Poder e mudança Colunista José Luis Fiori Costuma-se atribuir à primeira-ministra inglesa, Margareth Thatcher, uma frase dos anos 80 que se transformou no símbolo do final do século XX, inseparável da "utopia da globalização": "there is no alternative". Trocando em miúdos: a globalização é um fenômeno econômico produzido pelas mudanças tecnológicas e pela expansão dos mercados. Uma transformação material irrecusável que imporia a todos os povos as mesmas políticas econômicas e reformas institucionais. Além disto, a globalização seria universal, inclusiva e convergente, e promoveria uma redução pacífica e positiva da soberania dos Estados nacionais. Uma década depois, nos anos 90, a frase da Srª Thatcher transformou-se num verdadeiro mantra, repetido através do mundo pelos políticos, intelectuais e governos que adotaram o programa comum das reformas e políticas neoliberais. Vinte anos depois de pronunciada a célebre frase, Samuel Berger, assistente para Assuntos de Segurança Nacional da Presidência dos EUA, afirmou num artigo publicado na revista "Foreign Affairs", de dezembro de 2000, que "os principais acontecimentos mundiais das últimas décadas ocorreram por causa do uso do poder pelos Estados Unidos, e não por causa de alguma necessidade preestabelecida e imposta pela globalização". Uma tese radicalmente oposta à da Srª Thatcher e de todos os liberais e marxistas que definem a globalização capitalista como expansão genérica dos mercados ou do "capital em geral", sem a interferência das grandes potências, que conseguem impor ao resto do sistema mundial o seu poder soberano, a sua moeda, a sua "dívida pública" e o seu sistema de "tributação" como lastro de um sistema monetário internacional transformado no espaço privilegiado de expansão do seu capital financeiro nacional. Agora bem, esta divergência na leitura dos fatos e da história poderia ser apenas uma disputa acadêmica se não escondesse um passe de mágica muito mais complicado. Ao eliminar o papel do poder político no processo de globalização econômica, a visão thatcherista da história despolitiza as mudanças recentes do capitalismo, e com isto, transforma, automaticamente, todas as decisões políticas das grandes potências e do poder político em geral num imperativo inapelável do capital. E como conseqüência, todos os atos de submissão dos governos periféricos aos desígnios do mercado ou do capital são considerados uma manifestação de realismo e sensatez; e todos os atos de resistência dos povos menos favorecidos são considerados sinais de irresponsabilidade e populismo. Não é necessária uma crise terminal do capitalismo ou do poder nacional dominante para que possam ocorrer mudanças nos demais países O que surpreende, entretanto, é encontrar - neste início do século XXI - este mesmo tipo de conformismo, no extremo oposto do espectro teórico-ideológico, entre analistas e políticos que reconhecem a importância decisiva do poder político dos Estados Unidos para o sucesso da globalização financeira das últimas décadas, mas que também não conseguem enxergar espaço para mudanças ou para governos de esquerda, a menos que ocorra uma crise profunda do capitalismo, e/ou uma crise terminal do poder americano. Muitos, inclusive, recomendam que a responsabilidade pelo governo das sociedades, e pela gestão do capitalismo, seja entregue completamente às "classes dominantes", e que as "classes dominadas" mantenham-se longe da política e do Estado, voltadas apenas para suas causas específicas, até que se abram as portas de uma nova civilização global que já estaria visível no horizonte das próximas décadas. 2 O historiador inglês Eric Hobsbawm costumava advertir seus discípulos para que não confundissem suas análises e previsões históricas com seus desejos, por mais elogiáveis que fossem. Mas a verdade é que o pensamento crítico tem dificuldade - muitas vezes - de analisar situações históricas concretas sem supor ou referir-se a um fim próximo, ou a uma ruptura definitiva. Como se não fosse possível entender ou transformar o mundo sem imaginar que ele esteja vivendo uma crise terminal. De fato, houve uma crise do poder americano na década de 70, mas ela foi superada na década de 80, no plano econômico, através das políticas de fortalecimento do dólar e de liberalização dos mercados, que impulsionou junto com a Grã-Bretanha o processo de globalização financeira das duas últimas décadas do século XX. Daqui para frente, não há dúvida que os Estados Unidos enfrentarão dificuldades crescentes para manter o seu controle global, político e econômico, e neste momento estão atolados no Iraque, mas não parece que seja parte de uma crise terminal do seu poder internacional. O que está em curso, de fato, é uma transformação profunda do eixo geopolítico e geoeconômico do sistema mundial, que poderá tomar muitos anos ou décadas, mas isto não significa que neste período de transição os países situados fora do núcleo central das grandes potências não tenham condições e alternativas de mudança. Neste ponto, vale olhar um pouco para a história passada e para o período de apogeu do poder político e econômico mundial da Grã-Bretanha, quando ela liderou a globalização financeira do século XIX, sobretudo depois de 1830. Foi um século em que os poderes militar e financeiro britânico também eram incontestáveis e, no entanto, naquele mesmo período ocorreram mudanças políticas e econômicas que transformaram radicalmente a história do mundo e dos seus estados e classes sociais. Basta lembrar alguns acontecimentos como a revolução Cartista, na própria Inglaterra, e as revoluções políticas e sociais francesas da década de 1830; a independência da Grécia e da Bélgica na mesma década; as revoluções democráticas que sacudiram a Europa inteira a partir de 1848; o grande movimento nacionalista que passou para a histórica como a "primavera dos povos"; ou finalmente, na década de 1860: a revolução Meiji no Japão, a Guerra Civil nos Estados Unidos, e a unificação da Alemanha e da Itália. Em síntese: a história ensina que o poder político das grandes potências foi fundamental para a globalização dos mercados e do capital, mas ao mesmo tempo ensina que não é necessária uma crise terminal do capitalismo ou do poder nacional dominante para que possam ocorrer mudanças no mundo, e em cada um dos países do sistema mundial. José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e editor do livro "O Poder Americano" (Editora Petrópolis). Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 1° de fevereiro de 2006.