Interação do Sistema com o Poder Legislativo(*) Arq. Carlos Murilo Frade Nogueira Assessor Parlamentar/ Senado Federal Introdução A interação do Sistema Confea/Crea com o Poder Legislativo passa por uma série de aspectos preliminares de abordagem que permitirão chegar a um quadro de entendimento mais claro de toda a sistemática – interna e externa – que envolve o trato das questões legislativas. Não há como falar em Poder Legislativo sem passar pelos demais poderes constituídos. Assim como não é possível esclarecer a atuação do Conselho Federal no Parlamento sem explicar os pontos básicos de conceituação e tipificação da matéria legislativa e o respectivo processo de tramitação. Mais do que isso, pretendemos, ainda, mostrar como se dá a rotina interna de análise, acompanhamento e atuação do conselho frente às demandas do Congresso Nacional, que, ao elaborar as leis brasileiras, afeta direta ou indiretamente as profissões ligadas ao Sistema Confea/Crea. Assim, além de temas relacionados às políticas nacionais, ao ensino e regulamentação profissional, constatamos uma série de proposições que podem, se aprovadas, alterar substancialmente a organização e o funcionamento dos conselhos, bem como as relações de mercado e de fiscalização do exercício das profissões. Poderes da União Desenvolvida por Locke e Montesquieu há cerca de duzentos e cinquenta anos, a concepção da divisão dos poderes da União vem sendo adotada e repetida pela maioria das nações, dentro dos princípios fundamentais inseridos nas constituições como um dos pilares do Estado democrático. A Constituição brasileira de 1998, como quase todas as anteriores, não fugiu à regra e previu logo em seu art. 2º que “são Poderes da União, independente e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Mais adiante, nossa Magna Carta dedica à 1 organização dos poderes todo o Título IV, dividido em quatro capítulos com mais de noventa artigos. Apesar do peso da previsão constitucional, na prática, a organização e o funcionamento dos poderes têm-se mostrado um pouco diferente. A começar pelo fato de que nem sempre atuam de forma independente, muito menos pela constância do espírito de harmonia. São notórias as dependências existentes entre Executivo e Legislativo – desde a formulação de agendas e pautas até a apresentação e votação da matéria legislativa, em que o exercício do acordo torna-se necessário – assim como é fato que nem sempre predomina a harmonia das relações como prova a figura da medida provisória e as próprias leis orçamentárias como maiores exemplos de conflitos e discursos entre os dois poderes. Não raros também são os embates, até de caráter político, e as intromissões de competências entre Judiciário e Legislativo. É voz corrente entre analistas e cientistas políticos que, hoje, o Executivo legisla (medida provisória), o Legislativo julga (CPI) e, não raro, o Judiciário retarda a execução, quando não a induz. Ou, de outra forma, mas também dentro da realidade política, o Executivo governa legislando, enquanto o Legislativo legisla governando. Mais recentemente, outro fenômeno vem se tornando realidade com o vácuo deixado pelo Legislativo em uma de suas principais atribuições, a de legislar. Assim, não raro vemos o Judiciário, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal, sendo chamado a decidir e interpretar questões legais por inércia ou indecisão do Congresso Nacional. Daí, ainda que não completamente correta, evoluiu-se para a chamada ‘judicialização da política’, expressão esta que, de imediato, recebeu um contraponto: a ‘politização da justiça’. Outro aspecto de análise da realidade dos poderes converge para a constatação quase unânime da existência, na prática, de um quarto poder: o ministério Público, cuja importância justifica aquele quarto capítulo do título dedicado à organização dos poderes na Constituição. Seu poder e atuação hoje são de tal ordem envolvidos com o exercício da política e dos políticos, que o Legislativo já vislumbra alternativas para reduzir as prerrogativas do Ministério Público, a começar pela competência de investigação. Porém, à exceção desse quarto poder, vamos verificar que, a despeito de nosso foco ser o Legislativo – por onde tramitam e são aprovadas as leis que nos afetam –, não há como dissociar todo o processo de formulação das normas dos dois outros poderes, seja ele em maior ou menor grau de interferência e participação. 