ISSN 1984-2635
REVISTA DA ESCOLA
DE ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA DO AMAPÁ
Teorias Políticas e Gestão Pública
Uma Revista para o Servidor
Macapá – Amapá
2009
Escola de Administração Pública do Amapá
Missão da Revista: Divulgar as experiências e as pesquisas dos servidores públicos ao longo de suas
carreiras, visando o desenvolvimento do Estado e a promoção da qualidade do servidor público.
Diretora Presidente: Maria Goreth da Silva e Sousa
Assessora de Desenvolvimento Institucional: Neirian Santos de Quadros
Coordenadora de Planejamento e Articulação Institucional: Camille Chaves de Oliveira da Fonseca
Coordenadora Administrativo-Financeira: Keuliciane Moraes Baia
Revista da Escola de Administração Pública do Amapá/ Escola de Administração Pública do
Amapá. __v.01, n.01 (jan/dez. 2009) __Macapá: Escola de Administração Pública do Amapá,
2009.
Anual (2009 -)
ISSN: 1984-2635
1. Administração Pública – Periódicos. 2. Gestão Pública. I. Escola de Administração Pública do
Amapá.
CDD (21.ed. ) 350.005
Permitida a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte.
Conselho editorial: Maria Goreth da Silva e Sousa (Presidente); Gilberto Ken-Iti Yokomizo
(Conselheiro); Maura Leal da Silva (Conselheira e Secretária Executiva); Mercedes Campos de
Figueiredo (Conselheira e Secretária Adjunta); Raimunda das Graças Viana Jucá (Conselheira)
Consultores Editoriais: Dina do Socorro Paiva Borges, Eliane Leal Vasquez, Gerson Nei Lemos Schulz
© EAP, 2009
Tiragem: 2000 exemplares
Assinatura anual: Gratuita
Este número da Revista da Escola de Administração Pública do Amapá está disponível também no site
da EAP
www.eap.ap.gov.br
Editoração e impressão: Editora Oikos
Arte-finalização: Jair de Oliveira Carlos
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e-mail: [email protected]
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 4
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 5
Capacitação de Servidores Públicos no Amapá: lucidez e ousadia ............................ 10
Maria Celeste Magalhães Cordeiro
A liderança do Príncipe na sociedade contemporânea .............................................. 16
Maria Goreth da Silva e Sousa e Ruimarisa Monteiro Pena Martins
Nicolau Maquiavel: (re)visitando “O Príncipe” ............................................................ 22
Mauro Gutenbergue Nascimento Branch e Odanete das Neves Duarte Biondi
Maquiavel, o estado moderno e a fundação da ciência política.................................. 28
Randolph Frederich Rodrigues Alves
Educação e princípios de governo: honra, virtude e medo no cenário
educacional brasileiro ....................................................................................................... 34
Edilson Afonso Mendes Pereira, Márcio Moreira Monteiro e Robério Aleixo Anselmo Nobre
A teoria da separação dos poderes: princípio consagrado na Constituição
Brasileira de 1988? ............................................................................................................ 40
Armando Alves Júnior
Os princípios de governo, a natureza das leis e a tripartição de poderes
segundo Montesquieu ...................................................................................................... 46
Iolanda Lúcia Gonçalves Bastos, Jucinete Carvalho de Alencar e Sandra Elisa Pereira Souza
O “Emílio” de Rousseau: uma reflexão sobre a política educacional ....................... 51
Helder José Freitas de Lima Ferreira, Maria Aparecida Nascimento da Silva e
Maria da Conceição da Silva Cordeiro
Alexis Tocqueville: os desvios da igualdade .................................................................. 57
Kátia Paulino dos Santos e Maria Anésia Nunes
John Locke e a teoria do estado liberal: algumas reflexões a partir de os “Dois
Tratados Sobre o Governo Civil” ................................................................................... 63
Ethiene Cavalléro da Silva, Karla Cristina Andrade Ferreira e Oliene Isabel Sarmento Corrêa
A teoria do conhecimento de John Locke ..................................................................... 70
Marcos Wagner Queiroz Mendes e Cleineide Moreira Batista
“O Federalista”: gênese de uma nova forma de governo ............................................. 74
Job Duarte Morais, Eliete Nascimento Borges e João Nascimento Borges Filho
A gênese do pensamento político nas colônias inglesas da América do Norte ....... 85
Elizeu Corrêa dos Santos, Hermon Santos da Silva e Ney Oliveira da Costa
Normas para envio de artigos ......................................................................................... 91
APRESENTAÇÃO
É com imensa satisfação que apresentamos o primeiro número da Revista da
Escola de Administração Pública do Amapá.
Esta publicação, que pretende ser anual, objetiva ultrapassar o limite institucional e prosseguir com a divulgação e o debate de temas discutidos, inicialmente, em
sala de aula, durante a disciplina Teoria Política I, do Curso de Mestrado Profissional em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará, que está sendo realizado pelo Governo do Estado do Amapá e interveniência do Instituto de Estudos,
Pesquisas e Projetos da Universidade Estadual do Ceará, por meio da Escola de Administração Pública do Amapá.
A pretensão é lançar uma revista que possibilite um espaço de discussão de
temas relacionados à administração pública, à gestão governamental e às políticas
públicas, além de permitir, também, que experiências bem sucedidas, vivenciadas
pelo servidor público, possam ser conhecidas, avaliadas e, assim, contribuam efetivamente para o processo de transformação dos serviços públicos.
A revista é instrumento importante na tentativa de aumentar o diálogo sobre
temas que estão diretamente ligados à proposta arrojada de se fazer governo participativo tendo como meta tornar o Estado do Amapá uma referência em desenvolvimento com justiça social.
Assim, o servidor público do Estado do Amapá que desejem compartilhar
conhecimentos, experiências, técnicas e tecnologias desenvolvidas, está convidado a
entrar em contato com o Conselho Editorial e integrar-se à revista, que foi criada
para estimular o desenvolvimento dos servidores e o compromisso com a cidadania.
Maria Goreth da Silva e Sousa
Presidente do Conselho Editorial da
Revista da Escola de Administração Pública do Amapá
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INTRODUÇÃO
Com esta revista, o Curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas
Públicas, realizado pelo Governo do Estado do Amapá em convênio com a Universidade Estadual do Ceará e executado por meio da Escola de Administração Pública do
Amapá, sente-se orgulhoso pela iniciativa. O lançamento de uma comunicação desse
porte, que requer maior maturidade reflexiva, é um acontecimento significativo. Ela
nasce com o objetivo de “contribuir para o desenvolvimento do Estado e para a
promoção da qualidade do serviço público”. Repleta de artigos sobre a teoria política e a sua prática na gestão pública, a obra também está ligada às pessoas que
trabalham tanto no meio acadêmico, quanto na administração do Estado.
Ao valorizar a reflexão e socializar o debate de ideias, a revista qualifica não
apenas o meio acadêmico, mas a própria administração do Estado do Amapá. Suas
preocupações, portanto, não abrangem somente a administração pública, mas as
práticas políticas democráticas, incluindo aí as políticas públicas e a sua qualidade,
visando atingir a própria população local. As pesquisas realizadas e as reflexões
reproduzidas neste espaço trarão, sem dúvida, maior competência pública na administração do Estado.
O significado de ser produzida num dos mais novos estados da federação
brasileira, o Amapá, torna esta reflexão ainda mais importante. Outros estados, com
mais tempo nessa prática acadêmica, têm tido resultados eficazes no retorno da
qualidade da administração pela capacidade de autocrítica e de mudança de rumo
promovida pelo próprio Estado.
Há outro ponto relevante. É impossível imaginar uma prática política sem um
pensamento hegemônico, isto é, sem a teoria. É na práxis que o processo democrático ganha força. Como justificar, por exemplo, uma atitude ética de seus governantes se não for motivado pelo temor de Deus ou pelo temor dos homens. Esse diferencial demarca respectivamente uma sociedade tradicional de uma sociedade moderna. Não que um tipo superará o outro, mas a sua dominância caracterizará que
tipo de política dominará na sociedade e por qual modelo a elite dirigente assumirá
para conduzir o povo e garantir-lhe “qualidade de vida”.
A ética tradicional é religiosa, e a imagem é de que nossos dirigentes devem
ter uma dose de santidade. Já na sociedade democrática, laica, são os partidos políticos que devem ter um quê de santidade. A ética estará na capacidade de o Estado
agir de forma republicana, combatendo com rigor a impunidade. Há um dito popular que diz: “A ocasião faz o ladrão”. É o retrato da ética liberal. Se o Estado não
garantir que a impunidade seja minimizada, o “estado de natureza” se instalará, e o
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medo dos homens ganhará o cenário de normalidade. E o sentido da existência do
Estado moderno é garantir um novo pacto de solidariedade numa sociedade de base
material para garantir a paz, como teorizou Hobbes que, segundo Rousseau, é o
fundador da religião civil.
Com o sentimento republicano e liberal, essa ética traz os valores iluministas
de igualdade e liberdade que orientam a prática cidadã. Os artigos deste número da
revista são frutos de um esforço coletivo para penetrar na teoria moderna do Estado a partir dos seus fundamentos. Como os autores atuam na administração pública, exercendo algumas funções-chave, eles fazem paralelos com sua prática e, com
isso, potencializam as ações públicas do governo.
O Amapá surge como Estado no momento em que o Brasil toma consciência
de que o sucesso de sua administração está associado aos valores do laicismo e não
à santidade de seus governantes, como anteriormente era a regra. Respeitando suas
bases de legitimação na soberania popular, e não apenas nos “donos do poder” ou
no “espírito das leis”, o eleitor vai ganhando cada vez mais importância, com mais
consciência política, e cidadania. O poder político e sua administração correspondente advêm dessa matriz.
Maquiavel, no século XVI, percebeu a novidade política que chegava com o Renascimento e já destacava que o Príncipe deve ter poder com glória. Essa característica
significa exatamente governar para o povo, pois a glória indica que a sua legitimação está
baseada na soberania popular e não mais na representação da vontade divina.
Essa novidade chega tardiamente ao Brasil e aparece quando o patrimonialismo e o nepotismo, típicos da sociedade tradicional, são cada vez mais substituídos
pela competência racional e pelo mérito. E isso lhe dá uma responsabilidade e, ao
mesmo tempo, uma marca de progresso material associado à inclusão social, típico
dos estados mais modernos, e estruturado pelo mercado.
A competitividade da economia traz, contudo, a dinâmica da modernidade. Ela
afeta não apenas as relações econômicas, mas transcende para as relações sociais, ao
introduzir o individualismo na sua dinâmica, e contamina as relações políticas, através
dos partidos políticos como uma organização com legitimidade para buscar exercer o
poder político. Esses partidos têm sua razão de existir na representação política dessa
diversidade de opinião da sociedade, a fim de que se expresse civilizadamente.
O fortalecimento dos partidos políticos aparece, nessa nova correlação de
forças, como uma necessidade: é um divisor de águas, uma marca da passagem do
tradicional para o moderno. A racionalidade própria da modernidade contamina a
administração do Estado que almeja tornar-se impessoal, republicana e liberal. Como
Hobbes também chamou a atenção no seu clássico livro sobre o Leviatan: o poder
político deve ser uma máquina que funcionará independe de quem governa.
A apresentação dos trabalhos tem uma lógica nesses parâmetros dos fundamentos de poder político no Estado moderno. Depois do excelente estudo de caso
que a Professora Dra. Celeste Cordeiro realiza sobre a “capacitação de servidores
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públicos no Amapá: lucidez e ousadia”, fazendo uma avaliação positiva do empreendimento e da capacidade dessa equipe, uma série de artigos irá mostrar o debate
dos mestrandos e militantes políticos na administração pública, que exercitam sua
capacidade de fazer um contraponto da teoria clássica com a contemporaneidade.
Os trabalhos começam com um diálogo com Nicolau Maquiavel. Ruimarisa
Martins e Maria Goreth Sousa discutem a atualidade dos seus estudos refletindo sobre
“a liderança do príncipe na sociedade contemporânea”. As autoras levantam questionamentos sobre que habilidades são importantes para o líder e qual é o melhor estilo
de liderança, sempre baseadas no estudo que Maquiavel realizou no momento em que
a modernidade começava a incomodar com uma nova classe, a burguesa.
Textos, contudo, são para serem reinterpretados. Nessa perspectiva, Mauro
Branch e Odanete Biondi se aventuram a fazer uma revisão do pensamento do
Príncipe e apresentar sua singularidade. Esta equipe mostra que ele funda um novo
tipo de pensamento, estabelecendo a separação entre religião e política, voltado
para a consolidação do Estado moderno.
Vivendo também em época de transição lenta do feudalismo para o capitalismo, Maquiavel fora considerado como autor maldito por incomodar a nobreza com
ideias burguesas, mas passa a ser considerado visionário da modernidade na medida
em que o mercado passa a ser o elemento estruturador da sociedade, chegando a
consolidar sua hegemonia no Ocidente no século XIX. Randolph Rodrigues também
revisita Maquiavel para rematar o papel desse pioneiro do pensamento político com
uma reflexão sobre “Maquiavel, o Estado Moderno e a fundação da Ciência Política”.
O realismo político volta a contaminar o debate político, e o século XVIII é o
momento de muita mobilização. Montesquieu terá um papel importante como estruturador do poder numa democracia com ênfase na liberdade. Ele também mereceu reflexão acurada. Três trabalhos buscam discutir o tema. O primeiro reflete em
cima da tipologia de poder político do “espírito das leis” a partir da separação de
princípio norteado de cada sociedade. “Educação e princípios de governo: honra,
virtude e medo no cenário educacional brasileiro”, da equipe formada por Edilson
Pereira, Márcio Monteiro e Robério Nobre, toma a educação brasileira como instrumento de mudança. Os autores partem do pressuposto de que na história da sociedade brasileira é possível observar ideários identificados com a honra (o Império), o
medo (Estado Novo e Regime Militar) e a virtude (Nova República). É uma reflexão que incorpora elementos para se pensar nossa história. Mesmo que se possa ter
outro olhar dos acontecimentos aventados, são considerações sobre as quais merece
ser dialogado.
A crise do Estado brasileiro é um dos temas mais atuais neste período de
transição por que passa a sociedade brasileira. Ressalta que o judiciário está tomando o lugar do legislativo ao criar jurisprudência nos espaços em que o legislativo não
tomou a devida posição. E mesmo naquelas jurisprudências em que há dúvidas é
este poder que assume o vazio. E isso se repete nas eleições brasileiras. O Congres7
so Nacional é tímido em reforma, com os deputados receosos de que, com a representação se expressando com mais realismo, eles sejam eliminados daquela casa do
povo. Como o legislativo não fortalece partidos políticos, o judiciário o faz.
Qual é mesmo a competência de cada poder? Nada como ir às fontes, e Montesquieu é o grande inspirador desse debate, preocupado que estava, junto com sua
geração, com o receio de que a maioria dominasse a minoria e vice-versa. Essa
preocupação está no trabalho de Armando Júnior, que vai ao topo do pensamento
de Montesquieu e reflete sobre a especificidade do federalismo brasileiro. Seu trabalho sobre “a teoria da separação dos poderes: princípio consagrado na Constituição
Brasileira de 1988?” não quer esgotar o tema, mas introduzir algumas considerações
para marcar o aniversário dos vinte anos de vigência da Constituição que Ulisses
Guimarães chamou de “Cidadã”.
Iolanda Bastos, Jucinete Alencar e Sandra Souza formam a equipe que também discute “os princípios de governo, a natureza das leis e a tripartição de poderes
segundo Montesquieu”. A equipe ressalta que a teoria da tripartição dos poderes
assegura a moderação, em que um poder refrearia os abusos e as arbitrariedades de
outro, com os chamados freios e contrapesos. Destaca ainda que a teoria de Montesquieu “alimenta” o constitucionalismo e permanece como uma das condições
para o funcionamento do Estado Moderno.
Jean J. Rousseau, contemporâneo de Montesquieu, foi o primeiro revolucionário na França, embora tenha morrido um ano antes da Revolução Francesa. Ele
desenvolveu a ideia da soberania popular com base na influência da democracia
grega no mundo moderno. Mas Rousseau foi mais do que um teórico da política e
de alguém que reconheceu que o Estado moderno criara a religião civil para garantir
a cidadania. Ele debateu sobre a educação nesse novo ambiente. E é esse o debate
que a equipe formada por Helder Ferreira, Maria Aparecida Nascimento da Silva e
Maria da Conceição Cordeiro fez com a obra “Emílio”. Nela, Rousseau mostra que
a educação deveria ser desenvolvida no cotidiano dos afazeres laborais, sem restrições ou métodos preestabelecidos. A liberdade e a igualdade, propostas por ele,
evidenciavam o sonho de construir uma sociedade democrática que só poderia ser
concretizada com o desenvolvimento de uma educação plena.
O artigo de Kátia Santos e Maria Anésia Nunes discute o século XIX. Elas
escolhem a preocupação de Alex de Tocqueville, dando nova abordagem aos valores da igualdade e da liberdade a partir de sua observação sobre a América do Norte.
Tocqueville buscava a novidade do federalismo e descobriu que os valores burgueses, igualdade e liberdade, eram realidades que trariam mudanças significativas na
sociedade. Sendo a igualdade inexorável, o desafio era a liberdade, isto é, que as
minorias sobrevivessem à forte massificação da sociedade moderna.
Nesse contexto da revolução burguesa inglesa, foi John Locke quem teorizou
sobre o seu momento. Hobbes não deixava espaço para a revolução, pois era fundamentalista, no sentido de ir aos fundamentos da submissão do cidadão ao Estado.
Locke, ao contrário, ao enfatizar a segurança e não a paz como estímulo para se sair
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do “estado de natureza” para a sociedade civil, propunha que, quando o príncipe
não garantir esta segurança, o cidadão tem o direito de destroná-lo e de substituí-lo
por outro. Essa atitude era inimaginável em Hobbes, pois apenas quando o soberano pedia que ele morresse é que o cidadão poderia se insubordinar e desobedecer.
A equipe formada por Ethiene Cavalléro, Karla Andrade e Oliene Corrêa
discute o liberalismo de John Locke para entender suas principais ideias. Porém, o
trabalho de Marcos Mendes e Cleineide Moreira opta por discutir a teoria do conhecimento no pensamento de Locke. Esse dado é também significativo, pois naquele
momento as ciências sociais buscavam alcançar o status das ciências naturais. O grande
corte epistemológico está exatamente em substituir o pensamento revelado pelo
sobrenatural, que está na Bíblia, pelo conhecimento da natureza, que se revela pelos
métodos científicos. É uma postura nova que corresponde na política à substituição
da submissão teocrática pela submissão cidadã.
Job Morais, Eliete Borges e João Borges Filho formam uma equipe que se
preocupou em entender o sistema de poder político liberal que se instalou em um
grande território, a América do Norte. Essa novidade é apresentada no trabalho “‘O
Federalista’: gênese de uma nova forma de governo”. A equipe percebe uma experiência inédita de administrar, e o seu segredo está resumido na observação de Madison, um dos federalistas mais importantes, ao observar que “as causas da facção não
podem ser removidas e o remédio a ser buscado se encontra apenas nos meios de
controlar os seus efeitos”. Os Federalistas radicalizaram os pesos e contrapesos para
evitar as tentações autocráticas e imperiais.
Falando em América do Norte, a equipe formada por Elizeu Santos, Hermon Silva
e Ney da Costa discute “a gênese do pensamento político nas Colônias Inglesas da América do Norte”. Sem dúvida, a Inglaterra foi o berço de ideias propagadas na modernidade,
pois foi, entre as potências emergentes no Renascimento, aquela que primeiro fez sua
revolução burguesa, no século XVIII, e iniciou a revolução industrial no século XIX.
Para encerrar a introdução desta revista, pela qual no momento você passa os
olhos e tenta descobrir que novidades ela oferece, reafirmamos que este trabalho de
pesquisa é o esforço de uma equipe que não quer ficar vendo a história se realizar e
ficar de braços cruzados. Ela toma contato com a teoria e com a realidade concreta,
buscando na política, via administração pública, exercitar sua prática cidadã. Socializa seus primeiros passos nesse campo da teoria e busca nas políticas públicas a
eficácia necessária para trazer mais qualidade de vida ao cidadão amapaense, mesmo
que não tenha nascido nessa região.
Francisco Josênio Camelo Parente
Doutor em Ciência Política pela USP, Professor Adjunto da
Universidade Estadual do Ceará e professor da disciplina
Teoria Política I do Curso de Mestrado Profissional
em Planejamento e Políticas Públicas da UECE,
em convênio com o Governo do Estado do Amapá
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Capacitação de Servidores Públicos
no Amapá: lucidez e ousadia1
Maria Celeste Magalhães Cordeiro*
“Não daremos margem ao improviso. Seremos consequentes em toda decisão, em toda análise, em todo investimento. O Amapá sabe muito bem o que quer e
assina embaixo dos projetos em que acredita”. Esta afirmação feita pelo governador
do Estado do Amapá na apresentação ao Plano Amapá Produtivo: Vocação para o
Desenvolvimento expressa a determinação em conjugar gestão e conhecimento,
única forma de fugir ao improviso e conferir consistência à tomada de decisões
administrativas. Ser consequente na gestão implica a atitude de investir na qualificação de seu corpo funcional, através do fortalecimento da Escola de Administração
e da implementação do Curso de Mestrado em Planejamento e Políticas Públicas,
hoje em sua aula inaugural. Gostaria, nesta oportunidade, representando aqui a instuição parceira do governo do estado nesse empreendimento – a Universidade Estadual do Ceará –, de enfatizar o acerto estratégico desse investimento, e passo,
portanto, a seguir, a fundamentar a tese de que, sem funcionalismo qualificado do
ponto de vista técnico e político, não pode haver governança moderna e justa.
A diversidade e a complexidade do mundo atual exigem um novo governo,
para além do perfil das burocracias hierárquicas e centralizadas. Já nem se trata mais
da polêmica por mais ou menos governo, mas a realização de melhor atividade governamental, tanto em eficácia quanto em eficiência. Os governos vêm se transformando e não estão sozinhos nessa busca, pois tanto organizações do mercado como
da sociedade, também se esforçam para adaptar-se a um mundo global em intenso
processo de mudança.
O interesse crescente pela descentralização de instituições de governança e a
expansão de sua capacidade local, além da ênfase no comportamento ético do governo e na transparência da administração pública, acrescidos aos recorrentes problemas sociais e econômicos que afligem a nação, sobretudo o acentuado grau de
desigualdade da nossa sociedade, vêm colocando responsabilidades maiores sobre a
Aula inaugural do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual
do Ceará, em convênio com o Governo do Estado do Amapá. Fev. 2008.
*Doutora em Sociologia e Professora Titular de Sociologia Política na Universidade Estadual do Ceará/UECE. É
também vinculada ao Curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UECE.
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boa gestão, nos levando a revisitar uma ideia já antiga: o serviço público como
responsabilidade cívica.
Constatamos o aumento do número de questões públicas com as quais os
governos precisam lidar mais frequentemente, e sua crescente complexidade, fazendo parecer que não há soluções simples ou respostas certas ou erradas para muitos
deles. E problemas públicos complexos requerem esforço conjunto e coordenado
de grupos díspares e de atores diversos. Quando se ampliam problemas e interesses
envolvidos, além de demandas de representação direta de interesses distintos, nos
processos da administração pública, o primeiro desafio é construir padrões de uma
gestão efetivamente pública e não meramente estatal.
E gestão pública implica articular os três grandes modelos de coordenação dos
indivíduos e suas ações na sociedade moderna: Estado, Mercado e Sociedade Civil.
Afinal, como já alertou Alan Wolfe, depois de analisar exaustivamente experiências
históricas no século XX, comparando a expansão do mercado no Ocidente com a
expansão do Estado no leste, e as transformações advindas após a queda do Muro de
Berlim, “a única mensagem que se mantém coerente é a impossibilidade de se confiar
ao governo a tarefa de solucionar todos os problemas sociais” (2002, p. 140).
Se desafios de inovação institucional desse porte, na gestão pública, são perseguidos internacionalmente, carga extra de dificuldades se impõe em sociedades
com altos níveis de desigualdades como nosso país, em que se complicam muito
mais as interrelações entre crescimento econômico e desenvolvimento social, com
as desigualdades vistas, nesse caso, como agudização perversa da diversidade.
