Filosofia da Comunicação (Comunicosofia) GUSTAVO DE CASTRO CASA DAS MUSAS pilotis abertura a casa de Hermes, p. introdução frasementos poéticos, p. parte I – água os fragmentos da água, p. parte II – fogo o guardador de chamas, p. parte III – ar o colecionador de ventos, p. parte IV – terra o leitor de polens, p. sobre o autor, p. Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência. Fernando Pessoa Só existe ciência daquilo que é oculto. Gaston Bachelard A Luiz Martins Copyright 2005 by Gustavo de Castro e Silva Ilustração da capa: Hermes Diagramação: Fernando Brasil Revisão: F.D & G.C. S. Coordenação editorial: Luiz Martins da Silva Printed in Brasil Impresso no Brasil 2005 Direitos para esta edição Ed. Casa das Musas SCLN 708/709 Bl. A. Entrada 15, Sala 201 Asa Norte - Brasília - DF Cep. 70.740.610 Tel. 61- 3340.7282 www.casadasmusas.com.br [email protected] Castro e Silva, Gustavo de. Filosofia da Comunicação - Comunicosofia / Gustavo de Castro e Silva; - Brasília: Ed. Casa das Musas, 2005. Col. Textos em Comunicação. 75p., 21cm. ISBN 1.Filosofia. 2. Comunicação. 3. Teoria CDU 301.153.2 CDD 301.16 abertura a casa de hermes por Florence Dravet O s deuses não precisam trancar suas casas antes de sair. Até porque, eles nunca saem totalmente. O que acontece é que a vastidão de suas moradas os faz ao mesmo tempo presentes e ausentes em cada recanto. Suponhamos, então, que Hermes nunca saia de casa, mas também não esteja verdadeiramente presente em nenhum de seus cômodos. Suponhamos que ele deixe sempre algumas portas abertas para que caminhantes, curiosos e estudiosos possam entrar e passear em sua vasta morada. A dificuldade é que o percurso nunca acaba porque a casa de um deus sempre apresenta algo de labiríntico, de misterioso, de surpreendente. Os cômodos, por exemplo, nunca possuem uma só porta; existem várias possibilidades de entrar e sair, de passar de um lugar da casa para outro. Às vezes uma porta escancarada esconde outra, ainda fechada, como um acesso a ser descoberto que pode conduzir a um lugar pouco freqüentado ou totalmente ignorado. Não se sabe exatamente quais os limites da casa de Hermes, nem a quantidade de cômodos. O que se sabe — e é o que este livro explora — é que existe sempre uma outra possibilidade, uma nova porta de entrada, uma outra passagem para se conhecer a morada do deus mensageiro. Abordar a comunicação seguindo os caminhos da natureza através dos quatro elementos é o método adotado aqui, que permite dar conta da dimensão ilimitada e prolífera da sua observação. Pois ela é pensada sucessivamente como água, fogo, ar e terra, sendo primeiro algo que flui, para depois arder, evaporar-se e derramar-se em pólens sobre a terra, fertilizando-a. Há pouca preocupação aqui em analisar suas concreções ou manifestações em nosso mundo, interessando mais idealizá-la no sentido de concebê-la através de prismas abstratos, onde caibam tanto as realizações comunicativas — as diversas linguagens, os seus meios e fins — como as suas formas imaginais e criadoras e, ainda, suas formas livres e desconhecidas. Os quatro elementos representam, simultaneamente, a totalidade porque são ligados entre si, e a parte ínfima porque são fragmentos de algo maior que aparecem acrescidos pela lupa do olhar investigador daquele que quer saber, conhecer, compreender. Para enfrentar as dificuldades labirínticas da casa de Hermes, é preciso desfazer-se dos antolhos do medo e dos reducionismos que mantêm as portas fechadas, compartimentando os espaços. É necessário deixar fluir córregos d‘água, saber aquecer-se às chamas da criação, voar ao grado dos ventos anunciadores e reverter-se depois, transformando e polinizando o mundo. Porque a vasta casa da linguagem precisa ser melhor ocupada pelo homem, Comunicosofia é um convite a conhecer a comunicação, questionando, sonhando, criando, imaginando, amando. Introdução frasementos poéticos 1. Assim como não consigo me reconhecer sem a dimensão espiritual, não consigo me reconhecer sem a dimensão comunicativa. O elo comunicação e espiritualidade sempre me significou – no fundo – um tipo de busca. Em ciências sociais, chamo de Comunicação Vertical ou Comunicosofia. A busca pelo alto sempre me pareceu também o mesmo que uma busca pelo autos = si mesmo, si próprio, eu mesmo. Todas as vezes que pensava na possibilidade de uma unidade do conhecimento, não sei porque, olhava o céu. Achava que ele conseguiria representar a totalidade do dizível e do indizível. Depois, como se fosse um complemento disso, olhava para dentro de mim, para o céu interior, e dizia uma frase, sempre a mesma: ―para o alto (autos) é que se anda‖. 