2 Poder Legislativo Conforme esclarece o art. 44 da Constituição, “o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.” Enquanto aquela é composta de representantes do povo, esse compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal. O Tribunal de Contas da União – TCU faz parte Poder Legislativo como órgão auxiliar no controle externo da União e das entidades da administração, a cargo do Congresso Nacional. A Câmara hoje abriga 513 deputados federais eleitos pelo sistema proporcional para mandatos de quatro anos. O Senado possui três representantes de cada unidade da Federação, o que totaliza 81 senadores eleitos segundo o princípio majoritário, para mandatos de oito anos. Cada legislatura do Congresso tem a duração de quatro anos. O período de um ano de funcionamento das duas Casas (2 de fevereiro a 22 de dezembro, com recesso parlamentar em julho, entre os dias 18 e 31) denomina-se a sessão legislativa. O sistema bicameral adotado pelo Brasil permite, na prática, a existência de uma espécie de terceira Casa legislativa, que é exatamente a reunião conjunta da Câmara e do Senado. Isso porque, nessa situação, o Congresso possui prerrogativas e competências próprias e distintas das previstas para cada uma das instâncias separadamente. Um exemplo é a apreciação de veto presidencial, que só ocorre em sessão bicameral. Outro aspecto que diferencia e confirma a figura de uma terceira instituição é a existência no Congresso de lideranças e mesa diretora próprias, além de um regimento específico (regimento comum) diferente dos da Câmara e do Senado. Quanto às atribuições do Parlamento, é falsa a ideia de que se restringem à elaboração e aprovação de leis. A própria origem e a concepção do Poder Legislativo indicam que antes de tudo, sua função precípua é fiscalizar os atos Executivos. Além disso, vale citar outras competências constitucionalmente previstas, como as de apurar, investigar, referendar, ratificar, autorizar, indicar, representar, consultar, convocar, sustar atos e suspender execução de normas, além de promover o constante debate das políticas públicas e dos diversos temas de interesse nacional. 3 É, assim, o Legislativo o mais democrático e transparente dos poderes, o que o torna o mais próximo da população, a despeito de todas as críticas e descrenças em torno de seu funcionamento e de seus membros. Matéria Legislativa Matéria legislativa é o conjunto de proposições apresentadas no Congresso Nacional, seja de iniciativa parlamentar (deputados e senadores) ou externa (do Executivo, do Judiciário, de iniciativa popular, etc), sujeitas à deliberação das casas do Congresso e que visam tornar-se normas jurídicas. Importante precedente para se discorrer sobre matéria legislativa é a hierarquia das leis. Cada tipo de norma possui um peso distinto que a coloca em patamar superior ou inferior às demais. Isso se reflete na prevalência jurídica de uma sobre a outra e demanda processos da elaboração (autoria, competência, técnica legislativa), de análise (instâncias de apreciação, prazos) e de deliberação (votação, quórum, turnos) distintos dentro do trâmite legislativo. De forma resumida, vale citar os tipos de normas, em ordem de hierarquia: 1. Constituição Federal e suas Emendas; 2. Lei Complementar; 3. Lei Ordinária; 4. Lei Delegada; 5. Decretos; 6. Resoluções, Portarias, Avisos etc. A medida provisória equivale-se à lei ordinária. A partir de sua edição pelo presidente da Republica, passa a vigorar com força de lei até a deliberação final do Congresso, que poderá aprová-la ou rejeitá-la. Constituem proposições de interesse do Sistema Confea/Crea, dentro do processo legislativo, a proposta de Emenda à Constituição (PEC), o Projeto de Lei Complementar (PLP), o Projeto de Lei (PL), o Projeto de Decreto Legislativo (PDL), a Medida Provisória (MP) e o Projeto de Lei de Conversão (PLV), que é a proposta de alteração de medida provisória. Além dessas, tem-se ainda o Veto presidencial, que também é apreciado pelo Congresso. 4 A grande maioria (mais de 90%) das proposições acompanhadas e que mais afetam nossa legislação é constituída de projetos de lei, que sempre visam instituir uma nova lei ordinária ou alterar – e às vezes revogar – alguma outra em vigor. Processo Legislativo Pode-se definir o processo legislativo como o conjunto sequencial de procedimentos, etapas e normas regimentais a que estão sujeitas as proposições durante sua tramitação no Congresso. Em termos gerais, toda matéria deve ser deliberada pela primeira casa (iniciadora) e, se aprovada, revisada pela outra (casa revisora). À exceção das proposições apresentadas pelos senadores, todas as outras têm seu trâmite iniciado na Câmara dos Deputados. Aprovado nas duas casas, o projeto segue à sanção do presidente da República (Executivo), que pode vetá-lo parcial ou totalmente. Nos dois casos, caberá ao Congresso manter o veto ou derrubá-lo por maioria absoluta dos membros das duas câmaras. A sanção é a concordância do Executivo com o texto. Se não houver veto total, a proposta é publicada e entra em vigor já como norma jurídica. Separadamente, cada casa do Congresso tem suas normas específicas para o rito legislativo. Mas, via