Oftalmologia (suplemento) - Vol. 36 Oftalmologia REVISTA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE OFTALMOLOGIA Suplemento Nº 1 | Vol. 36 | 2012 Editor José Henriques [email protected] Conselho Redactorial António Campos Cristina Seabra Isabel Lopes Cardoso João de Deus João Segurado Marinho Santos Olga Berens Pedro Cruz Ricardo Faria Rui Proença Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Comissão Central Presidente Manuela Carmona Vice-Presidente Paulo Torres Tesoureiro Augusto Magalhães Vogais Eduardo Silva Rufino Silva Conselho Fiscal Manuel Vinagre Luís Agrelos João Filipe da Silva Coordenadores das Secções da S.P.O. Grupo Português de Retina-Vítreo João Nascimento Grupo Português de Inflamação Ocular Ana Paula Sousa Grupo Português de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo Rita Dinis da Gama Secretária-Geral Adjunto Ana Amaral Cirurgia Implanto-Refractiva de Portugal Francisco Loureiro Secretário-Geral José Pedro Silva Grupo Português de Contactologia Miguel Amaro Mesa da Assembleia Geral Presidente Jorge Breda Vice-Presidente Nuno Canas Mendes Grupo Português de Glaucoma Manuela Carvalho Grupo Português de Neuroftalmologia Ivone Cravo Grupo Português de Patologia, Oncologia e Genética Ocular João Cabral 1ª Secretária Sandra Moniz Grupo Português de Ergoftalmologia Fernando Bivar 2° Secretário Barros Madeira Editor da página da S.P.O na Internet Helena Filipe SUBLINHADO Publicações e Publicidade Unipessoal - R. Prof. Vieira de Almeida, 38 - Lj. A - Bloco B - Piso 0 - 1600-371 LISBOA - Tel.: 21 757 81 35 | Depósito Legal 93 889/95 - ISSN 1646-6950 Suplemento - Nº 1 - 2012 | I Oftalmologia (suplemento) - Vol. 36 Índice Artigos de Revisão Epidemiologia do Glaucoma - Revisão. 1 José Guilherme Monteiro Artigos Originais Custo do Glaucoma em Portugal. 25 Ana Miguel, Luís Azevedo, Rui Andrês, Filipe Henriques, Nádia Lopes, Filipe Rito, João Filipe Silva Qualidade de Vida no Glaucoma. 33 Ana Miguel, João Filipe Silva, Luís Azevedo, Filipe Henriques, Rui Andrês, Nádia Lopes, Filipe Rito, António Roque Loureiro A Córnea na Síndrome Pseudo-Esfoliativa: Topografia e Microscopia Confocal In Vivo. 41 A. Duarte, V. Maduro, N. Alves, J. Feijão, C. Batalha, P. Candelária, M. Trigo Ausência de pulsatilidade venosa espontânea como factor de risco no glaucoma normotensional. 53 L. Abegão Pinto, Evelien Vandewalle, Carlos Marques-Neves, Thierry Zeyen, Ingeborg Stalmans Suplemento - Nº 1 - 2012 | III Oftalmologia (suplemento) - Vol. 36: pp.1-22 Artigo de Revisão Epidemiologia do Glaucoma - Revisão José Guilherme Monteiro Chefe de Serviço Hospitalar, Ex-Director do Serviço de Oftalmologia do Hospital Pedro Hispano (Matosinhos) Ex-Professor de Oftalmologia da Universidade do Porto (ICBAS) Fellow do Royal College of Ophthalmologists Este trabalho não foi publicado previamente, no todo ou em parte. Cedem-se os direitos de autor relativos a este trabalho à Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Resumo Objectivo: Revisão da epidemiologia dos glaucomas. Desenho do Estudo: Revisão bibliográfica. Métodos: Pesquisa na PubMed das palavras “epidemiologia”, “prevalência”, ”incidência”, “população” “glaucoma de ângulo aberto” (GAA), “glaucoma de ângulo fechado” (GAF), “glaucoma congénito”. Resultados: Observaram-se discrepâncias conforme os métodos usados e grupos etários estudados. O glaucoma era desconhecido por grande percentagem dos doentes, era ligeiramente mais frequente na mulher e a prevalência aumentava com a idade. Globalmente, calcula-se uma prevalência cerca de 2%, atingindo após os 70 anos 6% na população branca, 16% na negra e 3% na asiática. No adulto, o GAA era o mais frequente, com importância proporcional diferente entre as etnias; apesar da menor prevalência, o GAF era responsável por maior perda visual grave ou cegueira. Dados recentes sugerem que na população europeia, o GAF representa 20 - 25% do total dos glaucomas primários; na população indiana é mais frequente que na europeia, mas o GAA predomina 3:1. O GAA também representa 2/3 do total na população chinesa ou relacionada; exceptuam-se a Mongólia e os Inuit, onde predomina o GAF. No Japão o GAA é de tensão normal em 75% dos casos. Finalmente, o glaucoma congénito primário é o mais frequente dos glaucomas da infância – aparece em qualquer grupo populacional, é mais frequente nas populações com elevado grau de consanguinidade e um pouco mais no sexo masculino. Conclusões: O GAA é o mais frequente a nível mundial, ao contrário do que era considerado; o GAF e o glaucoma congénito têm maior potencial para originarem perda visual grave. Palavras-chave Epidemiologia do glaucoma; Glaucoma de ângulo aberto; Glaucoma de ângulo fechado; Glaucoma congénito; Revisão. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 1 José Guilherme Monteiro Abstract Glaucoma epidemiology. A review. Objective: Review of the epidemiology of the glaucomas. Study Design: Literature review. Methods: : PubMed search of the key words “epidemiology”, “prevalence”, “incidence”, “population”, “open-angle glaucoma” (OAG), closed-angle glaucoma” (CAG), “congenital glaucoma”. Results: There were discrepancies, according to the methods used and age groups studied. The previous existence of glaucoma was ignored by a large percentage of patients, was slightly more common in women and the prevalence increased with age. Overall, a prevalence of approximately 2% is estimated, reaching after the 70 years 6% in white population, 16% in the black and 3% in the Asian. In adults, OAG is the most frequent, with variable proportional importance in different ethnic groups; despite the lower prevalence, CAG is responsible for more severe visual loss or blindness. Recent data suggest that in the European population, CAG represents 20 - 25% of all primary glaucomas; in the Indian population it is more frequent than in Europe, but OAG predominates by 3:1. The OAG also represents 2/3 of the total in Chinese population or related; Mongolia and the Inuit are exceptions, CAG being predominant. In Japan the OAG is normal tension in 75% of the cases. Finally, primary congenital glaucoma is the most common glaucoma of childhood – it occurs in any population group, is more frequent in populations with a high degree of consanguinity and slightly more in males. Conclusions: Worldwide, OAG is the more frequent, contrary to what was considered; CAG and congenital glaucoma have greater potential for generating severe visual loss. Key-words Glaucoma epidemiology; Open angle-glaucoma; Angle-closure glaucoma; Congenital glaucoma; Review. I – Introdução O glaucoma é reconhecido como uma patologia com morbilidade e custos sociais elevados e crescentes120, constituindo a nível mundial a segunda causa de cegueira (a seguir às cataratas) e a primeira causa de cegueira irreversível124. Apesar das lacunas ainda existentes no conhecimento global da situação, as projecções apontam para valores de 60,5 e 79,6 milhões de doentes com glaucoma, respectivamente em 2010 e 2020125; calcula-se ainda que actualmente cerca de 3% da população mundial com mais de 40 anos de idade tem glaucoma, numa grande parte dos casos não diagnosticado. O glaucoma tem, desde as fases iniciais da doença, um impacto significativo na qualidade de vida dos doentes, que se acentua com a progressão dos danos; paralelamente há também uma sobrecarga económica crescente, pessoal e social. Por estes motivos, a identificação e tratamento precoces são importantes, por serem susceptíveis de atenuar estes inconvenientes. A perda visual do glaucoma, 2 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia representa a nível mundial 10%124 a 13,5% dos casos de cegueira bilateral153, calculando-se que numa população americana predominantemente caucasiana 20 anos após o diagnóstico de glaucoma de ângulo aberto (GAA) 27% ou 9% dos doentes apresentam cegueira, respectivamente uni ou bilateral63. Apesar de tudo, só nas últimas décadas foi possível começar a dispor de dados epidemiológicos suficientemente fiáveis para estabelecer um padrão global18,30,39,40,45,53,54,56,71,77, 80,145,161 . É amplamente reconhecida a importância de factores genéticos na maior ou menor incidência e prevalênciaA das diversas formas de glaucoma num determinado local, mas a crescente mobilidade populacional em larga escala e a miscigenação daí resultante é cada vez mais elemento de confusão. São exemplos a maior frequência do glaucoma de ângulo fechado (GAF) nas populações derivadas da etnia chinesa52,147,165, a elevada percentagem de glaucomas de pressão normal nos japoneses ou seus descendentes77,143,147 Epidemiologia do glaucoma. Revisão. ou o aparente aumento da prevalência do glaucoma na população indígena da Austrália30. Por vezes a importância da genética é mais subtil e só se torna aparente com resultados de estudos laboratoriais. Assim, a população saudita com ADN mitocondrial de origem africana tem maior risco de GAA1, ao passo que numa população caucasiana da Austrália a presença de variantes da MMP9 parece relacionar-se com o glaucoma primário de ângulo fechado (GPAF)B 12. Os resultados epidemiológicos podem também ser falseados pelos componentes da síndrome metabólica, um aspecto a ter em conta atendendo à alteração do padrão metabólico das populações que se tem observado nos últimos anos. Os resultados existentes sugerem que a diabetes e hipertensão arterial aumentam e a hiperlipidemia reduz o risco de GAA114, podendo o efeito protector da obesidade limitar-se ao sexo feminino130. De modo análogo, as intervenções terapêuticas podem interferir nos resultados dos estudos epidemiológicos. Por vezes, quando o glaucoma é o alvo do tratamento, o resultado é previsível – é o que sucede com a redução dos casos de GAF quando é feita iridotomia profiláctica nos olhos propensos41,139. Menos evidentes e muitas vezes ignoradas são as consequências na epidemiologia do glaucoma de terapêuticas usadas em larga escala para outras patologias. São exemplos a redução dos GAF após a cirurgia de catarata28, e a possível redução do risco de GAA com o tratamento prolongado da hipercolesterolemia com estatinas103. Finalmente, é preciso considerar as consequências de limitações orçamentais na elaboração dos protocolos de estudo. Mais ainda, a diferença de critérios entre estudos publicados não facilita a determinação da verdadeira incidência e prevalência do glaucoma55,61,91 e torna muitas vezes difícil uma comparação adequada dos resultados. Pode simplesmente resultar do estudo de grupos etários diferentes – na maior parte dos casos é referida a prevalência em grupos com idade igual ou superior a 40 anos83,147,178, mas também se encontram referências a grupos com idade igual ou superior a 20 anos95, a 504,84, ou a 60 anos132,158. Pode também dever-se ao recurso a diferentes métodos de estudo, como a utilização ou não dos resultados da perimetria67,134. Neste aspecto é particularmente interessante o trabalho de Wolfs et al.170, que mostrou que a aplicação dos critérios usados em vários estudos aos dados de uma mesma população originava valores de prevalência que variavam entre 0,1% e 1,2%. Deve ainda considerar-se a variabilidade resultante das diferentes definições de glaucoma adoptadas em cada caso – a título de exemplo pode-se referir, em relação ao GAA, que alguns autores separam o glaucoma pseudo-esfoliativo do glaucoma primário49,87, enquanto outros não fazem a distinção21,107 e outros ainda consideram o glaucoma pseudo-esfoliativo como uma subcategoria do glaucoma primário. Assim, face às limitações referidas, torna-se necessário referir os resultados epidemiológicos a determinado período temporal, para minimizar as consequências das indefinições referidas. Esta revisão teve por base uma pesquisa na base de dados PubMed, do National Center for Biotechnology Information, U.S. National Library of Medicine. Procuraram-se as palavras “epidemiologia”, “população”, “prevalência”, ”incidência”, “glaucoma de ângulo aberto”, “glaucoma de ângulo fechado”, “glaucoma congénito”. A pesquisa foi efectuada em Dezembro de 2009 e feita uma última actualização em Janeiro de 2012. II – Classificação A classificação dos glaucomas pode basear-se em vários critérios: idade de início (congénito, infantil, juvenil, ou do adulto), características anatómicas relacionadas com o mecanismo de elevação tensional (ângulo aberto ou ângulo fechado), etiologia (primário ou secundário) ou ainda no valor da pressão ocular (de pressão elevada ou de pressão normal). Cada um destes critérios tem as suas vantagens e limitações e pode mesmo ser arbitrário. Por exemplo, considera-se que nos glaucomas primários, em regra bilaterais e muitas vezes de causa genética, apenas estão implicadas alterações das vias de drenagem e escoamento do humor aquoso, sem influência de outros factores oculares ou sistémicos; pelo contrário nos glaucomas secundários, que podem ter ou não causa genética e serem uni ou bilaterais, é possível identificar uma causa. No entanto esta divisão é cada vez mais arbitrária à medida que os conhecimentos da morfologia, da fisiopatologia e sobretudo da genética se vão aperfeiçoando. A divisão baseada no conhecimento da amplitude do ângulo iridocorneano é importante, porque orienta as opções terapêuticas numa dada direcção, enquanto o conhecimento de que se trata de um glaucoma de aparecimento precoce sugere pior resposta à terapêutica. Mas as divisões podem não ser tão lineares como a classificação faz supor, por ser possível a existência de quadros de sobreposição. Como exemplo, pode apontar-se o glaucoma, que aparece na artrite reumatóide juvenil, no qual se pode associar um GAA devido à utilização intensiva de corticosteróides, com um encerramento do ângulo pela formação de sinéquias devidas ao processo inflamatório primário. Estas dificuldades não são mais do que a tradução do conhecimento incompleto dos mecanismos genéticos e fisiopatológicos dos diversos glaucomas, pelo que é natural que Suplemento - Nº 1 - 2012 | 3 José Guilherme Monteiro progressivamente nos aproximemos de uma classificação menos discutível, mais coerente e que permita reconhecer aspectos potencialmente conducentes ao glaucoma antes de aparecerem as alterações irreversíveis. A primeira classificação utilizada na prática foi proposta por Barkan em 193813 e baseava-se nas características anatómicas do ângulo. Esta divisão foi rapidamente adoptada pela sua importância na terapêutica, já que a iridectomia nas fases precoces dos casos de ângulo fechado (ou a sua utilização profiláctica) em regra resolvia a situação, o que não sucedia nas formas de ângulo aberto. Esta classificação anatómica foi sendo melhorada ao longo dos anos, mas os resultados nem sempre tiveram relevância clínica. Assim, se nas formas de ângulo fechado a divisão em glaucoma com bloqueio pupilar ou sem bloqueio pupilar se revelou importante, o mesmo não sucedeu quanto aos GAA. De facto, se a divisão destes em forma pré-trabecular, trabecular ou pós-trabecular, de acordo com a localização da obstrução ao escoamento, tem importância fisiopatológica, já em relação à sua utilidade clínica o interesse é menor. Numa tentativa de ultrapassar as dificuldades, Shields141 propôs a existência de uma sequência de cinco passos em que um evento inicial iria alterar as vias de escoamento do humor aquoso e originar o aumento da pressão intra-ocular (PIO), com consequente atrofia óptica e perda visual. Nesta sequência os dois primeiros degraus permitem distinguir os diferentes glaucomas uns dos outros, constituindo os degraus subsequentes uma via comum, embora com características variáveis (nível da pressão ocular, sua duração e velocidade de aumento, resposta individual). Mais tarde, o reconhecimento da existência de factores não dependentes da pressão (por exemplo, vasculares, da estrutura do nervo óptico ou do metabolismo das células ganglionares), particularmente evidentes nos casos de glaucoma de pressão normal (GPN), levou a modificar a cascata inicial de modo a incluir estes factores. Apesar de algumas vantagens, a sequência proposta por Shields tem muito de artificial. É evidente que a identificação do evento inicial (incluindo não só os da via dependente da pressão, como os das vias não dependentes da pressão) poderia muitas vezes permitir uma actuação mais precisa e eventualmente mais precoce. É o que sucede nos casos de isquemia retiniana, em que a fotocoagulação pode impedir a formação de neovasos do ângulo camerular e o aparecimento de um glaucoma neovascular92; mas é preciso reconhecer que a identificação do evento inicial está longe de ser a norma. Considera-se actualmente que só se deve falar em glaucoma quando é possível identificar alterações específicas do campo visual e/ou do disco óptico e camada de fibras 4 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia nervosas. Mas a capacidade de detecção de alterações depende dos meios técnicos disponíveis. Basta recordar a diferente sensibilidade da perimetria cinética manual e da perimetria estática computorizada na detecção dos defeitos campimétricos iniciais. Por esta razão e de acordo com os critérios actuais, um doente que hoje é definido, com base nos campos visuais, como tendo um glaucoma provavelmente seria considerado normal há umas dezenas de anos. A aceitação do evento inicial põe ainda o problema da definição do que é o glaucoma de uma forma mais aguda – admitindo que antes do aparecimento de qualquer alteração anatómica ou funcional fosse possível identificar um evento inicial que irremediavelmente conduzisse a alterações visuais (na ausência de tratamento adequado), como deveria ser classificado esse indivíduo? Seria de considerar como uma pessoa normal, sem patologia, ou, pelo contrário, já como um doente com glaucoma? Ainda dentro do esquema de Shields, a classificação pode em alternativa ter por base o mecanismo de obstrução ao escoamento do humor aquoso. Também neste caso a solução não é a ideal. É evidente que os conhecimentos relativos à obstrução do escoamento são mais completos e a sua identificação é importante para delinear as estratégias terapêuticas necessárias à redução da PIO; no entanto, para além de poderem existir vários mecanismos de obstrução concomitantes, ignora os factores não dependentes da pressão. Na prática corrente actual a classificação adoptada pela European Glaucoma Society49, resulta de um misto dos vários aspectos considerados no início. Mas é de notar que, por vezes, quadros clínicos que aparentemente estão num contínuo se encontram separados na classificação – é o que sucede com os glaucomas primários congénito e infantil, juvenil e do adulto. Embora não seja uma classificação perfeita e indiscutível, pode considerar-se que actualmente é uma classificação que se aproxima das necessidades e objectivos da clínica. III – Âmbito da revisão Dentro dos glaucomas do adulto, os glaucomas secundários constituem um grupo importante, pela sua prevalência relativamente elevada. Quigley124 calcula que os glaucomas secundários representam globalmente 20% dos glaucomas, Gadia et al.58 referem 21,8% e Biglan20 refere que nas crianças são 21,1% do total; mas encontram-se valores que vão de um mínimo de 10%174 a 33% na Finlândia151 e a cerca de 60% em alguns grupos populacionais95. Os glaucomas secundários têm ainda uma importância Epidemiologia do glaucoma. Revisão. particular que advém da possibilidade, em muitos casos, de evitar danos glaucomatosos se não se esquecer o risco do seu aparecimento e se a causa primária for devida e precocemente tratada. No entanto, os glaucomas secundários constituem um grupo muito heterogéneo, quer no que respeita à sua distribuição etária, quer à sua etiologia e características, quer ainda aos mecanismos patológicos implicados (com importância variável em cada um deles dos mecanismos de ângulo aberto e de ângulo fechado). Esta heterogeneidade é evidente no quadro 1, que resume os resultados de uma das maiores séries de glaucomas secundários58. Os resultados devem no entanto ser encarados com alguma reserva por o grupo populacional estudado (Índia) não corresponder inteiramente à realidade existente entre nós. Por exemplo, neste grupo a relação homem:mulher é de 2,2:1, mas é preciso não esquecer que as limitações sociais existentes restringem o acesso dos doentes do sexo feminino aos centros de tratamento diferenciados. Por outro lado, há patologias que dão lugar a glaucoma secundário com muita frequência e que têm apreciável importância entre nós, ao contrário do que sucede na Índia. É o caso da polineuropatia amiloidótica familiar108,109,112,113. Pelas razões apontadas, nesta revisão os glaucomas secundários apenas serão considerados ocasionalmente. Será feita uma excepção para o glaucoma pseudo-esfoliativo (ou esfoliativo), atendendo à semelhança entre os seus aspectos clínicos (por exemplo, as alterações campimétricas) e os do glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA), assim como à ambiguidade ainda existente em relação à sua classificação. As duas formas do glaucoma do adulto têm uma importância variável de acordo com a área geográfica considerada: enquanto o GAA tem uma distribuição mais ou menos global, o de ângulo fechado tem maior preponderância nos países asiáticos e populações daí provenientes, apesar de a sua prevalência nos países ocidentais estar subavaliada. Esta observação sugere maior propensão para uma ou outra das formas de glaucoma conforme a etnia considerada. Em consequência, a atribuição de meios e dos recursos diagnósticos e terapêuticos não será necessariamente a mesma em diferentes locais e para diferentes povos. Há ainda que considerar o glaucoma congénito. Apesar da sua pequena frequência, as graves consequências da sua não identificação e tratamento atempados justificam que seja devidamente considerado. IV - Glaucomas primários do adulto Apesar das dificuldades de definição dos quadros, os estudos populacionais apontam para valores elevados de incidência e prevalência do glaucoma96. Estes valores estão sujeitos a variação geográfica ou étnica133,151,154, mesmo em populações de características bastante semelhantes. Em 1989, em populações nórdicas com mais de 40 anos de idade, a prevalência variava entre um mínimo de 0,76% na Dinamarca e um máximo de 2,19% na Noruega62. Acresce que o padrão da lesão glaucomatosa parece diferir entre o GPAA e o de ângulo fechado crónico, o que pode falsear a identificação e contagem destes últimos117. Sob o ponto de vista epidemiológico, o glaucoma apresenta aspectos preocupantes. Em primeiro lugar, a sua distribuição. Em 1996 Quigley124 admitiu que a nível mundial o número de GAA ou GAF pudesse ser igual; posteriormente, Quigley e Broman125 sugeriram um valor diferente, correspondendo o GAA a 74% do total. Mas enquanto o GPAA predomina nas populações de origem europeia ou africana, geralmente considera-se o GPAF típico das populações de etnia chinesa e o GPN mais frequente nos japoneses. Em segundo lugar, constata-se um aumento progressivo da prevalência de glaucoma ao longo do tempo, o que pode Quadro 1 | Distribuição percentual dos glaucomas secundários mais frequentes, de acordo com o grupo etário. Adaptado de Gadia et