucional e o momento institucional,
já que tendem a rejeitar os partidos
políticos e os sindicatos frequentemente considerados em bloco como
forças do ‘sistema’. As palavras
de ordem ‘democracia real, já!’ e
‘ninguém nos representa’ expressam
esta ausência de mediação. Ambas
apontam para uma espécie de
democracia directa, muito em voga
nas redes digitais contemporâneas,
que pode desembocar numa forma
de populismo que visa sobrepor a
deliberação instantânea de alguns
milhares de cidadãos reunidos
numa praça ou em várias praças
aos processos de decisão política
centrados num mandato representativo que, apesar de não vincular os
eleitos aos eleitores, como sucede
com o mandato imperativo, tem
por base consultas eleitorais demo5
cráticas periódicas em que milhões
de cidadãos exprimem livremente as
suas escolhas políticas.
Ao contrário do que diz
Boaventura Sousa Santos, nem
sempre os movimentos mais criativos da democracia ocorreram nas
ruas. Segundo o jornalista espanhol
Joaquín Estefânia5, perto do final
da II Guerra Mundial formou-se
em Itália um movimento instantaneamente convertido num partido
– o partido do ‘uomo qualunque’
(poderemos traduzir a designação
por partido de ‘quem quer que seja’
ou de ‘qualquer um’) composto por
cidadãos com expectativas frustradas
que se consideravam vítimas de
políticas promovidas por outros que
os prejudicavam. A sua contestação,
apesar de não poder ser associada às
reivindicações do movimento dos
indignados que pressupõem um
nível de cultura política significativamente superior, transformou-se
num grito inarticulado de desespero que se extinguiu num ápice e
acabou por transferir grande parte
dos seus militantes e simpatizantes
instantâneos para os partidos de
extrema-direita anti-sistema. Os
resultados políticos imediatos
dos movimentos dos indignados
El País: Domingo, 22.05.11.
197
OS INDIGNADOS E A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
portugueses e espanhóis têm favorecido objectivamente os partidos
da direita na oposição que se
servem do descontentamento existiente para conquistarem o poder
político. Não é verdade que a manifestação da ‘Geração à rasca’ quando
o PS estava no poder mobilizou
200.000 pessoas, enquanto a de 15
Outubro apenas conseguiu a adesão
de 25.000? Eis uma estranha
‘discrepância’.
A palavra de ordem do movimento ‘Occupy Wall Street’
“Estamos aqui para refundar a
democracia” ignora que a democracia não se refunda, mas se
reconstrói e que a sua reconstrução
jamais pode abdicar da instância
político-institucional sem a qual
não é possível garantir o respeito
pela diversidade e pelos direitos
das minorias ou dos que pensam
de modo diferente6. A democracia
directa com a sua tendência para
a ausência de regras formalizadas
para a tomada de decisões e, por
conseguinte, para o predomínio
das emoções sobre a discussão
informada e ponderada das diversas
6
perspectivas políticas pode ser presa
fácil de manipulações e mesmo
de infiltrações antidemocráticas e
arruaceiras, como já aconteceu em
Barcelona e sobretudo em Roma.
Estas, para além de contribuírem
para descredibilizar um movimento
pacífico de indignação contra o
agravamento da desigualdade e da
injustiça sociais, podem servir de
pretexto aos poderes económica
e politicamente dominantes para
limitarem a liberdade de manifestação dos sindicatos e das forças
políticas que contestam o status quo
existente. O primeiro passo já foi
dado pelo presidente da Câmara
Municipal de Roma, Gianni
Alemanno, que proibiu, durante
um mês, cortejos e manifestações
na capital transalpina, enquanto o
ministro da Administração Interna,
Roberto Maroni, se prepara para
desenterrar normas de excepção
que foram estabelecidas nos ‘anos
de chumbo’ do século passado e
que prevêem prisões e julgamentos
sumários aos grupos subversivos que
põem em causa a ordem democrática. Estes ‘exemplos’ legislativos
Neste sentido, James Madison tem razão quando reflecte sobre os ‘perigos’ da democracia directa, a que chamava democracia pura: “Uma democracia pura, termo com que pretendo referir-me a uma sociedade consistindo num pequeno
número de cidadãos, que reúnem e administram o governo em pessoa, não pode admitir um remédio para as acções prejudiciais às facções. Em quase todos os casos, uma maioria sentirá uma paixão ou terá um interesse comum; a comunicação e a
concertação resultam da própria forma de governo; e não existe nada para manter em respeito os incitamentos a sacrificar o
partido mais fraco ou o indivíduo mais odioso” (Madison, James – “O Federalista”, Ed. Colibri, Lisboa, 2003, pp. 82-83).
198
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
poderão generalizar-se, se, como é
previsível, as infiltrações de grupos
extremistas e de polícias à paisana
no seio do movimento dos indignados se alargarem, o que é muito
preocupante, porque, para além de
constituírem um novo passo para
a restrição securitária da democracia política, tenderão a suscitar
uma separação radical entre os que
protestam e se confrontam com
a polícia e os que permanecem
encerrados em casa com medo dos
distúrbios e da repressão desencadeada. Mas isto não é mais do que a
antecâmara da morte da democracia
e da vida cívica. Eis a razão pela qual
o movimento dos indignados é cada
vez mais parte do problema e cada
vez menos parte da solução.
199
LIVROS
“Os Valores da Esquerda Democrática – Vinte
Teses Oferecidas ao Escrutínio Crítico”
de Augusto Santos Silva – Edições Almedina, 2010
Pedro Miguel Cardoso
O
livro “Os Valores da
Esquerda Democrática –
Vinte Teses Oferecidas
ao Escrutínio Crítico”
da autoria do professor Augusto Santos
Silva, contém, como o próprio título
indica, um desafio implícito. Senti-me
por isso desafiado a escrutinar as suas
teses e posteriormente a produzir este
texto que mais do que uma recensão
crítica é um resumo da obra.
Como o leitor poderá notar ela
tem qualidades e profundidade para
se tornar uma obra de referência. É
um excelente contributo para o debate
ideológico e para a definição do posicionamento da esquerda democrática
no plano dos valores e princípios,
demarcando-a duplamente: “por
um lado face ao conjunto das direitas
e, pelo outro, face às esquerdas não
democráticas”. Tem também um
duplo objectivo: analítico tendo em
conta o que a esquerda democrática tem
sido ao longo da história, mas também
normativo “comprometido com a
defesa de um certo lugar e trajecto para
a esquerda democrática, no tempo
presente e no próximo futuro”.