Podemos vislumbrar essa carga extra de dificuldades quando percebemos que
a efetiva gestão pública possui irrecorrível vocação democrática, pois governar uma
sociedade plural demanda facilitar a construção de grupos e redes de interesses
variados que possam atuar na resolução dos problemas públicos. Como se não bastassem esses embaraços adicionais, temos que encarar também o padrão autoritário
de sociabilidade que ainda predomina nas práticas de governo no Brasil, tanto em
seu perfil interno quanto externo, isto é, seja entre ocupantes de cargos de chefia e
seus chefiados, seja entre o governo como um todo e a sociedade. No mais das
vezes, temos – nas três esferas de poder da Federação – uma arraigada cultura de
organização hierárquica, centralizadora e personalista.
Quando nos convertemos à ideia de que a cooperação é imprescindível num
contexto de complexidade, concluímos que um dos papéis mais importantes da
liderança pública é criar oportunidades para a discordância produtiva, oferecendo
oportunidades para que grupos diversos compartilhem a definição dos caminhos
futuros para a comunidade, inclusive facilitando a pronta disponibilidade e o livre
fluxo de informações necessárias e indispensáveis à promoção da discussão pública.
Este papel da liderança pública no mundo de hoje – operar em redes compartilhadas com atores sociais de índole distinta – reclama habilidades sociais bem especiais,
e um novo caldo de cultura no ambiente do Estado.
11
Na literatura internacional, observamos atualmente novas habilidades sendo
propostas à formação de um líder de governo, como, entre tantas outras: criar e
comunicar visão de futuro; liderar pelo exemplo; motivar pessoas; saber lidar com a
diversidade e estimular a cooperação intergovernamental, negociar e gerenciar acordos entre diferentes atores envolvidos, ter consciência dos limites, ter capacidade de
ouvir a sociedade.
Se o Estado é um agente absolutamente central para pensar e impulsionar as
grandes linhas da política que podem vir a fazer do Brasil um país decente, e se deve
ser ele o catalisador das demais forças sociais, é urgente a requalificação de seu
corpo de servidores. Faz parte do investimento em políticas públicas a preparação
do pessoal apto a vivificá-las e, neste intento, cinco conceitos constituem senhas
para ultrapassar portais de saber-ver e saber-fazer: visão estratégica, desconcentração/descentralização, desenvolvimento humano ou integrado, sustentabilidade a
partir do capital social, transparência e controle social.
Para a formação de governantes sintonizados com o futuro, é fundamental,
primeiramente, fortalecer a visão estratégica das questões sociais, percebendo-a como
a função orientadora da navegação, distinta do trabalho de remar, do fazer acontecer propriamente dito, nos ensinam Osborne et al. (1994, p. 26). O produto deste
esforço concreto do dia-a-dia de governos só pode ser avaliado como resultado a
partir do mapa de navegação proposto. Ilustração do quanto temos a aprender neste
sentido diz respeito às tarefas de regulação de prestação de serviços públicos, transferida a particulares em contratos de concessão, portanto operacionalmente independentes da direção estatal: cotidianamente, nos noticiários, conferimos o despreparo dos governos para tal.
Se o Estado constitui a grande referência para a ação coletiva, isto não tem a
ver apenas com atribuições técnicas específicas, mas principalmente com uma visão
poderosa e significativa da missão política lato sensu, devidamente compartilhada
com todos os membros da organização governamental e com as diversas representações da sociedade, a partir da qual se constroem as bases para uma gestão democrática e produtiva. Somente desta forma, num aprendizado conjunto, governo e
sociedade começarão a distinguir autonomia de isolamento e, assim, a abandonar os
padrões atitudinais da mera concessão, manipulação, denúncia ou reivindicação.
Nesta linha, um farol para os governos poderiam ser os Compromissos do
Desenvolvimento do Milênio, estabelecidos pela ONU em 2000, num robusto pacto entre todos os 189 países-membro, desdobrando-se em 8 objetivos e 18 metas a
serem perseguidas até 2015, nas áreas de educação, saúde, meio ambiente e cidadania. O oitavo objetivo – “Estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento” – indica a relevância do conceito de cooperação nesta sofisticada engenharia
institucional. Seu quarto princípio preconiza que “serão essenciais as parcerias com
os governos e também com as organizações da sociedade civil e do setor privado”,
aclarando o papel e as responsabilidades comuns e individuais de cada uma destas
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partes-chave ao processo. É, sem dúvida, um poderoso exemplo de rede de cooperação global no século XXI.
A partir da visão estratégica, assoma o desafio da descentralização, corolário
do empenho democratizante da cooperação, e aí também é preciso instigar a habilidade para desenvolver interinstitucionalidade e intersetorialidade, de modo a se chegar
a uma gestão realmente compartilhada das políticas públicas. A desconcentração
territorial é aspecto importante, e especial atenção deve ser dirigida a inovações
quanto à inclusão das regiões como entes parceiros e quanto a modelos de gestão
regional de políticas de desenvolvimento integrado.
Outros dois pontos importantes que nossos gestores públicos necessitam tratar com segurança dizem respeito à questão do desenvolvimento e da sustentabilidade, percebendo as novas conotações destas palavras gastas, e o quanto é preciso
alargar nossa visão depois de tantos erros e fracassos nas últimas décadas.
Em primeiro lugar, incorporando a visão estruturante que integra o econômico ao social, na direção do conceito formulado por Amarthya Sem do “desenvolvimento como liberdade” (2000). Em segundo lugar, preocupando-se com o
desafio da sustentabilidade (econômica, política e ambiental), e entrevendo o caráter decisivo da existência (ou não) de capital social no desenvolvimento de políticas públicas de toda ordem, ao lado de outros capitais importantes, do pessoal
ao financeiro, passando pelo intelectual, ambiental, etc. Como nos diz Kliksberg
(2002, p. 43), fatores ligados ao capital social “atuam sobre o desenvolvimento
econômico, o desenvolvimento social, a estabilidade política e a governabilidade
democrática”.
Finalmente, devemos inserir o problema da transparência da atividade governamental, englobando diagnósticos, objetivos, recursos, processos e resultados. Também é crucial incutir no servidor público a aptidão para implementar procedimentos públicos para avaliação de políticas, propiciando o controle social.
Portanto, capacitação voltada para quadros de governança é imprescindível,
no sentido de fazer valer o conhecimento como a chave para a inovação e a melhoria da gestão pública, ao lado da mobilização do talento e da inteligência dos servidores públicos para o alcance do significado da missão governamental de construir
uma sociedade mais justa e feliz.
Visão estratégica, capacidade de implementar processos de descentralização e
transparência político-administrativa e compreensão atualizada da questão do desenvolvimento integrado e da sustentabilidade como sua contrapartida não podem
ser incorporadas pelos servidores em arremedos livrescos que apenas modernizam
os discursos sem quaisquer consequências na prática da gestão.
Formação permanente baseada em tutorias e/ou estágios, a partir da realidade cotidiana do serviço, com metodologia problematizadora e facilitação de constante troca de experiências entre servidores de territórios, setores e níveis diferentes, é condição para o sucesso da empreitada. Há que se vincular teoria e conheci13
meno empírico, insistindo na discussão ampla dos temas, estudos de casos e oficinas
para análise de situações práticas.
Tais exercícios precisam ter a moldura dos grandes objetivos traçados para
uma determinada gestão ou para um determinado prazo. A partir dos diagnósticos
disponíveis, já tendo claro onde queremos chegar, é possível delinear as melhores
técnicas de navegação para levar o barco ao destino almejado. Daí a importância dos
planos de governo deixarem de ser documento burocrático para se transformarem
num pujante instrumento de comunicação e mobilização institucional, socializando as
responsabilidades de cada setor, e mesmo de cada um, com a melhoria das qualidades
de vida.
A lucidez do governante em relação à correspondência real entre desejos e
condições de viabilizá-los deverá conduzi-lo à coragem de estabelecer prioridades,
mesmo correndo o risco de parecer insensível ou acanhado. E, a partir dessas prioridades firmes, devem surgir metas, as quais representam insubstituível ferramenta
para impulsionar a intersetorialidade, favorecer monitoramento e avaliação de políticas, propiciar o acompanhamento e a participação da sociedade.
Para ser uma formação consistente, os novos insights, as novas atitudes e os
novos métodos devem, portanto, estar afinados à missão precípua da instituição e
estar alicerçados em:
• formação política em sentido amplo, com a percepção da vinculação profunda entre as dimensões pública e ética;
• fundamentação humanística para além do domínio de técnicas;
• visão holística, abertura para o novo e criatividade metodológica;
• compreensão do papel estratégico do Estado na promoção do desenvolvimento humano;
• conhecimento de base científica para estabelecimento de prioridades e tomada de decisões com impacto público, visando o interesse geral;
• capacidade de proposição de mecanismos de articulação e interlocução
com a sociedade;
• aptidão para o desenho de programas com gestão ampliada, desenvolvendo instrumentos e métodos que facilitem ações interdisciplinares e interinstitucionais;
• habilitação para montagem de sistemas de indicadores e metas, facilitando
o monitoramento e a avaliação de políticas e incentivando a participação
social.
Como afirmamos anteriormente, o conhecimento é fundamental no esforço
de formação do servidor público para desenvolver o compartilhamento da gestão
pública com outros agentes sociais. Daí a proposta cada vez mais aceita de que só o
capital intelectual não é o bastante. Os servidores terão de ser apoiados a aprimorar
sua inteligência emocional para acolher os novos parceiros e o conjunto de desafios
14
que trarão. Afinal, não é nada fácil para os servidores públicos – em qualquer nível
ou setor – publicizar objetivos, compartilhar informações, dar transparência a processos, respeitar diferenças (de perspectivas, interesses, saberes, experiências, tempos e velocidades institucionais...), facilitar consensos, desburocratizar a comunicação.
E provavelmente o maior desafio de todos é sensibilizar os dirigentes para a
importância da exemplaridade: serão as mais expressivas lideranças que terão o poder de mostrar, na prática, que acreditam na força da horizontalidade, da confiança
e mesmo da afetividade, na transformação de que os governos precisam com tanta
urgência.
Daí, nossa grande alegria, hoje, nessa abertura do Curso de Mestrado voltado
aos servidores públicos amapaenses, numa prova concreta de que está sendo devidamente valorizado o incrível potencial da mobilização do conjunto dos servidores
para a construção de um país, um estado, uma cidade mais digna e mais bonita para
todos os seus moradores.
Referências
KLIKSBERG, Bernardo. América Latina: uma região de risco, pobreza, desigualdade e institucionalidade social. Brasília: Unesco, 2002.
OSBORNE, David et al. Reiventando o Governo: como o espírito empreendedor está
transformando o setor público. Brasília: Comunicação, 1994.
SEM, Amarthya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
WOLFE, Alan. Três Caminhos para o Desenvolvimento: mercado, estado e sociedade civil. In: Aminoácidos/AED, n. 4, Brasília, 2002.
15
A liderança do Príncipe
na sociedade contemporânea1
Maria Goreth da Silva e Sousa*
Ruimarisa Monteiro Pena Martins**
Resumo: Com base em alguns princípios do pensamento político expressos no
maquiavelismo, o presente artigo procura associar O Príncipe ao gestor de pessoas na
contemporaneidade. Assim, foi possível identificar semelhanças entre as habilidades e os princípios do líder na concepção de Maquiavel e os dos dias atuais, que,
porém, precisam ser analisados dentro do contexto histórico, político, econômico e
social em que está inserido o líder.
Palavras-chave: Liderança. Gestão de Pessoas.
The leadership of the Prince
in contemporary society
Abstract: Based on some principles of political thought expressed in Machiavelli,
this article seeks to associate The Prince to the contemporary people manager. Thus,
it was possible to identify similarities between the skills and principles of the leader
in Machiavelli’s conception with those of the present day, but they need to be
examined within the historical, political, economic and social context in which the
leader is inserted.
Key words: Leadership. Management of People.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Diretora-Presidente da Escola de Administração Pública do Amapá. Graduada em Pedagogia com habilitação em
Administração, pós-graduada em Educação pela Fundação Getúlio Vargas/FGV e MBA em Desenvolvimento e
Gestão de Pessoas pela FGV. É acadêmica no curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas
pela UECE e professora da Faculdade SEAMA em Macapá.
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará. Servidora Pública, Psicóloga, Assistente Social, Professora Universitária, Consultora Organizacional, SóciaProprietária da Empresa ECLIPSI Gestão de Pessoas. Especialista em Saúde Pública, Especialista em Psicologia
Jurídica e MBA em Desenvolvimento e Gestão de Pessoas pela Fundação Getúlio Vargas. Apresenta experiência em
gestão e desenvolvimento de pessoas adquiridas no serviço público e em empresas privadas.
1
16
Na busca de obter resultados dentro da organização, o gestor o faz através das
pessoas. Portanto, convive com a missão de liderá-las. Tarefa não muito fácil nos
dias de hoje, considerando as exigências e necessidades do ser humano. Diante disto, neste artigo, é pretensão das autoras levantar questionamentos diversos, tais como:
Quais habilidades são importantes para o líder? O líder nasce pronto ou pode ser
formado? Qual é o melhor estilo de liderança?
O debate em torno do tema liderança é bastante vasto, ocasionando uma multiplicidade de conceitos e teorias, das quais destacamos: Teorias dos Traços de Personalidade, Teoria sobre Estilos de Liderança e a Teoria Situacional2.
A Teoria dos Traços de Personalidade apresenta o líder como detentor de
características e atributos pessoais (físicos, mentais, culturais), que o distinguem das
demais pessoas, com capacidade de influenciar o comportamento de terceiros. Parte do pressuposto de que algumas pessoas possuem a combinação de traços de
personalidade observados em líderes. Esta teoria sugere que grandes feitos da humanidade deveriam ser atribuídos a grandes personalidades da história, reforçando
a tese do “grande homem”. Esta teoria demonstrou equívocos, quando pessoas que
não apresentavam as características definidas mostraram-se grandes líderes.
A abordagem dos Estilos de Liderança sugere estilos de comportamento do
líder com relação a seus seguidores, ou seja, aquilo que o líder faz, como se comporta, e apresenta três estilos: o autocrático, em que o líder toma decisões sozinho,
independente do grupo; o democrático, em que há consulta da equipe na tomada de
decisão e o liberal (laissez-faire), em que há completa liberdade do grupo para decidir.
Alguns autores não consideram o líder laissez-faire, em razão de sua participação
ínfima no grupo.
Para a Teoria Situacional, não existem um único estilo de liderança ou características específicas do líder, este se revela diante das situações, ou seja, cada situação
pede um estilo de comportamento do líder para a obtenção de resultados junto aos
seus subordinados. É enfatizada nesta teoria a capacidade do líder em se adaptar a
cada situação e levar o grupo à obtenção de resultados.
No livro O Príncipe, Maquiavel apresenta uma variedade de princípios que devem ser assumidos pelo líder. Apesar de ter sido escrito há mais de cinco séculos, o
texto é bastante contemporâneo, tornando-se uma fonte rica de orientação para o
comportamento do líder na gestão de pessoas, dando indícios do que este deve ou
não fazer para obtenção e manutenção do poder.
O príncipe, personagem do livro de Maquiavel, pode ser identificado como o
gestor de pessoas, alguém que exerce a liderança sobre um grupo. Desta forma, o
príncipe/gestor pode ter a sua autoridade reconhecida, não simplesmente pelo cará-
2
Chiavenato se encontra entre os autores com maior aceitação dentro deste debate. Nele nos apoiamos para conceituar as teorias sobre liderança referendadas neste artigo. Para um maior aprofundamento sobre o tema, ler: CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 3. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983.
17
ter normativo/hereditário que o alçou ao poder, mas também pelo temor de seus
subordinados à possível ação coercitiva.
Para manutenção da autoridade, Maquiavel levanta a seguinte questão:
É melhor ser amado que temido ou o contrário? Responde-se
que se quer ser tanto um quanto outro. Mas, como é difícil reuni-los, é muito mais seguro ser temido do que amado, no caso de
ser preciso renunciar a um dos dois. Geralmente, pode-se dizer
que os homens são ingratos, volúveis, mentirosos, traiçoeiros,
covardes, ávidos por dinheiro. Se lhes fazes o bem, todos estão
contigo. Oferecem-te o sangue, as coisas, a vida, os filhos, como
disse antes, quando a necessidade esteja longe de ti. Mas quando
a necessidade chega perto, eles se rebelam. E o príncipe que havia se baseado completamente nas palavras deles, se não tiver
outras defesas, arruína-se. Pois as amizades que se conquistam
com dinheiro e não com grandeza e nobreza de alma não são
certas, não podem ser usadas. Os homens têm menos pudor em
ofender alguém que se faça amado do que alguém que se faça
temer. O amor é mantido por um vínculo de obrigação, que os
homens, sendo malvados, rompem quando melhor lhes servir.
Mas o temor é mantido pelo medo de ser punido, o que nunca
termina (1996, p. 84-85).
Vale ressaltar que, no ambiente político ao qual Maquiavel se reportou para
escrever o livro, o poder era instituído através do regime monárquico. Portanto, o
príncipe, que era o rei, assumia uma postura autoritária para exercer o poder e se
conservar no cargo. Nas sociedades contemporâneas, em que o poder é estabelecido através do regime democrático, a concepção de líder aponta para o indivíduo que
sabe desempenhar a autoridade diante de situações diversas.
Nas sociedades contemporâneas, em que o poder é exercido em um ambiente
de relações democráticas, a competência interpessoal3 do líder passa a ser qualidade
fundamental no gerenciamento de pessoas. Entende-se que relações interpessoais e
clima de grupo se influenciam reciprocamente, o que caracteriza um ambiente agradável, estimulante ao desenvolvimento das relações e das tarefas ou um ambiente
desagradável e até mesmo perverso. No entanto, partindo das questões levantadas
por Maquiavel com relação ao ser humano, pode-se afirmar que o conflito nas relações que envolvem poder torna-se inevitável, possibilitando atitudes negativas de
ambas as partes, o que obriga a flexibilidade do líder no gerenciamento das questões.
3
Segundo Felá Moscovici competência interpessoal “é a habilidade de lidar eficazmente com relações interpessoais, de
lidar com outras pessoas de forma adequada às necessidades de cada uma e às exigências da situação”. Ler: Desenvolvimento interpessoal. Rio de janeiro: José Olympio, 1998, p. 36.
18
Segundo os autores Macedo, Rodrigues, Johann e Cunha (2007, p. 112-113),
“as bases da autoridade são a formalidade e a aceitação. A autoridade formal confere poder posicional, mas o poder somente será exercido se seu detentor for aceito e
tiver a capacidade de exercer influência sobre indivíduos, grupos e situações”. A
liderança está, portanto, na construção de um ambiente organizacional adequado às
necessidades dos indivíduos que a compõem e na capacidade do líder em exercer a
sua autoridade, independente de estar ou não em posição de poder. Esta autoridade
caracteriza-se pela habilidade de conseguir levar os outros a fazerem, por livre e
espontânea vontade, o que designar. Diferente do poder, que é a capacidade de
obrigar à satisfação de sua vontade, por estar em posição superior ou pela força, a
autoridade possibilita aos colaboradores o livre arbítrio.
Desta forma, quais habilidades deve possuir o gestor para ser considerado um
líder? Para Maquiavel, uma das principais é a virtude, entendida como a capacidade
do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e
dominar a fortuna. É necessário, porém, que encontre situações favoráveis à manifestação dessa virtude. No trecho abaixo, Maquiavel ressalta a habilidade mutável
do líder diante das circunstâncias encontradas.
Sei que todos confessarão que seria extremamente louvável para
um príncipe possuir, de todas as qualidades acima descritas, as
que são consideradas boas. Mas como todas não se podem ter
nem observá-las por completo, pois a condição humana não permite, é necessário ser prudente e saber fugir à infâmia dos vícios
que podem lhe tirar o Estado. É prudente evitar também os que
não lhe tirariam, se for possível, do contrário, pode-se entregar a
ele sem muito temor. O príncipe não deve se importar com se
expor à infâmia dos vícios sem os quais seria difícil salvar o poder. Porque, considerando-se bem tudo, há coisas que parecem
virtude e acarretam a ruína, outras que parecem vícios e, com
elas, obtêm-se a segurança e o bem estar (1996, p.78).
Para os autores Macedo, Rodrigues, Johann e Cunha (2007, p. 120-121), existem habilidades que são requeridas ao líder, tais como: “abertura, atenção, coaching,
humildade, humor, integração, intuição, mentoring, versatilidade, visão do todo”, já
para Fiorelli (2000, p. 184-191), o líder deve desenvolver principalmente “habilidade para observar... para escutar... para falar... envolvimento”.
Verifica-se, portanto, que são inúmeras as habilidades e competências para o
exercício da liderança, porém, o líder é capaz de exercer influência positiva sobre as
pessoas quando está atento para o clima organizacional, conhece as necessidades do
grupo, está focado em resultado, ou seja, tem definido seus objetivos e revela competência interpessoal.
Neste ponto, surge um novo questionamento: essas habilidades e competências são inatas ou podem ser formadas no dia-a-dia? Deve-se ter prudência ao afir-
19
mar que o líder nasce pronto ou pode ser formado no cotidiano. Não há regras que
definam se alguém tem ou não a habilidade de liderar, pois existem muitas variáveis,
tanto individuais como do ambiente, que devem ser consideradas. Depende não só a
que pessoa se está referindo, mas também que situação se está analisando. Maquiavel
pondera sobre a união da virtude com a sorte.
Para mencionar os que, por virtude própria e não por sorte, tornaram-se príncipes, digo que os mais insígnes são Moisés, Ciro,
Rômulo, Teseu e outros como eles (...) E examinando as ações e
a vida deles, vê-se que da sorte só receberam a ocasião. Deu a
eles a matéria para darem a forma que quisessem. Sem esta ocasião, o valor deles seria perdido. Sem tal valor, a ocasião teria
sido em vão (1996, p. 32).
Ou seja, se o indivíduo possuir habilidades de liderança, porém não tiver oportunidades para pô-las em prática, a liderança não surge. Por outro lado, com situações adequadas, mas sem habilidades, também não se percebe o fenômeno da liderança. É possível, a partir de um diagnóstico da organização que considere as características dos membros do grupo, as tecnologias adotadas, o ambiente e o clima
organizacional, fornecer ao gestor ferramentas para o exercício da liderança que
respeite suas características e habilidades na gestão de pessoas.
Segundo Fiedler (apud BERGAMINI, 1996, p. 107),
O desempenho da liderança depende então tanto da organização
quanto ela depende dos atributos do próprio líder. Exceto, talvez, em casos pouco comuns, é simplesmente insignificante falar-se de um líder ineficaz; pode-se simplesmente falar de um
líder que tende à eficiência numa situação particular e à ineficiência em outra. Se quisermos aumentar a eficácia organizacional e
grupal, temos que aprender não apenas a desenvolver líderes mais
eficazmente, como também a construir um ambiente organizacional no qual o líder possa desempenhar-se bem.
Na visão de Hunter (2006, p. 32), “o poder pode ser comprado e vendido,
dado e tirado. Ou seja: laços de parentesco ou amizade realmente conseguem colocar uma pessoa numa posição de poder, mas isso já não acontece com a autoridade
– ela é a essência da pessoa, está ligada ao seu caráter”. Diante disso, pode-se afirmar
que, apesar do uso do poder em algumas situações se fazer necessário, é com a
autoridade que ocorre o desenvolvimento do indivíduo, numa clara demonstração
de que quando há necessidade do uso desse poder, é porque a autoridade foi questionada. Isso possibilita ao líder rever sua postura diante do grupo e adotar um novo
estilo de liderança.
20
Referências
BERGAMINI, Cecília Whitaker. Psicologia aplicada à administração de empresas. São Paulo:
Atlas, 1996.
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 3. ed. São Paulo:
McGraw-Hill do Brasil, 1983.
FIORELLI, José Osmir. Psicologia para administradores: integrando teoria e prática.
São Paulo: Atlas, 2000.
HUNTER, James C. Como se tornar um líder servidor: os princípios de liderança de O
Monge e O Executivo. Rio de janeiro: Sextante, 2006.
ISKANDAR, Jmil Ibrahim. Normas da ABNT: comentadas para trabalhos científicos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005.
MACEDO, Ivanildo; RODRIGUES, Denise; JOHANN, Maria Elizabeth; CUNHA,
Neisa Maria. Aspectos comportamentais da gestão de pessoas. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal: treinamento em grupo. 8. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1998.
21
Nicolau Maquiavel:
(re)visitando “O Príncipe”1
Mauro Gutenbergue Nascimento Branch*
Odanete das Neves Duarte Biondi**
Resumo: O objetivo deste artigo é, por meio do pensamento de Maquiavel – fundador da ciência política – a partir de O Príncipe, mostrar aqui a atualidade de suas
ideias, que fundam um novo tipo de pensamento, estabelecendo a separação entre
religião e política voltadas para a consolidação do Estado, como ente autônomo.