al., 200858 Idade Total % Afaquia e Pseudofaquia Pós-vitrectomia Traumático Patologia da Córnea Outros 0-20 25 17 13 26 13 31 21-40 27 8 19 15 13 45 41-60 30 14 12 7 14 53 >61 18 43 15 3 7 32 100 21 14 13 12 40 TOTAL Suplemento - Nº 1 - 2012 | 5 José Guilherme Monteiro ser atribuído à melhoria dos meios de diagnóstico disponíveis, mas também a factores populacionais como a alteração da proporção das diferentes etnias e o rápido envelhecimento generalizado da população27,33,51. Depois, é um achado quase constante em todos os estudos, mesmo nos mais recentes, a existência de uma alta percentagem de casos não identificados previamente, que nos países não desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento pode atingir mais de 90% do total118,131,135 ou mesmo quase 100%162. Este desconhecimento da doença também se verifica, embora em menor grau (da ordem dos 50%), nos países mais avançados45,107,124,145,157,170. Como exemplos recentes podem citar-se os resultados do estudo epidemiológico de Toronto4 e os obtidos em França em 2006 – enquanto a prevalência de doentes em tratamento era de 5,3% na região parisiense, nas áreas rurais ficava pelos 3,2%43. Esta elevada percentagem de glaucomas não identificados previamente é certamente influenciada por vários factores, entre os quais se destacam a idade, o nível educacional baixo e as deficientes condições económicas137. Finalmente, é reconhecido que o GAF é uma causa de cegueira mais frequente que o GAA, apontando-se para uma diferença de 10 vezes54,124,126,175. Foster51 calcula que na China haja 9,4 milhões de indivíduos com mais de 40 anos com neuropatia óptica glaucomatosa, dos quais 5,2 milhões seriam cegos pelo menos de um olho e 1,7 milhões cegos bilaterais. É sugerido que na China o GAF seja responsável por mais de 90% dos casos de cegueira bilateral52, com percentagens um pouco inferiores em Singapura101 e em Myanmar26. O drama do GAF é que se esta patologia pode transformar em pouco tempo um olho normal num olho cego e doloroso, é também uma patologia que pode ser facilmente tratada com os meios actualmente disponíveis. Realmente, a iridectomia cirúrgica101 e posteriormente a iridotomia com o laser YAG79,116 permitiram uma redução drástica dos casos de cegueira por GAF. Não deixa de ser importante realçar a importância da iridotomia YAG profiláctica41,152, particularmente quando estão em causa populações muito dispersas, como sucede na Mongólia ou na Groenlândia. Mas a eficácia da iridotomia profiláctica não permite que se descure a vigilância subsequente, por 10 anos após o tratamento uma crise de glaucoma agudo se observar a existência de neuropatia glaucomatosa em cerca de metade dos doentes tratados9. A – Populações de origem europeia ou africana Na Europa, nos países nórdicos, os glaucomas primários representam 2/3 do total dos glaucomas do adulto, com ligeira predominância do sexo feminino (relação M:F – 1:1,3). Na população da Finlândia a prevalência do GPAA 6 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia foi calculada em cerca de 0,67%, aumentando com a idade – de 1,7% após os 40 anos para 6,1% após os 70 anos; em paralelo, é referido, na Suécia, um aumento da prevalência de 1% por cada 5 anos, a partir de um valor inicial de 2% aos 70 anos18,151. Mais significativos, por se tratar de um mesmo grupo de indivíduos da Suécia setentrional seguido ao longo de 21 anos, são os resultados de Aström et al.7,8, que revelaram um aumento da prevalência do GAA de 2,1% aos 66 anos para 25% aos 87 anos, com uma incidência anual de 0,9%. Observaram ainda uma prevalência muito elevada de pseudo-esfoliação, cerca de duas vezes maior na mulher, que aumentava de 23% aos 66 anos para 61% aos 87 anos, com uma incidência anual de 1,8%. Constataram também que em 59% dos doentes com glaucoma se observava pseudo-esfoliação, e que a sua existência aumentava 4 vezes o risco de glaucoma, passando a incidência anual de 0,5% na ausência de pseudo-esfoliação para 2,1%. Resultados semelhantes foram obtidos num pequeno grupo de doentes da Islândia com idade igual ou superior a 50 anos – prevalência mínima de GPAA de 4% e de 10,3% de pseudo-esfoliação, com um aumento anual de 10% em ambos os casos81. Os resultados noutras populações da Europa ocidental foram semelhantes. Em Inglaterra e no País de Gales a prevalência do GPAA era de 3,01%106 após os 65 anos e numa população irlandesa com mais de 50 anos observou-se uma prevalência aproximada de 2%32. Na Grécia, numa população com 60 ou mais anos, a prevalência de GAA era de 3,8% a 5,5%, correspondendo cerca de 2/3 a GPAA e 1/3 a glaucoma pseudo-esfoliativo156; neste estudo, a existência de pseudo-esfoliação era um factor de risco que aumentava 2,8 vezes a probabilidade do GAA158. Resultado semelhante foi obtido numa série de doentes submetidos a trabeculectomia, nos quais a prevalência de glaucoma pseudo-esfoliativo era de 26%88. Um pouco mais afastado está o valor de prevalência do GAA de 0,8% encontrado no Rotterdam Study, na Holanda, numa população com mais de 55 anos170. Finalmente, na Áustria observou-se um aumento exponencial da incidência entre as idades de 40 e 80 anos, passando de 0,07%/5 anos aos 40 anos de idade para 6,9%/5 anos aos 80 anos68. Entre nós não se conhecem estudos epidemiológicos do glaucoma válidos e suficientemente extensos, quer em relação aos glaucomas, quer em relação à importância da pseudo-esfoliação. Da comparação da distribuição dos valores tensionais observados entre nósC com resultados publicados de curvas tensionais e prevalências de glaucomas145, considerando ainda a percentagem usualmente admitida de GPN, poderá admitir-se, com as limitações decorrentes do tipo de dados utilizados, que em Portugal a prevalência Epidemiologia do glaucoma. Revisão. total do GAA na população com mais de 40 anos não seja muito diferente de 3%. Por outro lado, considerando a semelhança étnica (excluindo o País Basco e Navarra) e condições climatéricas existentes na península ibérica, podemos presumir que os dados referentes à pseudo-esfoliação em Espanha são muito semelhantes aos nossos. Assim, a prevalência estará compreendida entre 6,5% após os 40 anos166 e 18,9% após os 60 anos110. Nos doentes com síndroma pseudo-esfoliativo a prevalência do GAA será de 19,6%166, enquanto 29,5% a 44,5% dos GAA apresentam pseudo-esfoliação111,132. Na população americana, os resultados do Beaver Dam Eye Study86 mostraram uma prevalência de GPAA de 2,1%, com aumento de 0,9% aos 43-54 anos para 4,7% após os 75 anos; este valor é da ordem de grandeza da projecção de 1,86% feita por Friedman et al.56. Ainda na população americana, em dois grupos de origem hispânica com idade superior a 40 anos, a prevalência de GPAA era de 4,74% (a que se juntavam 3,56% de hipertensões oculares) num dos casos e de 1,97% no outro estudo; os valores aumentavam de modo não linear com a idade, passando de 0,5% na década dos 40 anos para 12,6% a partir dos 80 anos127,161. Estes estudos não observaram influência do sexo e mostraram ainda que em 38 ou 75% dos casos a situação era anteriormente desconhecida. Por fim, o Baltimore Eye Survey154 também não encontrou diferença entre os dois sexos, mas observou na população negra uma prevalência de 1,23% na década dos 40 anos, que aumentava para 11,26% após os 80 anos, valores que no seu conjunto são 4 a 5 vezes superiores aos observados na população branca (respectivamente 0,92 e 2,16%). Também as projecções de Friedman et al.56 apontam para uma maior prevalência na população negra, embora um pouco inferior (cerca de 3 vezes). Utilizando uma metodologia muito diferente, o Toronto Epidemiology Glaucoma Survey, numa população com mais de 50 anos, refere uma prevalência de glaucoma conhecido de 7,5%; nos que desconheciam a doença o GPAA foi diagnosticado em 2,8%, com percentagem semelhante de glaucomas de pressão elevada e de pressão normal, a que se juntava um número elevado de casos prováveis ou suspeitos. Neste último grupo o GAF (crónico) era relativamente frequente, representando 16,7% do total de GAA4. Um último aspecto a considerar em relação à população americana de origem asiática é a persistência nas diferentes etnias das características próprias dos glaucomas nos seus países de “origem”. Assim, na etnia chinesa a prevalência do GAF é mais elevada, o mesmo sucedendo para o GPN nos indivíduos de origem japonesa147. Na Austrália o Blue Mountains Eye Study107 encontrou na população de origem europeia com mais de 49 anos de idade uma prevalência de GPAA de 3,0%, dos quais apenas 49% eram conhecidos anteriormente. A prevalência aumentava exponencialmente com a idade e era maior no sexo feminino (M:F – 2:3). Na mesma população, a prevalência de hipertensão ocular era de 3,7%, sem variação com a idade ou o sexo. Um pouco diferentes foram os resultados do Melbourne Visual Impairment Project – acentuado aumento da prevalência com a idade, de 0,1% aos 40 anos para 9,7% após os 80, mas a prevalência global foi um pouco menor (1,7% na população residencial ou 2,36% na institucionalizada); não foi observada diferença entre os sexos e os GPAF eram apenas 0,1%168. De um modo geral, os resultados obtidos em outras populações descendentes de europeus ou africanos, da Holanda à Nigéria ou ao Qatar, ou da Itália ao Magreb ou ao Brasil, são semelhantes aos referidos2,21,25,45,89,118,135. Nestas populações a única diferença relevante é a maior prevalência na população de origem negra, o que se torna mais evidente quando no mesmo estudo se incluem as duas populações74. Os valores referidos são em regra de mais do dobro dos existentes na população branca ou mestiça56,98,104 e até 4 vezes superiores (4 – 5% vs 1,1%), como observado no Baltimore Eye Survey154 ou na Tanzânia25. É ainda sugerido que na população negra o glaucoma pode manifestar-se mais cedo que na população branca atendendo à elevada prevalência observada entre os 30 e 39 anos104. Mas apesar de na população negra a prevalência de GAA ser maior em todos os grupos etários, o aumento com a idade é proporcionalmente menor que o verificado na população branca134. Quanto à existência de diferença entre os dois sexos os resultados não são claros, apontando uns para maior prevalência no sexo masculino74,170, outros no sexo feminino107, e outros ainda não encontram diferença27,161. A metanálise dos estudos de prevalência do GAA a nível global aponta para uma prevalência média na população com mais de 70 anos de 6% na população branca, 16% na população negra (e 3% na população asiática), com 1,37 vezes mais homens que mulheres134. Finalmente, nas populações de origem europeia ou africana, a prevalência do glaucoma agudo de ângulo fechado é habitualmente considerada como sendo muito reduzida, em especial nos indivíduos de raça negra, com estimativas de prevalência da ordem de 0,1% ou menos70,86,165,168, com o GAA a representar a grande maior parte dos glaucomas primários34,97. No entanto, estudos em várias populações mostraram que as formas crónicas do GAF são muito mais frequentes do que era admitido, com uma prevalência que representa 1/4 a 1/5 dos glaucomas. Numa área da Escócia, o GPAF representava 28,1% de todos os glaucomas recém-diagnosticados ao longo de dois anos (50 em 178), Suplemento - Nº 1 - 2012 | 7 José Guilherme Monteiro correspondendo as formas agudas a 24,0% do total de GAF; considerando a população abrangida, a incidência anual do GPAF nos maiores de 45 anos era de 14,8/100 000115. Na Itália do norte o estudo Egna-Neumarkt encontrou uma prevalência de 0,6%, o que corresponde a cerca de 1/4 do total de glaucomas22, observando-se valores da mesma ordem de grandeza nos Estados Unidos127, Canadá4 ou em África25. E pelo seu significado não se pode esquecer a prevalência de ângulos camerulares fechados, que pode atingir valores de 15% 4. Em síntese, nas populações de origem europeia ou africana observa-se uma prevalência global do glaucoma da ordem dos 2%, com aumento progressivo com a idade, passando de 1 – 3% no grupo etário com mais de 40 anos para 4 – 6% aos 60-70 anos. Comparando a prevalência nos dois sexos as diferenças não são notórias, ao passo que a comparação dos indivíduos de raça branca com os de raça negra mostra que a prevalência neste último grupo é cerca de 4 vezes mais elevada. Por fim, embora classicamente o GAF seja considerado pouco frequente nestas populações, os dados mais recentes sugerem que ele não é tão raro e que pode representar 20 – 25% do total dos glaucomas primários. B – Populações de origem asiática O problema do glaucoma assume particular importância no continente asiático. A começar é o número de pessoas envolvidas – no início de 2007, 60% da população mundial estava na Ásia, correspondendo à Índia e à China respectivamente 17% e 21% do total mundial169. Foi também calculado que por volta do ano 2000 cerca de metade dos 70 milhões de doentes com glaucoma seriam residentes no continente asiático124, dos quais 10 milhões na China52. Mais grave ainda, o número absoluto e o valor percentual tendem a aumentar, em consequência do aumento global da esperança de vida e da maior taxa de crescimento populacional dos países asiáticos. São também as condições socioeconómicas existentes, a importância que assume na mulher (que no continente asiático se encontra em regra numa posição desfavorecida) e, ainda, a importância relativa do GAF. São aspectos importantes, na medida em que têm implicações na morbilidade e do ponto de vista terapêutico, devendo ainda ser esclarecida a relação entre glaucoma e aumento da mortalidade173. O estudo das populações de origem asiática apresenta algumas dificuldades resultantes da relativa escassez de dados objectivos. De facto, praticamente só na última década começaram a surgir estudos epidemiológicos suficientemente vastos para permitir a caracterização de vários aspectos oftalmológicos, nomeadamente o glaucoma172. Podem-se referir o Vellore Eye Survey78, o Andhra Pradesh Eye 8 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Disease Study39,40 e o Aravind Comprehensive Eye Survey90,129 na Índia, assim como o estudo de Rahman et al.128 no Bangladesh. Na China ou em áreas com forte influência da etnia chinesa há o Liwan Study65,66 na China meridional e o Beijing Eye Study80 na área de Pequim, o estudo do glaucoma na Mongólia53, o Tanjong Pagar Study54 em Singapura, o Meiktila Eye Study26 em Myanmar e o rastreio no distrito de Rom Klao, em Bangkok23. Por fim, em relação ao estudo do glaucoma no Japão há a referir o estudo de Shiose et al.143 e o Tajimi Study77,174. A partir dos vários estudos foi possível constatar a existência de diferenças entre as características observadas nas populações da Ásia e nas populações descendentes de europeus ou africanos, nomeadamente o aumento do peso relativo dos GAF120,124,165. Não serão também de estranhar as grandes diferenças regionais que o glaucoma apresenta na Ásia, dada a extensão geográfica, variabilidade étnica e número de indivíduos envolvidos; esta variabilidade observa-se tanto em relação à prevalência como ao peso relativo de cada uma das formas de glaucoma133,172. Com base nestas diferenças é possível separar a população asiática em três subgrupos principais: as populações do subcontinente indiano, as populações da China e relacionadas (incluindo os Inuit da América do Norte e Groenlândia126) e a população japonesa. Mas é duvidoso, pelas razões antes apontadas, que os resultados observados em estudos localizados possam ser correctamente extrapolados para o conjunto52,126. 1 - Subcontinente indiano O glaucoma representa um problema médico de vulto na população indiana, calculando-se que 11,2 milhões de pessoas com mais de 40 anos apresentem a doença61. Entre 2000 e 2008 foram feitos vários estudos epidemiológicos de prevalência do glaucoma em diversas regiões do subcontinente indiano, em populações com idades superiores a 30-40 anos. Uma constatação mais ou menos constante foi a elevada percentagem de casos previamente desconhecidos, de 25%119 a 98,5%162. Este desconhecimento da patologia existente observava-se não apenas nos GAA mas também, estranhamente, nos de ângulo fechado, nos quais o diagnóstico prévio era inexistente em 2/3 dos doentes40. Por este motivo, não será de estranhar a referência à existência de danos glaucomatosos graves numa grande parte dos doentes39. Também o aumento da prevalência com a idade foi constante39,119,131,162,163, apenas com uma excepção128. Os valores de prevalência de GPAA encontrados nesses estudos variaram entre um mínimo de 0,41% no Vellore Eye Survey78 e um máximo de 3,5%164. Tal como sucede na população europeia, a prevalência nos dois sexos foi variável – sem diferença ou diferença mínima119,162,164 ou Epidemiologia do glaucoma. Revisão. maior prevalência no sexo feminino40,163, com apenas um estudo a mostrar maior prevalência no homem128. Por outro lado, observam-se na população indiana diferenças regionais, que não são de estranhar. A multiplicidade de factores possivelmente envolvidos nas diferenças de prevalência dificulta a interpretação dos resultados e o verdadeiro papel de cada um dos factores. Por este motivo, não é claro se as diferenças observadas resultam da localização geográfica, da etnia ou de outros factores, como por exemplo os grupos etários ou os critérios usados em cada estudo. Como exemplo do possível papel da metodologia podem citar-se dois estudos em populações urbanas do estado de Tamil Nadu. Em indivíduos da cidade de Chennai (Madrasta) com mais de 40 anos, a prevalência era de 3,5%164, enquanto um pouco mais a oeste, na cidade de Vellore, numa população com idades entre os 30 e os 60 anos e com o valor da relação escavação/disco de 0,7, o resultado era de apenas 0,4%78. Tendo em conta o que foi referido no parágrafo anterior, os dados existentes sugerem uma diferença de prevalência do GPAA entre a população urbana e a rural. Isto é evidente nos estudos das populações do estado de Tamil Nadu com idades superiores a 40 anos – enquanto na população rural a prevalência era de 1,6%162, na cidade de Chennai a prevalência era de 3,5%164. Talvez a melhor demonstração desta diferença, pela sua duração e número de indivíduos estudados, seja a que resulta da análise dos resultados do Andhra Pradesh Eye Disease Study59. Comparando as populações urbana e rural com mais de 40 anos de idade observa-se maior prevalência de GPAA (4% vs 1,6%) e de GPAF (1,8% vs 1,5%), assim como de ângulos fechados primários e suspeitos de ângulo fechado; pelo contrário, a cegueira devida ao GPAA era inferior (2,7% vs 11,1%), enquanto a cegueira devida ao GPAF era igual nos dois grupos (20%). E se o que se verifica com o GAF pode ser extrapolado para o GAA, é ainda possível que na população carenciada a prevalência seja ligeiramente superior40. Talvez mais importante que a comparação das prevalências regionais do GPAA, ou mesmo dos glaucomas no seu todo, é o estudo das frequências relativas do GPAA e de ângulo fechado, pelas implicações que este facto tem para o diagnóstico e tratamento. É habitualmente considerado existir na população indiana uma predominância de GAF, ou uma prevalência semelhante dos dois tipos de glaucoma124. Mas os resultados de vários estudos populacionais apontam para uma realidade diferente, com variações regionais não só da prevalência total como da proporção relativa. De acordo com a noção tradicional, no estudo em Vellore78 foi observada uma prevalência total (excluindo as hipertensões oculares) de 4,7%, com o GAF a representar 50 a 90% do total (variação resultante de problemas metodológicos do estudo e a sua eventual compensação). Também em linha com a visão clássica, é referido que na Índia central o GPAF é cerca de 50% mais frequente que o de ângulo aberto119. Um resultado diferente é sugerido na revisão de See et al.139, que aponta para prevalências semelhantes dos dois tipos glaucoma. Isto mesmo foi observado na população rural de Tamil Nadu162,163 e na população urbana de Hyderabad, no estado de Andhra Pradesh39,40. Em Tamil Nadu a prevalência de GPAF de 0,9% (a que se juntam 0,7% de casos potenciais) compara-se com os 1,6% observados para a prevalência do GPAA na mesma população162,163. Em Andhra Pradesh, a prevalência de 2,6% do GPAA não foi substancialmente diferente dos 3,3% correspondentes ao GPAF e ângulos susceptíveis de o originarem39,40. Ao contrário da noção clássica, a metanálise dos resultados de vários estudos populacionais sugere que os GPAA sejam 2,6 vezes mais frequentes que os de ângulo fechado, apesar de admitir que no seu conjunto as patologias relacionadas com ângulo fechado primário (27,6 milhões de indivíduos) possam corresponder a 2,5 vezes o total dos glaucomas61. Nesta mesma linha está a observação, no sul da Índia, de uma prevalência total de 2,6%, com 1,7% de GAA e 0,5% de GAF129, enquanto na população bengali de Dhaka (Bangladesh) com mais de 40 anos a prevalência total é de 2,1% (com 1% adicional de casos suspeitos), dos quais apenas 0,4% (1/5 do total) correspondem a GAF128. A desproporção mais extrema foi referida numa população rural bengali com mais de 50 anos – observou-se uma prevalência total de 3,4%, dos quais apenas 0,2% correspondiam a casos de ângulo fechado, isto é, uma relação superior a 10 vezes131. No seu conjunto, apesar das discrepâncias existentes e das diferenças metodológicas, os resultados sugerem que o GPAF não será tão frequente quanto antes se considerava. Sugerem ainda que a prevalência aumenta com a idade, é um pouco maior nas mulheres, e que a patologia é mais frequente no sul que no norte do subcontinente, em especial na população de etnia bengali. Um último aspecto relativo ao GPAF que merece referência é a raridade das formas agudas, com as formas crónicas a representarem de 83%40 a 100%78 do total. Por fim, há alguns aspectos que merecem consideração. Em vários estudos populacionais é admitida a existência de uma prevalência real superior à determinada, por patologias coexistentes (ex. cataratas densas ou atrofia do globo ocular) ou os métodos usados não permitirem que alguns dos casos sejam detectados39,131. Também a paquimetria pode Suplemento - Nº 1 - 2012 | 9 José Guilherme Monteiro constituir um factor de erro, por o seu valor médio nesta população, cerca de 504 μm, tanto nos normais como nos doentes com GAA, ser inferior à observada nos europeus162. Do mesmo modo, a existência de pressões oculares baixas nos GAA39,161,162 pode ser uma razão adicional para a existência de falsos negativos, chegando a ser afirmado que um rastreio baseado em PIO superior a 21 mm Hg não detectaria 80% dos casos de GPAA127. Finalmente, no Aravind Comprehensive Eye Survey a pseudo-esfoliação parece ser relativamente frequente, sobretudo no sexo masculino e aumentando com a idade, com uma prevalência de 6,0% na população com mais de 40 anos, mas presente em 26,7% dos doentes com GPAA90. Em resumo, nas populações do subcontinente indiano observam-se algumas diferenças em relação ao descrito nos europeus/africanos. Um aspecto importante, e que pode influenciar significativamente os resultados, é a elevada percentagem de casos em que a patologia é previamente desconhecida, com um valor que pode ultrapassar os 90%. Globalmente, a prevalência do glaucoma é semelhante à observada nas populações europeias e africanas, com um valor de 1,5 a 4% e aumentando com a idade, sugerindo os resultados existentes que esta patologia seja duas vezes mais frequente em meio urbano que rural, que predomine no sul da Índia e que tenha uma predilecção ligeiramente maior para o sexo feminino. Quanto à proporção relativa das formas de ângulo fechado ou aberto verifica-se uma situação análoga à existente na Europa. Apesar de tradicionalmente ser considerado que o GAF representava mais de 80% do total, estudos mais recentes mostram que, apesar de ele ser mais frequente que nos europeus/africanos, há um predomínio do GAA, que poderá ser da ordem dos 3:1. Finalmente é de realçar, pela sua importância terapêutica, que a grande maioria dos GAF corresponde a formas crónicas. 