É um esforço e um trabalho de
saudar em tempos de algum esvaziamento ideológico e incerteza teórica
em diferentes campos políticos. Vou
expor cada tese separadamente:
1ª Tese “A dicotomia entre
esquerda e direita é o operador mais
eficaz para começar a caracterizar e
distinguir correntes políticas”
Nesta primeira tese o autor defende
que “a distinção entre esquerda e
direita é um procedimento eficazmente operativo para começar a
estabelecer o lugar e a identidade da
esquerda democrática”. Esta distinção
tem já uma longa tradição, continuando a ser útil na demarcação dos
diferentes campos políticos, nomeadamente ao nível das suas estruturas de
pensamento e diferentes prioridades.
Realça ainda a necessidade de
“romper” com a popular alegação de
que a esquerda valoriza mais a igualdade enquanto a direita valoriza mais
201
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
a liberdade. Sustenta esta necessidade
apresentando exemplos históricos,
particularmente a luta pela liberdade dos revolucionários liberais e
democratas (de esquerda) da segunda
metade do século XVIII e da primeira
metade do século XIX. Mas também
argumentando no plano normativo
onde considera fundamental “para os
que se reclamam da esquerda democrática e pluralista” a rejeição dessa
alegação, uma vez que ela “desvaloriza
um eixo fundamental de demarcação
com as outras famílias, antiliberais, da
esquerda”.
2ª Tese “O centro não existe
sozinho; mas existe”
Além da oposição entre esquerda
e direita, o autor considera importante salientar a diversidade interna
destes campos políticos. E para melhor
caracterizar essa heterogeneidade vale a
pena introduzir o conceito de centro
que “não tem identidade própria”
e “não existe sozinho; existe como
centro – direita ou centro – esquerda”.
O que não significa “que o centro seja
um lugar vazio, sem pertinência ou
significado”.
202
3ª Tese “Para além da oposição
entre esquerda e direita, o mapa
político também se organiza segundo
outras clivagens: entre democratas e
autoritários, progressistas e conservadores, moderados e extremistas,
cosmopolitas e isolacionistas”
A clivagem entre direita e esquerda
é um ponto de partida, no entanto,
existem outras clivagens relevantes:
– Entre democratas que defendem
a “democracia pluralista, representativa e poliárquica” e que têm um ideal
de governo limitado, e os autoritários, que podem ser reaccionários ou
revolucionários;
– Entre modernos ou progressistas,
que se sentem bem na contemporaneidade e valorizam a mudança, e os
arcaicos ou conservadores que temem
a mudança;
– Entre moderados e extremistas,
que é a “demarcação que melhor
exprime o acoplamento da palavra
centro a direita ou esquerda”;
– Entre cosmopolitas pró- globalização e os isolacionistas soberanistas e
nacionalistas.
PEDRO MIGUEL CARDOSO
4ª Tese “Os valores básicos da uma dimensão e uma condição da
esquerda democrática são a liber- liberdade”.
dade, a igualdade, a justiça, a
Uma dimensão, na medida em que
colectividade e a diferença”
a “liberdade plena supõe igual liberdade de todos” e porque a “primeira
Na sua quarta tese, Augusto Santos garantia da liberdade do cidadão é a
Silva sugere uma estrela de cinco lei”, que a todos trata por igual. Na
pontas para caracterizar os valores ausência de lei e de igualdade perante
centrais da esquerda democrática. São a lei, a liberdade torna-se no reino do
eles a liberdade, a igualdade, a justiça, mais forte. Uma condição, na medida
a colectividade e a diferença.
em que a igualdade no acesso e na
Porque não utilizar a tríade da utilização de recursos sociais básicos é
Revolução Francesa: Liberdade, fundamental à liberdade, que requer
Igualdade e Fraternidade? Porque, a não existência de desigualdades
segundo o autor, não é suficiente- sociais profundas. Isto é, “só um certo
mente discriminativa. A diferença é conjunto de recursos disponíveis para
uma importante noção da contem- todos permite que cada um possa ser
poraneidade e a colectividade um pessoa, inteira e livre.”
contributo fundamental das correntes
Partir da liberdade para a igualdade
socialistas e comunistas dos séculos significa que não se aceita sacrificar
XIX e XX. Além de que a fraternidade a liberdade em nome da igualdade e
se pode melhor compreender através que “a finalidade orientadora da acção
da combinação entre igualdade, justiça pela igualdade é a promoção da libere colectividade.
dade: da capacidade de cada indivíduo
se realizar como tal, construindo o seu
próprio projecto, percurso e identi5ª Tese “A esquerda democrática dade pessoal. Ou seja: ser igual para
parte da liberdade para a igualdade” ser livre, logo diferente.” Segundo o
autor fica assim definida uma demarA esquerda democrática deve cação face às correntes autoritárias de
assumir a liberdade como princípio esquerda que defendem o igualitafundamental e dela partir para a igual- rismo a todo o custo e face a uma direita
dade. Segundo Augusto Santos Silva pouco preocupada com a igualdade.
“partir da liberdade para a igualdade é afirmar que a igualdade é
203
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
– A distinção entre igualdade e
6ª Tese “A esquerda democrática
sublinha a dimensão redistributiva identidade, em que a igualdade das
pessoas não significa que elas partida justiça”
lhem ou tenham que partilhar todas as
A justiça na sua dimensão redis- características, qualidades e percursos;
– A avaliação das desigualdades
tributiva é um valor estruturante da
esquerda democrática. Há uma justiça sociais segundo o critério da legitimique se preocupa com a salvaguarda da dade, em que as diferenças baseadas
ordem pública e da convivência pací- no talento, esforço ou iniciativa são
fica, mas há também uma justiça que legítimas;
– O princípio do patamar comum,
se preocupa com a distribuição dos
recursos e bens, pedindo mais a quem um mínimo social, um conjunto de
mais tem para proporcionar recursos recursos e condições mínimas disponíveis para todos;
acrescidos a quem menos tem.
– A concepção da igualdade enquanto
Promover a justiça social através de
mecanismos redistributivos é retirar orientação para a acção, colocando o
a solidariedade da “esfera privada e ênfase na igualdade de oportunidades;
– A acção pela igualdade incorassistencial” e torná-la numa missão
central do Estado. É também impor- pora iniciativas que deliberadamente
tante redefinir a questão da igualdade criam desigualdades a favor dos
e da acção contra as desigualdades. Em desfavorecidos;
– E oitavo e último elemento, a
vez de promover o igualitarismo onde
todos devem ser estritamente iguais abertura e mobilidade social: a esquerda
e não pode haver quem se distinga, democrática não partilha antes combate
perguntar “se há ou não desigualdades a tentação igualitarista e valoriza a iniciajustas, e quais, e por que critério?” e “é tiva e a responsabilidade individual.
ou não justo haver um certo nível de
desigualdade?”