Palavras-chave: Estado. Política. Poder.
Nicolo Machiavelli:
(re) visiting “The Prince”
Abstract: The objective of this article is, through the thought of Machiavelli –
founder of political science – based on The Prince, to show the contemporaneousness
of his ideas, which founded a new type of thought, establishing the separation
between religion and politics, aiming at the consolidation of the State as an
independent being.
Key words: State. Politics. Power.
Atualmente, em qualquer discussão sobre O Príncipe, obra de maior permanência de Maquiavel, o que temos, de acordo com Paul Strathern (2000, p. 7), “é
quase o sinônimo do mal”. Algo que personifica a imoralidade, o jogo sujo e sem
escrúpulos. Talvez isso ocorra em função mais do mito do que do próprio homem e
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará – UECE, Bacharel em História e Pedagogo, especialista em Educação. E-mail: [email protected].
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará – UECE, Bacharel em Direito e especialista em Inteligência e Segurança. E-mail: [email protected].
1
22
sua obra. E este mito só pode ser desfeito, primeiro, conhecendo-se a obra e, a
partir desse conhecimento, colocando Maquiavel e o que ele escreveu dentro de um
contexto histórico, como observa Diana Pipkin (2000, p. 53).
Como outros personagens da História, a vida e a obra de Maquiavel estão inscritas em seu tempo. Isto significa que a estrutura do
pensamento de Maquiavel corresponde a uma estrutura histórica
que lhe serve de sustento e lhe dá sentido. [...] Somente assim
pode-se compreender realmente o pensamento de Maquiavel.
Assim, interessa notar que, nossa personagem surge e opera numa formação
político-histórica e cultural singular. Seu advento vincula-se, é bom lembrarmos, às
transformações ocorridas a partir do século XVI, que abalam as sociedades na Europa Ocidental. Tais mudanças envolvem as realidades históricas e econômicas, a
imagem do mundo, a representação da natureza, a cultura e o pensamento religioso.
Maquiavel, portanto, viveu em uma época de profundas mudanças e, a isso, acrescenta-se, na esfera política, a própria questão italiana, com o declínio de cidadesestado e a invasão do país por forças da França e da Espanha.
Nesse mundo em profunda transformação, em que a traição era a norma e o
poder volátil, é que Maquiavel produz sua obra. De imediato, queria que seus conselhos contribuíssem para a formação de um poder estável e, a partir dele, conseguir a
unificação da Itália sob este poder, expulsando os estrangeiros e submetendo todos
ao poder civil e laico, que deve ser exercido no interesse do Estado, antes de que no
pessoal, pois a finalidade maior do príncipe é manter-se e, ao fazê-lo, manter o
Estado. Releva notar que, em todas as obras desse autor, considerado um dos maiores analistas políticos da história, é marcante a preocupação demonstrada com o
Estado.
Sua análise sobre o Estado, entretanto, diferenciava-se da visão de Platão, Aristóteles e São Tomás de Aquino, por exemplo, que entendiam o Estado como uma
“entidade imaginária”, utópica, inviável na prática. Maquiavel tratava do Estado “real”,
capaz de impor a ordem e analisado segundo exemplos práticos de seu funcionamento. Questões como a estabilidade estatal e como o governante deve portar-se
diante das dificuldades de manutenção da ordem em seu reino são nucleares na obra
O Príncipe, vez que espera, partindo dessa discussão, descobrir como resolver o inevitável ciclo de estabilidade e caos social.
Maquiavel desenvolve sua obra com base em preceitos dos quais um príncipe
deve utilizar-se para “manter-se no poder”. A ideia de “poder” abordada na obra é
exatamente o que fascina os leitores, considerando que a descoberta de modos para
a sua aquisição e manutenção sempre fora uma das principais metas dos homens
como membros de uma sociedade. Ao desenvolver tal fundamentação, o autor –
amado por uns e odiado por outros – incita tanto temor, colocando em foco o
poder secular da Igreja, que sua obra O Príncipe, é colada no Index.
23
Ao formular e buscar resolver esta questão, Maquiavel provoca
uma ruptura com o saber repetido pelos séculos. Trata-se de
uma indagação radical e de uma nova articulação sobre o pensar e fazer política, que põe fim à idéia de uma ordem natural e
eterna. A ordem, produto necessário da política, não é natural,
nem a materialização de uma vontade extraterrena, e tampouco
resulta do jogo de dados do acaso. Ao contrário, a ordem tem
um imperativo: deve ser construída pelos homens para se evitar o caos e a barbárie, e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois há sempre, em germe, o seu trabalho em negativo,
isto é, a ameaça de que seja desfeita (SADEK, 2006, p. 6).
O poder, para o autor, é justamente algo que todos sentem, mas nem sempre
o conhecem. É possível alcançá-lo, todavia, encontra-se em um plano incerto, em
virtude da grande dificuldade de se mantê-lo. Tal dificuldade, proveniente de uma
sociedade mutável que busca o suprimento de suas necessidades – cada vez mais
crescentes – e que se porta de acordo com seus próprios interesses, deve ser constantemente superada. No entanto, sem perder de vista que “o mundo da política
não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos” (SADEK, 2006, p. 7).
Para tratar das dificuldades enfrentadas, faz uso do capítulo V, no qual soluciona a questão apresentada no título, dizendo que é possível a conservação de uma
região acostumada a viver sob as próprias leis e em liberdade, partindo-se de três
opções de procedimento: há que se destruir a região, ir nela morar ou deixá-la viver
com suas leis anteriores, mas exigindo-lhe um tributo e nela estabelecendo um governo oligárquico que lhe seja fiel, a fim de evitar, assim, a ocorrência de motins.
Ainda no capítulo V, Maquiavel ilustra suas explicações com exemplos de
estados reais que tiveram suas histórias estudadas e analisadas sob sua ótica, assim
como a destruição de Cartago, Cápua e Numância pelos romanos, como técnica
utilizada com sucesso pelo príncipe para impor-se nesses territórios, antes livres e
regidos sob suas próprias leis.
Teoriza o autor no capítulo XVII, pelo contato mantido com os homens da
antiguidade clássica e a própria prática, que os homens de todos os lugares e de
todos os tempos apresentam certos traços imutáveis. Sua visão entende o ser humano como sendo ingrato, volúvel, simulador, covarde ante os perigos e ávido de
lucro.
Estes atributos negativos, considerados como componentes da natureza humana, por se apresentarem reiteradamente em diferentes épocas e sociedades, segundo o autor, demonstram a importância do estudo da história como uma fonte
de ensinamentos. Portanto, é a partir dos fatos passados que Maquiavel acredita ser
possível extrair as causas e os meios utilizados para enfrentar os conflitos oriundos
da ação humana.
Como a história é cíclica, ou seja, é um conjunto de fatos provocados por
ações e ambições humanas que tendem a se repetir, criando um ciclo entre ordem
24
e desordem, entende-se, consequentemente, que é impossível “domesticar” a natureza humana. Dessa forma, surge a política como forma de enfrentar conflitos e
“organizar as ambições” humanas, nem que seja provisoriamente, enquanto certo
governo conseguir fazer-se obedecer por uma sociedade.
De acordo com o secretário florentino, ciente da presença de forças sociais
opostas responsáveis pela instabilidade de qualquer governo, no qual “uma das quais
provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra
de quererem os grandes dominar e oprimir o povo” (MAQUIAVEL, 2007, cap. XI),
a política deve, então, se valer de mecanismos que imponham certa estabilidade nas
relações, estabelecendo, desta forma, a ordem.
O autor – a exemplo de Hobbes – trata da ordem como produto político
imprescindível para se evitar o caos entre os indivíduos dentro de uma sociedade.
Contudo, por entendê-la como algo que não é natural a qualquer sociedade, sustenta que esta deva ser construída pelo governante, sendo que este deve estar ciente de
seu caráter circunstancial e transitório, agindo, portanto, sempre de forma a sustentá-la, focalizando-a como um dos principais objetivos de sua atitude governamental.
No capítulo XXV, Maquiavel sustenta que a liberdade humana, o livre-arbítrio, é
capaz de amenizar o poder incontrastável da fortuna e, muitas vezes, até conquistá-lo:
[...] julgo poder ser verdade que a sorte (fortuna) seja o árbitro
da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a
outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais
que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as
árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro;
todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder
opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não
impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu
ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso (MAQUIAVEL, 2007, cap. XXV).
Surgem, então, dois conceitos mencionados na obra que são de fundamental
importância para o entendimento do pensamento de Maquiavel, fortuna e virtú. Partindo desses dois conceitos, pode-se dizer que Maquiavel vê a política como forma
de conciliar a natureza humana com a marca da história, daí o primeiro decorrente
de contingências das próprias coisas políticas, não uma manifestação de Deus ou da
Providência Divina. Como tal, ela pode ser se não dominada, prevenida, no sentido
de o príncipe não ser pego de surpresa quando venha a ocorrer. Já em relação à virtú,
Maquiavel a vê como necessária ao bom exercício do poder e a pressupõe, formada
por força de caráter, coragem militar, habilidade no cálculo, astúcia e inflexibilidade
no trato com os adversários. Usando estes e outros atributos, o príncipe pode desafiar e mudar a fortuna (boa sorte).
25
Talvez a maior responsável pela associação de Maquiavel a ardiloso, inescrupuloso e traiçoeiro por aqueles que não conhecem ou não entendem sua obra, seja a
visão que manifesta acerca de como um príncipe deva se comportar. Daí lhe impingirem máximas, tais como: “os fins justificam os meios”, que nem sequer fazem parte
de sua obra.
Percebe-se que, para o florentino, o príncipe não é um ditador, mas, sim, um
fundador do Estado, um agente forte e lutador que age de maneira a organizar uma
nação que se encontre ameaçada, pois “se você é um príncipe e governa um Estado,
seu principal objetivo é permanecer no poder e dirigir o Estado em seu melhor
proveito” (STRATHERN, 2000, p. 8).
Defende Maquiavel que a política tem uma ética e uma lógica próprias e, mal
interpretadas, são seguidas, na atualidade, por muitos políticos aspirantes a ditadores que encontram em sua teoria um falso embasamento para a corrupção e mau
caratismo. Demonstra que a moralidade e a política são coisas separadas e que, por
isso, não há um juízo universal, mas cada ação deve ser julgada dentro do seu contexto e sob a ótica da ação tomada e do objetivo em que foi tomada. Acaba por
instituir um novo saber, a política, definindo seu campo de estudo e princípios que
a instituíram. A partir dele, o Estado tornou-se estritamente laico e civil, subordinando sob o seu poder o próprio poder religioso.
O Príncipe, de Maquiavel, obra clássica da literatura mundial, não pode ser
desprezada, mesmo porque adequa-se a qualquer época da história humana. Os
conselhos que deu ao príncipe, que não era uma pessoa, mas uma abstração, ainda
estão servindo a governantes, em outro contexto, é certo, mas servindo, o que demonstra a atualidade do pensamento de Maquiavel, sem deixar de considerar o seu
avanço histórico.
Conduz-nos a uma visão realista de como o ser humano pode, deve e, de fato,
manipula o poder. De forma singular, Maquiavel insistiu em falar da realidade – do
comportamento real das pessoas, não de como deveriam se comportar (STRATHERN, 2000, p. 48-49). Leitura obrigatória para aqueles que pretendem avançar
no conhecimento das Ciências Políticas. Todavia, não é suficiente apenas citar Maquiavel e aparentar erudição. É importante compreendê-lo e deleitar-se com as fímbrias
de seu estilo e sua lógica impecáveis, pois, verdade é que seus pensamentos merecem
os juízos mais desencontrados e despertam sentimentos contraditórios, no entanto,
não há quem queira discorrer acerca de política hoje que possa ignorá-lo.
26
Referências
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GRAMSCI, Antônio. Maquiavel – a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasiliense, 1976.
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(Org.). Fortuna y virtud en la república democrática – ensayos sobre Maquiavelo. Buenos
Aires: Clacso, 2000.
SADEK, Maria Tereza Alina. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo:
Ática, 2006.
STRATHERN, Paul. Maquiavel em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
27
Maquiavel, o estado moderno
e a fundação da ciência política1
Randolph Frederich Rodrigues Alves*
Resumo: O presente artigo trata de uma leitura de O Príncipe do teórico político
Nicolau Maquiavel, a partir do uso do termo maquiavélico como sinônimo de falta de
escrúpulos na política e sua extensão a outros campos das relações privadas e no
senso comum. Desta maneira, o texto procura dialogar com estas afirmações e com
a obra deste que é considerado fundador da ciência política, contrariando essa interpretação ao demonstrar que a referida obra inaugura uma percepção sobre a moral
na política.
Palavras-chave: Ciência Política. Maquiavelismo. O Príncipe.
Machiavelli, the state
and the foundation of modern political science
Abstract: This article deals with a reading of The Prince of the political theorist
Nicolo Machiavelli, based on the use of the Machiavellian term as a synonym for
absence of scruples in politics and its extension to other fields of private relationships
and common use. In this way, the text tries to dialogue with those statements and
with the text that is considered the founder of political science, countering that
interpretation by demonstrating that the above mentioned work inaugurates a
perception of morality in politics.
Key words: Political Science. Machiavelli. The Prince.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará-UECE. Bacharel em História pela Universidade Federal do Amapá e professor da rede pública do Estado
Amapá.
1
28
Introdução
Se ensinei aos príncipes de que
modo se estabelece a tirania, ao
mesmo tempo mostrarei ao povo os
meios para dela se defender.
É necessário ser príncipe para
conhecer perfeitamente a natureza
do povo, e pertencer ao povo para conhecer a natureza
dos príncipes.
(Nicolau Maquiavel)
Maquiavel é um teórico mal compreendido tanto pela crítica quanto pelo senso comum. A própria significação que se dá ao termo maquiavélico revela o grau de
incompreensão do que foi escrito por este florentino do início do século XVI.
Os termos maquiavélico e maquiavelismo nos fazem pensar em alguém extremamente poderoso, perverso, sedutor e enganador, que leva as pessoas a fazerem
exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Estes termos
são usados no dia-a-dia. Seu uso extrapola o mundo da política e habita também o
universo das relações privadas. Os termos vinculam a identidade com o que é considerado em nossa cultura como diabólico. Assim Shakespeare (Apud CHAUÍ, 1995,
p. 245) o chamou de “The Murderous”, identificando-o com o diabo. Os jesuítas
incriminavam os protestantes considerando-os discípulos de Maquiavel. O maquiavelismo serve a todos os ódios, modifica-se de acordo com os acontecimentos (SADEK, 2004).
O principal equívoco sobre Maquiavel é o que vincula a ação inescrupulosa ao
desejo do poder pelo poder. Nada mais contrário a Maquiavel do que vinculá-lo à
expressão “os fins justificam os meios”. Ele não desprezava os fins, os objetivos,
mas, sim, os colocava em seu devido lugar, no centro do planejamento da ação
política: “Toda a ação é designada em termos do fim que se procura atingir” (MAQUIAVEL, 1996). É neste aspecto que reside a revolução maquiaveliana.
Neste sentido, há de se perguntar sobre quais eram os fins que Maquiavel
propunha. Fundamentalmente, Maquiavel procurava reunificar a Itália e construir
uma instituição republicana na qual a vontade do povo fosse respeitada. Esta compreensão republicana e democrática torna-se clara em dois momentos de suas obras:
os comentários sobre a primeira década de Tito Lívio e o último capítulo de O
Príncipe, em que se observa que, ao estabelecer um paralelo entre o povo hebreu e o
povo italiano, Maquiavel desejou ver a Itália livre dos bárbaros. Para atingir esse fim,
seria necessária a disposição de um príncipe munido de fortuna e virtú para realiza-
29
ção de tão nobre feito, reunindo em sua pessoa boas ou más qualidades, conforme
as exigências das circunstâncias.
Para Maquiavel, virtú é um conjunto de qualidades, sejam elas quais forem,
cuja aquisição o príncipe possa compreender como necessária a fim de “manter seu
estado e realizar grandes feitos” (GOMES, 2008).
Ainda em O Príncipe, adverte-se que é perigoso ser odiado pelo povo, e que
para um governante que não consegue manter-se em paz com o povo, é inútil a
proteção dos exércitos e de fortalezas. Segundo Maquiavel, o principado provém do
povo ou dos grandes, segundo a oportunidade que tiver uma ou outra dessas partes.
O ponto de partida da política é a divisão social entre os grandes e o povo: “Enquanto o povo não quer ser oprimido pelos grandes, os grandes desejam oprimir o
povo”. Entende Maquiavel que a energia criadora de uma sociedade é derivada deste sistema de oposição, portanto os conflitos sociais são necessários para consolidação do Estado. Cabe ao príncipe com virtú tirar as melhores possibilidades desta
oposição.
1 A arte e as metas do florentino
A partir de Maquiavel, elaborou-se uma teoria sobre como constituir o Estado moderno. Quatro séculos após, muitos têm lido e comentado a sua obra. Maquiavel recebe hoje as mesmas acusações que a Igreja e a nobreza lhe impingiram ao
longo do tempo. O contrário dessa caracterização preconceituosa de Maquiavel nos
é apresentado por Rousseau, que se opõe aos intérpretes “superficiais ou corrompidos” do autor florentino. Assim afirma o iluminista francês: “Maquiavel, fingindo
dar lições aos Príncipes, deu grandes lições ao povo” (apud GRUPPI, 1986, p. 12).
Estes são os contrapontos de Maquiavel: mestre da artimanha e da maldade ou
conselheiro do povo que alerta os dominados contra a tirania, o fato. A atualidade
do pensamento político precisa resgatar e decifrar este pensador sem preconceitos e
em sua verdade fundamental. A Maquiavel, o intelectual de virtú, devemos a reinauguração da ciência política moderna (GRUPPI, 1986).
A visão de Maquiavel é essencialmente estratégica: definir o objetivo, enxergar a realidade como ela é, a partir daí, como é possível se chegar à situação desejada
no objetivo, rever os objetivos e, por fim, pensar nas táticas que podem ajudar a
concretizar o objetivo através de metas realistas e concretas (GOMES, 2008).
O conceito de risco calculado da estratégia militar contemporânea tem muito
de Maquiavel. Ele adverte que, de um lado, o importante é que não se perca o
objetivo de vista e, de outro, que nem toda tática é recomendável. Portanto, não é
linear, nem são infinitas as escolhas, porque algumas ampliam o risco admissível, ou
ainda, os riscos devem ser corridos, pois a sorte auxilia os audazes (CHAUÍ, 1995).
Maquiavel sabe que o Estado que deseja não será obtido enquanto a Itália não
for unificada. Ela não será unificada a não ser por um príncipe forte e que este
30
processo inevitavelmente conduzirá a guerras e violência. Esta centralização somente será possível através de um nome forte, porque precisará combater as elites
aristocráticas que impedem a consolidação de um Estado republicano.
2 Maquiavel e o surgimento das teorias modernas de estado e política
Na abordagem que encontramos em O Príncipe, Maquiavel inaugura a ciência
política. A política passa a ter contornos de uma ciência autônoma separada da
moral e da religião medievais. A condição da Itália, convulsionada por crises políticas, ameaças externas e ausência de unidade nacional, influencia diretamente em O
Príncipe. A obra, claramente, deixa transparecer a amargura e descrença do autor em
relação à condição humana. Quando a escreveu, Maquiavel desempenhava funções
políticas, administrativas e diplomáticas em Florença. Tinha caído em desgraça e
havia sofrido pena de prisão. A intenção da obra foi encontrar um processo que
unificasse a Itália e fundasse um Estado duradouro.
Ao descrever o processo real da formação do Estado moderno, através do
absolutismo, Maquiavel não se ocupa da moral. Trata da política e identifica as leis
específicas da política enquanto ciência. Com isso, apresenta o seu principal ensinamento, que é a separação da ética e da moral aristotélica da política.
Diferentemente de Aristóteles, para Maquiavel, o Estado não tem como função principal assegurar a felicidade e a virtude. Ao contrário do pensamento medieval, este Estado não é mais a preparação dos homens para o reino de Deus. O
Estado passa a ter a sua própria dinâmica, faz política, segue sua técnica e faz suas
leis (GRUPPI, 1986).
Logo no início da obra, Maquiavel nos apresenta a sua distinção sobre a realidade efetiva da política e sobre os tipos de Estado:
Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens são Estados: ou são repúblicas ou principados. Os principados, por sua vez, ou são hereditários, neste
caso o príncipe é por descendência antiga, ou são novos (MAQUIAVEL, 1996, p. 11).
Mais adiante, no decorrer de sua célebre obra, acrescenta que “muitos imaginam repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos realmente [...]”.
E completa afirmando que:
Grande é a diferença entre a maneira em que se vive e aquela em
que se deveria viver; assim, quem deixar de fazer o que é de
costume para fazer o que deveria ser feito encaminha-se mais
para a ruína do que para sua salvação. Porque quem quiser comportar-se em todas as circunstâncias como um homem bom vai
ter que perecer entre tantos que não são bons (MAQUIAVEL,
1996, p. 43).
31
Estes trechos de O Príncipe têm um profundo significado para o que podemos
chamar de fundação da ciência política contemporânea e da teoria da formação do
Estado moderno. Estas afirmações podem ser feitas em decorrência do seguinte: 1.
Embora se imaginem estados ideais, eles de fato não existem, como Platão elaborou
na sua “República”. 2. Na política, devemos observar os fatos como eles são e elaborar o que se pode e é necessário fazer, não aquilo que seria certo fazer. Portanto,
é necessário conhecer o homem, a sua natureza e agir na realidade efetiva. 3. Finalmente a política é, portanto, a arte do possível, a arte da realidade que pode ser
efetivada, que atua a partir das coisas como são e não como deveriam ser. Por outro
lado, o centro desta elaboração encontra sua genialidade na separação entre política
e moral, distinguindo-se da elaboração aristotélica, pois é a moral que cuida do
dever ser (CHAUÍ, 1995).
Maquiavel ainda descortina sobre o comportamento do príncipe
em relação à natureza humana e à necessidade das virtudes: Há
uma dúvida se é melhor sermos amados do que temidos, ou viceversa. Deve-se responder que gostaríamos de ter ambas as coisas, sermos amados e temidos; mas como é difícil juntar as duas
coisas, se tivermos que renunciar a uma delas, é muito mais seguro sermos temidos do que amados [...] pois dos homens, em
geral, podemos dizer o seguinte: eles são ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores; eles furtam-se aos perigos e são
ávidos de lucrar. Enquanto você fizer o bem para eles, são todos
seus, oferecem-lhe seu próprio sangue, suas posses, suas vidas,
seus filhos. Isso tudo até o momento que você não tem necessidade. Mas quando você precisar, eles viram as costas. [...]
[...] Os homens têm menos escrúpulo de ofender quem se faz
amar do que quem se faz temer. Pois o amor depende de uma
vinculação moral que os homens, sendo malvados, rompem, mas
o temor é mantido por um medo de castigo que não nos abandona nunca (MAQUIAVEL, 1996, p. 17).
A política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel nos apresenta um
novo horizonte para se pensar e fazer política, rompendo com o tradicional moralismo piedoso. A resistência a esta compreensão é o que dá origem ao termo “maquiavélico”. O preconceito sobre Maquiavel e sua obra foi fundado como resistência às
suas concepções. Ao longo dos séculos, esta resistência acabou nublando a riqueza
das descobertas para as ciências do Estado e da política.
Na obra de Maquiavel, funda-se uma nova moral: a moral do cidadão, típico
destes tempos humanistas: É o homem que edifica o Estado.
32
Referências
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
GOMES, Alexandre. Maquiavel e a política contemporânea. Disponível em: <http://
www.poderdapalavra.com.br/portal/book/export/htlm>. Acesso em: 23 jul. 2008.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: As concepções de Estado em Marx,
Engels, Lênin e Gramsci. 11. ed. Porto Alegre: L&PM, 1986.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna. In: WEFFORT,
Francisco C. (Org.). Os Clássicos da Política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2004.
33
Educação e princípios de governo:
honra, virtude e medo no cenário
educacional brasileiro1
Edilson Mendes Pereira*
Márcio Moreira Monteiro**
Robério Aleixo Anselmo Nobre***
Resumo: Este artigo analisa o contexto educacional brasileiro a partir das ideias de
Montesquieu acerca da relação entre as leis educacionais e os princípios de governo.
Fundamenta-se no pressuposto de que no decorrer da história de nossa sociedade é
possível observar ideários identificados com a honra (Período Imperial), com o medo
(Estado Novo e Regime Militar) e também com a virtude (Nova República). Para tanto,
utiliza teóricos como: Romanelli (2003), Couto (1998) e Libâneo (2005). Destaca ainda
a importância do atual momento da educação nacional em relação ao cenário mundial.