2 – China e populações relacionadas Se no subcontinente indiano o glaucoma é um problema de vulto, na população da Ásia de leste a situação poderá ser ainda mais grave. É que não está só em causa a população da China em si, com mais de 1000 milhões de habitantes, mas também as grandes colónias de emigrantes espalhadas por todo o mundo, com especial incidência nos países do sudeste asiático. E não se podem ainda esquecer as populações geneticamente aparentadas, como sejam os habitantes da Mongólia ou os esquimós Inuit do norte do continente americano ou da Groenlândia. Mas esta realidade implica a existência de variabilidade de situações e pode mesmo invalidar certas premissas que, por razões logísticas, têm sido usadas nos estudos populacionais da China52. 10 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia A primeira sugestão de que as características do glaucoma nas populações aparentadas com os chineses eram diferentes das observadas na Europa deve-se aos trabalhos de Alsbirk nos esquimós da Groenlândia3,31. Este autor mostrou haver uma importância acrescida do GPAF, resultado que foi posteriormente observado por Hu73, num estudo na área de Beijing da China continental. Apesar de se poderem hoje apontar algumas críticas aos métodos ou critérios usados, os resultados de Hu mostraram uma prevalência global do glaucoma de 0,6%, com 18% de GAA e 68% de ângulo fechado. Mostraram também uma distribuição diferente entre os dois sexos, com o GAF a representar quase 3/4 do total dos casos na mulher, enquanto no homem a proporção era inversa, com o GAA a representar cerca de 80% do total. Este estudo verificou ainda que a prevalência total e a percentagem de GPAF aumentavam com a idade, passando a representar na população com mais de 40 anos 1,4% e 98%, respectivamente. Os resultados iniciais sugeriam que nas populações chinesas o GPAF fosse mais frequente que o GPAA, referindo-se que poderia chegar a representar 80% do total dos glaucomas primários101, um valor muito superior ao observado nas populações caucasianas. Nesta mesma linha estava a análise de Quigley124. Estes dados não são porém totalmente fidedignos, por muitas vezes terem por base estatísticas hospitalares que privilegiam o GAF, pela maior frequência com que determina sintomatologia34,101. De facto, estudos populacionais posteriores vieram mostrar que embora o GAF seja mais frequente que nas populações ocidentais, o GAA continua a ser, em regra, preponderante23,54,56. As razões para a maior prevalência relativa do GAF nas populações de etnia chinesa ou aparentada são ainda muito controversas, mas poderão estar relacionadas com diferenças antropométricas da câmara anterior e ângulo camerular36,37,64,66,80. Em apoio da importância destas diferenças na génese do GAF, uma análise multifactorial de vários parâmetros da população chinesa mostrou a existência de uma associação estatisticamente significativa entre câmara anterior baixa e ângulo camerular estreito com idade mais avançada, sexo feminino, hipermetropia, catarata nuclear e GAF80. Finalmente, Salmon et al.136 chamaram a atenção para um aspecto relevante no estudo do GAF na população de origem asiática – a frequência de ausência de sintomatologia. De facto, nos 23 casos identificados neste estudo, só seis apresentavam queixas devidas a encerramento transitório do ângulo (três com glaucoma subagudo no momento da observação e três com história de halos coloridos), o que representa uma percentagem de sintomatologia de apenas 26%, apesar da existência de neuropatia óptica Epidemiologia do glaucoma. Revisão. glaucomatosa em 40% (oito em 20) dos casos sem sintomas no momento da observação. O mesmo foi também observado em Taiwan35, onde só havia história de sintomatologia característica em 35% dos casos identificados, e é ainda referido em relação a outras populações52. Existe actualmente informação relativa a várias populações da China ou geneticamente relacionadas, se bem que os dados relativos à China continental sejam, no mínimo, escassos. Há vários estudos que avaliam a prevalência de baixa visual e de cegueira, sendo de presumir que estejam muito próximos da realidade atendendo às implicações do que é estudado. Mas a falta de uniformização de critérios de observação e de definição é causa de falta de fiabilidade dos estudos referentes a várias patologias, nomeadamente o glaucoma180. Exceptua-se, pela sua relevância e rigor, o Beijing Eye Study80. Esta escassez de dados objectivos relativos à China continental e as dificuldades logísticas levaram a extrapolar resultados de outras localizações, admitindo que as características observadas na Mongólia corresponderiam às existentes na China rural e as da população chinesa de Singapura às da China urbana. Mas, como já referido, pode questionar-se a validade desta generalização126, sobretudo quando as projecções são da ordem dos milhões – encerramento angular significativo ou neuropatia óptica glaucomatosa em mais de 9 milhões, cegueira bilateral em perto de 2 milhões, etc.52 Na África do Sul, numa população da área do Cabo caracterizada por mestiçagem de longa duração com indivíduos oriundos do sudeste asiático, observou-se na população com mais de 40 anos de idade a existência de ângulo anatomicamente fechado em 9%. A prevalência global de GPAF era de 2,3%, aumentando com a idade, enquanto a do GPAA era de 1,5%, isto é, 60% dos glaucomas primários eram de ângulo fechado136. Verificou-se ainda, de modo análogo ao observado anteriormente por Hu em Pequim73, que a proporção dos dois tipos de glaucoma nos dois sexos era diferente: enquanto nos de ângulo fechado predominavam largamente as mulheres (83% vs 17%), nos de ângulo aberto o predomínio era de homens, embora com uma diferença muito menos acentuada (60% vs 40%). Nas populações do sudeste asiático não se observa um padrão uniforme, o que, mais uma vez, não será de estranhar pela diversidade de etnias. Numa área urbana da Tailândia a prevalência total do glaucoma em indivíduos com mais de 50 anos era de 3,8%, representando o GPAA 59% e o de ângulo fechado 22%23, enquanto em Myanmar, no Meiktila Eye Study26, a prevalência total do glaucoma na população com mais de 40 anos era de 4,9% com uma proporção de cerca de 1,25:1 entre o GPAF e o de ângulo aberto. A comunidade multiétnica de Singapura permite evidenciar claramente a importância dos factores étnicos. Lim101 verificou que na população chinesa a relação de GAF para GAA era de 3,8:1, enquanto na população indiana ou malaia esta relação se invertia, para valores de, respectivamente, 1:2,7 e 1:3. Este mesmo autor verificou ainda que a proporção dos casos de cegueira devidos a cada uma das formas de glaucoma seguia um padrão semelhante quando se consideravam as três etnias. Mais recentemente, observou-se na população de origem chinesa com mais de 40 anos de idade uma prevalência global do glaucoma de 3,2%, sendo o GPAF responsável por apenas 31% dos casos e o GPAA por 49% (1:1,68); no conjunto dos glaucomas, 60% eram homens e 40% mulheres54. Estes resultados podem ser comparados com os de um grupo com mais de 60 anos: prevalência de 4,8%, dos quais 26% são GPAF e 61% GAA com pressão normal144; de notar que neste grupo de doentes o diagnóstico não tinha sido feito previamente em 97% dos casos. Embora a incidência do GPAF crónico não seja conhecida, estes resultados foram novamente confirmados pela determinação da incidência anual de glaucoma agudo na população com mais de 30 anos. Enquanto na etnia chinesa a incidência anual era de cerca de 12/100.000, nas etnias malaia e indiana os valores eram de apenas metade do observado nos chineses; foi ainda observado um aumento da incidência com a idade e um predomínio do sexo feminino (2 vezes) em todas as etnias138,171. É significativo que estes resultados sejam comparáveis com os observados na população chinesa de Hong Kong – incidência anual de 10,4/100.000, maior nos mais idosos (58,7 após os 70 anos) e risco relativo nas mulheres 3,8 vezes superior ao dos homens93. Não é de estranhar que os dados epidemiológicos referentes à China (continental e insular) sejam por vezes contraditórios e tenham sofrido grandes alterações nas últimas décadas, o que, mais uma vez, se deve à extensão territorial e diversidade populacional, à falta de dados objectivos suficientemente abrangentes e à consequente necessidade de extrapolação a partir de populações aparentadas. Em 1996 Quigley124 calculou que a prevalência de GAF fosse três vezes superior à do GAA, mas posteriormente Foster e Johnson52 calcularam que a proporção se aproximasse da igualdade, com os GAF a representarem apenas 50% mais que os de ângulo aberto. A estimativa de Quigley é aproximada da proporção de cerca de 4 vezes observada numa população da China do Norte73. Mas enquanto Hu encontrou nos indivíduos com mais de 40 anos uma prevalência de glaucoma primário de 1,4%, na sua quase totalidade (98%) GAF, na China do Sul o padrão observado não parece uniforme, com uma prevalência de GPAF de 0,64%179 a 1,5%65. Neste último caso a prevalência total era de 3,8%, com 2,1% de GPAA (relação GAF:GAA de Suplemento - Nº 1 - 2012 | 11 José Guilherme Monteiro 1:1,4), resultado muito semelhante ao obtido em Singapura54 e corresponde a uma prevalência de GAA semelhante à existente na população europeia. Tão recentemente como em 2002 continuava a considerar-se o GAF como a forma predominante na população sino-mongol167, em consonância com os resultados de um estudo em Taiwan que mostraram uma prevalência de GAF de 3,0% (embora a falta de indicação da prevalência do GAA não permita avaliar a importância relativa de cada um deles)35. Já o Handan Eye Study refere numa população rural com mais de 40 anos de idade uma prevalência de GPAF de 0,5% e de 1% para o GPAA (relação 1:2); a prevalência aumenta com a idade, é independente do sexo no caso do GPAA mas é muito maior nas mulheres no caso do GAF99,100. Mesmo actualmente a dúvida da importância relativa de cada forma de glaucoma na população chinesa não está esclarecida. Por um lado, o GPAF é considerado mais frequente que o de ângulo aberto, com prevalências, respectivamente, de 1,4% e 0,7% (relação 2:1)29, mas, por outro lado, é apontada uma prevalência total de 3,1%, dos quais apenas 30% correspondem a GAF e 70% são GAA (relação de 1:2,3)80. No entanto, as metodologias destes estudos não são comparáveis – enquanto no caso de Cheng et al.29 se trata de uma metanálise, com as vantagens e problemas inerentes a este método, no caso de Jonas et al.80 tratou-se de um trabalho de campo em que uma população foi seguida ao longo do tempo com uma metodologia rigorosa. A norte, na Mongólia, a prevalência do glaucoma após os 40 anos de idade parece ligeiramente inferior à observada na China, com uma prevalência total de 2,2%. Pelo contrário, a proporção do GAF é muito superior, correspondendo 1,4% ao GPAF e 0,5% ao GPAA (2,8:1)53; mesmo com a alteração dos critérios de diagnóstico, os GAF continuam a predominar, numa relação de 2:152. De notar que nesta população a prevalência total dos ângulos potencialmente fechados é de 6,4% e que os GAA só se observam após os 60 anos, o que significa uma prevalência de 2,1% neste grupo etário. No entanto se os resultados relativos à prevalência são semelhantes aos de outros estudos, já em relação à proporção de cada forma de glaucoma os dados são contraditórios. Assim, Song et al.146 referem uma prevalência total corrigida de 2,90% após os 50 anos, que aumentava com a idade, com uma proporção de quase 1:1 entre GPAF e GPAA (1,42% vs 1,41%), ao passo que Nolan et al.116, também em indivíduos com mais de 50 anos, observaram uma prevalência total de 2,7%, representando os GAF 39% e os GAA 59% (relação de 1:1,5). A situação mais extrema no que respeita à percentagem de GAF é a que se verifica na população Inuit. É reconhecido, desde os trabalhos iniciais de Alsbirk3,31 nos 12 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia esquimós da Groenlândia e de Drance46 nos esquimós do Canadá, que o GAF tem nestas populações maior relevância que na população caucasiana. No seu trabalho inicial, e apesar das limitações metodológicas, Clemmesen e Alsbirk31 observaram num grupo de cerca de 400 indivíduos uma prevalência total de glaucoma de perto de 5,5%, mais elevada no sexo feminino (2 a 3 vezes mais que no sexo masculino), que aumentava com a idade em ambos os sexos e com acentuado predomínio do GAF (relação de 1:3). Estes resultados foram posteriormente confirmados por Alsbirk3, que referiu na população com mais de 40 anos prevalências de 1,6 e 5,1%, respectivamente no homem e na mulher. Esta prevalência extremamente elevada do GAF poderá ser explicada pela reduzida profundidade da câmara anterior, que nos Inuit da Groenlândia é a menor registada79. O quadro descrito em relação aos habitantes da Groenlândia parece depender de factores étnicos e não de condicionantes geográficas, na medida em que vários autores6,46,160 encontraram resultados semelhantes nos nativos do Alasca – prevalência global de glaucoma de cerca de 0,7% e superior a 3% na população com mais de 40 anos, com mais de 90% de GAF. Estes autores verificaram ainda o aumento da prevalência do glaucoma com a idade, de cerca de 5 vezes entre o grupo etário dos 50-69 anos e o grupo com mais de 70 anos (atingindo cerca de 15% nas mulheres deste último grupo), assim como o predomínio do GAF no sexo feminino (0,94%:0,24%). Tal como observado na Groenlândia, constataram também a menor abertura do ângulo camerular, em especial nos indivíduos mais velhos e nas mulheres. Um aspecto que parece de grande importância é a constatação de que a menor abertura do ângulo e da profundidade da câmara anterior na periferia são factores de risco para o aparecimento de GAF10, verificando-se que 20,4% dos doentes com câmara anterior baixa mas sem ângulo potencialmente fechado evoluíam ao fim de 6 anos para casos suspeitos de GAF176. Em resumo, pode dizer-se que na população de etnia chinesa ou relacionada a prevalência total do glaucoma é da ordem dos 3% após os 40 anos de idade, embora haja uma variabilidade apreciável entre os vários estudos. O GAF é mais frequente que nas populações europeias mas, ao contrário do que era habitualmente considerado e apesar das dúvidas ainda existentes, o GAA parece ser o mais frequente, correspondendo-lhe cerca de 2/3 do total. O GAF predomina nas mulheres e a sua frequência aumenta com a idade. Uma situação particular é a que se verifica na Mongólia e nos esquimós, populações nas quais a importância relativa do GAF atinge valores muito elevados. Epidemiologia do glaucoma. Revisão. 3 - População japonesa e coreana O terceiro grande grupo da população asiática é constituído pelos japoneses. A eles podem juntar-se os coreanos, dadas as semelhanças existentes, possivelmente resultantes de cruzamentos com populações japonesas num passado distante, assim como as colónias dessas etnias dispersas pelo mundo. Um primeiro estudo, no final da década de 1980, abrangendo mais de 16000 habitantes com idade superior a 40 anos, encontrou uma prevalência total de glaucomas de 3,56% e 1,37% de hipertensões oculares143. No entanto a importância relativa dos diferentes tipos de glaucoma mostrou ser diferente da que é norma noutros grupos populacionais. As prevalências dos GAA de pressão elevada e de ângulo fechado eram, respectivamente, 0,58% e 0,34%, ao passo que a do GAA com pressão ocular normal atingia 2,04%. Assim, os GPN representavam mais de 75% do total de GAA, uma percentagem superior aos cerca de 50% habitualmente admitidos nas populações caucasianas e africanas140. Comparando os dois sexos, verificava-se uma maior frequência do GPAA de pressão elevada e do GPAF nos indivíduos do sexo feminino, ao contrário do GPN que predominava no sexo masculino. Em 2000, o estudo na cidade de Tajimi, numa população do mesmo grupo etário, obteve uma prevalência total de glaucoma de 5,0%, com 0,6% de GAF e 3,9% de GAA77,174; esta prevalência do GPAA foi confirmada posteriormente numa outra população japonesa (3,7%)75. O estudo de Tajimi mostrou ainda que 3,6% eram GPN, isto é, 92% dos GAA77,174. Resultados semelhantes aos obtidos no Japão são referidos em diversos estudos efectuados na Coreia. Num extenso rastreio na Coreia do Sul verificou-se que o glaucoma predominava no sexo feminino e que a sua prevalência aumentava com a idade, de 1,4% nos após os 19 anos para 3,3% após os 60, com um valor de 2,1% na população com mais de 40 anos; neste último grupo etário a prevalência do GPAA, do GPN e do GPAF eram respectivamente de 2,0%, 1,9% e 0,1%178. Em dois outros estudos83,84 em populações com mais de 40 ou de 50 anos observou-se uma prevalência de GPAA de 3,5% num caso e prevalência de glaucoma de 3,4% no outro (com 2,5% de GAA e 0,3% de GPAF); os GPN constituíam a maior parte, representando respectivamente 2,7% e 2,5%, o que corresponde em qualquer dos casos a mais de 75% dos GAA. Verificou-se ainda que a prevalência aumentava de forma acentuada com a idade, de 2,2% na década de 50 para 13,0% após os 80 anos84. Os resultados observados nesta etnia persistem mesmo em grupos geograficamente afastados. De facto, nos americanos de origem japonesa a prevalência do glaucoma é de 6,4%, sendo a dos GAA de pressão elevada 1,1% e a dos GPN 4,5%, o que representa 80% do total de GAA122. Não é evidente o ou os mecanismos subjacentes a esta preponderância do GPN. É reconhecido que o valor normal da espessura corneana nos japoneses é inferior ao habitual na população europeia e africana. O Tajimi Study e outros resultados apontam para um valor médio da espessura corneana central na população japonesa normal entre 518 e 521 μm77,148,155, mais elevado no homem que na mulher148,155. Mas este valor não é diferente dos 519 μm que se observam nos doentes japoneses com GPN77. Também a diferença que se observa para as paquimetrias das populações americanas de origem africana ou caucasiana (respectivamente 536 e 553 μm)142, para a população normal de Singapura (539 μm)42, ou para o valor de 550 ± 34 μm observado entre nós50 é relativamente pequena. Por outro lado, Iwase77 referiu que a PIO nos doentes com GPN era significativamente maior que na população japonesa normal, mas a diferença era de apenas 0,8 mmHg (15,3 vs 14,5 mmHg). Posteriormente observaram-se em populações normais pressões de 14,5 mmHg82 ou de 14,1 mmHg57, sem diferença entre os dois sexos. Desde o OHTS que é conhecida a importância da espessura central da córnea na medição do pressão ocular24 e vários estudos, nomeadamente na população japonesa, mostraram que os valores tensionais medidos com o tonómetro de Goldmann estavam correlacionados com o valor da paquimetria central57,82,148. Assim, o valor tensional medido estaria falseado; a medição da pressão ocular com o tonómetro de Pascal mostrou que nesta população o valor tensional era cerca de 2,8 mmHg superior76. Um resultado semelhante foi observado na Coreia, constatando-se não haver diferença entre os dois sexos (533 vs 537 μm) ou entre as córneas de doentes com glaucoma ou normais (528 vs 530 μm)83,85 ou haver apenas uma pequena diferença de espessura (515 vs 537 μm)177. Indirectamente, o mesmo foi também observado nos americanos de origem japonesa122. Em conclusão, na população de origem japonesa ou relacionada a prevalência do GAA varia entre 2,6% e 5,6%, mas o que é característico é a elevada percentagem de GPN, que correspondem a mais de 75% dos GAA. A razão para esta distribuição não é clara122, mas a semelhança entre as pressões oculares ou as espessuras centrais da córnea nos dois sexos ou entre os doentes com GPN e a população normal sugere a existência de outros factores. C - População indígena da Austrália A população indígena da Austrália merece uma referência especial por se tratar de uma etnia que se pensa ter Suplemento - Nº 1 - 2012 | 13 José Guilherme Monteiro estado relativamente isolada de contactos com outras populações desde há várias dezenas de milhares de anos e até à chegada dos europeus11. A informação existente é relativamente escassa e pode estar parcialmente falseada pela existência de registos clínicos incompletos, mas sugere que a prevalência do glaucoma é baixa. Num estudo recente em indivíduos com mais de 20 anos observou-se uma prevalência global de 0,90%, sendo cerca de 60% glaucomas secundários. A prevalência dos GAA era de 0,52% para a população com mais de 40 anos, o que é apenas 1/3 do observado na restante população australiana95. No entanto num outro estudo, também em indivíduos com mais de 40 anos, observou-se uma prevalência global de 2,2%, com predomínio no sexo masculino e aumento com a idade30. A espessura central da córnea na população indígena da Austrália é significativamente menor que na população caucasiana (respectivamente cerca de 514 μm e 545 μm)47,94. Se a reduzida espessura corneana levanta dúvidas quanto à realidade da observação de que cerca de 60% dos GAA são GPN95, a diferença de prevalência entre os dois estudos levanta outra dúvida. Poderá admitir-se que a discrepância resulte de diferenças de critérios de diagnóstico ou de metodologia. Mas sendo a população indígena da Austrália considerada como tendo um risco muito baixo de glaucoma94, as diferenças observadas poderão traduzir a introdução nesta população de genes de origem caucasiana relacionados com o glaucoma30. V - Glaucoma congénito primário Apesar da sua raridade, o glaucoma congénito primário e outras formas de glaucoma do jovem foram patologias responsáveis por uma parte importante dos casos de cegueira dos jovens. Nos últimos 30 anos, em consequência da utilização de novas técnicas cirúrgicas, novos medicamentos e de um diagnóstico mais precoce, verificou-se uma acentuada melhoria da situação15,20,105; no entanto, a despeito da melhoria do prognóstico, os glaucomas do jovem podem ainda representar 16-25% dos casos de cegueira infantil149. Tal como sucede com os glaucomas do adulto, os dados epidemiológicos relativos ao glaucoma do jovem são muitas vezes difíceis de comparar, por os critérios usados não serem uniformes (formas primárias vs todos os casos; incidência por número de partos vs incidência na população jovem)5,102. Um factor de confusão adicional é a falta de uniformidade na definição do quadro. Nuns casos é considerado glaucoma