7ª Tese “A esquerda democráSegundo o autor são oito elementos
que configuram um moderno conceito tica questiona a justiça da ordem do
mundo”
de igualdade:
– A igualdade moral, em que cada
Segundo esta tese, para a esquerda
pessoa vale o mesmo;
– A igualdade jurídica, dando iguais democrática é fundamental questionar
a ordem do mundo, contestar a injusdireitos fundamentais a cada pessoa;
204
PEDRO MIGUEL CARDOSO
tiça e querer corrigi-la. Interpelar o
status quo tendo em mente um ideal de
justiça “que está para além da lei e do
direito e que pode pôr em crise a lei e
o direito vigentes”. Esta é uma característica fundamental da esquerda
democrática que a coloca ao lado da
mudança e para quem “o primeiro
dever dos cidadãos não é obedecer
à ordem, por ser ordem, mas sim
interrogá-la, inquirir dos seus fundamentos e legitimidade.”
entre colectividade e solidariedade”,
através da justiça equitativa (distribuição
social dos benefícios), a socialização dos
riscos (segurança social) e a discriminação positiva (intervenção deliberada
em prol dos desfavorecidos). Neste
quadro a solidariedade é vista como
uma responsabilidade, um laço cívico,
o reconhecimento de um direito
a um nível mínimo de bem-estar,
numa lógica de compromisso mútuo
entre cada cidadão e a sua comunidade, na combinação de direitos e
responsabilidades.
8ª Tese “A esquerda democrática
acrescenta à república o sentido de
solidariedade colectiva”
9ª Tese “O cosmopolitismo da
esquerda democrática articula relaNesta oitava tese, o autor defende tividade e universalismo”
que a esquerda democrática acrescenta
O quinto valor constitutivo da
à república a ideia de colectividade, a
reconceptualização do Estado como esquerda democrática é a diferença e
comunidade e organização política, a ele compreende-se melhor na relação
que todos pertencem e onde todos têm com os outros valores. A diferença que
é uma consequência da liberdade. E
lugar e direito.
Depois das dúvidas “libertárias” “amar a liberdade é também valorizar
iniciais, os movimentos socialistas acei- a dissidência, isto é, o direito a exercer
taram o Estado “como um espaço de a diferença como oposição e alternaintegração social e intervenção política” tiva”. Mas o autor deixa claro que “se
e valorizaram-no, defendendo a sua se pode, no limite, tolerar a expressão
intervenção em prol do interesse geral da intolerância, não se pode tolerar,
ou bem comum, da protecção social e sob pena de contradição nos próprios
termos, a prática ou o incitamento à
da realização dos direitos sociais.
Um outro contributo da esquerda prática da intolerância”.
É também importante salientar que
democrática é “a vinculação recíproca
205
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
“a igualdade pressupõe a diferença”, se
todos fossemos estritamente iguais “a
igualdade seria um dado e não uma
questão, um ponto de partida e não
um ponto de chegada, um constrangimento e não um objectivo”. Igualdade
significa igual valor entre diferentes,
o que implica a não discriminação, a
valorização da singularidade de cada
um numa unidade de iguais direitos
universais.
E a diferença está associada ao pluralismo, fundamento da democracia.
O povo é diverso e essa diversidade
“deve ser representada, pluralmente,
nas várias instituições de governo e
administração”. A diferença também
se relaciona com reconhecimento,
baseado no “conhecimento recíproco
entre as diferentes partes” e “respeito
mútuo”, consciente da possibilidade
de partilha de valores transversais. A
esquerda democrática não pode aceitar
o relativismo que nega a “possibilidade
de inter-avaliação crítica das culturas” e
da pertença a um quadro comum, mas
aceita a relatividade que comunica, que
clarifica e se abre ao outro, convidando
ao diálogo e à interpelação mútua.
A esse reconhecimento intercultural
dá-se o nome de cosmopolitismo, que
é uma “hospitalidade face às ideias e
seres diferentes”, que encara as diferenças como fonte de enriquecimento
e valoriza o universal que une e integra.
206
Deste modo a esquerda democrática
acolhe a diferença para a integrar num
quadro comum.
10ª Tese “Os valores da esquerda
democrática contrastam sobretudo com os valores do pensamento
conservador”
Depois de analisar os valores (teses 4
a 9) o autor aborda a identidade (teses
10 a 13) da esquerda democrática, em
contraposição com a direita conservadora, colocando os respectivos valores
em contraste. A direita tem como
valores constitutivos: a ordem, a autoridade e a segurança.
Ela encara a mudança social com
desconfiança e até hostilidade. A
ordem social e a tradição têm uma
superioridade intrínseca e devem ser
preservadas contra o risco de descontrolo e desintegração. Defende a
autoridade e deseja que seja a “hierarquia o princípio organizador” da
sociedade. Deseja um poder legítimo,
forte e protector. E também a segurança, como garantia da protecção da
pessoa e dos seus bens, de estabilidade
contra a “incerteza, o risco e o desarranjo”, e conformidade/conformação
do indivíduo perante o consenso
normativo da sua comunidade.
Como o autor refere, não se deve
PEDRO MIGUEL CARDOSO
justiça distributiva e a equidade.
A palavra colectividade também
suscita diferentes significados. Para a
visão conservadora recorda a “transmissão inter-geracional de um padrão
essencial”, de uma hierarquia. A
esquerda democrática “liga o sentido
11ªTese“Porseulado,opensamento de colectividade a uma projecção
conservador desconfia radicalmente da progressista do futuro e encara a colecconstelação de valores típica da esquerda tividade não como coesão pressuposta
mas sim como coesão conquistada” no
democrática”
espaço democrático.
E finalmente a diferença, que a
Para o contraste entre as duas
visões do mundo ficar claro, o autor direita conservadora tendeu sempre a
apresenta a posição da direita conser- ver “como uma ameaça potencial”.
vadora face aos valores constitutivos da
esquerda democrática.
12ª Tese “Mas a esquerda demoO pensamento conservador considera a liberdade como valor inferior crática também se opõe à esquerda
aos da ordem, da autoridade e da segu- conservadora e à direita liberal”
rança. A liberdade é vista com o foco na
Além das diferenças que separam
sua dimensão dita negativa, liberdade
a
direita
conservadora da esquerda
do indivíduo contra o Estado, contra
a sua intromissão na esfera privada, democrática há também diferenças
mas também liberdade de iniciativa significativas entre esta e a esquerda que
o autor apelida de “conservadora, para
económica.
No que diz respeito à igualdade, a além de autoritária”. Segundo ele há
direita conservadora encara-a como uma “convergência das forças oriundas
dimensão da liberdade, mas já não dos dois extremos do espectro político,
acompanha a esquerda democrática que desconfiam por sistema da transna consideração da igualdade como formação social”. Esta afirmação pode
ser melhor interpretada à luz da actual
condição da liberdade.