Palavras-chave: Educação Nacional. Honra. Virtude. Medo.
Education and principles of government:
honor, virtue and fear in the scenario
of brazilian education
Abstract: This article analyzes the educational context of Brazil based on the ideas
of Montesquieu about the relation between the educational laws and the principles
of government. It is based on the presupposition that throughout the history of
our society it is possible to observe the systems of ideas identified with honor
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará. Coordenador do Curso de Educação Física – Faculdade de Macapá/FAMA. Fisioterapeuta/SESA-AP. Email: [email protected].
**Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará. Professor da Universidade Estadual do Amapá (UEAP) e da Faculdade de Macapá (FAMA). E-mail:
[email protected].
***Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará. Diretor Presidente da Agência de Desenvolvimento do Amapá/ADAP. E-mail: [email protected].
1
34
(Imperial Period), with fear (New State and Military Regiment) and also with virtue
(New Republic). For this, theorists such as the following are used: Romanelli (2003),
Couto (1998) and Libâneo (2005). Besides this, it also highlights the importance of
the current moment of the national education in relation to the world scenario.
Key words: National Education. Honor. Virtue. Fear.
A visão montesquiana acerca do espírito das leis no campo educacional remete
a uma reflexão sobre o tipo de educação, de cidadão e da própria ideia de cidadania
que fundamentam a sociedade brasileira. Um recorte histórico da educação nacional
revela traços marcantes, ora ligados à ideia de honra, ora à ideia de temor/medo e, por
vezes, estabelecendo a virtude como ponto principal da formação do cidadão.
Para entendimento da temática, faz-se necessário recorrer, inicialmente, às
ideias de Montesquieu2 (1689-1755) sobre a importância das leis educacionais e sua
relação com cada forma de governo: monarquia, despotismo e república, destacando seus principais aspectos. Em seguida, trazem-se para a discussão os momentos
históricos da construção da sociedade brasileira que deixam claro em seu contexto
os elementos característicos da educação em cada tipo de sociedade (Período Imperial, Estado Novo, Regime Militar e Nova República)
Ao longo da história das sociedades, percebe-se o fenômeno educativo como
elemento basilar na construção social de seus sujeitos, assim como das relações que
se estabelecem entre estes, e entre estes e as instituições políticas e governamentais.
A educação, por estar presente, de maneira formal e informal, em toda a vida do ser
humano, e suas leis sendo as primeiras que recebemos (MONTESQUIEU, 2007),
funciona como construtora de um cidadão característico de uma forma de governo.
Para Montesquieu (2007, p. 44), “as leis da educação, serão, portanto, diferentes em
cada tipo de governo. Nas monarquias, terão por objeto a honra; nas repúblicas, a
virtude; no despotismo, o medo”.
A monarquia estabelece a honra como pressuposto legal da formação de um
cidadão grandioso, relacionando-se a uma educação voltada para o enobrecimento
dos sentimentos. Montesquieu (2007, p. 45) diz que “desde que a honra, nas monarquias, pode encontrar alguma coisa nobre, ela se torna ou o juiz que as torna legítimas, ou o sofista que as justifica”.
O Estado despótico busca sua sustentação no medo, justificando-se pela obediência aos preceitos estabelecidos. O medo é o eixo principal da formação do cidadão.
Neste caso, a educação assenta-se no temor à figura do déspota que legalmente tem o
poder de punir. As leis de educação legitimam a formação de um sujeito domesticado
pelo temor, obediente, incapaz de se rebelar diante das relações desiguais.
2
Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu.
35
Na república, que prioriza a virtude, entendida por Montesquieu como virtude política, observa-se a necessidade de um tipo educacional com seus princípios
voltados para a defesa do amor às leis e à pátria, em que o interesse público se
sobrepõe ao interesse privado. Os princípios idealizados na república devem ser
trabalhados e desenvolvidos nas crianças. Porém, para que isso aconteça, faz-se necessário que os pais, as famílias tenham convicção da importância do amor à república e dos valores republicanos.
1 Honra e Educação no Período Imperial (1822-1889)
A Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, em seu art. 179, § 32,
determinava nas que a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos. Entretanto, é importante esclarecer a noção de cidadania que se tinha na época. Cidadão era
aquele que possuía propriedades, terras, muitos bens e tinha participação no governo local, sendo agraciado com privilégios, títulos que o diferenciava das outras pessoas. Fazia parte dos grupos que impunham suas vontades e seus interesses através
de leis que mantinham privilégios sociais, políticos e econômicos.
A honra representa um sentimento de classe e o amor aos privilégios e prerrogativas que caracterizam a nobreza. O governo de um só, baseado em leis fixas e
instituições permanentes, com poderes intermediários e subordinados – tal como
Montesquieu caracteriza a monarquia –, só pode funcionar se esses poderes intermediários orientarem sua ação pelo princípio da honra. É através da honra que a
arrogância e os apetites desenfreados da nobreza, bem como o particularismo dos
seus interesses se traduzem em bem público. “Se não existir monarca, não existirá
nobreza, se não existir nobreza, não existirá monarca” (MONTESQUIEU, 2007, p.
31). Neste sentido, a nobreza se configura como poder intermediário, sendo a base
do governo monárquico.
2 Medo e Educação no Estado Novo (1937-1945)
O Estado Novo representa um golpe nos movimentos esquerdistas e de direita, além de atropelar os interesses latifundiários, sendo recebido de forma simpática
pela maioria da burguesia e pelos militares que deram a sustentação necessária para
que Vargas, com amplos poderes, pudesse “realizar o remanejamento da estrutura
do Estado que a revolução de 1930 vinha reivindicando. A política liberal do governo é substituída por um dirigismo estatal, que favoreceu a indústria” (ROMANELLI, 2003, p. 50).
A Constituição de 1937, claramente com tendências fascistas, aponta os rumos da educação para os interesses capitalistas, no sentido de preparar o maior
contingente possível de mão-de-obra para as novas áreas criadas pelo mercado. A
característica principal do modelo educacional é a obediência, que serve de susten36
tação ao poder estabelecido (ROMANELLI, 2003). A não-obediência é reprimida
com o castigo, aplicado por quem tem o dever de punir, o Estado, com suas mãos
fortes e atentas a qualquer fuga da ordem e do progresso. Trata-se de uma referência
às ideias positivistas3, com grande influência na educação desse período.
3 Educação e Medo no Regime Militar (1964-1985)
A representação do medo na educação deste período é, de forma marcante,
representada no relato de Couto (1998, p. 54):
O golpe de 1964 chegou-me assistindo a aula de matemática na
Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, no centro de Belo
Horizonte. Eram 7h45min. da manhã de 1º de abril, uma quartafeira. Francisco Teixeira Dias, o Chiquinho, um desses prodígios
alienados tão comuns nas universidades do país, quadro negro
lotado de fórmulas e gráficos, estava concluindo a demonstração de complicado teorema. De repente, batem forte na porta
de entrada. Um aluno abre. Dois soldados do Exército, roupas
de campanha, armados até os dentes, baionetas ameaçadoras.
Um deles diz ao professor: “A aula acabou.” Do seu mundo numérico e de trás dos pesados óculos fundo de garrafa, Chiquinho olha sem espanto, não se abala. Diz: “Tudo bem, ‘seu guarda’! Só vou concluir a demonstração que está no finzinho.” O
soldado: “A ordem é fechar tudo aqui. E vamos fechar.” Perplexos, nos levantamos e saímos.
O golpe militar representa o ajuste da política e da economia nacional rumo à
entrada definitiva no modelo e desenvolvimento difundido pelo capital internacional. Este período caracteriza-se de forma sombria sobre os variados campos de
nossa sociedade, em particular os da educação e da economia que passam a seguir a
cartilha dos interesses norte-americanos.
No campo educacional, a Lei de Diretrizes e Bases, a partir dos acordos MECUSAID (Ministério da Educação e Cultura e United States Agency for International Development), sofre várias alterações que passam a ditar os rumos de nossa educação
(Lei nº 5.540/68, Lei nº 5.692/71, 7.044/82). A primeira reforma o ensino superior,
a segunda reestrutura o ensino em 1º e 2º graus, tornando o último obrigatoriamente profissionalizante nas escolas da rede oficial. Já a reforma final retira a obrigatoriedade do ensino profissionalizante.
3
Sistema filosófico formulado por Augusto Comte tendo como núcleo sua teoria dos três estados, segundo a qual o
espírito humano, ou seja, a sociedade, a cultura, passa por três etapas: a teológica, a metafísica e a positiva. As
chamadas ciências positivas surgem apenas quando a humanidade atinge a terceira etapa, sua maioridade, rompendo
com as anteriores.
37
Na realidade, nota-se que as reformas são introduzidas muito mais pelas novas
necessidades de mercado que se instalara no país, do que propriamente pela preocupação governamental com a qualidade educacional vivenciada em nossas terras, já que:
A crise servia de justificativa de intervenção, mas não passava de
um pretexto para assegurar ao setor externo a oportunidade para
propor uma organização do ensino capaz de antecipar-se, refletindo-a, à fase posterior do desenvolvimento econômico. O
momento era propício para essa intervenção, porque estavam
asseguradas as pré-condições políticas e econômicas da retomada da expansão e havia, para tanto, uma condição objetiva “justificando-a” (ROMANELLI, 2003, p. 209).
As reformas educacionais implementadas tinham forte conotação política,
servindo à nova face do capitalismo mundial e ao processo de industrialização pelo
qual passava a economia e o mercado brasileiro, necessitando de mão-de-obra qualificada a um custo baixo no menor tempo possível.
4 Educação e Virtude na Nova República (1986-2008)
Percebe-se, ao longo dos variados períodos históricos, o forte vínculo entre a
educação, as condições político-econômicas e os programas e projetos implementados no país, sob o pretexto do desenvolvimento que, para ser alcançado, necessita
estar atrelado ao modelo econômico mundial. Nesta visão, a educação está a serviço
do capital e não das pessoas. O conhecimento é tratado como produto a ser comercializado.
Com essa ideia, a década de 1980, com o fim da ditadura militar e a retomada
do processo de reconstrução da democracia, lança as bases para a implantação de
uma política econômica e social que tem como meta a privatização de setores estratégicos do sistema público. Libâneo (2005, p.138-139) afirma que:
O descontentamento com a deterioração da gestão das redes públicas, o rebaixamento salarial dos professores, a elevação das despesas escolares pela ampliação da escolaridade sem
aumento dos recursos, os inúmeros casos de desvios de recursos, além de abrirem portas à iniciativa privada, levaram a
sociedade civil a propor soluções que se tornaram ações políticas concretas por ocasião das eleições de 1982.
A partir de 1990, concretiza-se a política educacional de caráter privatista, em
especial com a posse do Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995. Abremse as portas de nossa sociedade para a ajuda de órgãos internacionais que passam a
influenciar diretamente os caminhos e descaminhos de nossa educação, inclusive a
LDB promulgada em 1996, que legitima os interesses internacionais em nosso país.
38
As ideias de Montesquieu, sobre os princípios e a natureza que sustentam as
formas de governo e de como as leis educacionais trabalham para legitimar tais
modelos, encontram-se presentes, de forma explícita, nas várias fases da história da
sociedade brasileira, estando em conformidade com sua época e seu lugar, privilegiando a honra no Período Imperial, o medo como sustentáculo no Estado Novo e
no Regime Militar e a virtude como a essência da educação na Nova República,
demonstrando seu caráter histórico e atual em um quadro complexo e singular do
poder regente na sociedade.
Referências
BRASIL. Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e
funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1968. Disponível em: <http://
www. prolei.inep.gov.br.html>. Acesso em: 28 set. 2008.
BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino
de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1971.
Disponível em: <http://www. prolei.inep.gov.br.html>. Acesso em: 28 set. 2008.
BRASIL. Lei nº 7.044, de 18 de outubro de 1982. Altera dispositivos da lei nº 5.692,
de 11 de agosto de 1971, referentes à profissionalização do ensino de 2º grau. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 1982. Disponível em: <http://www.
prolei.inep.gov.br.html>. Acesso em: 28 set. 2008.
COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil: 1964 –
1985. Rio de Janeiro: Record, 1998.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra.
Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2005.
MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2007.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil (1930/1973). 28. ed.
Petrópolis: Vozes, 2003.
39
A teoria da separação dos poderes:
princípio consagrado na Constituição Brasileira de 1988?1
Armando Alves Júnior*
Resumo: O presente artigo analisa a Teoria da Separação dos Poderes, de Montesquieu (1689-1755), enquanto teoria consagrada na Constituição Federal Brasileira
de 1988, procurando demonstrar a contemporaneidade da teoria em razão de defender a equipolência entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, como princípio para garantia do Estado democrático.
Palavras-chave: Estado. Poder. Equipolência.
The theory of the separation of powers:
principle enshrined in the Brazilian Constitution of 1988?
Abstract: This article examines the theory of the separation of powers of
Montesquieu (1689-1755) as a theory enshrined in the Brazilian Federal Constitution
of 1988, seeking to demonstrate the contemporaneousness of the theory on the
grounds of defending the equipollence between the executive, legislative and judiciary,
as a principle to guarantee the democratic state.
Key words: State. Power. Equipollence.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado Profissional em Planejamento em Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do
Ceará. Coronel da Polícia Militar do Estado do Amapá. Professor universitário pelo Centro de Ensino Superior do
Amapá e professor da Rede Pública Estadual. Exerceu o mandato de deputado federal pelo Amapá de 2003 a 2007.
1
40
No fundo, toda teoria política clássica
é por natureza contemporânea.
J. A. Guilhon Albuquerque
Em 5 de outubro de 2008, a Carta Magna brasileira completa vinte anos de
vigência. Um bom momento, em todo país, para que as entidades de classes, os
órgãos governamentais e as instituições privadas organizem debates visando refletir, a partir de vários olhares, as implicações ocasionadas pela lei maior que rege o
país na vida de cada brasileiro. O presente trabalho propõe discutir, de forma sucinta, o modelo da tripartição de poderes de Montesquieu, enquanto cláusula consagrada no artigo segundo da Constituição Brasileira de 1988, buscando demonstrar
sua contemporaneidade em razão de apontar, assim como Estado democrático, o
equilíbrio entre os poderes como princípio fundamental para a existência de um
regime político ideal.
A Constituição de 1988 pôs fim a um longo período ditatorial da política
brasileira, instituído pelo Golpe de 1964, restaurando no país a democracia. Historicamente, a reforma constitucional iniciou entre os anos de 1985 e 1986, com o
restabelecimento da eleição direta para a Presidência da República, a aprovação do
voto para os analfabetos, a legalização dos partidos políticos, a extinção da censura
prévia e o fim das intervenções nos sindicatos. Em 1986, foi eleita a Assembléia
Nacional Constituinte, encarregada de elaborar a nova Constituição. Até o término
das votações em 1° de setembro de 1988, transcorreram intensos debates, marcados
por uma série de conflitos entre os grupos conservadores e progressistas, os primeiros reunidos no Centro Democrático e os segundos formados pelos partidos de
esquerda (PT, PC, PC do B, PDT) e por uma parte do PMDB. Depois de dezenove
meses de trabalho, promulgou-se a nova Carta Magna do país, consagrando como
regime político o estado democrático de direito2.
Entre os princípios políticos presentes na elaboração da Constituição Brasileira de 1988, destaca-se a Teoria da Separação dos Poderes, consagrada pelo pensador francês Montesquieu3, na obra Do Espírito das Leis, em que defendeu a ideia da
separação de poderes como forma de evitar a concentração absoluta de poder nas
mãos do soberano, através do equilíbrio entre os três poderes: executivo, legislativo
e judiciário. Para escrever a Teoria dos Três Poderes, Montesquieu baseou-se na
Sobre a história e as mudanças sociais instituídas pela Constituição Brasileira de 1988 ler: Constituição da República
Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2008 e BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos
Sociais: eficácia e racionabilidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005.
3
Charles-Louis de Secondat ou simplesmente Charles de Montesquieu, Barão de Montesquieu nasceu no dia 18 de
janeiro de 1689 e faleceu no dia 10 de fevereiro de 1755. Filho de família nobre, cedo teve formação iluminista com
padres oratorianos. Revelou-se um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero
católico. Adquiriu sólidos conhecimentos humanísticos e jurídicos, mas também frequentou em Paris os círculos da
boemia literária. Wikipedia, 2008.
2
41
obra Política, do filósofo Aristóteles, e na obra Segundo Tratado do Governo Civil, publicada por John Locke.
Com base na Constituição Inglesa, Montesquieu (1987, cap. VI) verificou que
existem “em cada Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem dos direitos das gentes, e o poder executivo das que
dependem do direito civil”. Cada um dos poderes assume uma função específica,
conforme descrição abaixo:
O Legislativo faz as leis para algum tempo ou para sempre, e
corrige ou ab-roga as que estão feitas; o Judiciário pune os crimes ou julga as demandas dos particulares; e o Executivo, sendo
o restante poder, exerce as demais funções do Estado, a administração geral do Estado, constituindo-se por isso no executor das
leis em geral (MONTESQUIEU, 1987, Livro 8, cap. XIX, p. 139).
Assim, para que haja a legitimidade de cada poder sem que ocorram excessos,
faz-se necessário garantir que um poder não interfira no outro. No entanto, isso não
quer dizer que, dependendo da natureza de cada poder, isso não possa ocorrer. No
trecho abaixo, Montesquieu exemplifica esta distinção tomando como base a relação entre o poder executivo e legislativo.
O poder executivo, como dissemos, deve participar da legislação
pela faculdade de vetar; sem o que breve será despojado de suas
prerrogativas. Mas se o poder legislativo também participa da
execução, o poder executivo estará igualmente perdido. Se o monarca tomasse parte na legislação pela faculdade de estatuir, não
haveria mais liberdade. Porém, como é preciso, no entanto, que
tome parte na legislação para defender-se, é preciso que o faça
pela faculdade de vetar (Cap. V, 1987).
Portanto, para Montesquieu era preciso assegurar não a independência entre
os poderes, mas a liberdade entre eles, permitindo que um poder desafiasse o outro,
atuando como instâncias moderadoras, impedindo abusos, principalmente por parte do executivo. Porém, para que isso ocorresse, era “preciso que a instância moderadora (isto é, a instituição que proporcionará os famosos freios e contrapesos da
teoria liberal da separação dos poderes) encontre sua força política em outra base
social” (ALBUQUERQUE, 2006). Neste caso, a outra base social a qual Montesquieu se referia era a “burguesia”. Para Albuquerque (2006).
[...] a estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre
as forças reais da sociedade possa se expressar também nas instituições políticas. Isto é, seria necessário que o funcionamento
das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder das demais.
Tomando como base que a moderação dos poderes decorreria da legitimidade
das forças sociais dentro das instituições políticas (ALBUQUERQUE, 2006), pode42
se afirmar que a teoria de Montesquieu antecipa a base política dos governos democráticos dos Estados atuais, demonstrando a sua contemporaneidade.
Vale ressaltar que Montesquieu escreveu a Teoria da Tripartição dos Poderes
em uma época que antecedeu os governos liberais implantados pelas revoluções
burguesas, em que o poder estava concentrado na figura do monarca: “aristocracia
está, de certo modo, no senado, a democracia no corpo dos nobres e que o povo
não é nada” (MONTESQUIEU, 1987, Cap. III). Apesar de fazer parte da nobreza,
não pretendia a restauração do poder à classe à qual pertencia e, sim, tirar proveito
das fragilidades dos regimes monárquicos e assim contribuir para a implantação de
governos que resultassem de revoluções democráticas (ALBUQUERQUE, 2006).
Montesquieu acreditava também que, para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas, seria fundamental estabelecer a autonomia e os
limites de cada poder. Segundo Albuquerque (2006):
Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida
como a separação dos poderes ou a equipolência. De acordo
com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para
o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A ideia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de
igual poder.
Assim, Montesquieu (1987, Cap. IV) defendia a regulamentação do poder, de
forma tal que impedisse abusos.
Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição
pode ser tal que ninguém será obrigado a fazer as coisas a que a
lei não o obrigue nem a não fazer as que a lei lhe permite.
No Brasil, o princípio do equilíbrio dos três poderes prevalece na constituição
em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988. No seu art. 2º, diz que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”. No seu título IV, que versa sobre a organização dos poderes, destina um
capítulo a cada poder.
O objetivo colimado pela Constituição Federal (outorgado aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário) é a defesa do regime democrático, dos direitos fundamentais
e da própria Separação dos Poderes, legitimando, pois, o tratamento diferenciado fixado
aos seus membros, em face dos princípios da igualdade (MORAES, 2004, p. 54).
Rodrigo Mendonça Curvina (2008) ressalta que a utilização deste princípio
veio como porta-voz das revoluções burguesas que instituíram o Estado Liberal.
[...] como técnica para a limitação do poder, a teoria foi posta em
prática nas Revoluções Liberais Burguesas dos séculos XVII e
XVIII (Revolução Gloriosa – Inglaterra 1688/89, Independência Norte-Americana, e Revolução Francesa) em resposta aos
43
abusos da concentração de poderes típica do Absolutismo da
Idade Moderna, lembrando que essa era a marca do início do
Estado de Direito.
Porém, foi somente na França, em 1791, que o termo “Separação de Poderes”, surgiu como princípio constitucional, ao defender que: “Não teria Constituição a sociedade que não garantisse a separação dos poderes com vias à proteção dos
direitos individuais” (FERREIRA FILHO apud CURVINA, 2008).
A primeira aplicação prática da doutrina da divisão dos poderes deu-se com a
Constituição Norte-Americana de 17 de setembro de 1787, generalizando-se a partir de então, sendo adotada pelo constitucionalismo dos dois últimos séculos. Com
a queda do Império, em 24 de fevereiro de 1891, foi promulgada a primeira Constituição Republicana no Brasil, estabelecendo, na consonância dos ensinamentos de
Montesquieu, o sistema de três poderes, cuja estrutura básica, no tópico, permaneceu a mesma nas Constituições subsequentes, com os hiatos decorrentes do regime
político corporificado na Carta outorgada em 10 de novembro de 1937 e durante o
período de excepcionalidade da Revolução de 1964 (RIBEIRO, 2000, p. 215).
A separação dos poderes é uma garantia extraordinária que foi alçada à dimensão constitucional, fruto do desejo e da intenção constituinte de estabelecer
funções diferenciadas, conjugando princípios por vezes aparentemente contrapostos, com escopo de salvaguardar o exercício dos direitos individuais e coletivos. A
separação dos poderes tornou-se um princípio essencial de legitimação do Estado
brasileiro.
Se, por um lado, as imunidades e as garantias dos agentes políticos, previstas
na Constituição Federal, são instrumentos para perpetuidade da separação dos poderes estatais, independentes e harmônicos, por outro lado, igualmente defendem a
efetividade dos direitos fundamentais e a própria perpetuidade do regime democrático (TEMER, 2003, p. 2).
Contudo, no Brasil, as práticas políticas exercidas têm demonstrado que a
garantia da equipolência em vários momentos é um ideal ainda a ser alcançado. A
tradição política brasileira tem mostrado que não basta a inserção do princípio da
separação dos poderes para que se caracterize a não-concentração em um dos três
ramos do governo. Atualmente, no Brasil, é bastante nítida a concentração de poder
no executivo. A própria natureza do regime político, presidencialista, agravada pela
tradição personalista, acaba por permitir o excesso de poder na mão de uma só
pessoa. Na própria história do país, veem-se inúmeros exemplos, em que preponderaram um executivo forte e um legislativo fraco – Golpe de 1937 e o Golpe de 1964
(CURVINA, 2008).
44
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT,
Francisco C. Os Clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006.
BONTEMPO, Alessandro Gotti. Direitos sociais: ofício e racionalidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 5 DE OUTUBRO DE 1988. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
CURVINA, Rodrigo Mendonça. Reflexão sobre a Teoria da Tripartição dos Poderes Estatais. Sua consonância com o atual Regime Democrático de Direito. In: Revista Jus Vigilantibus, 28 ago. 2008.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1987.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo; Atlas, 2004.
RIBEIRO, Antônio de Pádua. O Judiciário como poder político no século XXI.
Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 291-306, 2000.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003.
WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da política. São Paulo: Ática, 1997.
WIKIPEDIA. Charles de Montesquieu. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/
Charles_de_Montesquieu> Acesso em 15 jun. 2008.