congénito o que surge entre o nascimento e os 4 anos e glaucoma juvenil entre os 4 e os 20 anos5; outras vezes considera-se o glaucoma como congénito do 14 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia nascimento aos 3 meses, infantil dos quatro meses aos dois anos e juvenil dos 2 aos 16 anos121; noutros casos definem-se “crianças” como os menores de 16 anos20 e a E.G.S.49 considera glaucoma primário congénito/infantil até aos 10 anos e glaucoma primário juvenil entre esta idade e os 35 anos, incluindo este no grupo dos GPAA (o que se justifica pelas diferentes características clínicas e genéticas). De igual modo, há também confusão na divisão em “primário”, “associado a anomalias do desenvolvimento”, “secundário” ou “adquirido”5,20,49,121. O glaucoma congénito primário é o mais frequente dos glaucomas da infância, podendo representar 22-45% dos casos14,121,150. Aparece em qualquer grupo populacional, embora com uma incidência variável com a etnia, e é um pouco mais frequente no sexo masculino (60-65%)14,69,121. Com as limitações referidas, pode afirmar-se que o glaucoma congénito é mais frequente nas populações com elevado grau de consanguinidade, como sucede nos ciganos da Europa de Leste60,123 ou em populações do Médio Oriente48,158. Assim, a prevalência ao nascimento é de 1/1250 partos entre os ciganos da Eslováquia60,123 e de 1/2500 na Arábia Saudita16,17. Na Índia, no estado de Andhra Pradesh, o valor é de 1/3300 (representando o glaucoma congénito 4,2% dos casos de cegueira infantil)16,38. Nos países ocidentais a incidência do glaucoma congénito era habitualmente considerada muito inferior, da ordem de 1/10000 partos44,49,150, variando entre 1/5000 e 1/2200016. Alguns estudos sugerem que os valores estejam mais próximos do limite inferior – 1/22200 na Europa de Leste60, 1/30000 na Austrália102, ou, mais perto de nós, em Espanha, 1/3500019. Mas tal como sucede em relação a outras áreas geográficas, há relativamente poucos dados epidemiológicos actuais baseados em estudos populacionais e esta falta pode levar a um aumento artificial dos resultados. Recentemente foram publicados dois estudos com uma grande base populacional5,121. Num deles5, no condado americano de Olmsted, estudaram-se todos os casos de glaucoma que surgiram ao longo de 40 anos em indivíduos com menos de 20 anos. Observaram uma incidência global de 2,29/100000 (1/43575), sendo quase metade de origem traumática e correspondendo a glaucoma congénito primário apenas 16,7% (1/260688) ou a 1,46/100000 (1/68254) partos. Os resultados mostraram ainda que apesar de 96% da população ser de origem caucasiana só 60% dos glaucomas eram desta etnia; sugeriam ainda (embora os números envolvidos fossem baixos) que a raça asiática e sobretudo a raça negra eram muito mais susceptíveis. O outro estudo121 incidiu nos glaucomas diagnosticados ao longo de 1 ano em menores de 1 ano residentes nas ilhas Epidemiologia do glaucoma. Revisão. britânicas. Dos 99 doentes identificados, 47% eram glaucomas primários e os restantes secundários. A incidência anual observada foi de 5,41/100000 nados vivos (1/18500) na Grã-Bretanha e de 3,31/100000 (1/30200) na República da Irlanda. Mais uma vez, os resultados mostraram a existência de diferenças étnicas. Enquanto nas crianças de origem asiática (Índia, Paquistão, Bangladesh) a proporção entre glaucomas primários e secundários era de 3:1, na população caucasiana era de 1:1,3 e na negra era de 1:2. A diferença entre etnias torna-se ainda mais evidente quando se considera apenas o glaucoma congénito primário – a incidência anual/100000 é de 0,28 na população caucasiana, aumenta para 0,47 na população negra, para cerca de 0,9 nas populações indianas ou do Bangladesh e atinge um valor máximo de 2,46 nas crianças de origem paquistanesa, isto é, quase nove vezes mais que nas caucasianas. Este achado não será de estranhar se se tiver em conta que os 16% de consanguinidade observados nos glaucomas congénitos primários eram todos de pais asiáticos. Face a estes resultados, poderá admitir-se que parte da diferença existente entre a Grã-Bretanha e a República da Irlanda seja resultante de uma diferente distribuição étnica, com maior população de origem paquistanesa na Grã-Bretanha. VI - Conclusão O GAA é uma patologia que incide um pouco mais no homem que na mulher (1,37:1); globalmente, calcula-se que a sua prevalência média em indivíduos com mais de 70 anos seja de 6% na população branca, 16% na população negra e 3% na asiática134, mas a omissão do estudo dos campos visuais pode levar a um valor de prevalência inferior à real. Um achado quase constante em todos os estudos é a alta percentagem de casos não identificados previamente (até mais de 90% do total) o que, em menor grau (cerca de 50%), também se verifica nos países desenvolvidos135,157. Nas populações de origem europeia ou africana a prevalência global do GAA é da ordem dos 2%, aumentando progressivamente com a idade de 1 – 3% aos 40 anos para 4 – 6% aos 60 – 70 anos. Embora o GAF seja considerado pouco frequente nestas populações, os dados mais recentes sugerem que ele pode representar 20 – 25% do total dos glaucomas primários. A extensão geográfica da Ásia, a diversidade das etnias existentes e número de indivíduos envolvidos originam grandes diferenças regionais, tanto da prevalência, como do peso relativo de cada uma das formas de glaucoma172. Estas diferenças justificam a separação da população asiática em populações do subcontinente indiano, populações da China e relacionadas, e população japonesa (e ainda o pequeno grupo da população indígena da Austrália)126. Mas é duvidoso que os resultados de estudos localizados possam ser extrapolados para o conjunto. No subcontinente indiano a prevalência do glaucoma é semelhante à observada nas populações europeias e africanas, com um valor de 1,5 – 4% e aumentando com a idade. É mais frequente em meio urbano, predomina no sul da Índia e tem uma predilecção ligeiramente maior para o sexo feminino. Estudos recentes mostram que apesar do GAF ser mais frequente que nos europeus/africanos, há um predomínio do GAA, da ordem dos 3:1; pela sua importância na terapêutica, é de realçar que a maioria dos GAF corresponde a formas crónicas. Na população de etnia chinesa ou relacionada o GAF predomina nas mulheres e a sua frequência aumenta com a idade. É mais frequente que nas populações europeias, embora o GAA pareça representar cerca de 2/3 do total. Exceptuam-se a Mongólia e os esquimós, nas quais o peso do GAF é muito elevado. Na população japonesa ou relacionada a prevalência do GAA varia entre 2,6% e 5,6%, mas, por razões que não são evidentes, o GPN representa mais de 75% do total. Em relação à população australiana, a população indígena da Austrália é considerada como tendo um risco muito baixo de glaucoma, podendo a prevalência do GAA ser de apenas 0,52%. O glaucoma congénito primário é o mais frequente dos glaucomas da infância. Aparece em qualquer grupo populacional, com incidência variável com a etnia, e é um pouco mais frequente no sexo masculino. É mais frequente nas populações com elevado grau de consanguinidade, variando a sua incidência entre 1/1250 partos nos ciganos da Eslováquia e 1/20000 – 1/50000 nas populações ocidentais. Agradecimentos O autor agradece à Dr.ª Maria Cristina Ramos, do IBILI, o valioso auxílio prestado na obtenção de parte da bibliografia utilizada. Notas Incidência: proporção de indivíduos que num determinado período de tempo passam a apresentar a alteração. Prevalência: proporção de indivíduos que apresentam a alteração num determinado momento. B Abreviaturas usadas: Glaucoma de ângulo aberto (GAA). Glaucoma de ângulo fechado (GAF). Glaucoma de pressão normal (GPN). Glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA). Glaucoma primário de ângulo fechado (GPAF). Pressão intra-ocular (PIO). A Suplemento - Nº 1 - 2012 | 15 José Guilherme Monteiro Num estudo em 715 doentes com mais de 40 anos observou-se uma prevalência global de pressão ocular igual ou superior a 22 mmHg em cerca de 3% dos casos, com um valor no sexo masculino sensivelmente duplo do observado no sexo feminino (Monteiro JG. Características da pressão intra-ocular na população portuguesa. Comunicação CL10, apresentada no 48º Congresso da S.P.O., Cascais, 7-10/12/2005). C Bibliografia 1. Abu-Amero KK, González AM, Osman EA, Larruga JM, Cabrera VM, Al-Obeidan SA. Mitochondrial DNA lineages of African origin confer susceptibility to primary open-angle glaucoma in Saudi patients. Mol Vis 2011; 17: 1468-1472 2. Al-Mansouri FA, Kanaan A, Gamra H, Khandekar R, Hashim SP, Al Qahtani O, et al. Prevalence and determinants of glaucoma in citizens of Qatar aged 40 years or older: a community-based survey. Middle East Afr J Ophthalmol 2011; 18: 141-149 3. Alsbirk PH. 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Os autores confirmam que o trabalho não foi publicado e cedem os direitos de autor à SPO. Resumo Objectivo: Estima-se que se gastem mais de 130 milhões de libras por ano na cegueira provocada pelo glaucoma no Reino Unido. O objectivo deste estudo foi fazer uma análise de custos do glaucoma, segundo as perspectivas do Doente, do Sistema de Saúde e da Sociedade. Desenho do estudo, participantes e métodos: Realizou-se uma análise de custos (directos e indirectos) abordando as perspectivas supracitadas, com horizonte temporal de um ano. Obteve-se uma amostra sistemática de doentes que tiveram consulta de glaucoma durante o período do estudo (1 de Janeiro a 31 de Maio de 2011). Realizaram-se questionários estruturados e entrevistas, avaliação oftalmológica, revisão de processos clínicos e consulta de tabelas de facturação. Resultados: Entrevistaram-se 120 doentes, com uma idade média de 65 anos e 50% do sexo feminino. Cada doente gastou em média 355,28€ por ano no glaucoma (desvio-padrão(dp)=174,83); o Sistema de Saúde gastou 683,11€ por doente por ano (dp=1181,87). Na Sociedade gastou-se por doente por ano no glaucoma: 759,74€(dp=1355,82). Conclusão: Os recursos destinados à Saúde são cada vez mais limitados, e há atenção crescente aos custos e benefícios dos Cuidados de Saúde em cada patologia, nomeadamente no glaucoma. Este estudo foi a única avaliação económica realizada até à data sobre glaucoma em Portugal. Palavras-chave Glaucoma, avaliação económica, análise de custos Abstract Glaucoma in Portugal - a cost analysis. Purpose: It is estimated that costs associated with blindness caused by glaucoma exceeds £130 million per year in the United Kingdom. The purpose of this study was to conduct a cost analysis of glaucoma in Portugal, according to several perspectives: Patient costs, Healthcare costs and Societal costs. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 25 Ana Miguel, Luís Azevedo, Rui Andrês, Filipe Henriques, Nádia Lopes, Filipe Rito, João Filipe Silva Study design, participants and methods: We conducted a cost analysis of glaucoma (including direct and indirect costs) from the above perspectives, considering one year as a time unit. A systematic sample of patients with glaucoma consultation within study period (1st January to 31st May 2011) was obtained. Questionnaire, structured interview, complete ophthalmologic evaluation, chart review and review of hospital administrative data were performed for each patient. Results: 120 patients were interviewed, with mean age of 65 years and 50% female. Mean patient costs per year were 355,28€ (standard deviation (sd)=174,83); mean Healthcare costs per patient per year were 683,11€ (sd=1181,87); mean Societal costs per patient per year were 759,74€ (sd=1355,82). Conclusion: The resources devoted to health are increasingly limited, which led to increasing attention to the costs and benefits of healthcare in each disease, such as in glaucoma. To our knowledge, this study is the first economic evaluation of glaucoma in Portugal. Key-words Glaucoma, economic analysis, cost analysis. Introdução O glaucoma, tipicamente definido como sendo uma neuropatia óptica com atingimento característico dos campos visuais e com aumento da pressão intraocular (PIO) como factor de risco1, é a 2ª maior causa de cegueira a nível mundial2. Estima-se que o custo da cegueira provocada pelo glaucoma, no Reino Unido, seja superior a 130 milhões de libras anualmente3. Os custos directos do glaucoma no “Mundo Desenvolvido” foram aproximadamente 5 milhões de euros por milhão de habitantes em 2004, segundo estudos da Austrália, Finlândia e Estados Unidos4,5. Em Portugal, as avaliações económicas do glaucoma escasseiam, tornando-se necessárias particularmente nesta era de crise socio-económica. Por outro lado, é importante identificar quais os custos do glaucoma na perspectiva do doente, e quantos doentes têm dificuldade em comprar a respectiva medicação. O objectivo principal deste estudo foi estimar os custos directos e indirectos do glaucoma na perspectiva do doente, através do preenchimento de formulários e realização de entrevistas a doentes com glaucoma no nosso hospital, entre outros métodos. Objectivos secundários foram estimar os custos na perspectiva do Sistema de Saúde e da Sociedade, assim como verificar se havia relação entre a compliance do doente e os custos do glaucoma para o doente. Dada a particularidade das avaliações económicas, faz-se uma revisão de alguns conceitos frequentemente utilizados6. 26 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia A. Conceitos e definições das avaliações económicas • Custo de oportunidade - O custo de oportunidade refere-se à adequada alocação de recursos financeiros limitados. Ou seja, como não existem recursos financeiros ilimitados, deve decidir-se (após executar a respectiva avaliação económica) em qual das intervenções se devem aplicar os recursos existentes. • Eficácia, efectividade, eficiência - A eficácia mede a consequência (o resultado) de uma intervenção (por exemplo, utilizar uma prostamida no tratamento do glaucoma de ângulo aberto) nas condições ideiais (num ensaio clínico randomizado). A efectividade mede o resultado de uma intervenção nas condições reais (por exemplo, nos doentes de um consultório). A eficiência considera não só o resultado nas condições reais, mas também o seu custo face a outras intervenções. • Tipo de custos - Existem três tipos de custos a considerar nas análises económicas: 1. Custos directos (os mais fáceis e directamente mensuráveis): incluem custos da medicação, custos do pessoal de saúde (salários), custo do equipamento, custos hospitalares,... 2. Custos indirectos (difíceis de medir e ocasionalmente ignorados em algumas análises): produtividade (por exemplo faltas ao trabalho provocadas pela doença ou pelas consultas), custos com reabilitação e com cuidados de saúde (quando a doença causa incapacidade, como a cegueira provocada pelo glaucoma), custos do cuidador, ... Custo do Glaucoma em Portugal. 3. Custos intangíveis: incluem o sofrimento e a dor e são impossíveis de medir. Felizmente, através de instrumentos específicos, já se pode medir a qualidade de vida e incorporá-la nas análises económicas. • Horizonte temporal - Deve ser obrigatoriamente especificado em cada análise; é diferente gastar 1000 euros por mês ou por ano na intervenção X. • Perspectiva - Deve também ser especificada a perspectiva que uma avaliação económica estuda: do Doente (pe, quanto o doente gasta em média por ano no glaucoma), da Instituição de Saúde (pe, quanto o hospital gasta por ano no glaucoma), da Seguradora (muito utilizada nos Estados Unidos), do Sistema de Saúde, ou ainda da Sociedade (esta é tida como a perspectiva mais abrangente, apesar de frequentemente ser controversa em termos metodológicos). • Tipos de avaliação económica: 4. Análise de custos - Mede os custos das alternativas (pe, prostaglandina A custa x€ e prostaglandina B custa y€); não mede as consequências (os resultados): não mede pressão intraocular(PIO), campos visuais(CV) nem outros aspectos clínicos de glaucoma. 5. Análise de minimização de custos - Mede os custos das alternativas, assumindo que os seus resultados são equivalentes (nesse caso, a alternativa melhor é a que custa menos). 6. Análise custo-benefício - Mede os custos e os resultados das alternativas (tratamento A e B). Contudo, traduz ambos em unidades monetárias: é um tipo de análise complexa e que levanta questões morais, por exemplo, qual o preço que se deve atribuir a uma vida salva pelo tratamento A? 7. Análise custo-efectividade - Compara os custos e os resultados das alternativas; estes em termos de efectividade, ou seja, de resultado clínico. A questão que analisa é: quantas vezes o tratamento A (prostaglandina) é mais efectivo (medido por exemplo em PIO ou em cegueira evitada aos 10 anos) do que o tratamento B (bloqueador beta), e quanto tenho a pagar a mais pelo tratamento A? 8. Análise custo-utilidade - Compara custos e resultados, os últimos não só quanto a efectividade mas também quanto a qualidade de vida do doente, o que resulta numa avaliação económica ainda mais completa (apesar de difícil de obter). Material e métodos Desenho do estudo Realizou-se uma análise de custos abordando diferentes perspectivas: do doente, do Sistema de Saúde e da Sociedade. O horizonte temporal utilizado para a análise foi um ano. A duração do estudo foi de 5 meses (1 de Janeiro a 31 de Maio de 2011) . Selecção de participantes Obteve-se uma amostra sistemática de doentes que tiveram consulta de glaucoma durante o período de Janeiro a Maio de 2011. O estudo foi explicado aos doentes, com preenchimento de consentimento informado. Houve parecer positivo da Comissão de Ética do Hospital. Para serem convidados a participar, os doentes tinham de obedecer aos critérios de inclusão: • Diagnóstico de glaucoma primário de ângulo aberto • Diagnóstico efectuado pelo oftalmologista respectivo, pelo menos na consulta prévia à consulta da selecção de participantes • Doente adulto (≥ 18 anos) • Avaliação oftalmológica completa realizada nesse dia, após a entrevista Critérios de exclusão: • Outros subtipos de glaucoma • Doentes suspeitos de glaucoma (por exemplo hipertensão ocular) • Doentes com demência, ou outras patologias psiquiátricas ou neurológicas impeditivas de responder adequadamente às questões do estudo. Métodos de recolha de dados Aplicou-se um questionário (previamente construído para o efeito) e entrevista realizados pela autora AM e pela enfermeira e secretária da consulta (após treino prévio durante um estudo piloto de 10 entrevistas), com várias questões demográficas, sociais, de compliance e económicas. Cada doente teve avaliação oftalmológica completa com registo em formulário previamente elaborado. Realizou-se revisão dos respectivos processos clínicos e da base de dados administrativa do hospital. Identificação, medição e valorização dos itens de custo para a avaliação económica Custos na perspectiva do Sistema de Saúde Realizou-se revisão de processos clínicos e bases de dados administrativas (nomeadamente do SAM e do SONHO) para confirmação da medicação e para contabilização do número de consultas de glaucoma e dos exames Suplemento - Nº 1 - 2012 | 27 Ana Miguel, Luís Azevedo, Rui Andrês, Filipe Henriques, Nádia Lopes, Filipe Rito, João Filipe Silva complementares de diagnóstico (pedidos no contexto da avaliação do glaucoma) realizados até 365 dias antes da entrevista de cada doente, assim como número de trabeculoplastias a laser realizadas e número e caracterização de episódios de internamento provocados pelos glaucoma (duração, motivo, procedimentos cirúrgicos realizados, entre outros). Registou-se não só a medicação hipotensora actual, mas também a medicação hipotensora prévia (caso tivesse havido alteração no último ano), assim como o número de meses de realização de cada medicamento, de forma a obter estimativas que contabilizassem as alterações de terapêutica. Perante a impossibilidade de em Portugal calcular os custos reais das consultas, episódios de internamento e procedimentos cirúrgicos, optou-se por utilizar os valores de facturação7 e do contrato-programa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) específico com o nosso hospital, diferenciando a facturação dos doentes SNS versus doentes não SNS, excepto nas consultas onde considerámos apenas o sistema de facturação para doentes não utentes do SNS para poder contabilizar o preço dos exames complementares de diagnóstico (ECD). Ou seja, o SNS paga 116,69€ ao nosso Hospital pela 1ª consulta de glaucoma e 106,08€ pela 2ª consulta em doentes utentes do SNS, mas não paga nenhum ECD. Em utentes não pertencentes ao SNS, o SNS paga 31€ por consulta de glaucoma e adiciona o preço tabelado por cada ECD8: 19,50€ por oftalmoscopia indirecta com dilatação, 35,20€ por retinografia, 90,60€ por OCT, 127€ por HRT, 21,80€ por campos visuais, 12,90€ por paquimetria, entre outros. Considerámos a abordagem para todos os doentes de 31€ por consulta, adicionados ao valor de cada ECD para termos uma estimativa mais completa dos custos. Custos na perspectiva do Doente e da Sociedade As questões realizadas ao doente incluíram custos directos (preço da consulta e de cada um dos exames complementares de diagnóstico, custo do transporte em cada ida e regresso ao hospital por consulta, exame ou internamento, média mensal que doente atribuiu à medicação hipotensora) e custos indirectos - da sociedade (como a perda de um dia de trabalho no dia da consulta e exames, e a perda de um dia de trabalho e custo de transporte do acompanhante). Confirmou-se a medicação assumida pelo doente com a medicação prescrita através da revisão de processos clínicos. Utilizaram-se as versões online do Prontuário Terapêutico9, do Índice Terapêutico10 e o site da INFARMED11 para obter os preços actualizados e percentagens de comparticipação de cada medicamento hipotensor; quando necessário contactou-se o Delegado de Informação Médica responsável por cada medicamento. 