Em relação à justiça, enfatiza a vida política portuguesa e dirige-se
justiça comutativa (sancionar pela àqueles que encaram a reforma como
falta e reparar os danos) e desvaloriza a “uma tentativa de anular a ‘verdamenosprezar o poderoso efeito de
estruturação social que esta visão tem,
ancorada que está numa estrutura
mental, num “modo de considerar,
conhecer e interpretar o mundo”.
207
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
deira’ revolução”. Se a centralidade do
valor da liberdade é a grande diferença
que separa a esquerda democrática da
esquerda conservadora, já em relação à
direita liberal a esquerda democrática
distingue-se “pelo peso que concede
à redução das desigualdades por via da
política pública”.
“processo”, não de uma evolução pré-estabelecida regida por leis históricas,
mas acreditando na cumulatividade da
experiência e na melhoria das condições de vida da humanidade.
13ª Tese “A antropologia da
esquerda democrática é humanista,
racionalista, pró-activa e optimista”
Com a décima quarta tese entramos
no capítulo das aprendizagens.
Segundo o autor a esquerda democrática não é estática, questiona-se,
reajusta-se, em suma é dinâmica.
O debate político além de uma
confrontação de ideias, de uma
“demarcação recíproca”, é também
“um processo de influência mútua,
um diálogo a várias vozes”, uma
aprendizagem. A esquerda democrática ensinou mas também aprendeu
muito. Como é que ela “foi alterando
ou desenvolvendo o seu referencial
doutrinário em função da dialéctica
com as restantes correntes politicas”?
Na décima terceira tese, o autor
salienta que a esquerda democrática
revê-se “numa certa antropologia filosófica, numa certa concepção do ser
humano”. Baseada em quatro traços:
– É humanista, valorizando cada
pessoa e a sua igual dignidade no seio
da polis;
– É racionalista, valorizando a razão
crítica, devedora do Iluminismo, acreditando na capacidade do homem para
conhecer, compreender e intervir
sobre o mundo;
– É pró-activa, orientada para
o futuro, capaz de intervir e fazer,
apelando a uma pessoa que é sujeito/
actor e não mero produto ou agente de
determinações transcendentes;
– É também optimista, crendo
no homem e no progresso, não
no sentido hegeliano-marxista de
208
14ª Tese “As correntes políticas
aprendem entre si”
15ª Tese “Do diálogo com a
direita, a esquerda democrática
aprendeu a revalorizar o mercado, o
laço social e a segurança”
Segundo Augusto Santos Silva a
esquerda democrática saiu enriquecida
PEDRO MIGUEL CARDOSO
do diálogo com a direita em matérias
como o mercado, os laços sociais e a
segurança.
Ele constata que parte da esquerda
há muito que reconhece a economia
de mercado e tem como objectivo gerir
e regular o capitalismo em vez de o
querer eliminar. Salienta que alguns
dizem “que a fractura entre a esquerda
e a direita democrática está em que a
primeira aceita o mercado mas defende
o Estado e a segunda tolera o Estado
mas adora o mercado”. No entanto
propõe que a esquerda deve valorizar
o mercado como “instrumento útil
que se deve defender no campo de
acção que lhe é próprio, impedindo
ao mesmo tempo que hegemonize os
campos de acção que não são seus”.
Defende que é importante distinguir
entre economia de mercado e o capitalismo financeiro actual, “desregulado,
indiferente à produção efectiva de bens
e serviços socialmente úteis e obcecado
no curto prazo”. Considera ainda
que a democratização dos mercados
deve ser uma bandeira da esquerda
democrática.
No que diz respeita aos laços
sociais, a esquerda democrática “colhe
sobretudo nos terrenos da crítica
conservadora ao pensamento liberal
radical e das correntes liberais moderadas e anti-jacobinas”. Ela não deve
esquecer nem desprezar as origens.
Deve compreender as identidades e as
tradições como criações dinâmicas e
“pôr em evidência as unidades básicas
de integração e socialização e as redes
sociais primárias”, como as famílias, as
vizinhanças e as novas formas de constituição de redes (como as redes sociais
na Internet). Deve valorizar a liberdade e pluralidade religiosa e recusar
o banimento das religiões do espaço
público, defendendo no entanto radicalmente a laicidade e sendo inimiga
dos projectos teocráticos.
Em relação a outra aprendizagem,
a segurança, a esquerda de governo
há muito assimilou a importância
das funções de soberania do Estado.
No entanto ainda “ecoam estereótipos e preconceitos” que devem
ser combatidos (a bem dos valores e
ordem democrática). A segurança é
fundamental na garantia dos direitos
e liberdades dos cidadãos e deve ser
um instrumento ao serviço da igualdade social, contribuindo para a
inclusão social e integração cívica das
classes desfavorecidas. A esquerda
democrática reencontra as suas preocupações essenciais no conceito de
segurança, enfatizando a sua dimensão
de protecção intimamente ligada ao
bem-estar humano e a sua associação
à ordem constitucional democrática, ao esforço conjunto dos Estados
na reacção a agressões ou ameaças.
209
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
Recorrendo sempre que possível à
diplomacia e submetendo essa reacção
ao primado do direito internacional.
Recusando a tentação securitária,
salientando que as sociedades abertas
comportam algum grau de risco,
sendo até certo ponto “um preço a
pagar pela liberdade, a mobilidade, a
limitação do poder”.
16ª Tese “A esquerda democrática destaca, na atitude centrista,
a limitação do poder, a aceitação
da complexidade, a abertura, o
compromisso e a moderação”
O centro, como já foi referido,
apesar de não existir sozinho, não deixa
de existir e com relevância. Porque
esclarece a oposição interna no seio
dos grandes campos da esquerda e da
direita, e porque exprime a identificação com um conjunto de princípios
e atitudes:
– O princípio do governo limitado, vinculando o centro-esquerda
à matriz do liberalismo político.
Todos os poderes devem ter limites
impostos pela lei, pluralidade e
interdependência;
– A compreensão da complexidade
e a sua incorporação no pensamento,
propostas e acção;
– O sentido de abertura e inclusão
210
para uma mobilização de forças e
energias em torno de certos objectivos,
recusando o populismo, o sectarismo e o vanguardismo. Segundo o
autor há vários exemplos históricos
que demonstram que a esquerda
democrática ganhou quando soube
dirigir-se ao conjunto da sociedade
e soube construir plataformas entre
diferentes grupos (socioprofissionais,
confessionais, territoriais, culturais);
– O sentido e o gosto do compromisso. A esquerda democrática não
está apenas orientada para a crítica,
protesto e reivindicação social. Ela está
também orientada para o exercício de
responsabilidades de representação e
execução política. A opção pelo reformismo social e pela acção dentro do
sistema político-institucional procurando transformá-lo e não destruí-lo
a partir de fora, é uma “opção estratégica de fundo, que separou as águas no
interior do movimento operário oitocentista e não cessou de aprofundar-se
desde então”;
– E o valor da moderação, como
contraponto ao que na Grécia Antiga
se designava de hubris (excesso).