45
Os princípios de governo,
a natureza das leis e a tripartição
de poderes segundo Montesquieu1
Iolanda Lúcia Gonçalves Bastos*
Jucinete Carvalho de Alencar**
Sandra Elisa Pereira Souza***
Resumo: O presente artigo apresenta a teoria política de Montesquieu, que estuda
as relações existentes entre as leis, a natureza das coisas e os tipos de governo. É
importante destacar entre suas teorias a da tripartição dos poderes que permitia
assegurar a moderação do poder político através da convivência harmônica entre
eles, em que um poder refrearia os abusos e as arbitrariedades de outro: “Teoria de
freios e contrapesos”. As teorias de Montesquieu tornaram-se conceitos da ciência
política e alimentaram as ideias do constitucionalismo e permanecem até hoje como
uma das condições para o funcionamento do Estado Moderno.
Palavras-chave: Teoria Política. Tripartição dos Poderes. Moderação do Poder.
The principles of government,
the nature of laws and the tripartition
of powers according to Montesquieu
Abstract: This article presents the political theory of Montesquieu, which studies
the relationship between the laws, the nature of things and the types of government.
It is important to emphasize among his theories the tripartite power, which allowed
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/Universidade Estadual do
Ceará; Especialista em Epidemiologia/ENSP, Especialista em Saúde Pública ENSP/FIOCRUZ; Enfermeira, Coordenadora Estadual do Programa de Imunizações do Amapá. E-mail: [email protected].
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/Universidade Estadual do
Ceará. Especialista em Gestão Fazendária/UNIVALI. Especialista em Magistério Superior IBPEX. Bacharel em
Administração de Empresas CEAP. Bacharel e Licenciada em Geografia/UNIFAP. E-mail: [email protected].
***Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas Universidade Estadual do
Ceará. Possui complementação do Ensino Superior/FASCINTER. Especialização em Vigilância em Saúde/UEPA.
Especialização em Pneumologia Sanitária/UFRJ e é enfermeira/UEPA. E-mail: [email protected].
1
46
assurance of the moderation of political power through the harmonic coexistence
between them, where one could check the abuses and arbitrariness of another:
“Theory of Checks and Balances”; The theories of Montesquieu have become basic
points of political science and nurtured the ideas of constitutionalism and remain
to this day one of the conditions for the functioning of the modern state.
Key words: Political Theory. Tripartite Power. Moderation of Power.
1 Montesquieu e “O Espírito das Leis”
Uma boa maneira de entender a formação do Estado moderno é conhecer o
que escreveu Charles de Louis de Secondat Montesquieu em De l’Espírit des Lois, sua
mais famosa obra, publicada em 1748, em que elabora conceitos sobre formas de
governo e exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários
básicos da ciência política. Filósofo e pensador iluminista influente na história e no
direito constitucional, foi também um grande prosador. Membro da aristocracia,
viveu na época que antecedeu a Revolução Francesa. Proficiente escritor, concebeu
obras notáveis e influentes, como Cartas Persas (1721) e Considerações sobre as causas da
grandeza dos romanos e de sua decadência (1734). Em O Espírito das Leis, trabalho de vinte
anos, Montesquieu analisa as relações que as leis têm com a natureza e os princípios
de cada governo, desenvolvendo a teoria política que alimentou as ideias do constitucionalismo, que, em síntese, buscava distribuir a autoridade por meios legais, de
modo a evitar o arbítrio e a violência. Apresentou também a tripartição dos poderes
que, além de dar estruturação racional ao Estado, tratava de uma forma natural de
distribuição, controle e limitação do poder político.
Na obra, apresentou três espécies de governo: republicano, monárquico e
despótico (MONTESQUIEU, 2007, p.23). Cada um definido por referência a dois
conceitos, a natureza e o princípio: “natureza é aquilo que o faz ser tal como é, e o
princípio é aquilo que o faz agir” (MONTESQUIEU, 2007, p. 34). Na república, a
natureza é a associação de todos para o bem comum, e o princípio, a virtude, o zelo
pelo bem público; na monarquia, o poder é de um só, regulamentado por leis fundamentais. É regido pela honra do governante em ser justo. O despotismo também é
governo de um só, porém, sem as leis regulamentares. Tem o medo como princípio.
(MONTESQUIEU, 2007). Tanto a república, quanto a monarquia utilizam-se da lei
para governar, e o despotismo se utiliza do arbítrio (VALVERDE, 2008).
Montesquieu compreendia que ninguém pode estar acima da lei, e que as leis
são determinadas pelos valores humanos e pelos fatos sociais que consequentemente determinam a forma de governo (MONTESQUIEU, 2007). Para o filósofo, o
que importava não era julgar os governos existentes, mas compreender a natureza e
o princípio de cada espécie de governo, conhecer certas características para dotar de
maior estabilidade os regimes (ALBUQUERQUE, 1991).
47
Os conceitos sobre as formas de governo elaborados por Montesquieu se
tornaram conceitos da ciência política moderna. Foi por sua busca em teorizar e
explicar de maneira sistemática as formas de governo existentes em sua época que
suas teorias políticas exerceram profunda influência no pensamento político moderno. O estudo das diferentes formas de governo e das leis que as regiam levou
Montesquieu a descrever as leis como: naturais, independente da vontade humana, e
positivas, criadas pelos homens para governá-los; defendia que as leis “se relacionam entre si e também com sua origem, com objetivo do legislador, com a ordem
das coisas sobre as quais estão estabelecidas” (MONTESQUIEU, 2007, p. 22). Assim, a obra O Espírito das Leis aborda as relações que podem ter as leis com diversos
objetos, a exemplo da educação, do comércio, da religião, do clima, e do solo. Existe,
assim, um encadeamento entre as leis, que faz com que determinada forma de governo implique uma legislação específica. Na visão de Montesquieu, a morfologia social é
que determinaria a forma de governo e as leis que regeriam este governo. Não existem
leis justas e injustas, ou ainda, o que existe são leis mais ou menos adequadas a um
determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou de lugar.
2 A influência de Montesquieu na elaboração do Estado Moderno
Montesquieu, segundo Valverde (2007), cria uma teoria fundada na liberdade
e na justiça. Uma sociedade que sente haver injustiça e falta da liberdade é uma
sociedade instável. Montesquieu (2007, p.165) defende a liberdade política e recorre
às leis como instrumento de poder, que rege as relações entre os que são governados e os que governam. Neste contexto, a natureza humana é sujeita a erros e,
segundo este filósofo, “todo homem que tem o poder é levado a abusar dele” (MONTESQUIEU, 2007, p. 164). E, para que não se possa abusar do poder, é preciso que
pela disposição das coisas o poder contenha o poder. Por isso, faz-se necessário
dividi-lo em: legislativo, executivo e judiciário, sendo este o fundamento do princípio da Tripartição dos Poderes.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo
dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse estes três
poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e
o de julgar os crimes e querelas dos particulares (MONTESQUIEU, 2007 p. 166).
Em outras palavras, o objetivo último da ordem política, na visão de Montesquieu é assegurar a moderação do poder mediante a “cooperação harmônica” entre
os poderes do Estado, de forma a conferir uma legitimidade e uma racionalidade
administrativa a tais poderes estatais, que devem e podem resultar num equilíbrio
dos poderes sociais. Na contemporaneidade, a Ciência Política reconhece que um
dos pressupostos do Estado Democrático de Direito é a existência de três poderes
independentes e harmônicos: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
48
Segundo Montesquieu (2007, p. 165):
O Legislativo faz as leis para algum tempo ou para sempre, e
corrige ou revoga as que estão feitas; o Judiciário pune os crimes
ou julga as demandas dos particulares; e o Executivo, sendo o
restante poder, exerce as demais funções do Estado, a administração geral, constituindo-se por isso no executor das leis em
geral.
Embora a obra de Montesquieu O Espírito das Leis tenha sido escrita no século
XVIII, a atualização do pensamento do filósofo encontra-se no fato de ter revelado
uma das fontes do poder político moderno, a lei, tratando-a de forma científica.
Supera a tradicional abordagem legalista e estuda as leis como uma expressão da
natureza das coisas. Reconhecido já por seus contemporâneos, o trabalho de Montesquieu revela que, independentemente da espécie de governo ou regime político
de um dado país, a ordem social é, em si, heterogênea e sujeita a desigualdades
sociais, as mais diversas. A harmoniosa convivência entre os poderes seria uma forma de controle, em que um poder refrearia os abusos e as arbitrariedades do outro.
É a teoria de freios e contrapesos.
A teoria da tripartição dos poderes inspirou a elaboração da Constituição dos
Estados Unidos da América e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
A tripartição dos poderes na Constituição dos Estados Unidos teve o intuito de não
permitir interferências recíprocas nem a transferência ou delegação de poderes, e na
Revolução Francesa encontrou o campo certo para germinar, tendo seu grande momento na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que serviu de
preâmbulo à Constituição de 1791, primeira Carta Constitucional da Europa continental.
Diversos países europeus também adotaram a monarquia constitucional com
o fim do absolutismo, o que permaneceu até o final da Primeira Guerra Mundial,
quando a maioria dos Estados adotou a tripartição dos poderes, uma das mais importantes teorias das ciências política e moderna, que ainda hoje permanece como
uma das condições de funcionamento do Estado Moderno (ALBUQUERQUE,
1991).
Conclusão
Montesquieu subsidiou os limites do poder político ao afirmar que existiam
leis naturais e leis positivas, as últimas relacionadas ao princípio de governo, e que
todos estão sujeitos a elas. O Estado é vinculado ao poder institucionalizado, que se
assenta em uma instituição e não em um indivíduo, assegurando que, no Estado
Moderno, não há poder absoluto, pois mesmo os governantes devem se sujeitar ao
que está estabelecido na lei.
49
Em sua obra, Montesquieu já descrevia que um poder não poderia usurpar
nem desrespeitar o outro, sob pena de que se instalassem o despotismo e a tirania
com supressão da liberdade do cidadão e estímulo à corrupção, e que certos governos, cuja constituição objetivasse diretamente a liberdade política, deveriam ter três
tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário. Para que
esta liberdade política exista, é necessário que o cidadão jamais se sinta ameaçado
por outro, e só o governo pode garantir tal segurança.
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Montesquieu: Sociedade e Poder. In: WEFFORF,
Francisco C. (Org.). Os Clássicos na política. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991.
ANDRADE FILHO, Francisco Antônio de; HOLANDA, Cristian Charles Oliveira
de. Crítica de Montesquieu à cor rupção política. Disponível em:<
www.mauricionassau.com.br.> Acesso em: 27 maio 2008.
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Clartet, 2007.
PARENTE, Josênio C. A Constituição da Ordem Liberal III. Montesquieu: a institucionalização da liberdade. In: Humanidade e ciências sociais. Revista da Universidade
Estadual do Ceará. Ano 1, v.1, n. 1, 1999.
PASSOS, Leonardo Antônio. A Inversão dos Preceitos Morais no Atual Contexto Político
Brasileiro. Disponível em: <www.mundodosfilosofos.com.br> Acesso em: 27 maio
2008.
VALVERDE, Thiago Pellegrini. A formação do Estado Moderno em Montesquieu. Disponível em: <www.mauricionassau.com.br>. Acesso em: 27 maio 2008.
50
O “Emílio” de Rousseau:
uma reflexão sobre a política educacional1
Helder José Freitas de Lima Ferreira*
Maria Aparecida Nascimento da Silva**
Maria da Conceição da Silva Cordeiro***
Resumo: O presente artigo condensa reflexões sobre a obra Emílio de Jean Jacques
Rousseau, em que se evidenciam as mudanças que podem ocorrer no processo educativo. Busca analisar o homem enquanto ser político livre, contrapondo-se às experiências educativas dogmáticas que tendem a manipular o indivíduo. A educação,
para Rousseau, está associada à liberdade, à igualdade e à fraternidade e tem como
eixo norteador o desenvolvimento do aprendizado a partir da realidade e das experiências dos indivíduos.
Palavras-chave: Educação. Políticas Públicas. Qualidade. Ensino-Aprendizado.
The “Emilie” of Rousseau:
a reflection on educational policy
Abstract: This article condenses reflections on the work Emilie of Jean Jacques
Rousseau, where it shows the changes that occur in the educational process, seeks
to analyze the man as a politically free being counteracting the dogmatic educational
experiences that tend to manipulate the individual. Education for Rousseau is
associated with freedom, equality and brotherhood and has as its guiding axis the
development of learning based on the reality and experience of individuals.
Key words: Education. Public Policy. Quality. Teaching-Learning.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, do Curso de
Mestrado Profissional em Planejamento em Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado
do Amapá.
*Advogado, defensor geral do estado e acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.
**Pedagoga, professora de ensino superior, Mestre em Educação. Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em
Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.
***Assistente Social, professora de ensino superior e Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento
e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.
1
51
Introdução
O presente artigo condensa algumas reflexões sobre a concepção de educação em Rousseau (1712-1778), tendo como referência uma de suas principais obras,
denominada Emílio. A obra retrata a experiência vivida no campo por um garoto
durante seu processo de formação, em que a educação, enquanto elemento básico
seria uma condição de possibilidades para a manutenção do direito coletivo, tendo
em seu caráter integral e homogêneo a essência de um aprendizado difuso e que
deveria estar ao alcance de todos.
Para Rousseau, a função da educação se caracterizava por uma concepção de
mundo baseada na igualdade, no respeito ao indivíduo, não impondo a este nenhum
padrão institucional de aprendizado que o moldasse ao ambiente social vigente. A
educação deveria ser desenvolvida no cotidiano dos afazeres laborais, sem restrições ou métodos preestabelecidos. A liberdade e a igualdade, propostas no método
de Rousseau, evidenciavam o sonho de construir uma sociedade democrática que só
poderia ser concretizada com o desenvolvimento de uma educação plena.
No entanto, Rousseau estava ligado intimamente ao fenômeno do Iluminismo que, por sua vez, estava ligado aos interesses da burguesia em ascensão. Tal
relação teve como consequência o surgimento da divisão de classes e sua evolução
nas diversas sociedades. Então a educação passou a ser organizada com o objetivo
de atender as classes dirigentes, tornando-se um instrumento com condições fundamentais para reafirmar a sua existência.
Nesse contexto, a educação passou a funcionar como um investimento privado
de uma determinada classe social, perdendo a sua importância como elemento de um
projeto que objetivava a defesa do interesse de todos numa sociedade. Porém, a divisão social do trabalho, provocada pelas diferenças entre as classes sociais, fez com que
as massas, por estarem cada vez mais excluídas dos meios de produção, buscassem o
acesso à educação, de forma a contraporem-se às ideologias de dominação às quais
estavam submetidas em todo o seu processo histórico. Ressalta-se que a luta proletária
pela educação foi um processo lento, sendo que foi expressivo em alguns contextos
históricos como os que marcaram as grandes revoluções, tendo como exemplo a Revolução Francesa e a Revolução Russa, inspiradas nas ideias de Rousseau.
As reflexões lançadas no presente artigo fazem menção às inovadoras propostas de Rousseau sobre uma pedagogia democrática centrada na liberdade, na
igualdade e na fraternidade, ou seja, o processo de ensino-aprendizagem tem como
eixo norteador uma relação dialógica que permite desenvolver conteúdos vinculados aos interesses reais dos alunos, métodos que proporcionem o desenvolvimento
das competências e habilidades do educador e do educando, diagnosticando seus
avanços e dificuldades, tendo em vista o processo pedagógico qualitativo.
52
A concepção de educação de Rousseau
O Iluminismo não é o objeto de estudo deste trabalho, mas não tem sentido
refletir sobre Rousseau sem esclarecer que o maior movimento de massas do século
XVIII foi de caráter político, econômico e ideológico. Ele é a marca do moderno,
pois criticou várias concepções medievais em política (criando os Três Poderes),
direito (consolidação da propriedade privada), filosofia (racionalismo e empirismo)
e contestou boa parte do poder da Igreja ao questionar a monarquia, seu maior
braço político, ainda que até a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte. A lâmina
da guilhotina caindo sobre a cabeça de Luís XVI e de Maria Antonieta foi o símbolo
da Revolução Francesa e da ascensão da burguesia ao poder na França.
De acordo com Gadotti,
Entre os iluministas destaca-se Jean-Jacques Rousseau que inaugurou uma nova era na história da educação. Ele se constitui no
marco que divide a velha e a nova escola. Suas obras com grande
atualidade são lidas até hoje. Entre elas citamos Sobre a desigualdade entre os homens, O contrato social e Emílio. Rousseau resgata primordialmente a relação entre a educação e a política. Centraliza,
pela primeira vez, o tema da infância na educação. A partir dele a
criança não será mais considerada um adulto em miniatura; ela
vive em um mundo próprio que é preciso compreender: o educador para educar deve fazer-se educando de seu educando; a
criança nasce boa, o adulto, com sua falsa concepção da vida, é
que perverte a criança (2005, p. 86).
Rousseau, filósofo, ligado ao Iluminismo francês, reivindicava os direitos individuais e, consequentemente civis, para a burguesia. Embora não estivesse preocupado com as classes mais pobres, sua ideologia, de certa forma, também resultou
em benefícios a esta. Apesar de propor-se a viver pobre e tendo uma vida simples,
Rousseau esteve, quando adulto, ligado a pessoas ricas, sendo até mesmo secretário
da embaixada da França em Veneza. Foi este novo mundo que permitiu surgirem
pensadores como Rousseau. Em relação à didática, a proposta de Rousseau é inédita porque torna a criança o centro da educação, tal como nunca antes ela fora.
Não se conhece a infância; no caminho das falsas idéias que se
têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios
prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o
que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser
criança (ROUSSEAU, 2004, p. 4).
Segundo o próprio autor na obra Emílio ou da Educação, “tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (2004,
p. 7). Portanto a educação do aluno imaginário “Emílio”, rico e órfão, é inspirada na
53
natureza (essa natureza não é somente o ambiente, mas também o próprio ser em
desenvolvimento). Logo, a realidade natural, o mundo como se apresenta, é a grande escola para o homem, pelo menos dos 0 aos 12 anos de idade. Assim, Rousseau
inicia a transformação da sociedade medieval (que não permitia espaço para o indivíduo fora da comunidade, dos costumes, entendendo até que um modelo de homem autossuficiente era pecado, porque tal homem não precisaria de Deus nem da
Igreja para se orientar) para a sociedade moderna em que o Emílio tem o objetivo de:
“[...] formar um homem livre, capaz de se defender contra todos os constrangimentos.
E, para formar um homem livre, há apenas um meio: tratá-lo como um ser livre,
respeitar a liberdade da criança.” (LAUNAY, 2004, p. XX). Sendo assim,
A obra se apresentou de fato como um romance psicológico e
como um manifesto educativo [...], mas ao mesmo tempo é um
tratado de antropologia filosófica, enquanto expõe uma concepção precisa do homem natural, racional e moral, além do itinerário da sua formação, e um texto político relevante. O tema fundamental do Emílio consiste na teorização de uma educação do
homem enquanto tal (e não do homem como cidadão) através
de seu “retorno à natureza”, ou seja, à centralidade das necessidades mais profundas e essenciais da criança, ao respeito pelos
seus ritmos de crescimento e à valorização das características
específicas da idade infantil (CAMBI, 1999, p. 345).
Interessante é observar que o sentido da palavra natureza assume três possíveis significados ao longo de sua obra. O primeiro opõe-se àquilo que é social. O
segundo, como tudo o que é valorização das necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de crescimento. O terceiro, como exigência de um contínuo contato com um ambiente físico não urbano e, por isso, considerado mais
genuíno. Rousseau queria, com sua proposta, levar Emílio para fora dos ambientes urbanos da época, para que ele não se deixasse influenciar por aquilo que o
autor chamava de corrupção, a saber, a forma como era praticada a religião, especialmente o cristianismo católico e a política, para ele tirânica, pré-revolucionária,
da corte de Luís XVI.
Com uma educação livre, no campo, sob os auspícios da natureza e, principalmente, sob suas condições adversas e sob intempéries, Rousseau esperava que surgisse em Emílio a vontade pela educação, isto é, o personagem rousseauniano não
deveria ser ensinado de forma dogmática, como era na escola tradicional, por preceptores tradicionais que ensinavam lições com planos preestabelecidos. Para Rousseau, este tipo de aula era tediosa, especialmente para as crianças, mas sua didática
compreendia o ensino a partir da necessidade: “[...] vede que raramente cabe a vós
propor o que ele deve aprender; cabe a ele desejá-lo, procurá-lo, encontrá-lo; cabe a
vós colocá-lo ao seu alcance, fazer habilmente nascer esse desejo e fornecer-lhe os
meios de satisfazê-lo” (ROUSSEAU, 2004, p. 235-6).
54
Rousseau era contra as aulas em forma de discurso, como aparece em seu Terceiro Livro (p. 236ss.), no Emílio, em que narra uma aula de geografia, analisando que,
durante as lições sobre os pontos cardeais, de repente, em meio à sua explicação, o
aluno poderá interrompê-lo perguntando: “Para que tudo isso?”. Ao que ele reflete:
De quantas coisas aproveitarei a oportunidade para instruí-lo
em resposta à sua pergunta, sobretudo se tivermos testemunhas
para nossa conversa. Falar-lhe-ei sobre a utilidade das viagens,
sobre as vantagens do comércio, [...] sobre os costumes dos diferentes povos, sobre o cálculo do retorno das estações para a
agricultura, sobre a arte da navegação, sobre a maneira de se
guiar no mar seguindo exatamente a rota, quando não se sabe
onde se está [...] (Ibid., p. 236-7).
Neste trecho, o autor propõe sua didática. Quando o aluno está perdendo o
interesse pela aula, deve-se parar e refletir com ele se aquela aula não serve para
nada. Mas Rousseau não abandona simplesmente a lição, ele cria então uma situação
real em que Emílio precisará da geografia para se orientar, com esperanças de que
ele entenda o sentido dos estudos de orientação.
Observávamos a posição da floresta de Montmorency quando
ele me interrompeu com sua inoportuna pergunta: Para que serve isso? Tens razão, disse-lhe eu, precisamos pensar bastante nisso; e, se acharmos que este trabalho não serve para nada, não
voltaremos a ele [...] Ocupamo-nos com outra coisa e não se fala
mais de geografia pelo resto do dia (Ibid., p. 236).
Observa-se que Rousseau não obriga seu discípulo a continuar os estudos
quando não há interesse neles por parte do aluno, nem demonstra qualquer aborrecimento por causa disso. Ao contrário, traça estratégias para que o aluno se interesse
e que, enfim, ele possa construir seus próprios conceitos, neste caso, de geografia e
dos pontos cardeais.
Uma grande lição de vida, para o garoto Emílio, é quando seu mestre simula
que estão perdidos em plena floresta e lhe pergunta: “Meu caro Emílio, como faremos para sair daqui? Emílio: Não sei, estou cansado; estou com fome; estou com
sede; não aguento mais” (Ibid., p. 237-9).
No desfecho da história, preceptor e mestre encontram com sucesso o caminho
de casa para o almoço. Portanto, a didática rousseauniana consiste em não propriamente ensinar ao aluno o que não lhe interessa aprender, mas criar condições para que
ele aprenda pela necessidade natural, de acordo com a realidade/dificuldade que se
apresenta diante dele, para, deste modo, aprender o valor das lições que os mestres
ensinam, sem que seja obrigado, sem que tenha que memorizar o conhecimento.
55
Conclusão
Para Rousseau, importante era não confundir aprendizagem com aquisição de
conhecimentos (método natural), pois o conhecimento deve ser construído, e todos
possuem conhecimento. “Fazei com que o vosso pupilo esteja atento aos fenômenos da natureza e, em breve, o tornareis curioso” (2004, p. 178).
Finalmente, o método natural consiste em que a criança “aprenda por si só,
que a razão dirija a própria experiência [...] Se o vosso educando não aprender nada
convosco, aprenderá com os outros [...] A falta da prática do pensar, durante a infância, retira dela essa faculdade para o resto da vida” (2004, p. 114-5). O autor de
Emílio entende razão no mesmo sentido dos iluministas, a saber, que ela é o estabelecimento do raciocínio lógico, considerado conhecimento inteligente, única faculdade que poderá, efetivamente, possibilitar a existência de um homem livre, que,
criado na liberdade e na igualdade, não suporte a tirania ou a injustiça, nem aqueles
que a pregam. Emílio é o modelo por excelência de homem moderno, um homem
que odeia a servidão sob todas as suas formas.
De acordo com os pressupostos de Rousseau, o homem deveria ser livre,
sendo protagonista de sua própria história, tendo o poder de criar, recriar e construir uma nova realidade social. Nesse prisma, verifica-se a necessidade, no contexto atual, de o homem pensar políticas públicas que garantam seus direitos e deveres,
para o pleno exercício de sua cidadania. Assim, faz-se necessário implantar políticas
públicas educacionais eficientes para a erradicação do analfabetismo e a redução da
reprovação e da evasão, na busca de transformar a sociedade. Nesse sentido, a escola atual precisa vivenciar uma gestão democrática, que permita a todos, coletivamente, participarem ativamente do processo de transmissão, assimilação e produção de conhecimentos que perpassam a realidade escolar, considerando que é através da escola que o sujeito aprendiz se liberta da alienação e, assim, poderá tomar
uma nova atitude enquanto agente político, mudando a sua realidade social.