2. O vertical me atingiu em cheio com a espiritualidade e com a poesia. Fiz da comunicação o médium para chegar a ambas. Atingiu-me com a poesia ao encontrar, em Montevidéu, Roberto Juarroz e a sua Poesia Vertical, livro que me inspira ainda hoje. Com a espiritualidade, ao encontrar, em Roma, o místico e filósofo Marcelo Costa Nunes e sua Parosofia. Dois signos da verticalidade, dois modos de ser-no-mundo, ambos convergentes, sensíveis e promotores de sensibilidade e conhecimento. Com eles aprendi que a força dos relâmpagos do alto (autos) ilumina a educação na noite do homem. As profundezas de nossa alma talvez comuniquem mais que as mídias de massa. 3. Um estudo sobre a comunicação – pelo menos no meu caso – não pode deixar de ser um estudo sobre a poesia e a espiritualidade. Não pode deixar de discorrer necessariamente sobre a verticalidade da palavra e do espírito. A verticalidade é por si só ascendente e descendente: alavanca a mente e a alma aos estados de elevação e evolução e aos de queda e declínio. Para acessar os limites deste estudo, recorrerei à multiplicidade dos estados d‘alma: leituras, experiências, memórias, subjetividades... será um mergulho nas estruturas psico-socio-espirituais desse não-sei-quê essencial que é a comunicação. 4. Estendo as mãos à palavra, companheira inseparável nesta jornada. Talvez ela me ajude a contar o que o silêncio me contou. Estendo as mãos também à você, caro leitor, mirante desta jornada. É interessante cruzar seu caminho assim com palavras e silêncios. Você acha que isso foi uma coincidência? Acho que não. E não acho pelo simples fato de que coincidências não existem. O que existe são concomitâncias! 5. Os silêncios sensíveis da comunicação advém de todas as partes do interior da gente. Parecem estruturas e impressões mitigadas na concomitância dos momentos tatuados no mármore do corpo. Acatará a comunicação as leis da natureza ou as leis dessas concomitâncias? Talvez ambas. Na sua fruição incerta, ela molda variados vasos. E, como diz Drummond, ―os cacos de vida colados formam uma estranha xícara‖. A comunicação vai aos poucos ornando cada um de nós a depender do oleiro, do barro, do tempo, do cozimento, para em seguida, dentro do vaso já pronto, dispor de águas e flores e liquens. Ou não dispor de nada. A comunicação zanguezagueia conosco no arrabalde dos jogos sensíveis e brutais que marcam a nossa pele. Nela, somos pedaços de gente colados, somos esquecimento e desterro, reconhecimento e espelho, falas depositadas dentro de um pote que ninguém sabe ao certo definir o que contém. 6. A comunicação bem que poderia se parecer à relação que há na sensibilidade da pétala ao cair e roçar o pensamento de quem a pensa. A pétala voa direto ao chão com a leveza aérea dos seres alados. Nenhuma palavra pode detê-la, nenhum suspiro suspendê-la. Sem embargo, pétala e pensamento deveriam abrir juntos como se fizessem parte da mesma flor. Perfumar o pensamento, adornar a razão, eis uma fusão sensível necessária à comunicação. Para que o pensamento esteja perfumado e a pétala possa ser pensada é necessário que pétala e pensamento possam ser recolhidos juntos. 7. Algum poeta disse certa vez: ―Não sei colher só sei semear‖. Semear flores e pensamentos, histórias e memórias, prosas e poesias para que o leitor colha a si mesmo no seu jardim interior. Pretensões de quem ama os caminhos para dentro. Tomei certa vez o caminho que subia a montanha da alma. Segui sozinho, acompanhado apenas de um caderno. Tomei a estrada a norte e iniciei a jornada. Este livro é a história desta busca, destas anotações, das paradas, leituras, meditações e perdas. É também a história de uma angústia, o roteiro de uma dor e de um despedaçamento. Ao decidir trilhar a estrada da poesia e da espiritualidade pelo caminho da linguagem não tive como me esquivar do touro branco selvagem que me atacou pelo caminho. 