28 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Análise estatística Utilizou-se o programa SPSS versão 19 para a análise estatística. Foram seguidas as recomendações de guidelines de avaliação económica12,13,14. Nas variáveis contínuas de distribuição normal utilizou-se o teste t para identificar diferenças entre dois grupos; na distribuição não normal utilizou-se o Mann-Whitney test. Nas variáveis categóricas com distribuição normal utilizou-se o teste de qui quadrado e nas de distribuição não normal utilizou-se o teste de Kruskal Wallis. A significância considerada foi de 0,05. Todos os custos foram calculados em euros. Resultados Caracterização da população O estudo permitiu a entrevista de 120 doentes; todos aceitaram participar. A idade média foi de 65,41 anos. Sessenta participantes (50%) eram do sexo feminino, 66,95% reformados e em que 58,12% ganhava entre 201 a 600 euros por mês. Na tabela 1 descrevem-se algumas características dos participantes. Os doentes atribuíram um gasto no glaucoma de 5,24% do seu rendimento mensal, em média; que incluiu: a consulta de glaucoma (custo médio de 2,00€ por consulta), o transporte (custo médio de 19,28€), a perda de um dia de trabalho (custo médio de 12,42€), o custo mensal da medicação (11,73€ em média). Custos na perspectiva do doente Cada doente gastou 96,80 € em média, por ano no glaucoma (desvio padrão (dp) de 84,85), assumindo a comparticipação de 90% na medicação. O valor mínimo de gasto anual foi de 9,20 € (correspondente a um doente submetido a trabeculectomia há 3 anos e atualmente sem medicação) e o valor máximo foi de 815,28€. Se nenhum dos doentes auferisse de comparticipação, o custo médio por doente e por ano no glaucoma seria 355,28€. Houve alteração da medicação em 24 doentes (20%), na maioria (16 casos) acrescentando-se medicação, com aumento dos custos respectivos. Os doente utilizaram diversos meios de transporte até à consulta, desde viatura própria (49,15%), táxi (14,41%), ambulância (2,54%), autocarro e comboio (13,56%), entre outros. O meio de transporte mais caro foi o táxi (o valor máximo de dinheiro gasto no transporte no dia da consulta foi 150€, em táxi, num doente com rendimento mensal situado entre 201 a 600€). Os custos do doente incluíram: preço das consultas e ECD, transporte (às consultas, internamento e ECD) e custo Custo do Glaucoma em Portugal. Tabela 1 | Características socio-demográficas dos participantes. Características n % Sexo feminino 60 50% Média: 65 anos Dp= 14,12 < 200€ 12 9,40% 201-600€ 70 58,12% 601-1000€ 26 22,22% 1001-1400€ 4 3,42% >1400€ 1 0,86% Não responde 7 5,98% Idade (dp: desvio-padrão) Rendimento mensal Fonte principal de rendimento Custos na perspectiva do Sistema de Saúde Os custos do Sistema de Saúde estão detalhados na tabela 2 e incluem: preço e número das consultas no último ano, preço e número de cada ECD pedido no contexto do glaucoma, custo do internamento, custo total da medicação anual (sem comparticipação). Em média, o Sistema de Saúde português gastou 683,11 € por ano por doente (dp 1181,87€). Tabela 2 | Resumo da avaliação de custos do glaucoma ao longo de um ano. Média (€) Desviopadrão Custo das consultas 2,00 5,19 Custo dos ECD 1,67 3,73 Custo do transporte 19,28 23,29 Perspectiva Perspectiva do doente Custo da medicação Trabalho dependente 20 16,95% Reforma ou pensão 81 66,95% Assumido pelo doente 140,81 142,81 Subsídio 2 1,70% Com comparticipação de 90% 30,59 16,47 Apoio família ou social 2 1,70% Sem comparticipação 305,89 164,71 Trabalho independente 5 4,24% Total de custos médios do doente* 355,28 174,83 Não responde 10 8,46% Perspectiva do Sistema de Saúde Custo das consultas 58,35 37,03 5,24% Dp= 10,43 Custo dos ECD 52,94 50,45 Custo do internamento e procedimentos cirúrgicos 5075,93 3598,45 Custo da medicação (sem comparticipação) 355,28 174,83 683,11 1181,87 Custo total médio por doente (comparticipação 90%) 355,28 174,83 Custo do Sistema de Saúde 693,28 1181,87 Custos indirectos 12,42 20,62 759,74 1355,82 Média da percentagem de rendimento mensal que o doente afirma gastar no glaucoma (dp) da medicação. Na tabela 2 encontram-se as estimativas dos custos do doente, calculado segundo os gastos assumidos pelo doente, segundo os preços da medicação comparticipada, e segundo a medicação sem comparticipação. Compliance Numa escala de 0 a 100 (sendo 0 a ausência total de compliance e 100 a compliance perfeita em todas as tomas da medicação), a compliance média assumida pelos doentes foi 94,60. A média da compliance atribuída pelo respectivo oftalmologista a cada doente foi 94,40. Não houve correlação estatisticamente significativa entre estas duas medidas (p=0,334, correlação de Pearson), nem relação entre o rendimento mensal dos participantes e a sua compliance (teste de Kruskal-Wallis, p=0,479). Contudo, 67,23% dos doentes admitiu ter tido dificuldade em comprar a medicação hipotensora em algum momento no último ano. Total do custo médio do Sistema de Saúde (por doente e por ano)* Perspectiva da Sociedade Custo médio total para a Sociedade (por doente por ano)** * Note-se que o total de custos foi obtido através da média da soma, para cada doente, do valor de cada item de custo (como recomendado pelas guidelines de avaliação económica); não correspondendo por isso à soma das médias apresentadas. **Este valor não foi obtido através da soma das médias, mas do valor de cada item de custo em cada doente. O custo médio anual da medicação hipotensora (presente no custo do doente e no custo do Sistema de Saúde) não foi contabilizado duas vezes no custo da Sociedade. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 29 Ana Miguel, Luís Azevedo, Rui Andrês, Filipe Henriques, Nádia Lopes, Filipe Rito, João Filipe Silva Houve apenas 5 doentes internados de entre os participantes para cirurgia de glaucoma; contudo a média de custos do Sistema de Saúde no glaucoma foi superior: 5075,93€ por ano por doente internado (dp 3598,45). Custos na perspectiva da Sociedade Os custos da Sociedade incluíram os custos do doente, os custos do Sistema de Saúde e alguns custos indirectos (que por sua vez incluíram custo médio do(s) dia(s) de trabalho perdido(s) por consulta, ECD e internamento e custo de transporte e trabalho perdido de acompanhante, se presente). O custo médio da Sociedade por doente e por ano foi de 759, 74 € (dp 1355,82) e encontra-se descrito na tabela 2. Discussão O que este estudo acrescenta à evidência prévia Este trabalho foi a única avaliação económica sobre o glaucoma em Portugal até à data. Não se identificou nenhum estudo em Portugal sobre o glaucoma após realização de revisão bibliográfica em várias bases de dados: Pubmed, Scopus, Cochrane Central, Ovid, EconLite, Centre for Reviews and Dissemination (que inclui a NHS economic database, DARE e Health Technology Assessment) e que permitiu identificar 6350 artigos, todos internacionais (resultados da pesquisa disponíveis mediante contacto com os autores). Esta avaliação de custos não pretende ser exaustiva, mas constituir uma primeira estimativa e um estímulo para avaliações económicas completas realizadas a nível nacional. Os custos do glaucoma em Portugal são elevados. Como não há estudos de prevalência em Portugal (e a prevalência mundial varia entre 1% e 4%, segundo vários estudos15-18), se assumirmos conservadoramente uma prevalência semelhante à da prevalência espanhola (calculada num estudo espanhol19) de 2%, teremos 211117 doentes com glaucoma primário de ângulo aberto em 10555853 habitantes (segundo os censos 201120). Nesse caso, podemos inferir que: • Em Portugal, o Sistema de Saúde poderá gastar mais de 144 milhões de euros por ano no glaucoma (mais concretamente 144.216.175,00 €) • Em Portugal, poderá gastar-se mais de 160 milhões de euros por ano no glaucoma (na perspectiva da Sociedade; concretamente 160.394.030 €) Note-se que este valor depende de várias assumpções (nomeadamente da prevalência, da amostra representativa da população geral e dos doentes com glaucoma estarem diagnosticados e tratados) e deverá ser utilizado apenas como indicador geral. Por outro lado, os autores acreditam 30 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia que este valor poderá ser inferior ao real, porque não foi estimado o custo da cegueira provocada pelo glaucoma em Portugal e outros custos indirectos, geralmente responsáveis por uma grande percentagem dos custos totais associados ao glaucoma e que só com um estudo realizado a nível nacional poderão ser convenientemente estimados. Vantagens do trabalho Identificaram-se os custos de glaucoma em Portugal em várias perspectivas: do Doente, do Sistema de Saúde e da Sociedade. Foi possível estimar custos indirectos; no entanto estes foram menores do que o esperado (devido à elevada percentagem de reformados e de acompanhantes desempregados, que reduziu a média de dinheiro perdido por faltar ao trabalho para ir a exames ou consultas ou por internamento). Os custos da medicação podem reduzir a compliance do doente, já que a maioria dos doentes (67,23%) admitiu ter tido dificuldades económicas em comprar a medicação no último ano. Os custos que os doentes afirmam ter com a medicação não estão correlacionados com os custos reais calculados com comparticipação (há custos assumidos bastante inferiores e outros bastante superiores em relação aos custos actuais, não se verificando nenhuma tendência de desvio). Do mesmo modo, a percentagem de rendimento mensal gasta no glaucoma assumida pelo doente não está relacionada com a calculada em vários casos, nomeadamente nos que mudaram de medicação. Foram poucos os doentes que souberam dizer correctamente todos os nomes da respectiva medicação hipotensora. É necessário alertar o doente para a importância de compreender a sua patologia e de saber exactamente qual a sua medicação. Limitações e sugestões de estudos futuros Como qualquer avaliação económica e particularmente como a 1ª a ser realizada, este estudo tem várias limitações. Na perspectiva de Sistema de Saúde, utilizaram-se dados de facturação hospitalar como estimativa de custos, porque os custos reais são geralmente desconhecidos em Portugal. Seria importante estimar os custos reais para se obter uma estimativa mais adequada; salienta-se deste modo a importância de projectos de custeio que já dão os primeiros passos nalguns hospitais portugueses. Nenhum dos participantes foi submetido a trabeculoplastia laser, não nos permitindo ter dados de custo sobre esta opção terapêutica. Dos 120 participantes, 5 foram submetidos a cirurgia de glaucoma com internamento no último ano; nestes doentes a média de custo do Sistema de Saúde foi muito superior em relação aos doentes não Custo do Glaucoma em Portugal. submetidos a cirurgia. Contudo, ressalve-se que houve 7 doentes submetidos a trabeculectomia (ou Express) há mais de um ano e controlados sem medicação hipotensora na data da entrevista, tendo custo nulo de medicação; consequentemente o custo inicial da opção cirúrgica é muito elevado mas nos anos seguintes tende a reduzir e eventualmente poderá ser custo-efectivo. Para se poder comparar verdadeiramente as opções terapêuticas do glaucoma, teria de se fazer uma avaliação económica completa e a nível nacional, nomeadamente uma avaliação de custo-efectividade ou de custo-utilidade. Também seria extremamente útil a realização de um coorte a nível nacional para estimar os custos do glaucoma de acordo com a severidade da doença e os custos da cegueira provocada pelo glaucoma (que são habitualmente extremamente elevados). Conclusão Obteve-se uma primeira abordagem à avaliação de custos de glaucoma em Portugal, que pode e deve ser complementada com diversas avaliações económicas completas e nacionais. Agradecimentos À Paula, secretária de Oftalmologia, pelo esforço dispendido com as entrevistas e questionários assim como pelo fornecimento de vários dados administrativos, que em muito ultrapassou as obrigações profissionais. Aos enfermeiros e técnicos da consulta de Oftalmologia, pelo apoio incondicional antes, durante e depois da realização deste trabalho. Ao Serviço de Planeamento e Controlo de Gestão do Centro Hospitalar de Coimbra, por responderem a inúmeras questões administrativas e de facturação durante o cálculo de custos. Ao Dr. Fernando Lopes, Auditor de Codificação do Hospital São João, por todos os esclarecimentos prestados relativamente a dados de facturação. Bibliografia 1. American Academy of Ophthalmology. Glaucoma. Section 10 in AAO’s Basic and Clinical Science Course, 2008; 10: 5-35. 2. Kingman S. Glaucoma is second leading cause of blindness globally. Bull World Health Organ. 2004 Nov;82(11):887-888. 3. Coyle D, Drummond M. 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Censos 2011: “População portuguesa 32 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia cresceu 1,9 por cento desde 2001”, em http://www. publico.pt/Sociedade/populacao-portuguesa-cresceu-19-desde-2001_1500879. Site acedido em Julho de 2011. Contacto [email protected] Rua António Jardim, nº148, 1º esquerdo 3000-035 Coimbra Oftalmologia (suplemento) - Vol. 36: pp.33-40 Artigo Original Qualidade de Vida no Glaucoma Ana Miguel1, João Filipe Silva2, Luís Azevedo3, Filipe Henriques2, Rui Andrês1, Nádia Lopes2, Filipe Rito2, António Roque Loureiro4 Interno Complementar de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. 2 Assistente hospitalar de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. 3 Professor do Serviço de Bioestatística e Informática Médica, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto 4 Director de Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. 1 Os autores confirmam que não têm interesses comerciais a declarar. Os autores confirmam que o trabalho não foi publicado e cedem os direitos de autor à SPO. Resumo Introdução: Vários artigos sugerem que a qualidade de vida está diminuída no glaucoma, particularmente no glaucoma avançado. Este estudo teve diversos objectivos: 1. Caracterizar os doentes com glaucoma no nosso hospital, particularmente quanto à qualidade de vida (não só a qualidade de vida geral mas também a qualidade de vida visual). 2. Determinar se os doentes com glaucoma têm menor qualidade de vida do que os doentes com outras patologias oftalmológicas. 3. Avaliar se existe correlação entre defeitos do campo visual e qualidade de vida relacionada com a visão. Materiais e métodos: Aplicação de questionários com entrevista e avaliação oftalmológica a uma amostra aleatória de doentes com glaucoma (casos) e sem glaucoma (controlos), recrutados ao longo de 7 meses na Consulta(Janeiro-Julho de 2011). Utilizaram-se vários instrumentos validados de medição da qualidade de vida: geral (Short Form Survey -SF12), específica oftalmológica (“termómetro visual”) e específica de glaucoma (Glaucoma Quality of Life 15 e Glaucoma Symptom Scale). Resultados: Foram entrevistados 166 doentes (35 controlos e 131 casos). A média de idades foi de 64 anos, com 54,3% do sexo feminino. Os doentes com glaucoma apresentaram pior resultado na medição da qualidade de vida. Identificou-se correlação negativa apenas nalguns parâmetros da qualidade de vida visual com os defeitos campimétricos. Conclusões: A qualidade de vida é um conceito universal mas difícil de medir. Com a utilização de alguns instrumentos de medição, apesar de terem aplicação morosa, conseguiu-se apresentar a primeira estimativa da qualidade de vida nos doentes com glaucoma em Portugal. Palavras-chave Glaucoma, qualidade de vida. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 33 Ana Miguel, João Filipe Silva, Luís Azevedo, Filipe Henriques, Rui Andrês, Nádia Lopes, Filipe Rito, António Roque Loureiro Abstract Quality of Life in Glaucoma in Portugal. Purpose: several papers suggests that quality of life is reduced in glaucoma, particularly in severe glaucoma. This study had several purposes: 1. To measure general quality of life (QoL) and vision-related quality of life in patients with glaucoma in our hospital. 2. To assess if glaucoma patients have worse quality of life than other ophthalmic pathologies. 3. To assess the relationship between quality of life scores and visual field loss. Study design, participants and methods: We conducted structured interviews with questionnaires and ophthalmologic evaluation, to a randomized sample of patients with glaucoma (cases) and without glaucoma (controls), recruited in our hospital during study period (7 months, from 1st January to the 31st July 2011). Several validated instruments were used, such as general Short Form Survey 12 (SF12), specific visual (visual analogic scale “thermometer”), but also specific for glaucoma (Glaucoma Symptom Scale -GSS- and Glaucoma Quality of Life -GQL15). Results: We evaluated 166 patients (35 controls and 131 cases), with mean age of 64 years and 54,3% female. Patients with glaucoma presented worse QoL scores in all scales. Negative correlation was identified in some QoL scales with visual defects. Conclusion: Quality of life is a universal concept but difficult and time-consuming to measure. We present the first estimate of quality of life in glaucoma in Portugal. Key-words Glaucoma, life quality. Introdução O glaucoma é a 2ª maior causa de cegueira a nível Mundial1. Esta patologia causa dano ao nervo óptico, com consequente característica constrição dos campos visuais2, que progressivamente vai afectando o dia-a-dia do doente em diversas tarefas, com consequente redução da função visual global e da qualidade de vida, antes da redução da acuidade visual. No seguimento de um doente com glaucoma, a avaliação clínica é fundamental, mas não permite caracterizar a forma como o doente lida com a sua doença, com o seu tratamento, nem qual o seu impacto no dia-a-dia. Para colmatar esta lacuna e complementar a nossa compreensão acerca desta complexa patologia, existe um interesse crescente na medição da qualidade de vida. A qualidade de vida, apesar de ser um conceito universal, é extremamente subjectiva. Para se conseguir medir objectivamente as preferências (nomeadamente a qualidade de vida), criaram-se instrumentos de medição que necessitam de aplicação rigorosa e demorada. Existem diversos instrumentos validados para a medição da qualidade de vida, nomeadamente o Short Form 36 34 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SF36, com 36 questões colocadas ao doente sobre aspectos da sua saúde física, psicológica e dor)3, o Short Form 124,5 (SF12, com 12 questões). Em relação à qualidade visual auto-reportada, salientam-se o termómetro6 (o doente escolhe numa escala analógica visual de 0 a 100, como classifica a sua visão), e o Visual Functioning 147 (VF14, questionário com 14 questões sobre actividades relacionadas com a visão, muito utilizado na catarata). De facto, estudos sugerem que os doentes valorizam a sua visão mais do que os médicos pensam8,9. Uma recente revisão sistemática10 comparou instrumentos de medição de qualidade de vida específicos do glaucoma, dos quais se salientam a Glaucoma Symptom Scale 10 (GSS10)11 e a Glaucoma Quality of Life 15 (GQL15)12. Vários artigos sugerem que a qualidade de vida está reduzida no glaucoma, particularmente no glaucoma avançado13,14, e identificou-se recentemente que as alterações campimétricas se traduzem em impacto negativo na qualidade de vida15,16. Em Portugal não há estudos sobre o glaucoma que contrariem ou apoiem esta evidência (todavia, existem estudos sobre catarata e qualidade de vida17). O objectivo principal deste trabalho foi caracterizar a Qualidade de Vida no Glaucoma. população de doentes com glaucoma no nosso hospital, quanto à qualidade de vida geral, visual e específica do glaucoma. Objectivos secundários foram: determinar se os doentes com glaucoma têm menor qualidade de vida do que os doentes com outras patologias oftalmológicas. 3. Avaliar se existe correlação entre defeitos do campo visual e baixa qualidade visual. Material e métodos Desenho do estudo Realizou-se um estudo caso-controlo com aplicação de questionário e entrevista a uma amostra aleatória de doentes com glaucoma (casos) e de doentes sem glaucoma (controlos). A duração do estudo foi de 7 meses (1 de Janeiro a 31 de Julho de 2011). Foi explicado ao doente os objectivos do estudo, com preenchimento de consentimento informado. O estudo teve parecer positivo da Comissão de Ética Hospitalar. Selecção de participantes Casos: Obteve-se uma amostra aleatória de doentes que tiveram consulta de glaucoma durante o período de estudo. Os doentes eram convidados a participar no estudo caso respeitassem todos os critérios de inclusão: • Diagnóstico de glaucoma de qualquer subtipo • Diagnóstico efectuado pelo menos há 6 meses por oftalmologista • ≥ 18 anos Critérios de exclusão: • Demência, patologias psiquiátricas ou neurológicas impeditivas de responder adequadamente às questões do estudo • Patologias oftalmológicas concomitantes graves: catarata > grau I segundo classificação LOCS II18, tratamento prévio a laser ou cirúrgico (excepto se relacionado com o glaucoma), patologia vitreo-retiniana ou outra patologia oftalmológica condicionando acuidade visual <5/10 • Hipertensão ocular Não foram excluídos os doentes com ametropia (excepto se houvesse retinopatia associada, por exemplo na retinopatia miópica), doentes com catarata incipiente. Controlos: • Os controlos foram seleccionados de uma amostra aleatória de doentes com consulta de Oftalmologia geral durante o tempo em que o estudo decorreu, tendo sido convidados a participar no estudo e a responder a questionário com entrevista, seguidos de avaliação oftalmológica completa. Critérios de inclusão para os controlos: ≥ 18 anos, patologia oftalmológica (nomeadamente ametropia) e capacidade de responder adequadamente às questões do estudo. Critérios de exclusão: diagnóstico de glaucoma. Não se excluíram dos controlos os doentes com hipertensão ocular, desde que nunca tivessem feito medicação, não tivessem nenhum factor de risco de glaucoma, e a pressão intraocular não fosse superior a 26mmHg, para se poder comparar os campos visuais realizados nestes doentes com os campos visuais dos casos. Métodos de recolha de dados Nos doentes com glaucoma (casos), aplicou-se um questionário (previamente construído para o efeito) com entrevista estruturada, realizados pela autora AM e pela enfermeira e secretária da consulta (após um estudo piloto com 10 entrevistas), com questões demográficas e com vários instrumentos validados de medição da qualidade de vida: geral (SF12), específica oftalmológica (“termómetro visual”, que consistia numa escala visual analógica para avaliação da acuidade visual auto-reportada) e específica do glaucoma (GSS10 e GQL15). Todos os doentes tiveram avaliação oftalmológica completa e revisão de processos clínicos para identificar variáveis clínicas sumárias (como acuidade visual, diagnóstico, medicação hipotensora e pressão intraocular -PIO). Contudo, por limitações de tempo da consulta, apenas num subgrupo aleatório dos doentes seleccionados se planeou também o registo (por um dos autores RA, FR, NL ou JF), em formulário (previamente construído para o efeito) de vários aspectos clínicos detalhados, nomeadamente: • Co-morbilidades gerais (de acordo com uma lista previamente publicada)19 • Co-morbilidades oculares19 • Subtipo de glaucoma e factores de risco para o glaucoma2 • Medicação hipotensora, utilização de lubrificante ocular e valor de compliance que oftalmologista atribuiu ao doente • Todos os antecedentes oculares e todos os tratamentos oftalmológicos utilizados no doente desde a 1ª consulta no Hospital • Dados referentes à consulta nesse dia, como acuidade visual (testada a 4m em escala modificada Early Treatment Diabeti Retinopathy Study e convertida para escala logMAR20), sintomas, biomicroscopia, gonioscopia, paquimetria, pressão intraocular (PIO) segundo tonómetro de sopro e tonómetro de Suplemento - Nº 1 - 2012 | 35 Ana Miguel, João Filipe Silva, Luís Azevedo, Filipe Henriques, Rui Andrês, Nádia Lopes, Filipe Rito, António Roque Loureiro Goldmann, campos visuais (CV) (Humphrey Automated Field Analyser, algoritmo threshold, standard 24:2; foram registadas as alterações da campimetria para cada olho nomeadamente quanto a tipo de escotoma, e valor médio de desvio - MD- assim como pattern standard deviation - PSD), Ocular Coherence Tomography (OCT) (com registo da alteração subjectiva e objectiva quanto a valores da camada de fibras nervosas em cada