Referências
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.
GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.
LAUNAY, Michel. Introdução ao Emílio ou da Educação. In: Emílio ou Da Educação.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
56
Alexis Tocqueville:
os desvios da igualdade1
Kátia Paulino dos Santos*
Maria Anésia Nunes**
Resumo: Este artigo analisa os ideais de liberdade, igualdade e democracia trabalhados por Alexis Tocqueville no séc. XIX, com foco especial para as ilustrações
acerca dos desvios de igualdade, os quais poderiam interferir na manutenção ou no
alcance da liberdade, preocupação constante do autor, enfatizada notoriamente em
sua obra A Democracia na América.
Palavras-chave: Alexis Tocqueville. Igualdade. Liberdade. Democracia.
Alexis tocqueville:
the deviations from equality
Abstract: This article analyzes the ideals of equality, freedom and democracy worked
by Alexis Tocqueville in the 19th century, with special focus given to his illustrations
about the deviations from equality, which could interfere with the maintenance or
grasp of freedom, a constant concern of the author, notoriously emphasized in his
book The Democracy in America.
Key words: Alexis Tocqueville. Equality. Freedom. Democracy.
1 Alexis Tocqueville e seu contexto
Alexis Tocqueville nasceu em Paris em 1805 e morreu em 1859. Liberal convicto e politicamente atuante, tanto na teoria como na prática, não deixou de oferecer sua parcela de contribuição para construção da nova sociedade democrática.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE.
*Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE, Especialista em Políticas Públicas de Emprego, Trabalho e Renda/UNICAMP e Socióloga/UNIFAP. E-mail: [email protected].
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE. Especialista em Políticas
Públicas de Emprego, Trabalho e Renda/UNICAMP e Assistente Social/UFPA. E-mail: [email protected].
1
57
Como teórico, deixou duas obras políticas que se tornaram clássicas, e, como ativista no mundo da política, atuou como magistrado, depois, como membro do parlamento e, ainda, como secretário de assuntos estrangeiros. Descontente com os novos rumos políticos da França no período da Restauração e em protesto ao golpe de
Estado de Luís Bonaparte (1808-1873), Tocqueville abandonou a vida política e
passou a se dedicar ao estudo da vida social, particularmente, aos estudos históricos.
Entre sua produção intelectual, duas obras importantes têm acentuado destaque: A
Democracia na América, publicada em 1835 e O Antigo Regime e a Revolução, publicada
em 1856.
Tocqueville destaca-se como importante teórico das questões da igualdade,
da liberdade e da democracia. Sua preocupação central, em foco em suas principais obras, é a manutenção da liberdade, num contexto em que a igualdade é irrefutável em seu processo histórico irrefreável (QUIRINO, 1982, p. 193). Através
de análises sobre a igualdade e a liberdade, estudou o desenvolvimento sociopolítico de sua época, o que originou a obra A Democracia na América (1830), uma
tentativa de conceber um conceito definidor de democracia, traçando o desafio
de desvendar quais as condições concretas que favoreceram, na América, o aparecimento da liberdade.
Não tinha a pretensão de ilustrar uma organização política ideal, que esboçasse as formas de se alcançar o poder e receitasse um modelo ideal de contrato social.
Apesar da clara influência das obras de Montesquieu nos escritos de Tocqueville,
suas compreensões estão voltadas para a análise de uma realidade sociopolítica, que
buscou explicar o desenvolvimento das sociedades.
A democracia, para Tocqueville, estava associada ao processo igualitário, que
não pode ser freado, desenvolvendo-se de formas diferentes em distintas nações,
conforme as variações culturais. Contudo, é a ação política dos povos que define a
existência da democracia com liberdade ou a democracia tirânica.
Minha finalidade, afirma Tocqueville, tem sido mostrar, pelo
exemplo da América, que as leis e, sobretudo, os costumes podem permitir a um povo democrático permanecer livre (MÉLONIO, 1993, p. 35).
2 “A Democracia da América”: Sobre os desvios da igualdade
A Democracia na América fora publicada em 1835 e 1840, primeiro e segundo
volumes, respectivamente. A obra evidencia a visão de democracia concebida a partir de minuciosa pesquisa realizada por Tocqueville nos Estados Unidos durante o
período aproximado de um ano. É uma obra substancialmente detalhada, que analisa os pormenores da sociedade americana, relatando hábitos, costumes e valores
contidos em instituições sociais e políticas do povo, com o objetivo central de compreender a democracia florescente no país e compará-la com as realidades democráticas de países europeus. Ainda na introdução da obra, o autor afirma:
58
Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purificar seus costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir a sua inexperiência pelo conhecimento dos negócios de Estado, os seus instintos cegos pela consciência dos seus
verdadeiros interesses; adaptar o seu governo às condições de
tempo e de lugar, modificá-lo conforme as circunstâncias e os
homens – tal é o primeiro dos deveres impostos hoje em dia
àqueles que dirigem a sociedade. Precisamos de uma nova ciência política, para um mundo inteiro novo (TOCQUEVILLE,
1987, p. 104).
A obra é dividida em dois volumosos livros, ambos apresentados em duas
partes, sendo a primeira parte do primeiro livro destinada à apresentação geográfica
norte-americana, à descrição dos costumes, dos hábitos, das leis, dos aspectos políticos e do funcionamento dos poderes no país. Na segunda parte do primeiro livro,
o autor dedica-se a responder ao seguinte questionamento: Como se pode dizer
que, nos Estados Unidos, é o povo quem governa? É aí que descreve instituições
como partidos políticos, associações e religião, e fatores como liberdade de imprensa, leis eleitorais, funcionalismo público, corrupção e vícios de governo, analisando
ainda as causas e os feitos da tirania da maioria. No segundo livro, Tocqueville destina a primeira parte à reflexão da influência da democracia sobre o movimento
intelectual nos Estados Unidos, e por fim, na segunda, dedica-se à análise da influência da democracia sobre os sentimentos dos cidadãos americanos.
Ao apresentar a democracia americana como uma sociedade de homens mais
iguais, Tocqueville demonstra, no desenvolver de sua obra, que os cidadãos americanos se encaram como iguais não apenas perante a lei, mas também ao exercer
qualquer atividade social.
É a própria igualdade que torna os homens independentes uns
dos outros, que os faz contrair o hábito e o gosto de seguir apenas a sua vontade em suas ações particulares, e esta inteira independência de que gozam, em relação a seus iguais, os predispõe
a considerar com descontentamento toda autoridade e lhes sugere logo a idéia e o amor da liberdade política (TOCQUEVILLE, 1987, p. 295).
2.1 Os perigos da igualdade
O grande desafio para Tocqueville em A Democracia na América foi como
manter, na democracia, o processo igualitário com liberdade. A possibilidade de a
democracia vir a ser uma tirania é a sua principal preocupação. Segundo ele, o
processo de crescente igualdade das sociedades pode encontrar desvios perigosos, que podem levar à perda da liberdade, que deve ser observada e zelada através
das ações políticas.
59
Segundo o teórico, a perda da liberdade pode acontecer através do aparecimento de uma sociedade massificada, em que se tem a exarcebação do processo de
igualização, viabilizando a tirania da maioria, ou através do surgimento de um Estado autoritário-despótico.
A principal característica do processo de massificação da sociedade é a falta
de preocupação com os interesses das minorias ou de grupos diferenciados em detrimento dos interesses da maioria. Nesse processo, chamado por Tocqueville de
tirania da maioria, as minorias tornam-se impotentes na luta por suas causas, tendo
seus interesses subjugados aos ditames da maioria.
O que mais reprovo no governo democrático, tal como foi organizado nos Estados Unidos, não é, como na Europa muita gente
imagina, a sua fraqueza, mas, ao contrário, a sua força irresistível. E o que mais me repugna na América não é a extrema liberdade que aí reina, mas o pouco de garantia que se tem contra a
tirania (TOCQUEVILLE, 1987, p. 194).
Ainda no processo de massificação avaliado por Tocqueville, é ressaltado o
perigo do individualismo para o processo de liberdade, chamado por ele de individualismo pernicioso, uma vez que faz com que os indivíduos busquem apenas a satisfação de seus interesses particulares, como o aumento de suas posses, descuidando-se
das causas políticas, permitindo, assim, o acesso de um governo despótico.
2.2 Participação política para a manutenção da igualdade
Tocqueville destina um capítulo da obra A Democracia na América para a análise
da formação das associações políticas nos Estados Unidos, iniciando o mesmo com
a afirmação de que “a América é o país do mundo onde mais se tirou partido da
associação e onde este poderoso meio de ação se aplicou a uma grande diversidade
de objetivos” (TOCQUEVILLE, 1987, p.146).
A implementação de associações destaca-se como importante mecanismo de
luta pela manutenção da liberdade, uma vez que são entidades legais de controle e
fiscalização das ações governamentais, bem como de defesa de interesses pela legitimação e pelo fortalecimento das minorias.
Para Tocqueville, a manutenção da liberdade demanda sacrifícios por parte
dos cidadãos. Alerta-os quanto à necessidade de atenção e atuação política por parte
de cada indivíduo nos governos democráticos, sendo que a falta de preocupação e
de vigilância pode culminar na perda da liberdade, ocasionada pela possibilitação de
surgimento de governo despótico.
Para viver livre é necessário habituar-se a uma existência plena
de agitação, de movimento, de perigo; velar sem cessar e lançar a
todo momento um olhar inquieto em torno de si: este é o preço
da liberdade (TOCQUEVILLE, 1961, p. 430).
60
Conclusão
O grande dilema tocquevilliano é a preservação da liberdade, no contexto em
que a igualdade é trazida por um processo histórico irrefreável. Para tanto, ressalta a
importância do envolvimento dos cidadãos nas causas públicas, enfatizando a necessidade de acompanhamento às ações econômicas e sociais dos representantes
populares.
Atualmente, vivemos na prática o desinteresse popular para o acompanhamento e a fiscalização das ações políticas dos representantes da população, o que
desencadeia distintos níveis de corrupção, emprego indevido de finanças públicas,
entre outras ações prejudiciais e criminosas, que podem levar referendar, a exemplo
de como chamou Tocqueville, ao surgimento de um Estado autoritário-despótico.
Nesta perspectiva, um elemento significativo para a viabilização desse acompanhamento e controle é a formação de associações políticas, as quais foram difundidas e consolidadas em vários países com princípios democráticos. Atualmente, no
Brasil, esses segmentos representativos se dão por distintos objetivos, encontrando,
contudo, um grande entrave para a garantia de uma real eficácia em suas atuações: o
descaso dos cidadãos com as causas políticas de comum interesse.
Percebe-se, no Brasil e em vários outros países do mundo, a difusão de lutas
pela defesa e pelo reconhecimento dos interesses dos grupos minoritários. A tirania
da maioria, como é chamada por Tocqueville a censura das manifestações de grupos
menores, tem reflexos nas inviabilizações das lutas dos indivíduos diferenciados dos
parâmetros estabelecidos pela maioria da sociedade.
A manutenção da liberdade no processo democrático é tarefa de cada cidadão. A igualdade e a liberdade, para Tocqueville, são fatores imprescindíveis para a
existência de uma sociedade democrática. Porém, a igualdade é consequência natural do processo histórico da humanidade, diferentemente da liberdade, que carece
constantemente ser vigiada e zelada, sendo este poder, de vigiar e zelar, o maior
trunfo de cada cidadão.
Referências
MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Françai. Paris: Aubier, 1993.
PARENTE, Josênio C. A Construção da Ordem Liberal: I. Maquiavel e o Nascimento do Estado Moderno. In: Humanidade e Ciências Sociais. Revista da Universidade Estadual do Ceará/ UECE, ano 1, v. 1, n. 1, 1999 (p. 83-89).
QUIRINO, Célia Nunes Galvão. Liberdade e Igualdade no Pensamento Político de Alexis
de Tocqueville. São Paulo: USP, 1982. (Tese de Doutorado em Ciência Política)
______. Tocqueville: sobre a igualdade e a liberdade. In: WEFFORT, Francisco C.
(Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1999.
61
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. 3. ed. São Paulo: Itatiaia/
Universidade de São Paulo, 1987.
______. Voyage en Angleterre, Irlande, Suisse et Algérie. Paris: Gallimard, 1961.
62
John Locke e a teoria do
estado liberal: algumas reflexões
a partir de os “Dois Tratados
Sobre o Governo Civil”1
Ethiene Cavalléro da Silva*
Karla Cristina Andrade Ferreira**
Oliene Isabel Sarmento Corrêa***
Resumo: John Locke definiu bases da democracia liberal e individualista, estudou a
relação entre a propriedade e o direito natural, negando a participação do Estado.
Afirmou o uso do trabalho como um dos pontos determinantes para a sua apropriação, isto o tornou um dos inspiradores para a criação de várias constituições. Analisar como se desenvolveu o pensamento liberal-individualista de Locke, a partir de
reflexões do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, será o objetivo desse trabalho, buscando ao final, levantar qual a contribuição do autor na construção política da sociedade moderna.
Palavras-chave: Estado Liberal. Direito Natural. Propriedade.
John Locke and the theory
of the liberal state: some thoughts
based on the “Two Treaties
On Civil Government”
Abstract: John Locke laid the foundations of liberal and individualistic democracy,
studied the relationship between property and natural right, denying the involvement
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE.
*Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Licenciada plena em Educação Física/UEPA. Especialista em Educação Física Escolar/UEPA e Especialista em Atividade Física, Qualidade
de Vida e Envelhecimento/UNOPAR. Professora de educação física do Estado do Amapá. [email protected].
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Bacharel e licenciada em
Ciências Sociais UNIFAP/AP. Professora de sociologia do Estado do Amapá. [email protected].
***Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Bacharel em Direito CEAP/
AP. Policial Militar do Estado do Amapá. E-mail: [email protected].
1
63
of the state. He affirmed the use of labor as one of the determinants for its
appropriation. This made him one of the catalysts for the creation of several
constitutions. To analyze how the liberal-individualist thought of Locke developed
based on reflections on the Second Treaty on Civil Government will be the objective of
this work, seeking at the end, to question what the contribution of the author is to
the political construction of modern society.
Key words: Liberal State. Natural Law. Property.
Introdução
No século XVII, enquanto o absolutismo triunfa na França, a Inglaterra sofre
revoluções lideradas pela burguesia, visando limitar a autoridade dos reis.
Nesse contexto histórico, como defensor do liberalismo e da tolerância religiosa, John Locke (1632-1704) destaca-se entre os filósofos da época pela sua contribuição com as obras: Cartas Sobre a Tolerância, Ensaios Sobre o Entendimento Humano e os Dois
Tratados Sobre o Governo Civil, além de ser considerado o fundador do empirismo2.
Na visão lockiana, os homens possuem a vida, a liberdade e a propriedade
como direitos naturais e, para preservar esses direitos, deixaram o Estado de Natureza, que é a vida mais primitiva da humanidade, e estabeleceram um contrato entre
si, criando o governo e a sociedade civil.
Bobbio, resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento de Locke, afirma:
Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do
poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de
direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do
Estado Liberal (BOBBIO, 1984, p.41).
O filósofo negava o direito dos governantes ao autoritarismo e a aplicação do
direito divino, além de outras prerrogativas fundamentadas em preconceitos.
A sua teoria política, desenvolvida no Segundo Tratado, representa, de acordo
com Norberto Bobbio, a primeira e a mais completa formulação do Estado Liberal,
lançando com isso, a ideia de democracia liberal, o que se tornaria a pedra angular
da civilização ocidental.
Analisar como se desenvolveu o pensamento liberal-individualista de Locke, a
partir de reflexões do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, será o objetivo deste
trabalho, buscando, ao final, levantar qual a contribuição do autor na construção
política da sociedade moderna.
2
Empirismo: doutrina segundo a qual todo conhecimento deriva da experiência.
64
1 O Primeiro Tratado Sobre o Governo Civil
O ano de 1689 testemunhou a publicação de Dois Tratados Sobre o Governo Civil,
inicialmente escrito em 1681. Uma obra de política liberal, foi escrita por Locke
durante sua permanência forçada na Holanda.
O primeiro dos Dois Tratados Sobre o Governo Civil refuta a ideia de Robert Filmer,
teórico político de enorme popularidade na época, que defende de forma convicta,
em sua obra “O Patriarca”, o absolutismo, acreditando no direito divino dos reis com
base no princípio da autoridade paterna de Adão, que seria o primeiro pai e primeiro
rei e que deixara esse legado à sua descendência. De acordo com esta doutrina, os
monarcas modernos eram descendentes da linhagem de Adão e herdeiros legítimos
da autoridade paterna dessa personagem bíblica, a quem Deus outorgara o poder real.
Locke, em contrapartida, afirmou a origem popular e consensual dos governos: “Adão
não tinha, seja por direito natural de paternidade ou por doação positiva de Deus,
autoridade de qualquer natureza ou domínio sobre o mundo, [...] se os tivesse, nenhum direitos a eles, contudo, teriam seus herdeiros” (LOCKE, 1978, p.33).
Assim observou Locke também, criticando a teoria de Filmer:
Todas essas premissas tendo sido, ao que me parece, claramente
estabelecidas, é impossível que os atuais governantes sobre a Terra
obtenham qualquer proveito, ou derivam a menor sombra de
autoridade daquilo que é tido como fonte de todo poder, “o
domínio privado e a jurisdição paterna de Adão”, de tal modo
que aquele que nem se permite imaginar que todo governo no
mundo é apenas o produto da força e da violência e que os homens somente vivem juntos pelas mesmas regras dos animais,
onde vence o mais forte, e desta forma, lança as bases para a
perpétua desordem e discórdia, tumulto, sedição e rebelião, deve
necessariamente descobrir outra origem para o governo, outra
fonte do poder político e uma outra maneira de escolher e conhecer as pessoas que o exercem diferentemente daquela que
nos ensinou Sir Robert Filmer (LOCKE, 1996, p. 177).
2 O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil
No Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, Locke busca descobrir as raízes do
governo, expõe a teoria do pacto social e defende o liberalismo, buscando derrubar
de forma definitiva o inatismo absolutista de Filmer. Tanto é verdade que, no primeiro capítulo de seu trabalho, volta a refutar as teses de Filmer, levando Locke a
uma busca reiterada do entendimento e da legitimidade do domínio e do poder de
determinados indivíduos sobre os outros.
Assim, Locke define um de seus conceitos-chave, que é o de poder político,
que seria o “direito de fazer leis com a pena de morte e, consequentemente, todas as
65
penalidades menores para regular e preservar a propriedade, e de empregar a força
da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior;
e tudo isso tão só em prol do bem público” (LOCKE, 1978, p.34).
Para entender o poder político e suas origens liberais, Locke nos diz que devemos saber como conviviam os homens em seu estado de natureza. No estado natural original, os homens eram felizes e iguais, mas essa liberdade e essa igualdade
eram, sobretudo, no plano teórico. Para que as pessoas pudessem evoluir juntas sem
infringir os direitos recíprocos, tornava-se necessário um elemento de coesão.
Na visão lockiana, o cidadão tem direitos inerentes à sua existência, tais como:
vida, liberdade e a propriedade, porém seremos incapazes de desfrutar desses direitos naturais sem paixões pessoais. Necessária, portanto, para o uso e o gozo desses
direitos, é a reunião das pessoas em torno de um contrato social que garanta os
direitos naturais mediante um governo que imponha leis capazes de protegê-los.
Cria-se uma estrutura de segurança e, sob essa condição, a liberdade que coexistia,
assim como os outros direitos, apenas no plano teórico pode ser restringida, crescendo por consequência a liberdade real.
O governo civil é o remédio adequado para as inconveniências
do estado de natureza, que certamente serão grandes, onde os
homens possam ser juízes de suas próprias causas, já que com
facilidade se pode imaginar que aquele que tenha sido tão injusto
a ponto de prejudicar seu irmão dificilmente será tão justo a
ponto de se condenar por esse ato.3
Mas Locke ressalta, nesta obra, que somente o assentimento do povo daria e
seria o único fundamento da autoridade desse governo. E é explícito ao escrever: “A
liberdade do homem, na sociedade, é não se submeter a nenhum outro poder legislativo, senão o estabelecido mediante assentimento no país, nem ao domínio de
qualquer vontade, ou restrição de qualquer lei, senão daquela que o legislativo promulgar, segundo a confiança nele depositada”. Complementando o entendimento,
explica: “qualquer autoridade que exceda o poder a ela conferido pela lei e faça uso
da força que tem sob o seu comando para atingir a vítima de forma não permitida
por essa lei pode ser combatida como qualquer homem que mediante força viole os
direitos de outro”.
Caso o governo, ou governante, viole os direitos dos indivíduos, então o povo
tem o direito de se revoltar e de se ver livre desse governante ou desse governo.
“Tomar e destruir a propriedade dos cidadãos ou reduzi-los à escravidão [coloca um
governante] em estado de guerra com o povo, que fica doravante desobrigado de
qualquer obediência ulterior e é abandonado no refúgio comum que Deus propiciou a todos os homens contra a força e a violência”. Em outras palavras, revolução.
3
Cf. LOCKE, 1978, cap. 2, p. 10-14, também para o que segue.
66
Locke acreditava que o governo deveria agir exclusivamente em função do
objetivo para o qual foi de início estabelecido – a saber, a proteção à vida, à liberdade e à propriedade. “Quando os homens, em qualquer número, concordam em estabelecer uma comunidade ou um governo, são por esse ato e nesse momento incorporados, constituindo um corpo político dentro do qual a maioria possui o direito
de agir e concluir o restante.”
Esse pensamento lançou os alicerces sobre os quais a moderna democracia
liberal foi construída. Essas foram as ideias que, um século mais tarde, inspiraram a
Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Esses
sentimentos podem parecer simplesmente na era moderna de democracias tecnológicas densamente povoadas – mas perduram como crenças e sentimentos dos cidadãos que as habitam.
Conclusão
O fato é que John Locke procurou entender seu tempo e desenvolver teorias
justificadoras para o apogeu da classe emergente do século XVIII, a burguesia, procurando desconstituir a ordem vigente do absolutismo e do poder soberano dos reis
e da igreja (LOCKE, 1998, p. 40).
Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil, e ele é considerado, por isso, pai
do individualismo liberal.
Funda-se, com seu pensamento liberal, a existência da origem democrática,
parlamentar, do poder político, pois na Idade Média, transmitia-se por herança tanto a propriedade como o poder político: o herdeiro do rei, do conde, do marquês,
recebia não só os bens, como também o poder sobre os homens que viviam nas
terras herdadas.
Locke, com o seu “conceito de propriedade num sentido muito amplo” (ARANHA; Martins, 1986, p. 34), explicado no capítulo 2 do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, diz que propriedade é tudo o que pertence ao indivíduo, sua vida, sua liberdade e seus bens, adquiridos ao longo de sua existência ou lhe dado pelo estado de
natureza. Na concepção de Locke, todos são proprietários: mesmo quem não possui bens é proprietário de sua vida, de seu corpo, de seu trabalho. Assim, o poder
político não deve, em tese, ser determinado pelas condições de nascimento, bem
como o Estado não deve intervir, mas, sim, garantir e tutelar o livre exercício da
propriedade, da palavra e da iniciativa econômica.
Entretanto, essa colocação ampla feita por Locke leva a certas contradições,
pois o direito à ilimitada acumulação de propriedade produz logicamente um desequilíbrio na sociedade, criando um estado de classes que Locke dissimula – involuntariamente, é verdade – num discurso que se apresenta com um caráter universal.
Quando se refere a todos os cidadãos, considerando-os igualmente proprietários, o
67
discurso contém uma ambiguidade que não se resolve, pois ora identifica a propriedade com a vida, a liberdade e as posses, ora com bens e fortuna especificamente. E
o que se conclui é que, se todos, tendo bens ou não, são considerados membros da
sociedade civil, apenas os que têm fortuna podem ter plena cidadania, por duas
razões: apenas esses (os de fortuna) têm pleno interesse na preservação da propriedade, e apenas os que são integralmente capazes de vida racional – aquele compromisso voluntário para com a lei da razão – que é a base necessária para a plena
participação na sociedade civil. A classe operária não tendo fortuna está submetida
à sociedade civil, mas dela não faz parte.