8. Proponho a todos, principalmente a você, uma anamnese da palavra ―comunicação‖. Quando foi que você ouviu falar pela primeira vez dela? É difícil lembrar, mas procure voltar no tempo. Praticamos comunicação antes mesmo de pensarmos nela. Se é que um dia nela pensamos. Nascemos e vemos nossos pais ouvindo música, rádio, lendo jornais, vendo tv, falando uns com os outros. Antes disso, um processo mais profundo de comunicação se estabelece: somos beijados, acariciados, tocados, amados. Paralelamente, outro processo também desencadeia: sonhamos, ouvimos e inventamos histórias, estamos enquanto crianças no limiar entre o sonho e a realidade. É por isso que acho que a comunicação nasce de três processos distintos: do silêncio, do amor e da imaginação. Depois disso, agregam-se outros processos e mais outros e tudo complexifica. É por isso que fiz esta proposta: quais as suas mais remotas relações com a comunicação? Quando criança eu gostava de imitar os locutores de rádio. Tomava uma escova de cabelo na mão e ficava inventando histórias. Depois, aos doze anos mais ou menos, no dia da morte de John Lennon, minha mãe chegou em casa com uma máquina de escrever Olivetti. Meus olhos se acenderam: passei a escrever histórias sem parar, deste então. Quis ser escritor, poeta, coisas assim. Mas e você, como encontrou esta dama, a comunicação? O que você quis e o quer com ela? 9. Será que a comunicação realmente existe, ou estamos falando mesmo é de outra coisa? Quando falamos de comunicação não estamos falando de um ideal desejável, inspirador, um modelo a ser perseguido? Será que não falamos de fato de trocas de informações subjetivas, relações indiretas, transversais, multidirecionais? A comunicação lembra um plasma. Varia na forma e no conteúdo a cada instante. Diferente de outros materiais que variam na forma mas mantêm o volume, o plasma varia sempre. Acho que a comunicação possui as quatro características da matéria: sólido, líquido, gasoso e plasmático. Possui os quatro sabores: doce, amargo, azedo e salgado. Possui as quatro virtudes cardeais: sabedoria, fortaleza, prudência e temperança. Possui também, obviamente, os sete pecados capitais. Além destas, outras são as naturezas da comunicação. 10. Andei por isso mesmo buscando essa natureza em regiões que, pelos menos alguns comunicadores, esqueceram: na poesia e na espiritualidade. Isso porque acho que a comunicação precisa reencontrar a alegria, deixar de lado a sisudez dos produtos, das programações, das teorias, da academia, do mercado e entrar na vida do homem como uma filosofia de vida. A comunicação como belas artes!!! Essa visão vê a comunicação com o que lhe é mais próprio: o conceito aberto, conceptor, concepção pronta a entenderse com outra. Trata-se de uma complexidade sutil, ligações e religações plasmáticas. Mas aprende também as lições dos outros elementos. 11. Vejo a espiritualidade como uma física da natureza e das energias, e a poesia como filosofia espiritual. O além exige sempre mediação (e meditação) de algo e de alguém. Aqui, neste ensaio, a mediação da espiritualidade não aparecerá explicitamente, apenas implicitamente, mas a poesia, não. Essa gritará o tempo todo os seus desassossegos de silêncio. Comecei a escrever estas notas como anotações de aula, o que chamo de inscriações, porque me inscrevo nelas ao mesmo tempo que me recrio também. Todos dizem que não tenho um pingo de juízo por querer estudar a comunicação a partir das matrizes da poesia e da espiritualidade. Dou certa razão aos que dizem isto. Mas não me importo muito. Tratar com o incerto, sempre foi uma forma de avançar nos limites do insólito e da compreensão. 12. Para quem nasce num país como o Brasil, não é muito difícil relacionar incerteza e compreensão. Antônio Alçada Batista conta que em meados da década de cinqüenta do século vinte, o Brasil era o único país da América Latina em que as touradas não haviam dado certo. Um empresário chegou a erguer uma arena, importar bois e toureiros da Espanha e do México e divulgar a novidade por toda a cidade do Rio de Janeiro, onde foi montado, próximo ao Maracanã, o cenário daquela primeira tentativa. O público compareceu em massa, mas após o evento os organizadores decidiram nunca mais realizar uma tourada por estas paragens. É que o Brasil, diferentemente dos outros países, foi o único lugar onde o público vibrava e torcia para o touro, desejando que esse estraçalhasse o toureiro. 