quadrante, para cada olho) e Heidelberg Retina Tomography II (HRT) (com registo da alteração subjectiva e objectiva quanto a valores da rima neural e da escavação) • Consulta de glaucoma realizada há cerca de dois anos, se existente, com registo de todos os dados semelhantes aos supracitados. Caso não existisse, seria registada a consulta de glaucoma prévia com todos os dados, registando também a data da consulta. • Opinião do oftalmologista assistente quanto a existência/ausência de progressão do glaucoma, e justificação • Opinião do oftalmologista assistente quanto a severidade do glaucoma, e justificação. • À semelhança de outros estudos21, estratificámos a severidade do glaucoma de acordo com o valor de MD do campo visual em inicial (MD>-0,50dB), moderado (MD de -5 a -12dB) e severo (MD <-12dB). Nos controlos, a metodologia aplicada foi a mesma, excepto o registo de variáveis clínicas detalhadas em formulário durante a consulta de Oftalmologia, que foi planeado em todos os controlos. Análise estatística A análise estatística foi realizada com o programa SPSS versão 19. A significância considerada foi de 0,05. Utilizou-se o teste t para identificar diferenças em dois grupos nas variáveis contínuas de distribuição normal, e o Mann-Whitney test nas variáveis contínuas de distribuição não normal (que não passassem no teste Kolmogorov -Smirnof). Nas variáveis contínuas com mais do que duas comparações (mais do que dois grupos), utilizou-se o one-way ANOVA (caso passassem nos testes de Kolmogorov-Smirnov e de Levene), com ajuste de Bonferroni para comparações múltiplas. Utilizou-se o teste qui quadrado nas variáveis categóricas sempre que não foi possível utilizar o teste exacto de Fisher; ajustou-se a significância para evitar o viés de comparações múltiplas através do ajuste de Bonferroni. Para identificar correlações entre variáveis contínuas utilizou-se a correlação de Pearson e a correlação de Spearman, nomeadamente para os scores médios de SF12, GSS e GQL15 em relação ao MD do 36 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia campo visual, calculado para o melhor olho, para o pior olho e para a média dos 2 olhos. Realizou-se a metodologia descrita em cada instrumento4,11,12 (SF12, GSS e GQL10) para se obterem as medidas de preferência associadas, subescalas e escala composite em cada instrumento de medição de qualidade de vida: • Recorreu-se ao modo de sintaxe do SPSS para, de acordo com as metodologias recomendadas3,4, a partir de cada uma das respostas do SF12, se calcularem as respectivas 8 dimensões: função física, desempenho físico, dor física, percepção geral de saúde, vitalidade, função social, desempenho emocional e saúde mental; e as 2 subescalas: Componente Sumária Física (PCS) e Componente Sumária Mental (MCS). Valores maiores de PCS e MCS correspondem a melhor qualidade de vida. • O GSS11 inclui 10 questões, 6 referentes a sintomas não visuais (subescala SYMP-6) e 4 referentes a sintomas visuais (FUNC-4). Executou-se a metodologia de agregação de dados recomendada11 para obter o valor de GSS Sumário, que varia de 0 a 100 (0 representa máximo incómodo, 100 representa mínimo incómodo). Assim, quanto menor o valor desta escala, menor a qualidade visual. As 10 questões do GSS são: ○○ Sensação de queimadura, ardor ou picada ○○ Lacrimejo ou estar sempre a chorar ○○ Sensação de olho seco ○○ Comichão, vontade de coçar ○○ Ter a vista “cansada” ○○ Visão turva ou desfocada ○○ Sensação de ter algo dentro do olho ○○ Dificuldade em olhar para a luz ○○ Dificuldade em ver em sítios escuros ○○ Ver halos à volta das luzes • O GQL1512 inclui 15 questões que podem ser agregadas numa única medida sumária através da simples soma entre os valores das respostas das 15 variáveis. Deste modo, quanto maior o valor desta escala, menor a qualidade visual. Em cada uma das questões, o doente selecciona um valor de 0 (não consegue realizar por motivos não visuais), 1( nenhuma dificuldade) a 5(máxima dificuldade): ○○ Ler jornais ou revistas ○○ Caminhar quando está escuro ○○ Conseguir ver à noite ○○ Caminhar em pavimento com desníveis ○○ Adaptar-se à luz intensa ○○ Adaptar-se a iluminação fraca ○○ Passar de um quarto iluminado para outro escuro Qualidade de Vida no Glaucoma. ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ou vice-versa Evitar tropeçar em objectos Detectar objectos a aproximar-se de lado Atravessar a estrada Subir ou descer escadas Evitar bater contra objectos Estimar distância do pé a um degrau Encontrar objectos caídos Reconhecer caras Resultados Caracterização dos participantes Foram entrevistados 166 doentes (28 controlos sem glaucoma, 91 casos com glaucoma, 40 casos com glaucoma e com preenchimento de formulário e 7 controlos com suspeita de glaucoma sem medicação). A média de idades foi de 64 anos, com 54,3% do sexo feminino. Na tabela 1 apresentam-se as principais características dos participantes. Os controlos apresentaram semelhante ditribuição de idade, género, escolaridade e fonte de rendimento do que os casos. Dos 35 controlos, 7 tinham suspeita de glaucoma sem medicação, 14 ametropia, 9 catarata e 7 degeneração macular relacionada com a idade. Nos 131 casos com glaucoma incluíram-se vários subtipos de glaucoma, representados na figura 1. Vinte e oito (21,4%) dos casos tinham história familiar positiva como factor de risco para o glaucoma; não se identificaram outros factores de risco. Fig. 1 | Frequência relativa dos subtipos de glaucoma dos casos. Tabela 1 | Características socio-demográficas dos participantes. Características n % Sexo feminino 90 54,3% Média: 64 anos Dp= 15,88 Sem escolaridade 11 6,6% 1º Ciclo 92 55,4% 2º Ciclo 9 5,4% 3º Ciclo 11 6,6% Ensino Secundário 17 10,2% Ensino Superior 14 8,4% Mestrado ou Doutoramento 2 1,2% Não responde 10 6,2% Trabalhador dependente 35 21,1% Reforma ou pensão 105 63,3% Subsídio 2 1,2% Apoio família ou social 2 1,2% Trabalhador independente 5 3,0% Não responde 17 10,2% Idade (dp: desvio-padrão) Escolaridade Fonte de rendimento Qualidade de vida: casos versus controlos Em todos os instrumentos de medição de preferências/ qualidade de vida, houve pior classificação nos casos (com glaucoma) do que nos controlos (sem glaucoma): quer no GSS, no GQL15 (representado na figura 2), no termómetro visual e até mesmo nas duas subescalas do SF12 (MCS e PCS). A diferença foi estatisticamente significativa para: GSS (p=0,009), GQL (p=0,004; representado na figura 2), SF12 PCS (p=0,003); mas não para a escala termómetro (p=0,091) nem para SF12 MCS (p=0,156) - teste não paramétrico de Mann-Whitney. Não houve diferença estatisticamente significativa entre o nº de comorbilidades sistémicas nos casos em relação aos controlos (p=0,1619). Relação da qualidade de vida com defeitos campimétricos Testou-se a correlação entre o defeito do campo visual (em valor de desvio médio (MD) segundo abordagens de melhor olho, pior olho e média) e as variáveis: idade, Suplemento - Nº 1 - 2012 | 37 Ana Miguel, João Filipe Silva, Luís Azevedo, Filipe Henriques, Rui Andrês, Nádia Lopes, Filipe Rito, António Roque Loureiro os resultados estatisticamente significativos: • MD melhor olho e acuidade visual (Pearson= 0,414, p=0,011) • MD melhor olho e termómetro (Pearson=0,489, p=0,005) • MD médio e acuidade visual • MD médio e termómetro (Pearson= 0,417, p=0,019) No MD pior olho, nenhum instrumento teve correlação estatisticamente significativa. Relativamente à idade: não se identificou correlação entre defeitos do campo visual, mas com SF12 MCS e SF12 PCS. Fig. 2 | Média do score para cada uma das perguntas do GQL15. Verifica-se que as pontuações são superiores nos casos (pior qualidade visual) do que nos controlos. acuidade visual do olho respectivo, GSS, GQL15, SF12 MCS, SF12 PCS e termómetro (como a figura 3 demonstra). Todos os instrumentos de medição apresentaram correlação com os defeitos de campo visual; salientam-se apenas Fig. 3 | Gráfico de dispersão representando a correlação entre termómetro visual e defeito do campo visual. Verifica-se que há correlação positiva entre os valores do termómetro visual (quanto maiores, melhor a qualidade visual) e o defeito campimétrico (quanto maior, ou seja, menos negativo, menor o defeito visual campimétrico). Há correlação moderada (R2) nos dois subgrupos, mesmo no grupo de controlos que foi submetido a campo visual.. 38 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Relação da qualidade de vida com severidade do glaucoma Testou-se também a relação entre severidade do glaucoma (categorizada de acordo com o defeito do campo visual: MD) e os instrumentos de qualidade de vida. Os resultados não foram estatisticamente significativos. Discussão Apresenta-se a primeira estimativa da qualidade de vida no glaucoma em Portugal. Em todos os instrumentos de medição de qualidade de vida, os doentes com glaucoma tiveram pior desempenho do que os doentes sem glaucoma. Vantagens do estudo Em todos os instrumentos de medição de preferências, houve pior classificação nos casos do que nos controlos. Surpreendentemente, este desempenho reduzido foi estatisticamente significativo não só para a qualidade de vida relacionada com a visão, mas também geral: no SF12 PCS (SF12 componente sumário físico). Como não houve diferença nas comorbilidades (nem nas características socio-demográficas) entre casos e controlos, este pior resultado poderá estar dependente simplesmente do glaucoma, como sugerido em alguns estudos22, mas não outros16. Foi possível demonstrar a existência de correlação negativa da qualidade de vida com defeitos de campo visual, com destaque para a performance do termómetro visual (a única escala com correlação estatisticamente significativa); chama-se assim a atenção para o potencial deste instrumento fácil de usar mas pouco frequentemente utilizado6. Limitações Este trabalho apresenta várias limitações potenciais: A amostra é relativamente pequena; apesar de estar dentro dos valores de vários estudos6,17,22, está longe dos 213 casos e 2821 controlos do Los Angeles Latino Eye Study16. Seria desejável realizar um estudo com uma amostra mais Qualidade de Vida no Glaucoma. representativa da população portuguesa, nomeadamente multicêntrico nacional, em que se fizesse a avaliação completa oftalmológica e revisão de processos para identificar todos os antecedentes sistémicos e oftalmológico relevantes, assim como o resultado de exames complementares de diagnóstico. Os instrumentos utilizados foram todos validados, mas para a língua inglesa (validá-las para língua portuguesa iria por si só necessitar de dois a três estudos independentes, com tradução-retradução e confirmação da validade: validade facial, validade de constructo, validade clínica; correlações com teste-reteste e várias outras metodologias rigorosas). Traduzi-los apenas uma vez, mesmo tendo o cuidado de treinar os entrevistadores, estruturar entrevistas e questionários e efectuar um estudo piloto como fizémos, pode resultar em viés. O facto de não termos utilizado CV binocular de Esterman não deve ser considerado como uma limitação porque segundo Jampel6 a correlação deste CV com várias escalas de qualidade de vida (time trade-off, adjusted linear rating scale, ...) foi má. Conclusão A qualidade de vida é um conceito tão universal quanto subjectivo e consequentemente difícil de medir. Com a utilização de alguns instrumentos de medição, apesar de terem aplicação morosa e rigorosa, conseguiu-se apresentar a primeira estimativa da qualidade de vida nos doentes com glaucoma em Portugal. Agradecimentos À Paula, secretária de Oftalmologia, pelo esforço dispendido com as entrevistas e questionários, assim como pelo fornecimento de vários dados administrativos. Aos enfermeiros e técnicos da consulta de Oftalmologia, pelo apoio antes, durante e depois da realização deste trabalho. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. Bibliografia 1. Kingman S. Glaucoma is second leading cause of blindness globally. 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Métodos: Estudo prospectivo, comparativo. Dez doentes com síndrome pseudo-esfoliativa unilateral foram seleccionados na Consulta de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, entre Maio a Julho de 2011. Todos foram submetidos a topografia corneana e microscopia confocal in vivo e os resultados comparados com 10 olhos normais. Constituíram-se 3 grupos: olhos com pseudo-esfoliação evidente (GP); olhos adelfos (GA) e olhos normais (GC). Na topografia analisou-se a paquimetria, astigmatismo e queratometria média e na microscopia confocal as densidades celulares epiteliais e endoteliais e a morfologia do plexo nervoso sub-basal. Procedeu-se ainda ao teste de Schimmer, avaliação do tempo de ruptura do filme lacrimal e avaliação da superfície ocular com corante vital e foi realizado um inquérito sobre o impacte de sintomas de olho seco sobre a qualidade de vida. Resultados: Os resultados topográficos foram similares nos GP e GA, mas distintos do GC, que apresentaram valores superiores de paquimetria e inferiores de curvatura e astigmatismo corneano. Somente o primeiro e último parâmetro apresentaram significância estatística (p<0.05). Na microscopia confocal detectaram-se diferenças significativas entre GP e GA versus GC, nomeadamente menor densidade celular no epitélio basal e endotélio e alterações das fibras nervosas sub-basais De salientar a presença de depósitos hiper-reflectivos no epitélio basal e estroma pré-endotelial no GP e GA, ausentes no GC. Conclusões: A síndrome pseudo-esfoliativa pode associar-se a alterações corneanas e da função lacrimal, e nos casos unilaterais esses achados estão presentes bilateralmente. Palavras-chave Síndrome pseudo-esfoliativa, topografia, microscopia confocal, filme lacrimal, OSDI. Abstract Purpose: To characterize corneal changes in pseudoexfoliation syndrome using corneal topography and confocal microscopy. Methods: Prospective, comparative study. Ten patients with unilateral pseudoexfoliation syndrome (PEX) were recruited from Centro Hospitalar de Lisboa Central, from May to July 2011. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 41 Duarte, A.; Maduro, V.; Alves, N.; Feijão, J.; Batalha, C.; Candelária, P.; Trigo, M. Corneal topographic maps and vivo confocal microscopy were obtained and compared with 10 healthy eyes. Three groups of eyes were formed: eyes with clinical pseudo-exfoliation (PG); the contralateral eyes of those patients (AG) and normal eyes (CG). Several parameters were analyzed: central corneal thickness, astigmatism, curvature, epithelial and endothelial cell densities and sub basal nerve density and morphology. Schimmer test, tear film break-up time and ocular surface evaluation with a vital dye were also done. All patients answered a questionnaire related to symptoms of dry eye . Results: We found similar topographic results in the GP and GA groups, which were different from those obtained GC (that had higher values of pachymetry, and lower values of corneal curvature and astigmatism). Only the first and last parameter showed statistical significance. In vivo confocal microscopy showed significant differences between pseudoexfoliation eyes and contralateral eyes versus normal eyes, with lower cellular densities and lower density, brunching and thickness and higher tortuosity of sub basal nerves. It was also possible to see hyper reflective deposits in basal epithelium and posterior stroma in pseudoexfoliation and contralateral eyes, which were absent in the control eyes. Conclusions: Pseudoexfoliation syndrome can be related to corneal and tear function changes and unilateral cases of pseudoexfoliation syndrome show evidence of bilateral changes. Key-words Pseudoexfoliation syndrome, topography, confocal microscopy, tear film, OSDI. Introdução A síndrome pseudo-exfoliativa (PSE) foi inicialmente descrita em 1917, por Lindberg, um oftalmologista finlandês, e é actualmente considerada como uma manifestação ocular de uma microfibrilopatia elástica sistémica(1). Embora a sua etiologia exacta seja ainda desconhecida, sabe-se estar associada a anomalias da produção da membrana basal epitelial, com envolvimento do epitélio do corpo ciliar, íris e cristalino pré-equatorial. Tem sido sugerido que as células endoteliais da córnea, músculo liso da íris e endotélio vascular podem igualmente estar implicadas. A hipótese actualmente mais aceite é a de que constitua uma forma de elastose sistémica (com envolvimento pulmonar, cutâneo, hepático, do tecido conjuntivo, e das meninges)(2), dado que os depósitos, de aspecto flocular e tom branco-acizentado, são maioritariamente constituídos por componentes das microfibrilas elásticas (elastina, amilóide P, fibrilina-1, vibronectina). A sua prevalência varia com a localização geográfica, etnia, sexo e idade, sendo mais frequente em países escandinavos, onde é responsável por mais de 50% dos casos de glaucoma primário de ângulo aberto(3,4). É raro antes dos 50 anos(5) sendo que a sua associação a um maior risco de mortalidade de etiologia cárdio e cerebrovascular é ainda controversa(6). A nível ocular caracteriza-se pela produção e deposição de material extracelular anómalo ao longo da margem 42 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia pupilar e de forma difusa nas estruturas oculares anteriores, incluindo a cápsula anterior do cristalino, íris, zónula e endotélio(7). O sinal mais característico corresponde à formação de um triplo anel na cápsula anterior do cristalino, mais evidente após dilatação, podendo igualmente estar presentes disfunção da barreira hemato-aquosa, dispersão pigmentar e cataratas nucleares. De salientar o risco acrescido de glaucoma, facodonesis e subluxação do cristalino e complicações na cirurgia do segmento anterior(8). O PSE é unilateral em cerca de metade dos casos, contudo, material pseudo-esfoliativo pode quase sempre ser demonstrado nos olhos adelfos por microscopia electrónica e biopsia conjuntiva(9). Têm sido demonstradas várias alterações a nível da córnea, que incluem desde a deposição de material pseudo-esfoliativo(10) a alterações morfológicas do endotélio(11,12), da espessura e curvatura corneanas(13), da sensibilidade(14) e da produção lacrimal(15). Recentemente o aparecimento do microscópio confocal veio dar um enorme contributo para a avaliação de vários quadros patológicos(16), porém existem poucos dados sobre a sua aplicação na patologia focada neste estudo(17,18). O nosso objectivo é o de aprofundar o grau de envolvimento da córnea na PSE, avaliando, em casos macroscopicamente unilaterais e normotensionais, alterações na espessura, curvatura e microscopia confocal in vivo, bem como eventual comprometimento da função lacrimal e superfície ocular que possam estar associadas, de forma a melhorar a abordagem nestes doentes. A Córnea na Síndrome Pseudo-Esfoliativa: Topografia e Microscopia Confocal In Vivo. Material e Métodos Desenho do estudo Estudo prospectivo comparativo Amostra Neste estudo foram incluídos 10 doentes com síndrome pseudo-esfoliativa macroscopicamente unilateral (2 do sexo masculino e 8 do sexo feminino, com idades entre 59 e 73 anos, média 66,7 ± 4,9 anos) e 10 indivíduos normais, (3 do sexo masculino e 7 do sexo feminino, com idades entre 61 e 72 anos, média 67,1 ± 3,6 anos) recrutados na consulta de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, no período de Maio a Julho de 2011. Foram excluídos doentes com história prévia de cirurgia e/ou traumatismo ocular, uso de lentes de contacto, patologia corneana ou episódios de inflamação intra-ocular conhecidos, diabetes, glaucoma ou uso crónico de colírios. O diagnóstico de PSE baseou-se na observação, na lâmpada de fenda, de material flocular branco depositado sobre o bordo pupilar e cápsula anterior do cristalino após dilatação, compatível com material pseudo-esfoliativo. Foram constituídos 3 grupos: grupo de olhos com PSE (GP), grupo de olhos adelfos (GA), dos mesmos doentes, e grupo de olhos controlo (GC, um olho por doente, por norma o olho direito). Todos os elementos foram associados à amostra após o preenchimento e assinatura de um consentimento informado, e submetidos a topografia corneana, microscopia confocal, teste de Schimmer, tempo de ruptura do filme lacrimal (BUT) e avaliação da superfície ocular com um corante vital (fluoresceína). Finalmente foi realizado um inquérito sobre o impacte específico de sintomas de olho seco sobre a qualidade de vida (Ocular Surface Disease Index, OSDI). Todos os exames, incluindo a aplicação do questionário, foram realizados pelo mesmo examinador. Topografia corneana A paquimetria e queratometria foram obtidas através de uma câmara de Scheimpflug rotacional de não contacto (Pentacam, Oculus Inc.), que permitiu a aquisição de dados relativos à curvatura anterior e espessura central da córnea. Microscopia confocal in vivo A microscopia confocal in vivo foi realizada utilizando o Módulo de Córnea Rostock do aparelho de Tomografia Retiniana de Heidelber III (Heidelberg Retina Tomograph III, HRT III; Heidelberg Engineering, Heidelberg, Alemanha). Após aplicação de anestesia com oxibuprocaína a 0,4% (Anestocil, Edol, Portugal), o doente foi posicionado, com indicação para fixar um alvo luminoso com o olho contralateral. A lente do microscópio foi então coberta com uma protecção de polimetilmetacrilato (TomoCap, Heidelberg Engineering), contendo um gel oftálmico de carbómero 980, Vidisic Gel (Bausch & Lomb, Berlim, Alemanha) como agente acoplador. Após aplanação do TomoCap no centro da córnea e visualização de imagens das células superficiais in vivo no ecrã do computador, o micrómetro digital foi programado para o valor zero. Por pressão no pedal, acoplado a uma câmara, foram sendo obtidas imagens sequenciais das estruturas corneanas através da movimentação gradual do plano focal desde a superfície para as camadas mais profundas da córnea, até ao endotélio. O HRT III utiliza laser diodo, com um comprimento de onda de 670 nm e as imagens bidimensionais obtidas, consistindo em 384x384 pixels, cobrem uma área de 400x400 μm. A resolução digital foi predefinida pelo fabricante em 1 μm/pixel transversalmente e 2 1 μm/pixel longitudinalmente. Análise de imagens Epitélio corneano: As células epiteliais foram identificadas e as 3 melhores imagens das camadas superficial e basal foram seleccionadas para contagem. As células superficiais foram identificadas como estruturas poligonais, de margens bem definidas, com citoplasma claro e halo perinuclear escuro. As células basais, localizadas logo acima da camada de Bowman, apresentavam menores dimensões, bordos claros e citoplasma não homogéneo com núcleo mal definido. Em cada imagem seleccionada, e utilizando o software instalado, foi seleccionado um rectângulo (cerca de 0,02 mm2), e efectuada a marcação manual das células no seu interior (˃50 células), com obtenção do cálculo automático das densidades celulares. No final procedeu-se ao cálculo da relação entre densidade celular superficial e basal em cada um dos grupos. Plexo nervoso sub-basal: As fibras nervosas do plexo sub-basal foram identificadas como estruturas lineares hiperreflectivas entre a camada de células basais e camada