Significando aceitação da complexidade da realidade social que por isso
mesmo é “incompletamente apercebida e compreendida”, a assunção da
“relatividade, da finitude e da falibilidade das políticas” e a preferência
PEDRO MIGUEL CARDOSO
pelo progressismo democrático não
revolucionário.
A esquerda democrática defende
a mudança e é progressista, mas
desconfia dos projectos de engenharia social de “fabricação de uma
ordem num molde pré-definido e de
refundação sistémica do homem e da
sociedade”, que procuram o “homem
novo” e o “fim da história”. Foge das
utopias totalizantes mas tem a sua
própria utopia, no sentido de superação, de construção progressiva de
uma realidade onde as pessoas sejam
mais livres, iguais e solidárias.
17ª Tese “O dialogo entre as
esquerdas enriquece a abordagem
dos temas pós-materialistas, da
liberdade subjectiva, da participação,
do desenvolvimento sustentável e da
luta contra a exclusão”
No diálogo com a sua esquerda
(para quem “nem olha só, nem
olha preferentemente”), a esquerda
democrática também procura retirar
benefícios. E que temas podem estruturar tal diálogo?
O chamado pós-materialismo e
a “emergência de valores que já não
são imediatamente reconduzíveis às
oposições anteriormente conhecidas”
do debate político: que eram a questão
social (capital versus trabalho) e a
questão religiosa (Estado religioso versus
Estado laico). Questões relacionadas
com a liberdade e diferença individual
e grupal, e de relacionamento entre
sociedade e ambiente impuseram uma
nova agenda.
A importância das liberdades cívicas
e autonomia pessoal encaradas a partir
dos fundamentos da modernidade
política, nomeadamente do liberalismo político.
O desafio que a sociedade em
rede, resultante das inovações tecnológicas (particularmente a Internet),
coloca à actividade e iniciativa política.
A sociedade em rede potencia alguns
dos valores da esquerda democrática: acrescenta sentido e amplitude
à liberdade, redescobre o valor de
comunidade fazendo emergir novos
colectivos, sublinha os impulsos anti-hierárquicos, potencia a diferença
e a pluralidade das formas de ser e
interagir.
O desenvolvimento sustentável
também diz muito à esquerda democrática, na sua defesa dos bens colectivos
e a na apologia da diversidade. Segundo
o autor a esquerda democrática pode
aportar a certo ambientalismo uma
orientação progressista que procura
aliar sustentabilidade, inovação tecnológica, crescimento económico e
bem-estar social.
211
OS VALORES DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA – VINTE TESES OFERECIDAS AO
ESCRUTÍNIO CRÍTICO DE AUGUSTO SANTOS SILVA – EDIÇÕES ALMEDINA, 2010
E finalmente o combate contra “a
pobreza, a miséria social e moral, a
desestruturação e desvinculação social,
a exclusão pura e dura”, nomeadamente nas suas novas formas em locais
distantes como a África Subsariana, o
Sudeste Asiático e mesmo a América
Latina.
18ª Tese “A esquerda democrática é uma disposição: para ser
radical, realista, moderada, cosmopolita, performativa”
A partir da décima oitava tese,
entramos no quinto capítulo subordinado à questão: “O que se é?”
O autor começa por dizer que a
força singular do socialismo democrático é a sua capacidade para “combinar
valores provenientes de diversas
matrizes culturais e doutrinárias” e
que ela decorre da opção pela modernidade europeia, caracterizada pelo
humanismo, pluralismo, racionalismo
crítico, cultura científica e técnica,
e a inovação. Reside nesta opção o
“suporte da abertura ideológica e da
incorporação programática, na relação
com as outras grandes correntes políticas” e a sua capacidade dinâmica de
adaptação à evolução das sociedades. A
esquerda democrática é caracterizada
por várias disposições políticas:
212
– A disposição para ser radical na
defesa da liberdade e democracia, em
prol dos direitos humanos, primado
da lei e controlo de poderes;
– A disposição para ser realista:
prudente nas questões de soberania,
segurança e defesa. Céptica face àqueles
que “entendem que se pode fazer tábua
rasa da história, da geografia, das instituições sociais e dos padrões simbólicos
de comportamento de territórios
e populações” e procuram obrigar
outros povos a ser revolucionários ou
modernos, desconfiada dos “paraísos
prometidos, do fim da história ou da
harmonia universal”;
– A disposição para ser moderada,
procurando compromissos, lógicas
de institucionalização dos conflitos
e dando primazia aos meios pacíficos para gerir e resolver os conflitos
internacionais;
– A disposição para ser cosmopolita, de abertura ao mundo, não
receando a contemporaneidade e o
futuro;
– E a disposição para a transformação social, procurando a mudança,
agindo para mudar e transformar,
corrigindo injustiças, apostando em
pontos críticos, garantindo maior
autonomia e melhores condições de
vida a cada pessoa.
PEDRO MIGUEL CARDOSO
19ª Tese “A esquerda democrática é uma cultura”
As disposições referidas na tese
anterior são sobretudo exigências
colocadas à identidade e ao comportamento. São evidentes as tensões
que existem entre algumas delas. A
esquerda democrática é assim um
lugar incerto e complexo. É uma
cultura. Não apenas uma ideologia,
uma doutrina social, um movimento,
uma identidade. É também uma ideia
e um ideal, uma “forma cultural”
que “pertence à ordem propriamente cultural”, uma “reclamação de
mais cultura” e uma “proclamação de
cultura”. É um “apelo a um futuro outro”, uma “aventura de pensar e
tentar fazer uma realidade diversa da
que existe”.
A esquerda democrática é uma
ideia, um sistema de ideias, uma
vinculação a um mito fundador, uma
interpretação da história, um movimento social e um campo político.
Mas é ainda um ponto de vista e uma
linguagem, “uma disposição para o
debate social e político a partir de um
lugar e da sua perspectiva”, um “falar
de certo modo”, a “preferir certos
termos”, a “enunciar problemas e
soluções de certa maneira”, “uma dada
representação e desejo do mundo”,
uma “imagem e imaginação do
mundo”, para “compreender e dizer o
mundo, a outrem e com outrem”.
Em suma, uma leitura a não
perder.
20ª Tese “A esquerda democrática é uma linguagem”
A esquerda democrática deve ser
inserida no contexto da modernidade europeia e no quadro do debate
e competição política com a direita.
Estes dois conceitos são marcadores
que ajudam as pessoas a fazer escolhas,
a definir identidades e a reconhecer
valores sociais.
213
214
Portugal como Problema: Que Soluções?