13. Compreender os limites da comunicação exige uma certa dose de abertura às possibilidades. Dizem que quando um físico amigo de Niels Bohr, prêmio Nobel de física de 1913, foi até sua casa de campo e viu, dependurada na porta, uma ferradura, disse ao dinamarquês: ―Você, Niels, crendo em superstições?‖. Bohr respondeu que havia ganho a ferradura de presente de um camponês e quando argumentou que não acreditava naquilo, o homem respondeu: ―Não importa, funciona independente da sua crença!‖. 14. Para compreender a comunicação devemos estar abertos também ao encontro, ao amor e à paixão, coisa que muito pesquisador em comunicação não gosta de falar. Dizem que no dia do funeral de são Francisco de Assis o cortejo seguido pelos frades passou defronte o convento onde morava santa Clara. O cortejo parou por um momento ali em frente, e Clara, que já esperava do lado de fora o corpo junto às irmãs, aproximou-se do santo, moveu os lábios até o braço de Francisco e o beijou. De repente, como se fosse beijá-lo de novo, mordeu a pele do braço do poverello, arrancando-lhe um pedaço de carne. Diante de todos, mastigou e engoliu. Depois disso, nada disse e nada mais precisou dizer. Da fúria carnal e espiritual do amor, sabemos todos. 15. Mas a comunicação é também simulacro, reflexo, jogo de cena. E por falar em jogo de cena, uma imagem para pensar a comunicação: No ônibus não havia ninguém de pé. Todos estavam sentados, voltando para casa depois de um dia de trabalho. O final de tarde não anunciava nada além da noite triste. E o ônibus seguia o seu caminho sem novidade. Foi quando num ponto qualquer subiu um vendedor de espelhos, carregando um volume deles amarrados. Como não havia lugar, o homem ficou de pé, segurando os espelhos voltados para nós, os passageiros. E eis que de repente todos começamos a olhar, a nos ver ali refletidos, oscilantes, tumultuados, virando curvas, saindo e entrando em cena, aparecendo e sumindo ali sentados à espera de nos ver aparecer e sumir em imagens acidentadas de nós mesmos. O vendedor de espelhos nos despertou uma imagem em conformidade com o que somos de fato: seres sendo levados de um ponto a outro do itinerário, cuja imagem patética e passiva não faz mais do que oscilar, enquanto espera ela desaparecer de vez, na invisibilidade final. 16. A comunicação é panapaná. De acordo com Câmara Cascudo panapaná é uma migração de borboletas alaranjadas com laivos de açafrão nas asas impacientes, advindas em miraculoso caudal pelo vento nordeste. Panapaná é a forma de quem sabe tocar flores, ondular dunas, caminhar ventos... 17. Tudo isso e um pouco mais. A comunicação não tem fronteira, é ciência aberta, por mais que não queiram, por mais que a queiram mídia impressa, eletrônica, radiofônica, etc, etc, etc. a comunicação em si é o espaço de contato fluído e dinâmico de tudo para com tudo. Este ensaio, não fala diretamente a língua do jornalismo, nem da publicidade, nem das relações públicas, nem de nenhuma habilitação. Fala apenas a língua da linguagem. 18. Se tem uma mídia que me interessa aqui é essa: a língua da linguagem. E o meio que decidi explorar foi o dos elementos: água, ar, terra, fogo. Estes são os médiuns que me interessa aqui explorar. Então vamos a eles. parte I – água os fragmentos da água 1. Nesta Comunicosofia estarei inspirado no próprio Hermes: terei asas nos pés e na cabeça, por isso tentarei pensar e sonhar livremente; serei, como ele, ladrão de palavras, imagens, saberes, utilizarei citações, frases e poemas dos outros para levar até você. Neste Diário Sentimental dos Elementos pensarei a comunicação como uma meditação que busca a sua própria natureza, seja ela natural ou transcendental. Uma introdução à comunicação não descura os elementos que compõem os seus diversos saberes. Busco por isso aqui uma Comunicosofia: a sabedoria do ser-com... 2. Os saberes da comunicação: fragmentos de uma unidade perdida. Para conhecer a comunicação, primeiro ser um Relieur (religador), um Complexeur (tecedor) e cultivar o espírito dos