de Bowman. As três melhores imagens foram seleccionadas para o cálculo da sua densidade. Foram recolhidos dois dados: o número de fibras nervosas longas (FNL) e o número total de fibras nervosas (FNT, soma das FNL e suas ramificações), sendo obtidas as suas densidades através da divisão destes valores pela área da imagem (0,16 mm2). Finalmente, avaliou-se de forma qualitativa outras alterações morfológicas evidentes (tortuosidade, irregularidade, reflectividade). Endotélio corneano: Identificado como uma monocamada de células hexagonais, formando um mosaico regular. As três melhores imagens foram seleccionadas e a densidade celular obtida da mesma forma descrita para as células epiteliais. Testes de função lacrimal, avaliação da superfície ocular com corante vital e aplicação de inquérito para determinação de sintomas de olho seco O tempo de ruptura do filme lacrimal (BUT) foi realizado através do método standart(19) utilizando tiras de fluoresceína (Fluorescein paper, Haag-Streit International), por cálculo da média após 3 medições. O teste de Schimer foi realizado sem Suplemento - Nº 1 - 2012 | 43 Duarte, A.; Maduro, V.; Alves, N.; Feijão, J.; Batalha, C.; Candelária, P.; Trigo, M. recurso a anestesia tópica, através de tiras de papel de filtro desenvolvidas para o efeito (Schimer-Plus, GECIS, Lamotte-Beuvron), colocadas no canto externo, com medição dos resultados em mm de humedecimento após 5 minutos(19). A avaliação da superfície ocular foi realizada por recurso às mesmas tiras de fluoresceína supracitadas, graduando a intensidade da impregnação da conjuntiva nasal, córnea e conjuntiva temporal, através do método de van Bijsterfeld(20) Neste procedimento a intensidade de coloração dessas três áreas foi quantificada numa escala numérica de 0 a 3 cruzes, para cada região, na qual 0) significava ausência de coloração; 1) coloração punctiforme; 2) pontos confluentes e 3) placas extensas de coloração. No final essas pontuações foram somadas situando-se o resultado entre 0 e 9. Finalmente foi aplicado o questionário OSDI (Ocular Surface Disease Index), de acordo com as orientações da empresa que o desenvolveu, tendo os últimos 7 dias como referência(21). Este inquérito, constituído por 12 questões, demonstra sensibilidade e especificidade para a distinção entre indivíduos normais e indivíduos com olho seco, permitindo categorizar esta patologia, consoante o resultado numa escala de 0 a 100, em ligeira, moderada ou grave. Análise estatística Os resultados foram analisados estatisticamente utilizando o software SPSS versão 19.0 para o Windows (SPSS Inc, Chicago, IL). Todos os dados são expressos como média ± desvio padrão. O teste Mann-Whitney U foi utilizado para comparar os resultados entre os 3 grupos, para uma significância estatística de 5%. Resultados Todos os olhos incluídos na amostra apresentaram, à data de inclusão no estudo, pressões intra-oculares inferiores a 21 Tabela 1 | mmHg, avaliadas por tonometria de aplanação de Goldmann. Os olhos com pseudo-esfoliação foram identificados pela presença de depósitos brancos floculares na margem pupilar e cápsula anterior do cristalino. Os olhos adelfos destes doentes e olhos controlo não apresentavam esta alteração, inclusive após dilatação. As diferenças na idade não foram estatisticamente significativas (p=0,68). Topografia corneana Analisando os valores da paquimetria central (Tabela 1) foi possível verificar que os grupos de olhos com PSE e olhos adelfos apresentaram córneas mais finas que o grupo controlo (519,2 ± 22,49; 517 ± 29,87 e 554,4 ± 17,67, respectivamente). As diferenças foram estatisticamente significativas entre esses 2 grupos e o grupo controlo, mas não entre si (Tabela 2). No que respeita à curvatura média e astigmatismo corneano os dois primeiros grupos apresentaram valores superiores aos olhos normais e muito próximos entre si (Tabela 1), contudo, em relação ao primeiro parâmetro a diferença entre os 3 grupos não foi significativa (Tabela 2). Considerando por sua vez o astigmatismo corneano, os olhos com PSE e adelfos apresentaram valores significativamente mais elevados em relação ao grupo controlo, mas não entre si. (Tabela 1 e 2). Microscopia confocal in vivo Densidade celular epitelial: As densidades das células epiteliais superficiais e basais (células/mm2) em olhos com PSE, olhos adelfos e olhos controlo foram, respectivamente, 981,60 ± 89,18 e 4096,90 ± 178,69; 1026,20 ± 140,25 e 4206,8 ± 234,95; 1095 ± 100,55 e 6604,6 ± 422,73 (Tabela 3). A relação entre as densidades celulares nas duas camadas foi de 1:4 nos dois primeiros grupos e 1:6 no grupo controlo. A diferença entre os 3 grupos a nível da camada epitelial superficial não foi significativa (p<0,05), o mesmo não acontecendo em relação à densidade de células basais (Tabela 4). Espessura central da córnea, queratometria média e astigmatismo corneano nos olhos com pseudo-esfoliação (GP), olhos adelfos (GA) e olhos normais (GC). Parâmetros GP (média±DP) GA (média±DP) GC (média±DP) 519,20 ± 22,49 517,00 ± 29,87 554,40 ± 17,67 Queratometria média (D) 44,02 ± 1,39 44,16 ± 1,39 43,02 ± 0,43 Astigmatismo corneano (D) 1,27 ± 0,54 1,17 ± 0,34 0,57 ± 0,17 GP vs. GA GP vs GC GA vs GC ECC 0,91 0,001 0,001 Queratometria média 0,85 0,14 0,08 Astigmatismo corneano 0,68 0,002 ˂0,001 ECC (μm) Tabela 2 | Resultados do teste de Mann-Whitney. Parâmetros 44 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia A Córnea na Síndrome Pseudo-Esfoliativa: Topografia e Microscopia Confocal In Vivo. Tabela 3 | Resultados relativos a densidades das células epiteliais superficiais e basais, fibras nervosas sub-basais e células endoteliais nos olhos com pseudo-esfoliação (GP), olhos adelfos (GA) e olhos normais (GC), obtidas na microscopia confocal in vivo. GP (média±DP) GA (média±DP) GC (média±DP) 981,60 ± 89,18 1026,20 ± 140,25 1095 ± 100,55 4096,90 ± 178,69 4206,8 ± 234,95 6604,6 ± 422,73 1:4 1:4 1:6 FNL (nervos/mm 2) 19,38 ± 8,04 21,88 ± 4,42 34,72 ± 7,06 FNL e ramificações (nervos/mm 2) 26,25 ± 10,95 33,75 ± 8,94 70,83 ± 17,39 2021,06 ± 310,44 2014,33 ± 271,63 2399,83 ± 99,82 GP vs. GA GP vs GC GA vs GC Densidade células superficiais 0,74 0,06 0,24 Densidade células basais 0,35 ˂0,001 ˂0,001 Densidade de FNL 0,39 ˂0,001 ˂0,001 Densidade de FNL e ramific. 0,09 ˂0,001 ˂0,001 Densidade células endoteliais 0,91 0,002 0,002 Células superficiais (cél/mm 2) Células basais (cél/mm 2) Relaçãocélulas superficiais/basais Células endoteliais (cél/mm 2) Tabela 4 | Resultados do teste de Mann-Whitney. Densidade fibras nervosas longas e ramos nervosos sub-basais: A densidade de FNL e FNR (nervos/mm2) foi, nos olhos com PSE, de 19,38 ± 8,04 e 26,25 ± 10,95, respectivamente, nos olhos adelfos de 21,88 ± 4,42 e 33,75 ± 8,94 e no grupo controlo 34,72 ± 7,06 e 70,83 ± 17,39 (Tabela 3). Mais uma vez, e em ambos os parâmetros, a densidade foi significativamente mais baixa no GP e GA face ao GC mas não entre si (Tabela 4). Morfologia do plexo nervoso sub-basal Grupo controlo: Todos os olhos incluídos apresentaram nervos sub-basais rectilínios, ramificados e altamente reflectivos, com cerca de 4 a 7 FNL por cada imagem, distribuídos de forma uniforme. Não se observaram a este nível quantidades significativas de células inflamatórias ou depósitos hipo ou hiperreflectivos. A figura 1 (A-C) corresponde a imagens obtidas do epitélio basal e plexo nervoso sub-basal por microscopia confocal. Grupo de olhos com PSE e adelfos: Em todos os olhos com PSE foram identificadas alterações ao nível do epitélio e plexo nervoso sub-basal (Fig. 2 A-C, figura representativa em mulher de 62 anos). Além de uma menor densidade de FNL verificou-se que estas estruturas eram, no geral, mais tortuosas, mais finas e menos ramificadas. Os olhos adelfos apresentaram alterações similares mas menos pronunciadas, (Fig.3 A-C figura representativa na mesma mulher de 62 anos). Em 8 dos 10 olhos do GP (80%) e 3 dos 10 olhos do GA (30%) foi possível encontrar, ao nível do epitélio basal, corpúsculos hiperreflectivos de pequenas dimensões, provavelmente de material pseudo-esfoliativo, organizados em aglomerados (Fig. 4A, encontrados em 4 olhos com PXE mas não nos adelfos) ou de forma dispersa (Fig. 4A,encontrados em 7 dos olhos com PXE e 5 olhos adelfos). Embora também hiperreflectivas, as características já descritas de células inflamatórias à microscopia confocal não se coadunam com as das estruturas por nós observadas. 3 dos 10 doentes com síndrome pseudo-esfoliativo e um dos indivíduos controlo apresentavam elevado número de células dendríticas e células inflamatórias a nível do epitélio basal e estroma anterior, bilateralmente, sem que isso implicasse maior alteração do plexo nervoso sub-basal. Densidade celular endotelial: As densidades das células endoteliais (células/mm2) em olhos com PSE, olhos adelfos e olhos controlo foram, respectivamente, 2021,06 ± 310,43; 2014,33 ± 271,63 e 2399,83 ± 99,81 (Tabela 3). Mais uma vez, a densidade foi significativamente mais baixa no GP e GA face ao GC mas não entre si (Tabela 4). Ao nível do endotélio é ainda importante referir a visualização de depósitos hiperreflectivos, distribuídos ao nível do estroma posterior e endotélio. A quantidade de depósitos foi consideravelmente superior nos olhos com PSE, mas também demarcavam-se nos olhos adelfos, e não foram visíveis nos olhos controlo. As figuras 1D, 2D, 3D exemplificam as imagens observadas a nível do endotélio e a figura 4 a nível do estroma pré-endotelial, onde a quantidade de depósitos hiperreflectivos era substancialmente elevada. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 45 Duarte, A.; Maduro, V.; Alves, N.; Feijão, J.; Batalha, C.; Candelária, P.; Trigo, M. Fig. 1 | Fotografia do segmento anterior e imagens da microscopia confocal in vivo de olho controlo de mulher de 65 anos. A. Fotografia do segmento anterior sem evidência de pseudoesfoliação. B. Imagem das células epiteliais basais, densidade 6786 células/mm2. C. Imagem do plexo nervoso sub-basal, densidade de FNL 37,5 nervos/mm2. D. Imagem da camada de células endoteliais, densidade 2352,5 células/mm2. Fig. 2 | Fotografia do segmento anterior e imagens da microscopia confocal in vivo de olho com PSE de mulher de 62 anos. A. Fotografia do segmento anterior com depósitos de material pseudo-esfoliativo no bordo pupilar. B. Imagem das células epiteliais basais, densidade 4128 células/mm2. C. Imagem do plexo nervoso sub-basal, densidade de FNL 12,5 nervos/mm2. D. Imagem da camada de células endoteliais, densidade 1964,2 células/mm2. Testes de função lacrimal, avaliação da superfície ocular com corante vital e aplicação de inquérito para determinação de sintomas de olho seco Os resultados dos testes de Schimmer e BUT foram significativamente mais baixos nos grupos de olhos com PSE e adelfos em relação aos olhos controlo, mas não entre si (Tabelas 5 e 6), sendo que 7/10 olhos com PSE (70%) e 46 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia metade dos olhos adelfos (5/10, 50%) apresentaram valores de Schimmer inferiores a 10 mm e todos eles (20/20) apresentaram BUT inferior a 10s. Resultados similares foram obtidos na avaliação da superfície ocular através do sistema gradativo de van Bijsterfeld (Tabelas 4 e 5). Finalmente, o inquérito OSDI demonstrou que o grupo de A Córnea na Síndrome Pseudo-Esfoliativa: Topografia e Microscopia Confocal In Vivo. Fig. 3 | Fotografia do segmento anterior e imagens da microscopia confocal in vivo de olho adelfo de mulher de 62 anos. A. Fotografia do segmento anterior sem evidência de depósitos de material pseudo-esfoliativo no bordo pupilar. B. Imagem das células epiteliais basais, densidade 4106 células/mm2. C. Imagem do plexo nervoso sub-basal, densidade de FNL 18,75 nervos/mm2. D. Imagem da camada de células endoteliais, densidade 1953 células/mm2. doentes com síndrome pseudo-esfoliativa apresenta significativamente mais sintomas de olho seco que o grupo controlo (gráfico 1) sendo que metade dos doentes do primeiro grupo apresentaram pontuações superiores a 50 no inquérito e todos eles se enquadravam na categoria de olho seco moderado/ grave. Discussão Neste estudo procurámos fazer uma descrição completa das alterações corneanas na síndrome pseudo-esfoliativa, avaliando não apenas as alterações topográficas e estruturais mas igualmente a repercussão clínica desta patologia, e determinar em casos unilaterais a existência de queratopatia bilateral. No que respeita à paquimetria corneana, os dados publicados são controversos, com demonstração de valores superiores, equiparáveis ou inferiores à população normal (Tabela 6). Muitos destes estudos incluem, no mesmo grupo, olhos com e sem glaucoma, mas mesmo naqueles em que é feita essa distinção os resultados não são unânimes. Numa publicação recente e utilizando, tal como no presente estudo, o Pentacam® como método de análise, Hepsen et al(13) determinou valores de curvatura corneana (média e astigmatismo) significativamente superiores em olhos com PSE, sendo que a paquimetria central apresentou-se significativamente mais fina em olhos com PSE normotensionais e mais espessa em olhos com glaucoma, relativamente a olhos normais. Não incluímos doentes com glaucoma ou hipertensão ocular, pelo que os resultados, tendo em conta doentes normotensionais, são similares. A importância desta particularidade, incide, entre outros aspectos, no potencial efeito que a espessura e curvatura corneana podem exercer sobre a medição da pressão intra-ocular através dos métodos de aplanação da córnea, sobretudo tendo em conta o risco acrescido de desenvolvimento de glaucoma nestes casos. Fig. 4 | Imagens da microscopia confocal in vivo, a nível do epitélio basal, demonstrando depósitos hiperreflectivas em 2 olhos com PSE A. Em aglomerado. B. Distribuição difusa. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 47 Duarte, A.; Maduro, V.; Alves, N.; Feijão, J.; Batalha, C.; Candelária, P.; Trigo, M. Tabela 5 | Resultados relativos aos testes de função lacrimal, avaliação da superfície ocular com corante vital e aplicação do inquérito OSDI para determinação de sintomas de olho seco nos olhos com pseudo-esfoliação, olhos adelfos e olhos normais. GP (média±DP) GA (média±DP) GC (média±DP) Schimmer (mm) 8,25 ± 4,72 9,25 ± 4,26 16,75 ± 4,72 BUT (s) 6,90 ± 1,10 7,60 ± 1,07 12,00 ± 2,10 Score de fluoresceína 3,90 ± 0,99 3,40 ± 0,84 1,70 ± 1,16 Gráf. 1 | Resultados do inquérito OSDI no grupo de doentes com síndrome pseudo-esfoliativa e grupo de doentes controlo. Com a intenção de realizar uma avaliação mais aprofundada da morfologia corneana nesta patologia recorremos ao microscópio confocal, uma nova tecnologia que permite uma observação rápida, não invasiva e de alta resolução da córnea humana(28). Até à data 2 estudos utilizaram a microscopia confocal para o estudo da córnea na síndrome pseudo-esfoliativa. Martone et al(17) demonstrou, num doente, a existência de depósitos hiperreflectivos no epitélio basal e endotélio, e anomalias (polimegatismo e pleomorfismo) desta última camada. Recentemente Zheng X et al(29) determinou pela primeira vez a existência de contagens celulares significativamente inferiores no epitélio basal e endotélio, bem como uma menor densidade de estruturas nervosas sub-basais, bilateralmente, em doentes com aparente envolvimento clínico unilateral. Os nossos resultados reforçam estes achados, acrescentando que estas alterações morfológicas têm de facto repercussões clínicas, Tabela 6 | com alteração da função lacrimal, doença da superfície ocular e um maior desconforto nas actividades do dia-a-dia. Sabe-se que as fibras nervosas corneanas apresentam um efeito trófico sobre o epitélio(30,31) através da produção de neuropéptidos e neurotransmissores(32,33), sendo fundamentais para a manutenção de uma superfície ocular saudável, íntegra, e com normal produção de mucinas e outros constituintes do filme lacrimal. A baixa contagem de células epiteliais basais e as alterações evidentes com a fluoresceína e BUT podem efectivamente ser uma repercussão da perda deste efeito trófico. Se essas alterações do plexo nervoso são primárias ou secundárias na patogénese da doença e se de facto existe uma neuropatia periférica generalizada, com eventual benefício na administração de fármacos com efeitos neuroprotectores, está ainda por determinar. O comprometimento endotelial tem sido já debatido, com a existência de menores densidades endoteliais, polimegatismo e pleomorfismo, e um maior risco de descompensação(10-12). Mais uma vez, o nosso estudo demonstrou contagens endoteliais significativamente inferiores, não apenas nos olhos com PSE clínica, mas igualmente nos adelfos, acompanhadas pela existência de depósitos irregulares hiperreflectivos, que acreditamos, tal como Zheng X et al(29), serem de material pseudo-esfoliativo e não de pigmento. Para além disso, o facto dos mesmos se encontrarem não apenas no endotélio mas também, e de forma mais pronunciada, no estroma profundo fazem-nos sugerir que seja produzido localmente, possivelmente pelo endotélio. Se a endoteliopatia (baixa densidade, pleomorfismo e polimegatismo) é causa ou consequência destes depósitos estará ainda por determinar. Os nossos resultados reforçam os estudos que demonstram que esta patologia apresenta um envolvimento ocular bilateral, que poderá ser significativamente assimétrico à biomicroscopia. Embora a análise estatística não tenha demonstrado significância, verificámos que os olhos com PSE exibiam alterações morfológicas mais pronunciadas que os Resultados do teste de Mann-Whitney. GP vs. GA GP vs GC GA vs GC Teste de Schimmer 0,17 ˂0,001 0,004 BUT 0,48 ˂0,001 ˂0,001 Score de fluoresceína 0,15 ˂0,001 0,003 48 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia A Córnea na Síndrome Pseudo-Esfoliativa: Topografia e Microscopia Confocal In Vivo. Tabela 7 | Resultados relativos aos testes de função lacrimal, avaliação da superfície ocular com corante vital e aplicação do inquérito OSDI para determinação de sintomas de olho seco nos olhos com pseudo-esfoliação, olhos adelfos e olhos normais. Investigadores ECC PSE/ GPSE (μm, média±DP) ECC controlo (μm, média±DP) Valor p Método de medição Aghalan et al22 531± 7,3 552,9 ± 2,7 0,02 Paquimetria ultrasónica 493 530 ˂0,0001 Tomografia coerência óptica Bechmann et al23 Detorakis et al 524,2 ± 21,3 531,4 ± 19,5 0,21 Paquimetria ultrasónica 25 529 ± 31 547 ± 28 0,03 Paquimetria ultrasónica Puska et al26 528 ± 30 523 ± 32 ˂0,01 Paquimetria ultrasónica Shah et al27 530,7 553,9 NS Paquimetria ultrasónica Inoue et al 24 adelfos, possivelmente por se apresentarem em diferentes fases evolutivas ou corresponderem a diferentes espectros de gravidade da mesma patologia. A queratopatia pode de facto desenvolver-se antes do material pseudo-esfoliativo ser visualizável à lâmpada de fenda. De salientar um caso que foi inicialmente avaliado para inclusão no grupo controlo, e que acabou por ser excluído por apresentar depósitos hiperreflectivos e alterações morfológicas corneanas bilaterais altamente suspeitas de um caso subclínico de síndrome pseudo-esfoliativa. A confirmar-se, este é o primeiro caso descrito e tal observação faz-nos considerar que o microscópio confocal pode ser o único exame disponível para a sua identificação. Estes casos deveriam ser vigiados de forma mais regular, dado o risco acrescido de glaucoma e de outras complicações inerentes a este síndrome. Contudo, e dada a complexidade e tempo necessário para a realização deste exame, não nos parece que seja de todo vantajoso, tendo em conta o custo-benefício, a realização de rastreios. Interrogamo-nos contudo sobre quantos doentes com suposto glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) terão na verdade uma síndrome pseudo-esfoliativa subclínica. Este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente a pequena dimensão da amostra, a dificuldade em obter, no microscópio confocal, imagens do centro da córnea em todos os doentes, e o facto de que os testes de função lacrimal, tendo sido determinados no mesmo espaço físico, foram-no em diferentes dias, o que pode condicionar algumas diferenças nas condições de humidade e temperatura ambiente. Concluindo, a síndrome pseudo-esfoliativa pode associar-se a alterações corneanas (espessura, curvatura e morfologia das diferentes camadas constituintes) e da função lacrimal, aspectos que são pertinentes para a avaliação oftalmológica e abordagem destes doentes. Nos casos unilaterais esses achados estão presentes nos olhos com PSE visível mas também nos adelfos, que podem representar uma forma subclínica da patologia. Bibliografia 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Zenkel M, Poschl E, von der Mark K, Hofmann-Rummelt C, Naumann GO, Kruse FE, et al. 