Joaquim Jorge Veiguinha
B
oaventura Sousa Santos inicia
o prefácio do livro, Portugal:
Ensaio sobre a Autoflagelação
(Almedina, Coimbra, 2011)
com uma referência a José Ortega y Gasset
que define o sentido da sua mais recente
reflexão sobre Portugal e o seu provável
próximo futuro: “O filósofo espanhol
Ortega y Gasset dizia há cerca de um
século que o problema era a Espanha e a
solução era a Europa. Hoje não podemos
dizer o mesmo a respeito de Portugal,
pois se Portugal é o problema, a Europa,
esta Europa, tão pouco é a solução” (p. 7).
Portugal é actualmente um país
que sofre uma das crises mais graves da
sua história. Para Boaventura Sousa
Santos importa antes de tudo destacar
as dimensões desta crise que são essencialmente três: a dimensão financeira,
de curto prazo, a económica, de médio
prazo, e a político-cultural, de longo
prazo. A primeira é fundamentalmente
uma crise de endividamento, a segunda
resulta da sobrevalorização do euro relativamente a um padrão de especialização
centrado em bens de baixo valor acrescentado – Portugal exporta sapatos e
vestuário, mas não aviões –, a terceira, a
mais profunda, consiste na incapacidade
dos grupos dirigentes de se libertarem
de um passado em que um ciclo colonial
que apenas terminou nos anos setenta
do século XX gerou uma mentalidade
avessa a confrontar-se com situações
heterogéneas e inimiga dos desafios que
pudessem abalar a rotina instalada.
A condição semiperiférica de
Portugal dificulta extraordinariamente
a construção de uma alternativa aos seus
bloqueamentos. Actualmente, Portugal
é um país do centro se tivermos em
conta o seu modelo de consumo, os
avanços na esfera dos costumes, de que
se destacam as leis sobre a interrupção
voluntária da gravidez e o casamento dos
homossexuais, a taxa de actividade feminina, uma constituição política avançada
no plano dos direitos civis e sociais. No
entanto, não deixa de ser um país da
periferia, em consequência tanto do
baixo nível de qualificação da força de
trabalho, como de um plano de especialização centrado em actividades que os
países mais desenvolvidos já rejeitarem
ou transferiram para outras paragens –
o têxtil continua a ter um peso excessivo
nas nossas exportações –, e que sofrem
215
PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES?
já a concorrência dos países em vias de
desenvolvimento ou dos países emergentes – caso da China, por exemplo
– que beneficiam de salários ainda mais
baixos e de um euro sobrevalorizado
que corrói as nossas quotas de mercado.
Esta condição semiperiférica do país
assume uma dimensão histórica, o que
lhe confere um carácter estrutural: sem
receio de exagerar Portugal, foi durante
mais de dois séculos um ‘centro’ relativamente às suas colónias, mas uma
‘periferia’ relativamente à Inglaterra,
transformando-se mesmo numa
espécie de protectorado da velha Albion.
A revolução de 25 de Abril de 1974 com
os seus célebres três D’s – Democratizar,
Descolonizar, Desenvolver – constituiu a
grande oportunidade para que Portugal
pudesse superar a herança secular do
seu atraso. No entanto, primeiro, o
FMI em 1978, depois, o seu retorno
em 1983 contribuiu para hipotecá-la. A
integração de Portugal na CEE em 1986
não alterou, apesar da euforia inicial
e o acesso aos fundos estruturais, esta
herança que, a partir de 1993, e com a
integração no euro nos finais do século
passado, uma ‘fuga para a frente’ impulsionada pelo eixo franco-alemão, no
entender de Boaventura Sousa Santos,
começou a revelar todo o seu insustentável peso. Não conseguindo libertar-se
plenamente do seu passado de dependência, Portugal é um país sempre em
216
atraso relativamente à Europa.
Portugal e a Europa
Boaventura Sousa Santos distingue
três grandes momentos da evolução de
Portugal na sua relação com a Europa:
o momento de rejeição, o momento de aceitação e
o momento de tolerância ou de rejeição disfarçada
de aceitação. O primeiro inicia-se com a
Conferência de Berlim (1890) e com
o Ultimato britânico que assinala a
subalternização do colonialismo português relativamente às grandes potências
europeias e atinge o seu apogeu no
período posterior à Segunda Guerra
Mundial em que Portugal mantém um
império colonial, enquanto os outros
países europeus são confrontados com
processos de descolonização de que
despontam novas nações independentes
nos continentes africano e asiático. O
segundo inicia-se com o 25 de Abril
de 1974, que marca o fim do império
colonial português, e atinge o seu ponto
culminante com a integração do país na
União Europeia. Esta surge, no entanto,
mais como “resultado auspicioso de
novas rotinas impostas do exterior” (p.
52) do que como um projecto de construção da própria autonomia, acabando
por desembocar num “ciclo cimento
e betão”, o novo ‘ouro do Brasil’, em
detrimento de uma aposta prioritária
na educação e na inovação científico-tecnológica. O terceiro inicia-se com
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
a integração de Portugal na zona euro e
caracteriza-se pelo endividamento crescente do país que vai sendo financiado
por empréstimos contraídos no exterior
e que culmina, em 2011, com o plano
de austeridade negociado com o FMI,
Comissão Europeia e Banco Central
Europeu. Este plano marca tanto a sua
subalternização, como o seu desenquadramento no tempo: quando Portugal
tentava construir o seu Estado social,
entrava em crise, após a queda do Muro
de Berlim, o modelo social europeu
que, de certo modo, constituía, o seu
paradigma.
As medidas de austeridade a que o
país foi submetido têm consequências
catastróficas no plano social. O empobrecimento da classe média assalariada,
sobretudo dos seus estratos médios
e baixos, contribuirá para reduzir a
procura interna e para bloquear o crescimento económico e o emprego; o
enfraquecimento das redes de solidariedade informal – que Boaventura
Sousa Santos designa por “sociedade
providência” (pp. 72-78) – reforça o
isolamento e a exclusão social dos mais
débeis; o aumento do desemprego,
do horário de trabalho e a erosão do
trabalho com direitos contribui para
diminuir as expectativas futuras de
grande parte da população e torna-a
mais vulnerável à aceitação acrítica de
uma ideologia que considera inevitáveis
a redução dos salários para aumentar o
emprego; o aumento da desigualdade
de oportunidades juntar-se-á à já elevadíssima desigualdade social – 41,5%
da população portuguesa estaria, em
2009, em risco de pobreza se não existissem transferências sociais – com a
construção de um sistema de ensino a
duas velocidades – cursos profissionais
para ingressar no mercado de trabalho
para os mais carenciados e cursos de
prosseguimento de estudos para os que
desfrutam de um maior ‘capital cultural’
–, a formação de mega-agrupamentos
pedagogicamente desastrosos e inviáveis
no plano administrativo e a destruição
da escola de proximidade nas zonas
rurais e despovoadas. Em consequência,
sublinha Boaventura Sousa, “a escola
volta a estar, agora mais do que nunca, ao
serviço da reprodução das elites” (p. 64).