de regra, de forma resumida, pode-se dizer que toda proposição cumpre as seguintes etapas para sua análise e deliberação: apresentação, leitura e publicação, distribuição às comissões permanentes, remessa, quando for o caso, ao plenário e, se aprovada, envio à casa revisora. Se for rejeitada, é arquivada. Na maioria dos casos, os projetos são dispensados da votação em plenário. É o chamado poder terminativo das comissões. Se a casa revisora. Se a casa revisora alterar, mediante emendas ou substitutivo, o texto aprovado da casa iniciadora, torna-se necessária nova análise da primeira casa, porém restrita às modificações. O número de comissões a que estão sujeitas as proposições varia de acordo com o tema. Contudo, normalmente, há três espécies de exame: 1. O de mérito, a cargo das comissões temáticas (Comissão de Trabalho, Comissão de Educação, Comissão de Agricultura etc); 2. o de adequação financeira e orçamentária, a cargo da Comissão de Finanças e Tributação, e 3. o de constitucionalidade e juridicidade, a cargo da Comissão de Constituição e Justiça. Há ainda casos em que a matéria é submetida a uma Comissão Especial, como ocorre com as propostas de emenda à Constituição (PEC), ou quando o tema da matéria requer a análise de mais de três comissões temáticas. Neste caso, a comissão especial substitui todas as permanentes que analisariam o projeto. 5 A Câmara hoje comporta 20 comissões permanentes, enquanto o Senado dispõe de 11 comissões. Existem ainda as comissões especiais e temporárias, para casos específicos como as CPIs, e a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, composta por deputados e senadores que, conjuntamente, encarregam-se da deliberação das leis relativas ao orçamento (LOA, LDO e PPA). Dentro de cada comissão, há também um determinado rito interno. Recebida a matéria o presidente da comissão abre prazo para emendas. Depois, a distribui a um relator, que se encarregará da emissão de parecer (pela refeição ou pela aprovação na íntegra ou com emendas). Devolvido o parecer, a proposição aguarda inclusão em pauta para deliberação. Durante a discussão da matéria, é possível conceder vista a qualquer membro, que disporá de duas sessões para se manifestar. Quando necessário e por requerimento aprovado, a comissão realiza audiência pública antes da discussão e votação. A intenção é promover o debate da proposta com especialistas e convidados interessados que sirva de subsídio à tomada de posicionamento do relator e dos membros da comissão. Depois de deliberado, o projeto segue para a próxima comissão. Importante aspecto a salientar do processo legislativo é sua morosidade. Apesar da fixação de prazos regimentais para cada procedimento, via de regra, a tramitação de uma matéria é excessivamente demorada, já que, na prática, os prazos não são cumpridos à risca. Além disso, a quantidade de instâncias de apreciação, a polêmica de determinados temas, a falta de acordo entre governo e oposição, o excesso de recursos regimentais que protelam as decisões e até mesmo o desinteresse por determinadas propostas, são todos fatores que influenciam no tempo de apreciação das propostas. Assim, não raro, vemos projetos com anos e até décadas de tramitação. Por outro lado, quando o assunto é de extremo interesse do governo e conta com o apoio da oposição, o Congresso consegue votar em poucos meses, com a adoção do regime de urgência. Uma das questões mais prementes quanto à elaboração de uma norma jurídica, é a quem cabe a palavra final. Em que pese o poder de veto do presidente da República (Executivo) e até mesmo a declaração de inconstitucionalidade de lei por parte do Supremo Tribunal Federal (Judiciário), na prática, a decisão final cabe sempre ao Congresso. Nos casos de emenda à Constituição, a PEC, depois de aprovada, é simplesmente promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado, sem necessidade de sanção ou veto presidencial. Já os projetos de lei – Ordinária, complementar ou de conversão (alteração de medida provisória) – dependem da sanção do Executivo. Porém, a palavra final quanto ao veto é prerrogativa do Congresso, que pode mantê-lo ou derrubá-lo. Nos casos de lei devidamente aprovada e sancionada, mas que sofre Ação Direta de Inconstitucionalidade 6 (Adin), mesmo sendo a decisão do STF em caráter definitivo, cabe ao Senado Federal, sob o critério da conveniência, decidir quando suspender a execução da lei, conforme preceitua o art. 52, em seu inciso X, da Constituição Federal. Daí a importância maior do Legislativo quando se trata de elaboração das normas jurídicas de peso. Uma das exceções, porém, é o caso do decreto regulamentador de lei, que fica a cargo do Executivo. É tão somente o detalhamento de uma legislação aprovada pelo Congresso, cuja elaboração e publicação cabe