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Graefs Arch Clin Exp Ophthalmol 2007; 245:39-44. Contacto Rua da Fonte da Canha, nº1 Sobral da Abelheira, 2640-622 Sobral da Abelheira [email protected] Oftalmologia (suplemento) - Vol. 36: pp.53-60 Artigo Original Ausência de Pulsatilidade Venosa Espontânea como Indicador de Risco no Glaucoma Normotensional L. Abegão Pinto, MD1; Evelien Vandewalle, MD2; Carlos Marques-Neves3; Thierry Zeyen, MD, PhD2; Ingeborg Stalmans, MD, PhD2 Serviços Hospitalares e Departmentos Universitários: 1 Centro Hospitalar de Lisboa Central Serviço de Oftalmologia, Director: Dr. J. Pita Negrão 2 Hospitais Universitários de Leuven, Bélgica Departamento de Oftalmologia, Director: Prof. Dr. Werner Spileers 3 Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Os dados apresentados são originais, não tendo sido apresentados previamente em nenhuma reunião científica. Os autores não têm conflitos de interesse a declarar. Resumo Introdução: As linhas de investigação no glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) têm tido em consideração vários factores de risco vasculares. Dentro destes, tem sido sugerido a pulsatilidade venosa espontânea (SVP). Não sendo conhecidos os mecanismos fisiopatológicos desta variável, os autores propõem-se estudar esta componente por Color Doppler Imaging (CDI). Métodos: 119 doentes foram divididos por 3 grupos diagnósticos: controlos (n=31), GPAA (n=53) e glaucoma normotensional (NTG; n=35). Todos os sujeitos foram submetidos a CDIs da circulação retrobulbar, avaliação da pressão intra-ocular (PIO) e avaliação de SVP. Nos grupos com glaucoma foram adicionalmente realizadas perimetrias estáticas computadorizadas. Os testes de Mann-Whitney e correlação de Spearman foram usados para explorar diferenças e correlações entre as variáveis dos grupos diagnósticos. Resultados: O grupo controlo apresentava SVP+ em 87% dos indivíduos (27/31). Os grupos com glaucoma apresentavam valores inferiores [GPAA: 56% (30/53); NTG: 60% (21/35)]. Entre os subgrupos SVP+ e SVP– em qualquer dos grupos diagnósticos não foram encontradas diferenças em relação a idade, PIO ou pressão arterial. Por comparação com os indivíduos NTG SVP+, o subgrupo NTG SVP– apresentou defeitos médios superiores (-5.1 vs -11.2, p=0.03), velocidades arteriais sistólicas e diastólicas inferiores (11,5 vs 8,3, p<0.01; 3,1 vs 2,6, p=0.04; respectivamente) e menores índices de resistência venosos (0,42 vs 0,36, p=0.04) ao nível dos vasos centrais da retina. Conclusões: A presença de SVP encontra-se diminuída em doentes com glaucoma. Esta variável parece ter particular relevância nos doentes com NTG, nos quais poderá estar associada a lesões funcionais mais avançadas. Palavras-chave Imagiologia Doppler colorido; pulsatilidade venosa espontânea; glaucoma. Suplemento - Nº 1 - 2012 | 53 L. Abegão Pinto, Evelien Vandewalle, Carlos Marques-Neves, Thierry Zeyen, Ingeborg Stalmans Abstract Purpose: Research in primary open-angle glaucoma (POAG) pathogenesis has taken into consideration the existence of vascular risk factors. Recently it has been suggested the absence of spontaneous venous pulsation (SVP) as one of them. As the mechanism behind this phenomenon is still unknown, the authors propose to study this vascular component using color Doppler imaging (CDI). Methods: 119 patients were divided in three diagnostic groups: healthy controls (n=31), POAG (n=53) and normotensional glaucoma (NTG; n=35). All subjected were submitted to CDI studies of the retrobulbar circulation, intra-ocular pressure (IOP) measurements and assessment of SVP existence. In glaucoma groups, visual field testing was additionally performed. Mann-Whitney and Spearman correlations were used to explore differences and correlations between variables in the diagnostic groups. Results: Healthy controls had SVP+ in 87% of patients (27/31), while glaucoma groups registered a smaller number [POAG: 56% (30/53); NTG: 60 (21/35)]. In any of the three groups, SVP+ or SVP- subgroups were not different regarding age, IOP or blood pressure. NTG SVP+ patients had higher visual field defects (-5.1 vs -11.2, p=0.03), lower arterial systolic and diastolic velocities (11.5 vs 8.3, p<0.01; 3.1 vs 2.6, p=0.04; respectively) and lower venous resistance indexes (0.42 vs 0.36, p=0.04) at the level of the central retinal vessels. Conclusions: SVP existence seems to be diminished in glaucoma patients. This variable may be of particular importance in NTG patients, where it may be associated with more advanced functional damage. Key-words Color Doppler Imaging; spontaneous venous pulsation; glaucoma. Introdução O glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) é uma das patologias mais frequentemente associadas a cegueira legal no mundo desenvolvido1. Apesar de reduções significativas ao nível do principal factor de risco identificado – a pressão intra-ocular (PIO) – verifica-se uma progressão da doença num número significativo de pacientes2. As várias linhas de investigação não relacionadas com a PIO, nomeadamente na componente vascular, têm incidido sobre as alterações ao nível da vascularização arterial. Existe contudo um interesse crescente no estudo das relações entre o GPAA e a circulação venosa. Não só o glaucoma e a PIO são importantes factores de risco associados a patologias venosas como as oclusões da veia central da retina (CRV)3, como por outro lado tem sido sugerido que alterações venosas possam estar envolvidas na patogénese do GPAA. Recentemente, vários grupos identificaram que os doentes com glaucoma apresentam com muito menor frequência o fenómeno de pulsatilidade venosa espontânea (SVP) do que a população em geral4-5. Apesar de amplamente descrita na 54 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia literatura e ser um sinal importante no estudo de patologias como pressão intra-craniana elevada6-7, orbitopatia tiroideia8 e oclusões da CRV9, não se conhecem na totalidade os mecanismos que originam este fenómeno. Apesar da CRV ser influenciada pelas flutuações que o ciclo cardíaco provoca nas estruturas que atravessa, os estudos sobre como esta modulação é feita têm sido contraditórios10-11. O modo como os factores moduladores das pressões de pulso, como a idade4, a frequência cardíaca12 ou as amplitudes de pulso arteriais13 influenciam a presença de SVP não estão igualmente esclarecidos. A possibilidade destas alterações da drenagem venosa poderem ser identificadas com recurso à tecnologia Doppler não foi ainda estudado, podendo esta tecnologia identificar diferenças ao nível hemodinâmico da vascularização arterial e venosa que permitam compreender a fisiopatologia do fenómeno SVP e a sua importância na patologia glaucomatosa. Os autores propõem-se assim investigar factores associados à ausência de SVP em doentes com glaucoma bem como a caracterização de padrões hemodinâmicos associados a essa ausência do fenómeno SVP. Ausência de Pulsatilidade Venosa Espontânea como Factor de Risco no Glaucoma Normotensional. Material e Métodos Grupos experimentais Foram recrutados para este estudo 3 coortes de indivíduos com idades superiores a 18 anos de idade divididos em indivíduos com: glaucoma normotensional (NTG; n=35), glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA; n=53) e indivíduos saudáveis (controlo; n=31). Este último grupo foi obtido por recrutamento entre os acompanhantes dos doentes observados em consulta. Para o diagnóstico de glaucoma, foi feita a validação por dois observadores (IST, TZ) como tendo as características lesões do disco óptico e do campo visual. Para o diagnóstico de GPAA, foi considerado a existência de registos de PIO sem terapêutica iguais ou superiores a 21mmHg. Nos voluntários saudáveis, a hipótese de glaucoma foi excluída por tonometria e fundoscopia. Pacientes com história de trauma ocular ou patologia oftalmológica (excepto glaucoma) que não um erro refractivo de equivalente esférico inferior a 4 dioptrias foram excluídos. Foi igualmente considerado critério de exclusão a existência de diabetes mellitus ou diagnóstico de patologia cardíaca associada a insuficiência ventricular direita. A terapêutica hipotensora tópica não foi interrompida para a realização deste estudo, tendo sido considerado critério de exclusão a toma de terapêutica antiglaucomatosa sistémica. Instrumentos de medição A PIO foi medida com recurso a tonómetro de aplanação de Goldman (GAT). A espessura central da córnea foi medida através do dispositivo Pachmate DGH55 (DGH Technology Inc., Exton, PA). As velocidades [velocidade sistólica máxima (PSV) e velocidade diastólica final (EDV)], índices de resistência e pulsatilidade (RI e PI, respectivamente) dos vasos retrobulbares [artéria central da retina (CRA), artérias ciliares curtas posteriores nasais (NPCA) e temporais (TPCA) e artéria oftálmica (OA)] foram avaliadas pelo ecógrafo Antares CDI (Siemens, Munique, Alemanha). Ao nível dos vasos venosos (veia central da retina, CRV), as medições validadas para os territórios venosos velocidades máximas, mínimas e RI - foram também efectuadas14. A acuidade visual foi avaliada pela escala Early Treatment of Diabetic Retinopathy Study (ETDRS), com luminosidade e distância ao doente predefinidos e semelhantes em todos os doentes. A pressão arterial ao nível braquial foi avaliada no braço direito do doente com esfigmomanómetro electrónico (Omron®, Schaumburg, IL). Desenho experimental Todos os sujeitos foram instruídos para evitar o consumo de café ou tabaco, ou realização de exercício nas 3 horas que antecederam a observação. Este estudo foi aprovado pela comissão de ética dos Hospitais Universitários de Leuven e conduzido de acordo com as regras de boa prática clínica, em concordância com a Convenção de Helsínquia. Foi obtido um consentimento informado escrito por parte de cada voluntário antes de iniciar qualquer avaliação ou estudo. Apenas um olho por doente foi incluído no presente estudo. O olho com maior dano glaucomatoso foi seleccionado nos grupos com glaucoma e um olho randomizado no grupo controlo. Durante o decorrer do estudo, foi seguida a seguinte ordem na realização das medições: medição da acuidade visual, indução de midríase farmacológica com tropicamida 0,5% no olho seleccionado, avaliação da PIO por GAT, avaliação da presença de SVP por fundoscopia durante um período mínimo de 1 minuto e finalmente medição CDI. Estas duas últimas avaliações foram realizadas por um único observador (LAP), em ocultação do diagnóstico/grupo experimental de cada sujeito. Foram excluídos os doentes cuja entrada das veias retinianas no disco óptico fossem ocultadas pelas artérias retinianas, possuíssem alterações congénitas do disco ou possuíssem elevações do disco óptico que dificultassem a observação da SVP15. Análise estatística Os testes de Mann-Whitney foram usados para comparação de variáveis entre os grupos experimentais. Estudaram-se as correlações entre variáveis com recurso à correlação de Spearman. Foram considerados estatisticamente significativos valores de p inferiores a 0,05 (Graphpad Prism® ver. 5.0; Graphpad Software Inc, CA). Os resultados descritivos são apresentados sob a forma de média ± desvio padrão, excepto quando indicado. Resultados Características dos grupos experimentais O quadro 1 descreve as características dos diferentes grupos experimentais, incluindo as comparações entre os subgrupos SVP+ e SVP– dos grupos com glaucoma através do teste de Mann-Whitney. Este teste não foi realizado nos grupos controlo dado o reduzido número de indivíduos controlo SVP– (n=4). Não se verificaram diferenças ao nível da idade, PIO, acuidade visual, pressão arterial sistólica ou diastólica, amplitude de pulso arterial ou espessura central da córnea entre os subgrupos SVP+/SVP– em qualquer das duas populações com glaucoma (GPAA: p=0,49; p=0,11; p=0,06; p=0,40; p=0,10; p=0,93; p=0,47, respectivamente. NTG: p=0,96; p=0,86; p=0,76; p=0,73; p=0,99; p=0,51; p=0,21 respectivamente). O grupo GPAA SPV– registou Suplemento - Nº 1 - 2012 | 55 L. Abegão Pinto, Evelien Vandewalle, Carlos Marques-Neves, Thierry Zeyen, Ingeborg Stalmans Quadro 1 | Características dos grupos experimentais. Controlo GPAA NTG SVP + SVP - SVP + SVP - SVP + SVP - 27 4 30 23 21 14 Idade 74,3 (11,4) 66,7 (9,3) 64,6 (14,0) 67,9 (11,7) 67,6 (10,4) 66,7 (17,5) PIO 14,8 (3,2) 13,0 (5,3) 15,7 (6,6) 13,3 (3,3) 12,8 (3,1) 12,9 (2,6) Acuidade Visual 0,48 (0,45) 0,3 (0,52) 0,35 (0,34) 0,15 (0,17) 0,33 (0,32) 0,28 (0,29) PA sistólica 151,8 (21,4) 162,5 (27,3) 150,1 (22,3) 156,2 (26,1) 154,8 (13,6) 153,2 (34,8) PA diastólica 80,7 (11,9) 82,3 (5,9) 85,5 (10,5) 91,9 (10,9) 86,1 (17,3) 86,6 (11,4) Amplitude pulso 69,38 (23,5) 80,3 (24,9) 64,6 (18,6) 64,3 (23,0) 68,7 (17,9) 66,5 (33,9) Pulso 68,5 (10,5) 73,8 (18,0) 62,0 (11,1)* 74,1 (18,7) 58,8 (9,5) 61,0 (8,8) ECC - - 561 (36) 559 (43) 546 (31) 560 (18) MD - - -10,7 (9,8) -9,51 (8,3) -5,10 (7,8) -11,2 (9,4)** N Valores apresentados sob a forma de média (e desvio padrão). Comparações SVP+ versus SVP- nos grupos com glaucoma através do teste de Mann-Whitney (* p=0,032; ** p=0,030); SVP indica pulsatilidade venosa espontânea; PIO, pressão intra-ocular (mmHg); PA, pressão arterial (mmHg); Amplitude de pulso [(PA diastólica - PA sistólica), mmHg]; ECC, espessura central da córnea (mm); MD, defeito médio (dB). um pulso arterial periférico superior ao grupo GPAA SPV+ (p=0,032), não se tendo verificado diferença nos subgrupos NTG (p=0,65). Do ponto de vista de dano funcional (avaliado por perimetria estática computadorizada), o grupo NTG SPV– apresentou lesões mais avançadas que o subgrupo NTG SVP+ (p=0,030), não se tendo registado diferenças entre os subgrupos GPAA (p=0,77). O quadro 2 descreve a medicação tópica dos grupos com glaucoma. Parâmetros hemodinâmicos retrobulbares nos doentes com glaucoma e indivíduos controlo O quadro 3 descreve os valores de velocidade e índices de resistência dos vasos retrobulbares analisados nos grupos experimentais. Não se tendo realizado comparações entre os subgrupos SVP+/SVP– na população controlo pelos motivos já expostos, a aplicação do teste Mann-Whitney não revelou qualquer diferença estatística entre os subgrupos SVP+/SVP– da população GPAA (p>0,05 em todas as comparações). No grupo NTG, verificou-se que o subgrupo que apresentava SVP+ registou valores de PSV e EDV ao nível da artéria central da retina superiores aos do subgrupo SVP-(p=0,002; p=0,044, respectivamente). Ao nível dos parâmetros hemodinâmicos da veia central da retina, registou-se neste subgrupo NTG SVP+ um RI superior quando comparado com o subgrupo NTG SVP– (p=0,036). Relação entre parâmetros hemodinâmicos da veia central da retina e variáveis moduladoras do fenómeno SVP O quadro 4 explora as correlações entre os valores hemodinâmicos da veia central da retina e os factores que se Quadro 2 | Medicação tópica. GPAA NTG SVP + SVP - SVP + SVP - Beta bloqueantes 14 (46,7) 12 (52,2) 8 (38,1) 4 (28,6) Analogos prostaglandinas 16 (53,3) 13 (56,5) 6 (28,6) 8 (57,1) Inibidores anidrase carbónica 6 (20,0) 6 (26,1) 8 (38,1) 5 (35,7) Agonistas α-adrenérgicos 2 (6,7) 5 (21,7) 1 (4,8) 3 (21,4) Valores descritos como número de pacientes e percentagem do total. 56 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Ausência de Pulsatilidade Venosa Espontânea como Factor de Risco no Glaucoma Normotensional. Quadro 3 | Parâmetros CDI dos vasos retrobulbares dos grupos experimentais. Controlo CRA CRV NPCA TPCA OA GPAA NTG SVP + SVP - SVP + SVP - SVP + SVP - PSV 10,5 (3,8) 9,43 (3,2) 10,4 (3,8) 10,0 (2,6) 11,5 (2,7)* 8,23 (2,6) EDV 2,73 (0,9) 2,58 (1,2) 2,86 (1,0) 2,63 (0,9) 3,14 (1,1)Δ 2,61 (1,3) RI 0,72 (0,1) 0,74 (0,1) 0,71 (0,1) 0,73 (0,1) 0,72 (0,1) 0,69 (0,1) PI 1,36 (0,3) 1,36 (0,1) 1,33 (0,3) 1,37 (0,3) 1,37 (0,3) 1,23 (0,3) Vmáx 6,14 (1,7) 6,7 (1,3) 5,68 (1,7) 5,42 (1,7) 5,54 (1,8) 5,14 (1,8) Vmin 3,38 (0,7) 3,88 (1,0) 3,32 (0,9) 3,32 (0,9) 3,10 (0,7) 3,24 (1,1) RI 0,43 (0,1) 0,41 (0,1) 0,40 (0,1) 0,37 (0,1) 0,42 (0,1)Θ 0,35 (0,1) PSV 10,0 (2,9) 11,2 (3,1) 9,61 (2,7) 10,4 (3,1) 8,91 (2,1) 9,15 (3,0) EDV 2,92 (0,9) 3,75 (1,2) 3,17 (1,1) 3,41 (1,3) 2,89 (0,8) 3,17 (1,3) RI 0,70 (0,1) 0,64 (0,1) 0,78 (0,6) 0,67 (0,1) 0,67 (0,1) 0,65 (0,1) PI 1,26 (0,3) 1,10 (0,4) 1,14 (0,3) 1,16 (0,3) 1,56 (0,2) 1,12 (0,3) PSV 9,34 (2,8) 9,93 (2,2) 9,85 (2,8) 9,64 (2,1) 9,01 (1,9) 8,19 (2,2) EDV 2,73 (0,6) 3,38 (0,4) 3,28 (0,9) 3,48 (1,1) 2,96 (0,8) 2,86 (0,7) RI 0,69 (0,1) 0,65 (0,1) 0,66 (0,1) 0,64 (0,1) 0,67 (0,1) 0,63 (0,1) PI 1,22 (0,3) 1,11 (0,1) 1,13 (0,2) 1,05 (0,2) 1,14 (0,3) 1,07 (0,3) PSV 40,8 (19) 32,8 (11) 34,0 (15) 32,5 (7,6) 32,0 (11) 31,1 (10) EDV 6,6 (3,4) 4,05 (0,9) 6,18 (3,3) 6,16 (2,2) 5,75 (2,6) 6,25 (3,2) RI 0,83 (0,1) 0,87 (0,1) 0,81 (0,1) 0,81 (0,1) 0,82 (0,1) 0,80 (0,1) PI 2,00 (0,5) 2,44 (0,3) 1,90 (0,7) 1,83 (0,4) 1,96 (0,6) 1,90 (0,6) Velocidades e índices dos vasos analisados nos três grupos experimentais, divididos por subgrupos SVP+/SVP-. Comparações SVP+ versus SVP- nos grupos com glaucoma através do teste de Mann-Whitney (* p=0,002; Δ p=0,044; Θ p=0,036). Dados apresentados como médias(desvio-padrão); velocidades em cm/s. SVP indica pulsatilidade venosa espontânea; GPAA, glaucoma primário de ângulo aberto; NTG, glaucoma normotensional; CRA, artéria central da retina; CRV, veia central da retina; NPCA, artérias ciliares curtas posteriores nasais; TPCA, artérias ciliares curtas posteriores temporais; AO, artéria oftálmica; PSV, velocidade sistólica máxima; EDV, velocidade diastólica final; RI, índice de resistência; PI, índice de pulsatilidade; Vmáx, velocidade máxima; Vmín, velocidade mínima. conhece influenciaram a existência ou não do fenómeno SVP. A idade correlacionou-se positivamente com o RI apenas no subgrupo GPAA SVP+ (p=0,02; r=0,36), não tendo a PIO tido qualquer correlação estatisticamente significativa com qualquer das variáveis dos subgrupos analisados (p>0,05). O pulso arterial correlacionou-se negativamente com as variáveis RI e Vmáx, respectivamente nos subgrupos controlo SVP+ e NTG SVP+ (p=0,02; r=-0,45 e p=0,02; r=-0,52 respectivamente). Finalmente, a amplitude de pulso arterial correlacionou-se com o RI e Vmáx respectivamente nos subgrupos GPAA SVP+ e NTG SVP+ (p=0,02; r=0,60 e p=0,02; r=0,69, respectivamente). Dado o reduzido número para análise do subgrupo controlo SVP–, este subgrupo foi excluído desta análise de correlações. Discussão A ausência do fenómeno de pulsatilidade verifica-se sempre que o gradiente de pulso entre dois compartimentos é insuficiente para alterar a drenagem de sangue ao longo do ciclo cardíaco16-17. Os nossos resultados, em que se verifica uma marcada diminuição da prevalência deste fenómeno nos doentes com glaucoma, implicam que nestes doentes poderão existir factores ao nível dos compartimentos intra e extra-ocular que diminuam esse gradiente. Das variáveis estudadas com capacidade de modular as pressões de pulso destes compartimentos, apenas no grupo GPAA a frequência cardíaca foi estatisticamente diferente, sendo mais elevada nos doentes sem SVP. Ao diminuir o tempo diastólico, um aumento do batimento cardíaco Suplemento - Nº 1 - 2012 | 57 L. Abegão Pinto, Evelien Vandewalle, Carlos Marques-Neves, Thierry Zeyen, Ingeborg Stalmans Quadro 4 | Correlação entre parâmetros venosos e factores moduladores do fenómeno SVP. Controlo SVP + GPAA SVP+ GPAA SVP - NTG SVP + NTG SVP - Idade PIO Pulso Amplitude pulso Vmáx 0,25 0,62 0,23 0,69 Vmin 0,63 0,72 0,61 0,71 RI 0,75 0,88 0,02 (-0,45) 0,91 Vmáx 0,61 0,43 0,83 0,45 Vmin 0,87 0,24 0,57 0,55 RI 0,45 0,90 0,17 0,02 (0,60) Vmáx 0,29 0,49 0,84 0,97 Vmin 0,41 0,98 0,35 0,35 RI 0,02 (0,36) 0,44 0,40 0,42 Vmáx 0,78 0,39 0,02 (-0,52) 0,02 (0,69) Vmin 0,86 0,56 0,22 0,83 RI 0,39 0,68 0,23 0,20 Vmáx 0,48 0,42 0,51 0,91 Vmin 0,21 0,82 0,40 0,64 RI 0,52 0,22 0,90 0,76 Correlações entre velocidades e índices de resistência da veia central da retina e os diversos factores que se conhece modularem a existência do fenómeno SVP. Valores apresentados do valor p obtido por correlação de Spearman (e valores de coeficientes de correcção quando p<0,05). PIO indica pressão intra-ocular; SVP, pulsatilidade venosa espontânea; NTG, glaucoma normotensional; GPAA, glaucoma primário de ângulo aberto; Vmáx, velocidade máxima; Vmin, velocidade mínima; RI, índice de resistência. diminui as amplitudes de pulso12, alterando assim as pressões de pulso em ambos os compartimentos. Caso este impacto seja assimétrico, poderá verificar-se uma diminuição do gradiente entre o espaço intra e extra-ocular. Podendo existir variáveis não analisadas como a PIC ou a OPA que possam interferir com os resultados, os nossos resultados sugerem que a frequência cardíaca desempenhe um factor relevante na existência de SVP. Se esta situação pressupõe a existência de alterações estruturais glaucomatosas que permitam esta correlação ou se a mesma se verificaria nos indivíduos saudáveis não nos é possível determinar, dada a impossibilidade de análise entre os subgrupos controlo. De facto, e considerando uma prevalência na literatura de indivíduos saudáveis sem SVP inferior a 10%5,18,4, o nosso estudo implicaria um recrutamento de indivíduos saudáveis muitíssimo superior para que um subgrupo com apenas 10% do total tivesse um número que tornasse possível a realização de testes estatísticos. No caso do grupo NTG, as características dos dois subgrupos diferem não só ao nível dos danos funcionais mas também com alterações ao nível hemodinâmico. Concretamente a este nível, os indivíduos NTG sem SVP 58 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia apresentaram menores velocidades ao nível da CRA e um menor índice de resistência ao nível da CRV. Ambas as alterações poderão representar uma disfunção da autoregulação vascular que se sabe existir nestes doentes19-20, estando inclusivamente estas alterações arteriais associadas a progressão do glaucoma21-22. Salienta-se que os menores índices de resistência venosos poderão por si ser compatíveis com uma menor pulsatilidade. Sendo um rácio entre as maiores e menores velocidades, este menor índice venoso revela que, ao longo do ciclo cardíaco, existe uma flutuação significativa menor entre as duas velocidades. As oscilações de diâmetro da CRV, produzidas por uma pulsatilidade espontânea ao longo do ciclo cardíaco, alterariam à quarta potência o fluxo de sangue23, tornando-se expectável uma repercussão ao nível das velocidades venosas. Nos subgrupos NTG, a característica estatisticamente diferente foi o grau de lesão funcional, com um maior dano no subgrupo sem SVP. Estes resultados parecem estar em linha com os resultados recentes que apontam a ausência de SVP como factor de risco de progressão em doentes com NTG24. O porquê deste impacto ser maior neste grupo do que no GPAA é ainda desconhecido. O facto de doentes Ausência de Pulsatilidade Venosa Espontânea como Factor de Risco no Glaucoma Normotensional. com NTG estarem associados a menores pressões de pulso ocular25, menores pressões intra-cranianas26 e particularmente uma menor espessura da esclera27 podem favorecer esta alteração da normal drenagem venosa. De facto, qualquer gradiente entre dois compartimentos depende também das características da estrutura que os separa. Ao nível da esclera, essa interface é feita pela lâmina crivosa, atravessada pelos axónios das células ganglionares, a CRA e a CRV. Em estádios da doença mais avançados, assiste-se não só a uma alteração da espessura28 mas da conformação desta estrutura. O abaulamento posterior da lâmina crivosa induz um raio de curvatura diferente na face anterior em relação à face posterior originando um desalinhamento dos poros das várias camadas e consequente diminuição do seu calibre29. Este aumento do stress mecânico sobre as estruturas que atravessam a lâmina crivosa terá provavelmente maior repercussão nos vasos com paredes mais frágeis. Assim, é explicável que as alterações venosas precedam as alterações das artérias, uma vez que possuem uma menor camada muscular30. Esta situação de obstrução sobre os territórios vascular é ainda corroborada pelas relações que identificamos entre as componentes cardiovasculares e os parâmetros hemodinâmicos identificados pelo CDI. Em ambos os grupos com glaucoma que apresentavam SVP, verificou-se uma correlação positiva entre a amplitude de pulso arterial e velocidades e resistências arteriais que não se verificaram nos respectivos subgrupos sem SVP. Esta ausência de correlação nestes doentes poderá assim sustentar a existência de uma compressão do sistema vascular capaz de diminuir essa transmissão da amplitude de pulso. Em resumo, o nosso estudo parece evidenciar que a ausência de SVP está associada a alterações hemodinâmicas dos vasos centrais da retina, potencialmente associados a fenómenos constritivos ao nível da lâmina crivosa. Este sinal poderá ser particularmente importante em doentes com NTG, onde parece sinalizar doentes com estádios mais avançados da doença. Bibliografia 1. Resnikoff S, Pascolini D, Etya’ale D, Kocur I, Pararajasegaram R, Pokharel GP, Mariotti SP. Global data on visual impairment in the year 2002. Bull World Health Organ 2004; 82(11): 844-51. 2. Leske MC, Heijl A, Hyman L, Bengtsson B, Dong L, Yang Z. Predictors of long-term progression in the early manifest glaucoma trial. Ophthalmology 2007; 114: 1965–1972. 3. The Eye Disease Case-Control Study Group. Risk factors for central retinal vein occlusion. Arch Ophthalmol 1996; 111: 545–54. 4. Morgan WH, Hazelton ML, Azar, House PH, Yu DY, Cringle SJ, Balaratnasingam C. Retinal Venous Pulsation in Glaucoma and Glaucoma Suspects. 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