Alternativas
A alternativa a esta situação social e
política cada vez mais insustentável passa
pela passagem de uma “democracia de
baixa intensidade” a uma “democracia
de alta intensidade”. A primeira caracteriza-se pelo seu carácter representativo
e pela sua subordinação à hegemonia
do capital financeiro ou de ‘poderes
de facto’ que não são eleitos pelos cidadãos, mas que determinam, em última
instância, as políticas de austeridade
recessiva concebidas como uma inevi217
PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES?
tabilidade. A segunda centra-se no
princípio de “mobilização abrangente”
que combina a responsabilização dos
deputados e governantes perante os
eleitores com a emergência de novos
actores políticos de que se destacam os
sindicatos e os movimentos sociais e
sobretudo o conjunto de cidadãos não
convencionalmente organizados, mas
que se mobilizam com o objectivo de
recusarem uma situação de degradação
e precariedade sociais cada vez maiores:
“Quando os cidadãos se transformam
de praças de objectos em praças de
sujeitos, as instituições convertem-se rapidamente em miniaturas de si
mesmas e tudo fica mais ao alcance da
deliberação democrática ainda que só
por breves instantes” (p. 107).
Embora Boaventura Sousa Santos
tenha em mente movimentos do tipo
‘geração à rasca’, em Portugal, e 15-M,
em Espanha, e se aperceba que estes se
definem mais pela recusa do que pela
proposta de alternativas viáveis no plano
institucional, não é claro relativamente
à questão de como estes movimentos
podem passar do seu estado inorgânico
para o plano da “sociedade civil organizada”. A sua desconfiança relativamente
aos partidos políticos e aos sindicatos
retira-lhes capacidade efectiva de intervenção e tende a confiná-los a uma força
de protesto sem uma base de sustentação
sólida que lhes permita construir um
218
caderno reivindicativo minimamente
articulado. Não adianta dizer que, no
futuro, “não haverá esquerda; haverá
mosaicos de esquerda” (p. 106), já que
o principal limite para a construção
de uma alternativa à situação actual
consiste precisamente na incapacidade
de ‘federar’ a esquerda num projecto de
transformação social em que o momento
extra-institucional deve necessariamente
converter-se em momento político, sob
pena de se tornar ineficaz e de se cristalizar em reivindicações efémeras. Neste
sentido, Boaventura Sousa Santos apela
à “criação de múltiplas esferas públicas
onde a sociedade civil organizada em
associações e movimentos possa participar efectivamente na vida política
através de múltiplas formas de democracia participativa” (p. 104). Só assim,
se poderá evitar a “funcionalização da
democracia” representativa que gera
absentismo e indiferença política crescentes. No entanto, as diversas formas de
democracia participativa propostas por
Boaventura Sousa Santos – referendos
sobre aspectos decisivos da governação,
conselhos de cidadania, em que cidadãos sorteados são consultados sobre
políticas públicas relevantes, fiscalidade
participativa em que os contribuintes,
podem, a partir de um certo montante,
propor a orientação das receitas fiscais
para serviços socialmente relevantes
(educação, saúde) ou recusar a sua utili-
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
zação para outras finalidades (acções
bélicas, energia nuclear) (p. 104) –
pecam, se exceptuarmos o referendo
que, em certas situações pode ser objecto
de manipulações antidemocráticas, pela
ausência de um poder estruturado de
intervenção dos cidadãos sobre as principais decisões políticas.
Figura de esquerda, fenómeno cada
vez mais raro num país por enquanto
rendido à pretensa inevitabilidade das
medidas de austeridade recessiva do
governo PSD/CDS, Boaventura Sousa
Santos defende que se experimente uma
coligação de esquerda ‘inédita’ que junte
PS, BE e PCP. Esta coligação, apesar de
não poder eximir-se a aplicar medidas
para a redução do défice, deverá necessariamente negociar uma reestruturação
da dívida (pp. 82-83). Admiramos a
intenção do autor, mas não podemos
subscrevê-la. De facto, as tendências
social liberalizantes dos governos de
José Sócrates no plano económico,
não podem justificar a estratégia de
um Bloco de Esquerda que sempre
tentou ‘encostar’ cada vez mais o PS à
direita para crescer à custa do seu eleitorado, nem de um PCP cuja imagem
de marca continua a ser a de um insustentável sectarismo vanguardista a que se
acrescenta uma total incapacidade para
interpretar adequadamente a estrutura
de classes do cibercapitalismo dos anos
oitenta e noventa do século passado e
da primeira década do século XXI. Esta
incapacidade impede-o de se libertar
de rotinas e rituais estereotipados e,
por conseguinte, de propor formas de
luta eficazes para combatê-lo tanto no
plano sindical, como no plano político. Além do mais, estes dois partidos
aliaram-se objectivamente ao PSD e
ao CDS para derrubarem o governo
socialista, tornando-se, por conseguinte, cúmplices, apesar da sua retórica
esquerdista politicamente irresponsável, de Passos Coelho, o qual, afirmou
textualmente, numa entrevista ao Wall
Street Journal de 30 de Março de 2011,
que “o seu partido chumbou as medidas
de austeridade propostas pelo governo
socialista (PEC IV) por não irem demasiado longe” (p. 82). E a avaliar pelo
programa do governo PSD/CDS o
actual primeiro-ministro irá cumprir
a sua ‘promessa’, desmantelando o que
resta do Estado e das políticas sociais e
agravando ainda mais a desigualdade na
repartição dos rendimentos.
Relativamente à reestruturação da
dívida – o que Boaventura Sousa Santos
chama, juntamente com a sua renegociação, “desobediência financeira” (p.
87) –, Portugal, país periférico e insignificante em termos políticos, nunca
poderá avançar isoladamente. Os
exemplos de reestruturação referidos
por Boaventura Sousa Santos – o caso
argentino, islandês e, o mais antigo, o
219
PORTUGAL COMO PROBLEMA: QUE SOLUÇÕES?
caso alemão do pós-Segunda Guerra
Mundial via plano Marshall – não se
aplicam aos casos grego, português e
irlandês, países depreciativamente e
vergonhosamente apodados de ‘pigs’
pelo neoliberalismo dominante. As
crises destas nações são apenas, como
afirmou um articulista do Financial Times,
danos colaterais no ‘normal’ funcionamento dos mercados financeiros.
O mesmo não acontecerá se a crise da
dívida se estender às grandes economias
da zona euro, como é o caso da Itália
e da Espanha, ‘too big to fail’. Neste
caso, uma renegociação e reestruturação da dívida portuguesa terá fortes
probabilidades de ser efectuada, mas
por um governo que se preocupe com
uma repartição equitativa dos sacrifícios e por fomentar o desenvolvimento
económico e o emprego com direitos.