ao presidente da República e ao Ministério correlato ao tema. Mesmo assim, na hipótese de o decreto exorbitar de seu poder regulamentar, o Congresso pode sustá-lo mediante decreto legislativo. Atuação do Confea Desde 1993, quando foi criada a assessoria parlamentar no Confea, até 2003, a atuação do Sistema no Congresso Nacional se dava de forma esporádica e sempre depois de iniciada a tramitação da matéria legislativa. O problema residia na falta de definição de uma sistemática a ser seguida para a tomada de posicionamento frente às inúmeras proposições anualmente identificadas como de interesse das categorias jurisdicionadas. O fato tornava o Sistema ainda mais moroso do que o Congresso na análise dos projetos de lei. E isso se dava por uma série de razões: 1. o excesso de fóruns decisórios do Sistema; 2. A grande quantidade e variedade de matérias de interesse, já que somos um sistema multiprofissional; 3. A burocracia interna, com adoção da tradicional instrução processual, que não permite a celeridade do exame; 4. o calendário das comissões e das plenárias do Confea; 5. A permanente renovação dos membros e instâncias dos conselhos, que dificulta a continuidade do processo; entre outras. Em 2002, a Comissão de Assuntos Nacionais – CAN tomou a iniciativa de tratar do problema de forma mais racional, mediante a elaboração e implantação de uma rotina de acompanhamento pelo órgão das propostas de lei que tramitam no Parlamento . Além da institucionalização da Assessoria Parlamentar – Apar como setor, o plenário do Conselho Federal aprovou a Portaria AD nº 59, de 18/07/03, que fixa a Rotina Interna de Acompanhamento de Matéria Legislativa. Assim, foram identificadas e estabelecidas as etapas do processo interno a serem seguidas: 1. Identificação da matéria e acompanhamento da tramitação; 2 divulgação e consulta ao Sistema para colhimento de posicionamento e sugestões; 3. emissão de parecer técnico, jurídico e/ou financeiro; 4. instrução processual em modelo específico e adaptado para matéria legislativa; 5. análise e deliberação pela comissão permanente do Confea afeta ao tema; 6. análise e decisão pelo plenário do Confea; 7. Intervenção no 7 processo legislativo com base na decisão plenária; e 8. revisão da matéria, em virtude de alterações no texto ou fatos novos. Além disso, a portaria fixou os agentes e as instâncias consultivas, deliberativas e decisórias do Sistema (Creas, CDEN, Coordenadorias Nacionais de Câmaras, conselheiros, comissões, plenário), além das regras para o cumprimento de cada etapa (prazos, modelos de processos, formas de divulgação e consulta, etc). Com isso, conseguiu-se aumentar substancialmente o número de decisões plenárias relativas à matéria legislativa, bem como a participação do Sistema na tomada de decisão (ampliação da participação democrática). Mas, acima de tudo, conseguiu-se reduzir drasticamente o tempo para a tomada de posicionamento. Em consequência, a atuação do Sistema, mediante o encaminhamento sistemático de seus posicionamentos ao Congresso, ampliou-se visivelmente ao ponto de conseguirmos alcançar, em 2005, uma média de uma manifestação por dia de funcionamento do Legislativo. É de se destacar que, com uma decisão plenária mediante a qual se tem um posicionamento claro do Confea em relação a cada projeto (contrário, favorável ou favorável com restrição), torna-se mais fácil a atuação do Conselho no Congresso. Seja esta simples remessa de expedientes, seja pelos constantes contatos parlamentares. Outra forma de intervenção no processo legislativo é a utilização dos recursos regimentais disponíveis. Assim, não raro, é possível se conseguir a designação de relatoria, a retirada de pauta da proposição, o pedido de vista da matéria, o voto em separado, os requerimentos de audiência pública ou de audiência de outra comissão, o recurso contra o poder conclusivo das comissões, entre vários outros. São todas medidas utilizadas pelo Conselho para viabilizar a aprovação ou rejeição das propostas acompanhadas. Aliado a tudo isso, o Conselho dispõe ainda, em seu site, de uma página específica da Apar que contém toda a relação das matérias acompanhadas com as respectivas tramitações (Relatório), além de outras informações importantes (artigos, relações, links etc) que auxiliam o Sistema no trato com o Legislativo federal. 8 É claro que muito ainda se tem por aperfeiçoar, mas o principal já foi estabelecido e dotado. E a prova maior é exatamente o fato de termos deixado de ter uma atuação apenas defensiva (evitar a aprovação de projetos que ferem os interesses do Sistema), para atuarmos também de forma participativa (pela aprovação, com ou sem modificações no texto) e propositiva (apresentação de projeto de interesse por parte do Conselho). (*) Revisado e atualizado em abril/2013. 9