[...] A ambiguidade com relação a quem é membro da sociedade
civil em virtude do suposto contrato original permite que Locke
considere todos os homens como sendo membros, com a finalidade de serem governados, e apenas os homens de fortuna para
a finalidade de governar (MACPHERSON, p. 260).
Ressalta-se aí o elitismo presente na raiz do liberalismo, já que a igualdade
defendida é de natureza abstrata, geral e puramente formal; não há igualdade real,
uma vez que só os proprietários têm plena cidadania.
Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando –
Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Kant. São Paulo: UNS, 1984.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa: Almedina, 2005.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo:
Saraiva, 1999.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002.
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1988.
EVANGELISTA, Vitor. História das Constituições Políticas Internacionais. Lisboa: Edições IL, 1978.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 1997.
______. Direito, Conceito e Normas Jurídicas. São Paulo: RT, 1988.
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1978.
(Coleção Pensadores)
______. Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
68
______. Two treatsises of civil government. London: Everyman’s Library, 1996.
MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MAGEE, Bryan. História da Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001.
PROUDHON, Pierre Joseph. O que é a propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
69
A teoria do conhecimento
de John Locke1
Marcos Wagner Queiroz Mendes*
Cleineide Moreira Batista**
Resumo: Este trabalho versa sobre a teoria do conhecimento de John Locke, descrita em sua obra Ensaios sobre o entendimento humano. Delineia a vida de John Locke
em relação a seus contemporâneos e busca descrever concisamente o ensino de
Locke sobre o entendimento humano e sobre as ideias.
Palavras-chave: John Locke. Teoria do Conhecimento. Ideias.
The theory of knowledge
of John Locke
Abstract: This work is about the theory of knowledge of John Locke, described in
his book Essays on the human understanding. It outlines the life of John Locke in relation
to his contemporaries and seeks to concisely describe the teaching of Locke on the
human understanding and on ideas.
Key words: John Locke. Theory of Knowledge. Ideas.
John Locke nasceu na zona rural da Inglaterra do século XVII. Em sua vida
adulta, chegou a ocupar o cargo de capitão da cavalaria na época da Guerra Civil.
Foi chanceler em sua nação, e também ocupou o cargo de secretário da junta de
comércio. Por conta de suas atribuições políticas, Locke viajou bastante, tendo estado na Alemanha, na França e na Holanda. Nasceu em 29 de agosto de 1632, em
Wrington, na Inglaterra, e foi a óbito no dia 28 de outubro de 1704, em Oates, na
Inglaterra.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas (UECE). Contador Judicial do
Tribunal de Justiça do Estado do Amapá.
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas (UECE). Graduada em Pedagogia e Especialista em Orientação Educacional. Professora de Sociologia da Rede Pública do Estado do Amapá.
1
70
Entre suas obras literárias, segundo Salesiano, as mais importantes são: Ensaio
sobre o entendimento humano, Carta sobre a tolerância, Dois tratados sobre o governo civil,
Alguns pensamentos referentes à educação e Racionalidade do Cristianismo.
Observando sua época, percebe-se que sua adolescência se deu em um mundo que vivia a euforia das descobertas de Galileu Galilei, a inserção do direito internacional por Hugo Grotius, e a instituição do método por Descartes, o “pai” da
filosofia moderna. É possível perceber também que, quando adulto, Locke experimentava a mesma época de Thomas Hobbes, Isaac Newton, Gottfried Leibniz e
Edmond Halley.
Pode-se então, ao menos hipoteticamente, entender que a influência de seus
contemporâneos foi importante em sua formação sociocultural, uma vez que Hobbes criou uma teoria que fundamenta a necessidade de um Estado soberano como
forma de manter a paz civil, Newton descobriu e descreveu experiências matemáticas e físicas, Leibniz instituiu a lei da continuidade, e Halley não somente observou
e descreveu a trajetória do cometa, como também fez observações importantes sobre o magnetismo, a propagação do calor, a luz, entre muitos outros.
A teoria do conhecimento
A teoria do conhecimento é fruto dos estudos de John Locke para combater a
doutrina, disseminada por Descartes, da existência de ideias inatas na mente do
homem. Em sua obra Ensaios sobre o entendimento humano, Locke descreve em centenas de páginas os caminhos das ideias até chegar ao entendimento. De acordo com
Chauí (2004), John Locke é o
[...] iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita, porque se propôs a analisar cada uma das formas de conhecimento
que possuímos, a origem de nossas ideias e nossos discursos, a
finalidade das teorias e as capacidades dos sujeitos.
Em um fragmento de Ensaios sobre o entendimento humano, de John Locke, é
possível entender que ele afirma que todos nascem iguais, dotados de razão, mas
com temperamentos diferentes.
[...] a mente é um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela será suprida? De onde lhe
provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia
do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De
onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento?
A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso
conhecimento está nela fundado e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento (Livro II, cap. I).
Neste mesmo contexto, Madjarof (2006) ensina que
71
[...] a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realizase através da sensação, e nos proporciona a representação dos
objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da
reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como:
conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc.
Perceptível e admissível é que, devido à profusão de conhecimentos a que
Locke estava exposto em sua época, somada aos seus estudos, a criatividade tinha
um campo fértil para seus devaneios, o que, aliado às incursões que desenvolveu no
cenário sociopolítico e ainda ao contexto de suas viagens pela Europa, lhe permitiu
ter uma educação rica.
Locke observa uma tradição, a qual se percebe na sociedade humana, que o
entendimento é o diferencial que permite ao homem o domínio da natureza. Esta
possibilidade de entender a origem do senhorio que o homem exerce sobre a natureza desperta em Locke um interesse em estudar de que maneira o homem entende,
o que pode ser evidenciado quando ele escreve que
[...] o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre
eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua
nobreza, é merecedor de nosso trabalho. O entendimento, como
o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se
observa a si mesmo; requer arte e esforço situá-lo a distância e
fazê-lo seu próprio objeto (LOCKE, 1991).
Chauí (2004) sintetiza esta explicação da seguinte forma:
Assim como o olho, que faz ver e não se vê a si mesmo, o entendimento humano faz conhecer, mas não se conhece a si mesmo.
Para conhecer-se, isto é, para que o entendimento torne-se um
objeto de conhecimento para si mesmo, requer arte e esforço.
Conclusão
Assim, se o interesse no entendimento permite a criação de novos conhecimentos, de acordo com Vilela (2007), uma das formas de se criar algo é “[...] construir frases com significado e estrutura; construir melodias harmônicas e rítmicas;
observar preferências; observar valores éticos e morais; seguir estilos”.
Este método de criar é adaptável à obra de Locke, quando criou os tipos de
ideias de sensação em “Ideias de qualidades primárias” e “Ideias de qualidades secundárias”. Também isolou o que chamou de “Ideias de reflexão” e as dividiu em:
• Memória: a habilidade de chamar uma ideia ausente de volta à consciência;
• Retenção: a habilidade de manter um pensamento na consciência;
72
• Discernimento: a habilidade de reconhecer diferenças entre as coisas;
• Comparação: a habilidade de reconhecer as semelhanças entre as coisas;
• Composição: a habilidade de construir novas ideias tomando como material
outras ideias;
• Abstração: a habilidade de distinguir princípios de relação abstratos (tais
como provas matemáticas), os quais jazem por trás de outras ideias e, assim, criar
uma ideia de generalidade.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2004.
LAGO, Clenio. Locke e a Educação. Chapecó: Argos, 2002.
LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1991.
MADJAROF, Rosana. O Mundo dos Filósofos. Disponível em: <http://www.mundo
dosfilosofos.com.br>. Acesso em: 24 ago. 2007.
SALESIANO, Marcolo. O liberalismo e a política. Disponível em: <http://
www.salesiano.com.br>. Acesso em: 24 ago. 2007.
VILELA, Virgílio Vasconcelos. Você é Criativo? Disponível em: <http://
www.possibilidades.com.br>. Acesso em: 23 ago. 2007.
73
“O Federalista”: gênese de uma nova forma de governo1
Job Duarte Morais*
Eliete Nascimento Borges**
João Nascimento Borges Filho***
Resumo: A obra O Federalista é uma série de 85 artigos, argumentando em favor da
ratificação da Constituição dos Estados Unidos. Representa a estruturação do Estado americano e a implementação de uma nova forma de governo até então nunca
vista. A questão da liberdade sai do campo da teoria, passando para a prática.
Palavras-chave: Federalista. Federalismo. Governo. Liberalismo.
“The Federalist”: genesis of a new form of government
Abstract: The book The Federalist is a series of 85 articles arguing for the ratification
of the Constitution of the United States. It represents the structuring of the American
State and the implementation of a new style of government never seen before in
which the freedom issue transcends theory and goes into practice.
Key words: Federalist. Federalism. Government. Liberalism.
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE. Pós-Graduado em
Metodologia do Ensino Superior. É coordenador do Curso de Administração/FAMA. Professor no Centro de
Educação Profissional do Amapá/CEPA e da Faculdade SEAMA.
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE e Especialista em
Segurança Pública e em Ciências Forenses (IDEAP/FAMAP). Diretora-Presidente da Polícia Técnico-Científica
do Amapá. Enfermeira/UEPA e Perita Criminal da POLITEC/AP.
***Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE. Especialista em Psicopedagogia e Metodologia do Ensino Superior/FISS-RJ. Pró-Reitor de Extensão da Universidade do Estado do
Amapá/UEAP. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB/CF. É professor efetivo da Universidade Federal do Amapá/ UNIFAP. Foi Vice-Reitor e Pró-Reitor de Graduação da UNIFAP.
1
74
Introdução
Inúmeros teóricos abordaram o tema “formas de governo”. Porém, e até então, não havia o desapego às práticas da antiguidade. Neste sentido, pensadores que
trataram e defenderam o federalismo, além de avançarem para uma nova forma de
governo, inovaram, saindo da teoria, passando para a praticidade, com a sua implementação, tomando a questão da liberdade com novo foco e sob uma nova ótica,
originados com as discussões decorrentes da aprovação da Constituição Americana
no século XVIII.
A obra O Federalista é uma série de 85 artigos argumentando em favor da
ratificação da Constituição dos Estados Unidos. É o resultado de reuniões que ocorreram na Filadélfia em 1787 para a elaboração da Constituição Americana. Essas
reuniões renderam vários artigos publicados em Nova York, assinados por Publius.
O propósito: ratificar a Constituição Americana.
Nem sempre, assim, a produção da ciência política adveio da simples pesquisa.
Ressalte-se ainda que se “tratava de uma polêmica: a Publius opunha-se Brutus, que
era o pseudônimo sob o qual se apresentavam os antifederalistas” (LEONEL, 2007).
Antes de entrarmos no tema que nos dispomos a comentar, é extremamente
importante fazermos de forma bem sucinta uma síntese a respeito dos principais
filósofos que sustentam a teoria política moderna. Então, vejamos:
Nicolau Maquiavel (1469-1527): Este pensador foi o fundador da ciência
política moderna e não aceitava a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia e democracia). Defendia que qualquer regime político pode ser
legítimo e ilegítimo, sendo o valor que media a legitimidade e a ilegalidade – a liberdade. O poder do príncipe deve ser superior aos “grandes” (aristocratas e ricos) e
estar a serviço do povo, ou seja, separa o ethos moral do ethos político. Maquiavel
rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a
trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito
Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na
verità effettuale – a verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e
examinar a realidade tal como ela é, e não como se gostaria que ela fosse (SADEK,
2004).
Thomas Hobbes (1588-1679) foi o teórico da “Soberania Estatal”. Defendia um contrato que desse origem a um Estado Absoluto. Sua teoria tenta explicar a
paz e, com isso, justificar a existência do Estado. Provoca uma ruptura com as tradições do feudalismo. Foi o grande influenciador dos federalistas, uma vez que a chave para entender o seu pensamento é o que ele diz do estado de natureza. Hobbes é
um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o
XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está
num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização,
que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política (RIBEIRO, 2004).
75
John Locke (1632-1704) foi um teórico liberal. Teoriza que o homem possui
originariamente direitos naturais que devem ser defendidos pelo Estado, como o
direito à propriedade. É considerado o fundador do Empirismo2. Como filósofo, é
conhecido pela “teoria da tábula rasa” do conhecimento. Influenciou a Revolução
Americana, cuja declaração de independência foi alicerçada sobre os direitos naturais e o direito a resistência para fundamentar a ruptura das colônias com a Inglaterra (MELLO, 2004).
Charles de Montesquieu (1689-1755), fundador da teoria dos três governos e
dos três poderes, base do constitucionalismo moderno. Autor da obra O Espírito das
Leis, na qual elabora conceitos sobre formas de governo e exercício da autoridade
política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política. Ofereceu aos
constituintes americanos as bases do ideal do federalismo (ALBUQUERQUE, 2004).
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), teórico contratualista. Para Rousseau,
a soberania reside no povo. O homem era, para esse filósofo, um ser desconfiado.
Em sua descrição do Contrato Social, afirmava que este tinha a finalidade de organizar os indivíduos, após a passagem de seu estado de natureza. Postulava que “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum,
as pessoas e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (NASCIMENTO, 2004).
Isto posto, podemos ter uma visão ampla dos pensadores e de suas ideias, que
vieram a servir de base para a argumentação federalista e também dos confederados. Alguns teóricos influenciaram bem mais, outros menos. Mas a efetivação da
liberdade estava presente no contexto da revolução americana, bem como nas discussões para aprovação de uma nova ordem política.
1 O Contexto Histórico de “O Federalista”
Os fatos sociais não surgem por acaso. É necessária a existência de um ambiente que possibilite a implantação de um processo de mudança. Dentro desse ambiente, encontramos a correlação de forças internas e externas que condicionam todo
o processo.
No final do século XVIII, havia um crescente descontentamento das colônias
americanas com o governo inglês, e treze colônias já não tinham representatividade
2
Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os precedentes,
no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica
mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional e do senso comum, no que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à
religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa
religião, porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas,
positivas. “Mundo dos Filósofos. Texto: O Empirismo. John Locke. Disponível em: <http://
www.mundodosfilosofos.com.br/locke.htm>. Acesso em: 2 out. 2008.
76
no parlamento daquele país. Como consequência, ocorreu a Guerra da Independência americana (1775-1783), tendo sido elaborada uma Constituição que caracterizava o novo país como uma Confederação.
Dentro daquele contexto, várias causas levaram à Guerra da Independência.
Uma delas foi a Revolução Industrial, que possibilitaria uma maior abrangência
mercantil. Outro fator foi a Guerra dos Sete Anos (Inglaterra X França), uma luta
entre as duas potências por áreas de influência na América. A guerra foi vencida
pela Inglaterra, mas, foi muito onerosa. Para reparar os gastos, a Inglaterra promoveu arrocho do pacto colonial, tendo como consequência lógica o início de uma
tensão social entre a colônia e a metrópole. Com o propósito de se buscar um meio
termo para essas tensões sociais é que os congressos começam a ser realizados (em
1774, ocorre o primeiro, na Filadélfia), sem caráter separatista.
Na Convenção da Filadélfia, também conhecida como Convenção Constitucional, ocorrida em 1787, que tinha como propósito inicial rever os artigos da Confederação, os federalistas James Madison e Alexander Hamilton tinham a intenção
de criar um novo governo, não apenas “articular” a permanência do que existia. Em
seu artigo VII, a Constituição dizia que só entraria em vigor com a aprovação de
nove estados participantes. A proposta dos federalistas era substituir a Confederação pelo Federalismo, criando assim, uma nova forma de governo ainda não experimentada por nenhuma nação.
O que distinguia as propostas? A Confederação é uma associação de Estados
soberanos, usualmente criados por meio de tratados, mas que pode eventualmente
adotar uma constituição comum. A principal distinção entre uma Confederação e
uma Federação é que, naquela, os estados constituintes não abandonam a sua soberania, enquanto que, nesta, a soberania é transferida para a união federal.
1.1 Principais Teóricos do Federalismo
Deter-nos-emos a fazer uma breve síntese da atuação dos defensores do federalismo que vieram, por intermédio de seus artigos, no intuito de ratificar a Constituição Americana, a fundamentar a construção de uma nova ordem liberal. Traçamos, a seguir, um breve perfil:
Alexander Hamilton (1755-1804): foi o primeiro secretário do Tesouro dos
Estados Unidos e, como John Jay, foi conselheiro de George Washington, primeiro
presidente dos Estados Unidos da América (EUA) em 1789. Foi o criador da infraestrutura financeira dos Estados Unidos.
James Madison (1751-1836): foi um dos fundadores do Partido Republicano, junto com Thomas Jefferson (que foi eleito presidente dos EUA em 1808). É
chamado de “Father of the Constitution”.
John Jay (1745-1829): co-autor da Constituição de seu estado natal, promulgada em 1777 e importante fonte de ideias para a Constituição Federal. Presidiu o
congresso continental em 1778. Foi o principal arquiteto do tratado de paz com a Grã77
Bretanha, tornando-se em seguida o presidente da Suprema Corte dos EUA. Depois de
dois mandatos como governador de Nova York, retirou-se da vida pública.
Os autores de O Federalista não concordavam entre si em muitos pontos, mas
possuíam um acordo de defender a Constituição elaborada pela Convenção Federal,
uma vez que a consideravam incontestavelmente superior à vigente, sob a tutela dos
artigos da Confederação.
Em suma, a nova Constituição propunha a reestruturação do Estado Nacional Americano, passando os Estados Unidos a ser uma República Federativa, presidencialista, adotando o princípio dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), fundamentando-se no ideal de liberdade e universalidade. Segundo Limongi
(2004, p.270), um dos eixos estruturados de O Federalista é o ataque à fraqueza do
governo central instituído pelos artigos da Confederação. Cita Alexander Hamilton
que afirma, em O Federalista, n. 15, que nem se chegou, propriamente, a criar um
governo, uma vez que estavam ausentes as condições mínimas a garantir sua existência. Podemos reiterar a afirmação na passagem que vem a seguir:
Governar implica o poder de baixar leis. É essencial a idéia de
uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras
palavras, uma penalidade ou punição pela desobediência. [...] Essa
penalidade, qualquer que seja, somente pode ser aplicada de duas
maneiras: pelos tribunais ou ministros da justiça ou pela força
militar; [...] A primeira [forma de aplicação] só pode evidentemente incidir sobre indivíduos; a outra recairá necessariamente
sobre grupos políticos, comunidades ou Estados.
A Constituição teve por base as ideias dos pensadores liberais ingleses que
apresentamos no início do artigo. Esses teóricos são mais bem compreendidos se
observados por dois pontos de vista: econômico, posto que defendem a livre-iniciativa e a ausência de interferência do Estado no mercado; sob o ponto de vista
político: podem ser entendidos como defensores de uma nova forma de organização do poder, contrária ao Absolutismo, proposta pelos iluministas franceses (Liberdade, Igualdade e Fraternidade).
Para Josênio Parente (1994), os principais mentores dos teóricos federalistas
foram Hobbes e Montesquieu. Os artigos Publius colocam uma questão bastante
moderna: a fundação de um governo popular numa sociedade sem castas.
2 Sobre o embasamento teórico federalista
Os artigos publicados pelos federalistas são fundamentadores da teoria política base para a nova Constituição Americana. Sabe-se que Montesquieu, membro de
uma tradição teórica que se inicia em Maquiavel e culmina em Rousseau, aponta
para uma incompatibilidade entre governos populares e tempos modernos. Os “antifederalistas” usavam esta argumentação para combater o texto constitucional apre78
sentado, propondo a criação de três ou quatro confederações, como o tamanho
ideal (LIMONGI, 2004).
Incompatível por quê? Montesquieu apontava que a necessidade de se manter
grandes exércitos e a predominância das preocupações com bem-estar material faziam das grandes monarquias a forma de governo mais adequada daqueles tempos.
Assim, as condições ideais exigidas pelos governos populares seriam: um pequeno
território, possuir cidadãos virtuosos, amantes da pátria e surdos aos interesses materiais.
O grande desafio dos defensores do federalismo era desmistificar tais modelos de pensamento: primeiramente desmentir os dogmas da incompatibilidade da
existência de governos populares, que vem desde Maquiavel, Montesquieu e permanecem em Rousseau, ou seja, numa longa tradição. Em segundo lugar, os federalistas deveriam trabalhar a ratificação dos ideais contemplados na nova Constituição,
em decorrência do contexto da época, em que se apresentava um forte desenvolvimento do espírito comercial. Desta forma, os federalistas não viam impedimento
para a constituição de governos populares. E, tampouco, esses dependiam da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados em pequenos territórios, sob
pena de serem sobrepujados pelos seus vizinhos militarizados.
Vale registrar que, em relação à forma de governo, a teorização de Montesquieu ainda está ligada a exemplos da antiguidade3 (Monarquia) e voltada às questões correntes da Europa. Os federalistas não reproduzem os argumentos dos teóricos clássicos. Defendem uma inovação: a República Federativa. Nesse aspecto,
queremos chamar a atenção para a questão geográfica. Naquela época, quais nações
vizinhas teriam o poderio bélico para intimidar os Estados Unidos como uma presa
fácil? Outra questão que destacamos é que, efetivamente, existe um “oceano” separando a Europa dos Estados Unidos. Assim, as influências dos teóricos não impactavam, com a mesma repercussão, a ex-colônia inglesa, como atingiam as correlações de força no âmbito da Europa.
3 A Questão do Mérito
Pela primeira vez, a teorização sobre os governos populares deixava de se
mirar nos exemplos de forma de governo da antiguidade, iniciando-se, assim, seu
caráter eminentemente moderno.
Segundo Limongi (2004, p. 247), o raciocínio desenvolvido por Hamilton deixa entrever o desdobramento necessário. A única forma de criar um governo central, que realmente mereça o nome de governo, seria capacitá-lo a exigir o cumpri-
3
Na moderna tipologia das formas de Estado, a República se contrapõe à Monarquia. Para saber mais ler: BOBBIO,
Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13. ed. Brasília: EDUNB, 1995, v. 2,
p. 1107.
79
mento das normas dele emanadas. Para que isso se efetivasse, seria necessário que a
União deixasse de se relacionar apenas com os estados e estendesse o seu raio de
ação diretamente aos cidadãos.
Em O Federalista n. 2 (JAY apud LIMONGI, 2004, p. 258) tratando sobre as
vantagens naturais da União, diz que “nada é mais certo do que a indispensável
necessidade de um governo, e é igualmente inegável que, quando e como quer que
ele seja instituído, o povo deve ceder-lhe alguns de seus direitos naturais, a fim de
investi-lo dos necessários poderes”.
Torna-se evidente que a nova Constituição seria o contrato que regeria a
relação Estado/povo ou governo e governado. Os poderes estariam nas mãos de
homens que governariam o Estado. Segundo Limongi (2004, p. 249), “todo homem que detém o poder tende dele abusar”. Neste momento, os defensores do
federalismo se aproximam de Montesquieu, uma vez que apontam a necessidade
de um poder para frear outro poder. Neste sentido, O Federalista faz uma relação
com a natureza humana: “se os homens fossem anjos, não seria necessário termos
governos” (MADISON, O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004, p. 272). Mas
é da natureza humana ter ambições, interesses e desejos. Para reiterarmos as posições federalistas sobre a natureza humana, recorremos mais uma vez a Limongi
(2004, p. 263):
Na medida em que a razão do homem continuar falível e ele
puder usá-la à vontade, haverá sempre opiniões diferentes. Enquanto subsistir a conexão entre o raciocínio e o amor-próprio,
suas opiniões e paixões terão uma influência recíproca umas sobre as outras; e as primeiras serão objetos aos quais as últimas se
apegarão.
Para Silva (2003, p. 1), os defensores do federalismo reconhecem a fraqueza e
maldade da natureza humana. É fácil notar como, para eles, uma sociedade não tem
como sobreviver pacífica e eticamente sem que haja pressões, ameaças e punições
declaradas para possíveis desvios. Partindo disso, provam que um grupo de homens
não está livre de tais problemas e demonstram que estados também precisam ser
policiados (cf. SILVA, 2003).
4 O Governo como controlador do Governo
Para Madison,
A fim de lançar os devidos fundamentos para a atuação separada
e distinta dos diferentes poderes do governo [...] é evidente que
cada um deles deve ter uma personalidade própria e, consequentemente, ser de tal maneira constituído que os membros de um
tenham a menor ingerência possível na escolha dos membros
dos outros. Para que esse princípio fosse rigorosamente obser-
80
vado, seria necessário que todas as designações para as magistraturas supremas do executivo, do legislativo e do judiciário tivessem a mesma fonte de autoridade – o povo [...]. (O Federalista, n.
51, apud LIMONGI, 2004, p. 272).