Talvez apenas no momento em que esta
situação na Europa se tornar socialmente insustentável cada um deixe de
bramar contra os mercados financeiros
quando a crise lhes bate à porta e decida
cooperar com os outros para pôr cobro
à ditadura monetarista do Banco
Central Europeu, à inanidade de uma
Comissão Europeia dirigida por um
presidente que nada tem a ver com o
espírito europeísta de Jean Monnet e
Robert Schumann e à cegueira política
de um governo alemão que continua a
pensar que só uma cura de austeridade
220
recessiva imposta aos outros poderá
preservar o seu modelo de exportação
e o equilíbrio das suas contas públicas.
Por isso, é necessário começar a construir uma ‘outra’ Europa.
Boaventura Sousa Santos tem consciência que Portugal não terá alternativa
no actual quadro da União Europeia.
É necessário, portanto, construir
uma nova Europa. No que é um dos
melhores capítulos da sua obra, o sociólogo e investigador da Universidade
de Coimbra considera que é necessário
“refundar o projecto de convergência
europeia através de uma estrutura mais
federalizante e assente em processos de
eleição directa para os principais órgãos
de governo” (p. 131). Deve sublinhar-se
a importância da ‘estrutura federalizante’, já que só uma solução deste
tipo poderá promover os processos de
cooperação necessários para permitir
enfrentar os ataques da finança especulativa que exploram com sucesso a
contradição entre uma moeda comum
e a existência de taxas de juros diferenciadas das obrigações do tesouro dos
diversos países da zona euro. Enquanto
a União Europeia constituir apenas
um grande mercado sem uma base de
sustentação num orçamento digno
desse nome e for adiada a construção
de uma união política sem a qual todas
as formas cooperativas de combate à
crise e à ditadura das agências de rating
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
não terão possibilidade de sucesso,
Portugal, a Irlanda e a Grécia não
poderão sair do ‘buraco negro’ em que
se encontram mergulhados. A emissão
de eurobonds será o primeiro passo para
encetar um processo de combate à
finança especulativa e para reforçar
a ideia de que a Europa só se salva se
todos os países forem tratados de modo
igual e nenhum for relegado para uma
condição cada vez mais periférica em
consequência do agravamento das
medidas de austeridade recessiva que
não apenas bloqueiam o aumento do
emprego e do crescimento económico,
mas também tornam objectivamente
impossível o pagamento dos juros
exorbitantes das suas dívidas públicas.
A federalização da Europa só poderá
ter sucesso se for acompanhado por um
processo de ‘desfinanceirização’ do velho
continente (pp.132-34). Boaventura
Sousa Santos defende algumas medidas
importantes no plano fiscal e tributário:
aumento dos impostos sobre o capital
financeiro e sobre os grandes patrimónios, proibição dos paraísos fiscais,
retoma da tributação progressiva sobre
os rendimentos e redistribuição dos
impostos indirectos no sentido de aliviar
o consumo de bens de primeira necessidade e de punir o consumo ostentatório.
Estas medidas devem ser complementadas pela reestruturação da dívida, pela
proibição da socialização pública das
dívidas privadas e pelo combate à especulação financeira sobre as moedas e
os títulos do tesouro. O quadro destas
medidas completa-se pela substituição
do pacto de estabilidade e crescimento
por um pacto de solidariedade para o
emprego e a ecologia e pela alteração
do estatuto do Banco Central Europeu,
de modo a que este deixe de ser refém
dos bancos comerciais e das agências de
rating para se transformar num agente de
financiamento das economias dos países
que se encontram em dificuldades.
Porém, a Europa também não pode
ser separada das suas relações com os
outros continentes. Para Boaventura
Sousa Santos, é necessário ‘desmercadorizar’ o mundo (pp. 147-50) através
da aposta num desenvolvimento sustentável sem o qual caminhamos a passos de
gigante para o desastre ecológico, evitar
a formação de uma sociedade submetida
ao império das transacções mercantis,
promover uma nova geração de direitos
fundamentais – direitos sobre a água, a
terra, a biodiversidade e os bens comuns
–, proibir a especulação financeira
sobre a terra e os alimentos e integrar
a redução da jornada de trabalho entre
as medidas de fomento do emprego. Só
assim, se poderá responder aos desafios
perante os quais Portugal está confrontado no médio e longo prazo sem cair
na nossa tradicional tendência para a
autoflagelação.
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REVISTAS RECEBIDAS
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4º trimestre 2010
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1º trimestre 2011
Humanística e Teologia, Revista da Faculdade de Teologia, Porto, Dezembro 2010
Humanística e Teologia, Revista da Faculdade de Teologia, Porto,Julho de 2011
ParoleChiave, nº44, Carocci editore, Roma, Dezembro de 2010
Revista dos Assuntos Eleitorais, Cadernos da Administração Interna, Lisboa, Outubro 2010
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Setembro 2010
Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Julho-Dezembro 2010
Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Janeiro-Julho 2011
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Novembro-Dezembro 2010.
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Janeiro-Fevereiro 2011
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Março-Abril 2011
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Maio-Junho 2011
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O SOCIALISMO DO FUTURO*
DOSSIER EUROPA
A IDEIA DE REVOLUÇÃO
REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ
O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA
A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL
DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO
DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?
O REGRESSO DOS NACIONALISMOS
A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?
O FIM DA POLÍTICA?
AMÉRICA! AMÉRICA!
A ALEMANHA E A EUROPA
A EUROPA, NÓS E OS OUTROS
A ESPANHA E NÓS
O FIM DE UM CICLO
A EUROPA E NÓS
VÁRIOS TEMAS
POR UMA EUROPA À ESQUERDA
O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?
O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO
REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS
O REGRESSO DO POLÍTICO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS
A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO
O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA
ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?
JUSTIÇA FISCAL
A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO
A EUROPA DEPOIS DE NICE
A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO
O MUNDO EM CRISE
SER MINORIA, HOJE
A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA
A CRISE MUNDIAL
UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA
O ISLÃO E A MODERNIDADE
EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?
OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA
ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS
LIBERALISMO E DEMOCRACIA
PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL
A EUROPA DEPOIS DE LISBOA
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO
AS REBELIÕES ÁRABES
1989
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2008/9
2009
2009
2010
2011
*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10
anos antes, publicados no nº 1)
NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de
25% de desconto na aquisição de cada exemplar.
Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto.
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«Finisterra»: a Revista de Reflexão e Crítica
Assinatura: anual (quatro números)
Estrangeiro
Normal: 40€
Instituições: 52€
Europa: 103€
Apoio: 58€
Estudantes: 25€
Fora da Europa: 117€
Considerem-me assinante da «Finisterra» a partir do n.º
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