No mesmo artigo (O Federalista, n. 51), Madison diz:
Ao constituir-se um governo – integrado por homens que terão
autoridade sobre outros homens –, a grande dificuldade está em
que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo [...]. Assim, para frear a relação de poder entre as esferas do executivo,
legislativo e judiciário, ressalta ainda que [...] os membros de cada
um dos três ramos do poder devem ser tão pouco dependentes
quanto possível dos demais.
Neste sentido, Madison continua:
Todavia, a grande segurança contra uma gradual concentração
de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar
aos que administram, a cada um deles, os necessários meios constitucionais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos outros. [...] A ambição deve ser utilizada para neutralizar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais. [...]. Em outras palavras, um poder deve controlar o outro ou as pessoas devem controlar as outras. Assim,
os interesses privados de cada cidadão devem ser uma sentinela
dos direitos público (O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004,
p. 273).
Mas como seria possível distribuir para cada um dos poderes instrumentos
iguais de autodefesa? Segundo Madison (O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004,
p. 274), no governo republicano predomina a autoridade do Legislativo, apontando
um caminho:
A solução [...] está em repartir essa autoridade entre diferentes
ramos e torná-los — utilizando maneiras diferenciadas de eleição e distintos princípios de ação — tão pouco interligados quanto o permitir a natureza comum partilhada por suas funções e a
dependência em relação à sociedade.
Surgem desta forma, dentro da estrutura do governo republicano, a figura da
Câmara de Deputados e o Senado, ambos com atribuições distintas. Continuando,
Madison (O Federalista, n. 57, apud LIMONGI, 2004, p. 280) argumenta que:
A Câmara dos Deputados é o lugar onde os cidadãos se fazem
representar, e o Senado é onde os Estados têm voz igual, para
discutir assuntos de interesse da federação. Isso garante a pro-
81
porcionalidade e a igualdade, e ainda possibilita um controle interno do mais poderoso dos três poderes da União.4
Para proteger o Executivo do poder do Legislativo, é atribuído o poder do veto
absoluto, que O Federalista considerava uma defesa com a qual deveria ser armado o
Executivo. Mas reconhece que talvez não seja seguro nem eficiente. Com relação ao
Poder Judiciário, Hamilton, no artigo n. 78 (O Federalista, apud LIMONGI, 2004, p.
275), afirma que é o mais fraco dos três poderes. O Federalista nos mostrar que:
A independência integral das cortes de justiça é particularmente
essencial em uma Constituição limitada. Ao qualificar uma Constituição como limitada, [...] que ela contém certas restrições específicas à autoridade legislativa [...]. Limitações dessa natureza
somente poderão ser preservadas na prática através das cortes
de justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos contrários ao manifesto espírito da Constituição.
Os juízes serão os guardiões da liberdade. A vitaliciedade no cargo, com o
tempo tiraria qualquer dependência em relação à autoridade que o nomeou. O Federalista afirma que não haverá liberdade se o poder judiciário estiver sob jugo de
outros ou junto a eles.
5 As Facções e as Formas de Controle
As facções foram caracterizadas como a principal ameaça ao destino dos governos populares. Madison, em O Federalista, n. 10, defende a ideia de não eliminálas, mas de eliminar seus efeitos. Pelo ideal de liberdade defendido pelos federalistas,
não se pode evitar o surgimento das facções.
Madison as define como:
[...] um grupo de cidadãos, representando quer a maioria quer a
minoria do conjunto, unidos e agindo sob um impulso comum
de sentimentos ou de interesses contrários aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade (O Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 262).
Afirma Madison que existem dois processos para remediar os malefícios das
facções: um, pela remoção de suas causas; outro, pelo controle de seus efeitos. Para
combater as causas, deveria ser destruída a liberdade, que é a essência de sua existência. Mas, fazendo desta maneira, estaria aplicando um remédio que seria pior do
que a própria doença. Outro caminho apontado por Madison para combater as
4
No artigo 57, James Madison trata das bases populares da Câmara dos Deputados. Para saber mais, ler: LIMONGI,
F. P. “O Federalista”: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos
da Política. São Paulo: Ática, 2004.
82
causas das facções seria fazer com que todos os cidadãos tivessem os mesmos sentimentos, opiniões e interesses5. Assim, os federalistas acreditam que as facções devem existir, mas sem prejudicar a liberdade. A unificação de opiniões diferentes dos
homens também é apontada como uma solução impraticável por Madison, ao afirmar que “a diversidade das aptidões humanas, nas quais se originam os direitos de
propriedade, não deixam de ser um obstáculo quase insuperável para uma uniformidade de interesses” (O Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 263).
Nesse sentido, “a conclusão a que somos levados é a de que as causas da
facção não podem ser removidas e de que o remédio a ser buscado se encontra
apenas nos meios de controlar os seus efeitos” (MADISON, O Federalista, n. 10,
apud LIMONGI, 2004, p. 265), pois o autor afirmava que o remédio é fornecido
pelo princípio republicano, e entendia “república como um governo no qual se aplica o esquema de representação – abre uma perspectiva diferente e promete a cura
que estamos buscando”6.
Neste contexto, o tamanho da república servia como meio para repelir facções ou filtrar o facciosismo. Mais cidadãos eleitores, melhor discernimento, mais
grupos de interesses reduziriam as chances de conspiração. A representação dividiria responsabilidades locais, estaduais e federais, e poderia realizar o interesse comum contra facções majoritárias oprimindo minorias, exercitando o povo sobre as
razões pelas quais teria vantagens em controlar sua própria paixão. Assim, os vários
corpos legislativos se completariam, vigiando um ao outro, e os federalistas integrariam república e federação. Madison insistiu em que, na democracia direta, as pessoas devem reunir-se todas; na república, atuam por representação (LEONEL, 2007).
Conclusão
É incontestável a inovação da teoria defendida pelos federalistas. Igualmente
é inegável que eles efetivamente lançaram as sólidas bases do liberalismo. É neste
momento que a ciência política encontra-se com a modernidade.
Com efeito, nota-se que algumas inovações são implantadas com O Federalista.
Viabilizam-se, entre outras, algumas categorias conceituais: República: Res publica (latim)
– coisa pública, forma de governo na qual o povo é soberano. Federação: união entre
Estados independentes para formar uma única entidade soberana, formando o Estado
Federal que está dotado de características próprias (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1995). Pode-se, assim, observar que, com a separação dos poderes Legislativo, Exe-
5
6
Como destruir a liberdade quando a base das discussões do federalismo é a liberdade?
Fazendo uma correlação com a democracia pura, define-a “como uma sociedade congregando um pequeno número
de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente – tem de admitir que não há cura para os males da
facção. Uma paixão ou interesse comum dominará, em quase todos os casos, a maioria do conjunto” (MADISON, O
Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 266).
83
cutivo e Judiciário, o governo passa a controlar o próprio governo, e o povo é a expressão superior da defesa intransigente da Constituição. Atua permanentemente como se
fora “sentinela”, defensor contumaz dessa nova ordem democrática.
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. 13. ed. Brasília: EDUNB, 1995.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Universidade de Brasília, 1984. (Coleção Pensamento Político).
LEONEL, Mauro. “O Liberalismo Federalista: tensões e soluções dos EUA”. In:
Revista Arquivos Contemporâneos, São Paulo, v. 1, p. 1, 2007.
LIMONGI, F. P. “O Federalista”: remédios republicanos para males republicanos. In:
WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2004.
MUNDO dos Filósofos. O Empirismo. Texto sobre John Locke. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/locke.htm>. Acesso em: 2 out. 2008.
NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT,
Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
PARENTE, Josênio C. A construção da ordem liberal: IV o Federalista: a efetivação da
liberdade. Trabalho apresentado à disciplina Teoria Política do Programa de PósGraduação em Ciência Política da USP. São Paulo, 1994.
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
SADEK, Maria Tereza. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú”. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
SILVA, Gustavo Noronha. O Federalista. Trabalho apresentado à disciplina Política II do
curso de Ciências Sociais da Universidade de Montes Claros. Montes Claros, 2003, p. 1-7.
WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
84
A gênese do pensamento político
nas colônias inglesas da
América do Norte1
Elizeu Corrêa dos Santos*
Hermon Santos da Silva**
Ney Oliveira da Costa***
Resumo: Os ideais de Lutero e Calvino são pressupostos influenciadores das ideologias dos emigrantes que, buscando refúgio dos sistemas monárquicos instalados
na Europa, avançam para as colônias inglesas na América, que se apresentam como
locus capaz de propiciar a desejada situação de indivíduo liberto e completo diante
de expectativas arraigadas em seus pensamentos religiosos. Desta maneira, o pensamento protestante irá influenciar, de forma categórica e decisiva, a formação do
pensamento cultural dos estados americanos, e acabará também por contribuir para
os preceitos basilares do pensamento político da nação que se molda neste arcabouço de fatos sociais.
Palavras-chave: Protestantismo. Igualdade. Liberdade.
The genesis of political thought
in the english colonies of
North America
Abstract: The ideals of Luther and Calvin, as influencing presuppositions of the
ideologies of the immigrants who, seeking refuge from the monarchical systems
installed in Europe, advanced to the English colonies in America, which presented
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado do Amapá.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Arquiteto e Urbanista. Arteeducador. Especialista em Gestão Urbana [email protected].
**Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Licenciado e Bacharel em
História. Advogado [email protected].
***Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. Licenciado e Bacharel em
História. Especialista em Docência do Ensino Superior [email protected].
1
85
themselves as a locus able to provide the desired situation of being free and complete
individuals according to expectations rooted in their religious thoughts. Thus the
Protestant thinking will influence, categorically and decisively, the shaping of the
cultural thinking of the American States, and, ultimately, will also contribute to the
basic precepts of the nation’s political thinking which is molded in this framework
of social factors.
Key words: Protestantism. Equality. Liberty.
O homem moderno, mesmo com a melhor das vontades, costuma ser incapaz de atribuir às ideias religiosas a importância que merecem em relação à cultura e
ao caráter nacional.
(WEBER, 2007, p. 141)
Desde 1754, com Benjamin Franklin, surgiu um sentimento de unificação
política para as treze colônias inglesas da América. Mas, na época, este pensamento
ecoou sem adesão por parte das elites políticas da América e, muito menos, por
parte da Inglaterra. Porém, por parte dos integrantes de “O Grande Despertar”,
essa adesão teve outro norte.
Este era um grupo protestante que “andarilhava” pelas colônias americanas
em busca de concretizar seus princípios de fé. Se a unificação religiosa não veio, os
termos do Protestantismo, através da ação daqueles pregadores, significaram os primeiros passos para a unificação política, ou seja, foram tais ideias, no âmbito de um
processo histórico mais vasto, concretizado pelo progresso dos indicadores de emaciação social, que nortearam, entre outras coisas, a estabilização da ordem constitucional.
Sob a influência de ideias liberais, emanadas de pensadores como John Locke,
Rousseau e Montesquieu, e propagadas por Lafayette, esboçaram-se entre os colonos americanos o direito à vida, à liberdade e à propriedade, e outros que consubstanciaram os escritos de James Madison, quando publicou, junto com Alexander
Hamilton e John Jay, O Federalista, fruto da reunião de uma série de ensaios publicados na imprensa de Nova York em 1788.
A identidade política daquela região mudou consideravelmente, pois a espiritualidade cristã comporta diversas dimensões. Quando se trata da dimensão histórica, a perspectiva da teologia protestante dos Estados Unidos em formação compreende uma coragem de ser livre; pois, “grupos de puritanos, descontentes com a
situação religiosa na Inglaterra, na Escócia e Irlanda, emigraram para a América”
(WEFFORT, 2005, p. 258).
86
Os primeiros a aportarem por aquelas terras com ideias protestantes foram os
colonos da Virgínia, na parte sul dos Estados Unidos. Denominavam-se AnglicanoPuritanos os “pais peregrinos” que até ali navegaram a bordo do “Mayflower”. Fundaram uma colônia caracterizada por uma organização político-religiosa que regia
tanto a vida pública quanto a privada (KLEIN, 2002, p.1).
Para os membros deste grupo, o papel do Estado, enquanto instituição normatizadora da sociedade
[...] estava intimamente ligado à Igreja e qualquer um que se afastasse da Igreja se isola, literalmente, da sociedade civil. A intolerância se estende as crenças e aos costumes, a comunidade atribuindo-se o direito de velar pela estrita lei de Deus (KLEIN,
2002, p. 2).
As restrições econômicas e a perseguição religiosa fomentadas na Europa,
sobretudo por Inglaterra e Espanha, promoveram um verdadeiro êxodo para o
“novo mundo”. Os escoceses e os irlandeses chegaram no início do século XVIII,
em sua maioria, em decorrência das mesmas questões favorecidas pela Inglaterra
e pela Espanha. A vontade de ser livre, destes que somavam quase cem mil em
1750, aglutinou-se com a dos que antes chegaram, no que tange a antipatia pelo
governo inglês e o anseio por possíveis mudanças que significassem ruptura com
o passado.
E é justamente essa antipatia a raiz do antagonismo estabelecido entre metrópole e colônia, bem como o primórdio das ideias de emancipação. Ou seja, um povo
que buscava liberdade religiosa agora começava a vislumbrar as chances de uma
liberdade bem mais politicamente abrangente. Uma das principais figuras desses
preceitos foi o pastor presbiteriano Jonathan Edwards (1703-1758); ele observava
as ideias iluministas e era estudioso de John Locke e Isaac Newton.
Este pregador buscava a unificação e a restauração de um movimento religioso enfraquecido, através de uma mobilização religiosa e filosófica denominada de
“o grande avivamento”, que será um dos fatores determinantes para o recrudescimento de uma mentalidade baseada no Iluminismo, que irá pregar e buscar alcançar
o avanço modernizante de seus membros.
O grande despertamento estendeu-se pelas treze colônias
americanas e estima-se que em conseqüência cerca de 50.000
pessoas uniram-se a igreja. Cumpre observar que a teologia
dos avivamentos não dispensa a Ilustração (KLEIN, 2003,
p. 5).
As ideias desse pregador confrontavam as pessoas com seu “íntimo pecaminoso”, e isso as levava a viver de acordo com o que foi enfatizado por Calvino (justificativa para a burguesia em ascensão conquistar o poder que não tinha
– o poder político), possibilitando a aquisição de riquezas, por exemplo, sem
87
que isso fosse visto como impróprio ou imoral, seguindo-se o empréstimo de
dinheiro a juros como forma de geração de renda, o que era condenado pela
Igreja Católica.
Princípios como esses eram explorados pelos pensadores que formularam as
ideias-base da emancipação política dos norte-americanos; pois, enquanto colônia,
aquela região, via-se impedida de trilhar novos caminhos que pautassem uma acumulação de capital necessária aos interesses políticos da colônia. Daí que seria ilusão
acreditar que o trabalho dignifica o homem, se esse homem não tem essa dignificação concreta. É neste sentido que o protestantismo na América do Norte absorverá
um aspecto político que parece ter unido fé e emoção, ciência e religião, em que a
religião é potencialmente essencial.
Tal foi a combinação desses fatores políticos, religiosos e econômicos que
deram ênfase para uma forma nova de governo, baseado na liberdade de seus participantes, isto porque, à luz dos pensadores “antifederalistas”, como os seguidores
de Montesquieu, a república era uma forma de governo não condizente com territórios expressivos. Essa era a ideia predominante no contexto político administrativo da época.
A implantação da república em um país com dimensões continentais causou
espanto e apreensão, mesmo entre algumas correntes políticas, como as acima citadas, dentro das treze colônias. Mas a inovação ideológica carecia de um suporte
teórico e explicativo que viesse contrapor-se à compreensão inerente na época, ou
seja, aquela que defendia um prisma contemplativo de um Estado federal fortalecido nos artigos de O Federalista, que tinha por ideia principal trazer a luz da mentalidade americana à mudança que fosse efetiva para uma conjuntura política que levasse a efeito o tão sonhado estado federal, não como queriam os seus idealizadores,
mas como foi possível fazê-lo.
A gênese do pensamento político na América do Norte nunca foi um fato
casual ou acidental. O ideal de luta e mudança precede sua própria origem e se
consolida em sua cristalização. Disto decorrem seus principais preceitos herdados
do Iluminismo, cercado de aspectos moralistas e longe de qualquer conceito de
graça per si. Quase não é mencionada na América a presença do divino precedendo
o que é feito pelo homem. A sacralização da realidade é praticamente desconsiderada na sociedade americana.
A análise da obra de Tocqueville sobre a democracia instalada na América – A
Democracia na América – esclarece sua percepção da influência da estrutura religiosa
nos moldes adotados por aquela sociedade em seus costumes e que se exteriorizaram em suas ideias, pois assim coloca: “Deus mesmo percebe a causa de tal revolução, Deus mesmo deve ter desejado essa impressionante marcha para as igualdades
das condições” (TOCQUEVILLE apud CHEVALLIER, 2002, p.254).
A sociedade democrática que triunfa na América será bem sucedida e susceptível à felicidade comum, se bem constituída e guiada para um funcionamento pací88
fico em que o objetivo principal fosse a felicidade geral da maioria e bastando para
isso que o estado igualitário fosse regulamentado e canalizado pela lei por todos
considerada e amada como obra própria – “pela sua consciência religiosa e garantia
da liberdade interior” (Idem).
A sociedade americana na maior parte das operações do espírito
apela para o esforço individual de sua razão. Cada um procura
apenas em si a regra de seu juízo, cada um, estreitamente encerrado em si mesmo, pretende assim julgar o mundo, é esta razão
que busca e irá permitir atacar facilmente todas as coisas antigas,
abrindo caminho a todas as novas, método que, principalmente
baseando-se na possibilidade da religião protestante, antevê que
o possível engrandecimento de todos os homens é democrático
(TOCQUEVILLE apud CHEVALLIER, 2002, p. 263).
Para Tocqueville, a religião assegurava os costumes, e, sem costumes, não há
liberdade. Na sociedade dos estados americanos, ele encontra a unificação de religião e liberdade. A religião, como facilitadora da liberdade, garante o difícil funcionamento da democracia:
Religião e liberdade haviam presidido em harmonia a fundação
da nova Inglaterra pelos puritanos que traziam ao novo mundo
seu cristianismo republicano e democrático. A liberdade americana poderá ver na religião a companheira de suas lutas e triunfos. O berço de sua infância (Ibid., 2002, p. 275).
Este mesmo autor ainda reforça que, “ao mesmo tempo em que a lei permite
ao povo americano tudo fazer, a religião impede de tudo conceber e proíbe-lhe tudo
empreender”. Para Tocqueville, o grande triunfo da democracia dos estados americanos é relacionar-se estreitamente com a religião sem deixar que esta interfira na
sua estrutura formal – a religião contribui positivamente para o Estado por ser estritamente separada do mesmo, por não interferir e não se internalizar diretamente
nos assuntos do governo – “só as almas lhe pertencem, os cidadãos são do Estado”
(Ibid., 2002, p. 263).
A gênese do pensamento político nas colônias da América do Norte, arraigada na religião protestante, influenciou fortemente os costumes de um povo e, com
isso, deixou como legado alguns aspectos que consideramos como contribuidores
para a formação da Constituição daquele país (EUA).
O pensamento oriundo da teologia luterana e calvinista, formadora da mentalidade dos emigrantes que se instalaram nas treze colônias americanas, trabalha pela
reconstituição de um alicerce perdido no país de origem, buscando uma coesão
religiosa e pessoal com a preocupação de atender os anseios da maioria por igualdade e liberdade e, assim, buscam e apóiam uma nação moderna, sem receio de se
atirar nesta empreitada com a força de sua fé e de sua razão.
89
Referências
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 8. ed.
Rio de Janeiro: Agir, 2002.
EDWARDS, Jonathan. A genuína experiência espiritual. São Paulo: PES, 1993.
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. São Paulo: Escala, 2005.
KLEIN, Carlos Jeremias. A espiritualidade protestante norte-americana na perspectiva de
Paul Tillich. São Paulo: Universidade Metodista, 2002.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2. ed. São Paulo: Martin
Claret, 2007.
WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2005.
90
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3.4.4 Texto propriamente dito
As Citações Bibliográficas devem ser feitas de acordo com as normas da
ABNT (NBR 10520 – Informação e Documentação – Citações em documentos – Apresentação
/ Ago. 2002), adotando-se o sistema autor-data.
As Referências devem ser feitas de acordo com as normas da ABNT (NBR
6023 – Informação e Documentação – Referências – Elaboração / Ago. 2002).
Devem conter todos os dados necessários à identificação das obras, dispostas
em ordem alfabética. Para distinguir trabalhos diferentes de mesma autoria, será
levada em conta a ordem cronológica, segundo o ano da publicação. Se num mesmo
ano houver mais de um trabalho do(s) mesmo(s) autor(es), deverá ser acrescentada
uma letra ao ano (ex. 1999a; 1999b).
Referências dos documentos consultados. Somente devem ser inseridos
na lista de Referências, os documentos efetivamente citados no artigo.
Na lista das Referências, cada trabalho referenciado deve ser separado do
seguinte por 2 (dois) espaços. A lista dos documentos pesquisados deve ser apresentada em ordem alfabética, não numerada, seguindo o sobrenome do autor principal,
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destacando em itálico o título do periódico (para artigos) ou o nome da obra (quando para capítulos de livro), como descrito no item Referências. Observação: destacar em itálico somente os títulos, não os subtítulos.
• As notas não bibliográficas devem ser colocadas no rodapé, ordenadas por
algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento do texto
ao qual se refere a nota.
• Os locais sugeridos para inserção de ilustrações e tabelas deverão ser indicados no texto.
• Ilustrações e tabelas, com as respectivas legendas, deverão ser apresentadas no decorrer do textos e definidas pelo próprio autor.
Ilustrações: São desenhos, esquemas, fluxogramas, fotografias, gráficos, mapas,
organogramas, plantas, quadros, retratos e outros. Independente do tipo de ilustração, sua identificação aparece na parte inferior, seguida de seu número de ordem de
ocorrência no texto, em algarismos arábicos, do respectivo título e/ou legenda explicativa de forma breve e clara, dispensando consulta ao texto e da fonte. A ilustração deve ser inserida o mais próximo do trecho a que se refere.
Tabelas: A palavra Tabela e seu texto explicativo deverão ser escritos acima e
receber numeração consecutiva em algarismos arábicos. (Ex.: Tabela 1 - Relação
estatura versus peso em crianças de 0 a 10 anos).
Observação importante: siglas e abreviaturas devem ser evitadas, pois dificultam a leitura. Quando forem necessárias, as siglas ou as abreviaturas devem ser
introduzidas entre parênteses, logo após o emprego do referido termo na íntegra,
quando do seu primeiro aparecimento no texto. Ex.: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Após a primeira menção no texto, utilizar somente a sigla
ou abreviatura. Todas as abreviaturas em tabelas ou ilustrações devem ser definidas
em suas respectivas legendas.
4 Direitos autorais
4.1 Artigos publicados na Revista da Escola de Administração Pública do Amapá
Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à Revista da Escola de
Administração Pública do Amapá. A reprodução total dos artigos desta revista em
outras publicações, ou para qualquer outra utilidade, está permitida desde que citada
a fonte. Será oferecido um exemplar da revista para cada autor.
O(s) autor(es) deverão encaminhar, junto com o artigo, Carta de Autorização
para Publicação e Concessão de Direitos Autorais.
Será vedada a inclusão de autorias a artigos posterior ao período de inscrição,
salvo casos especiais, desde que os demais autores do artigo assinem o Termo de
Responsabilidade.
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4.2 Reprodução parcial de outras publicações
Artigos submetidos, que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações, deverão obedecer aos limites especificados para garantir originalidade do
trabalho submetido. Recomenda-se evitar a reprodução de tabelas e ilustrações extraídas de outras publicações.
O artigo que contiver reprodução de uma ou mais tabelas e/ou ilustrações de
outras publicações deverá conter a citação da fonte original.
5 Antes de enviar o artigo, faça uma revisão cuidadosa para verificar se está de
acordo com a presente instrução. Utilize o modelo de Checklist.
6 Não haverá devolução dos trabalhos submetidos à Revista.
7 A presente Instrução aos Autores, o modelo de Concessão de Direitos Autorais, da Carta de Autorização para Publicação e do Checklist, encontram-se
disponíveis em: <http://www.eap.ap.gov.br>.
8 Endereço para encaminhamento:
Escola de Administração Pública do Amapá
Conselho Editorial – REVISTA DA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA DO AMAPÁ
Rua: Amazonas, 20 – B. Central – CEP: 68908-330 – Macapá/AP
Tel.: (96) 3312-1950 / 1954 – Fone/Fax: (96) 3312-1963
e-mail: [email protected]
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Ano 1 - Escola de Governo