fios e dos nós. E em seu tecer-saber, calar-se. Ruminar atento a polifonia do mundo, sentir o Aberto. Porque é isso o que é a comunicação: fragmento à procura de encaixe, logos da unidade múltipla1 3. Comunicação. Palavra-risco porque palavra-palavras. Também, palavra-guarda-chuva. Além de abrigar seres-conceitos, abriga uma sinfonia de formas e variações. Por isso posso te explicar te decompondo: ação comum; dinâmica de tornar o mesmo, igual, variação comunnis: Comum-idade; Comum-ação... Mas és muito mais, minha senhora, do que isto. És a companheira da unidade: Com-Um, unidade que se faz acompanhar da diversidade. Com-Um recupera o sentido do grego ksyn-on: ksyn [syn] (com) e on (particípio presente do verbo eimi = ser). Com-Um = ser conjuntamente um.2 4. Pelo fato de seres unitas multiplex, me desobrigo a te entender totalmente. Meu acesso a ti é pelas vias complexas. Sempre quando te busco, encontro outra coisa, mais e mais, por isso aprendi que és como um rio que nunca pára de correr. Não tenho dúvida: Comunicação és água! 5. És igual à água, minha senhora. Alimentas o homem, as terras, o gado. És todas as formas em teu estar. Sedenta, estás em tudo, porque tudo fala. Só não podes estar parada, porque quando és água empoçada, apodreces e matas quem de ti se alimenta. Palavra-rio, palavra-curso, palavra-discurso. Comunicação é discurso, estrutura, reunião (dioikounti) das casas que habitamos. Rio que corre penetrando em filetes de água, os canais de todas as casas. 6. Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água quebra-se em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. O discurso de um rio, seu discurso-rio. Chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloquência de uma cheia lhe impondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frase curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a sede ele combate. (João Cabral de Melo Neto)3 7. Teus significados? Correr, fluir, vagar, trazer, levar, nutrir... Não suportas água parada, atacas as paralisias e se te aprisionam, morres. Teu saber resulta dos que andam, dos que estão atentos ao teu apelo. Mas quem não sabe te beber, nem te sabe nadar, esses padecem por te acharem passageira, fugaz, efêmera, mortal. Não conhecem teu substantivo curso. Nem contigo se fazem com. Com curso.4 8. Minha senhora, te partiram em tantas. Desviaram várias vezes o curso do teu rio, te represando ora aqui, ora ali. Ao te deterem, queriam te conhecer, investigar tuas fontes, avaliar a tua propriedade, teu sabor e pureza. E viram que não és tão pura assim, pois arrastas contigo os compostos químicos das terras por onde passas, os lixos, os restos, os dejetos, tudo levas nos caminhos do teu fluir rumo ao mar.5 9. Minha senhora, conheço quase todos os teus nomes. Só não entendo por que tens tantos? Por que és assim? Ou porque sabes muito bem quem és e não temes as máscaras que te colocam, ou porque nunca te encontrastes em um nome, em uma identidade, um modo, um jeito, uma forma. Dize-me, és múltipla ou és uma? Acho que és semelhante a uma alcachofra ou a um imenso cebolão: universos dentro de universos, palavras dentro de palavras, histórias dentro de histórias. 10. Quantas gotas precisamos para explicar a água? Quanta água é imprescindível para encher um copo? Quantos copos são necessários para matar a sede? Cada gota-palavra ajuda a explicar, cada copo-discurso, a compreender, cada sede-ruído, a buscar. A comunicação é uma casa que nunca fica pronta. 11. Para conhecer a comunicação, evitar a água parada. A palavra dicionária que não leva a nenhum discurso. Há um rio que sempre corre em direção a tudo o que comunica. Por isso, para conhecer a comunicação, começar pelo silêncio. Ele é o que tudo pontua no discurso-rio. Mas o silêncio, na verdade, não existe, porque tudo é som, música, melodia. O tempo todo, a todo instante, canta-se um canto quieto. Por isso nós não ouvimos. Mas ao nascer, o sol emite um som; a flor, ao abrir-se, canta a aurora; a cadeira, inerte na sala vazia, dedilha a música da ruína; a caixa oca, sona uma ária desconhecida aos nossos ouvidos. Toda a natureza canta: o desprender-se de uma folha ou um fio de cabelo, o passar de uma nuvem, o pousar de uma pena sobre o chão. A aparente ausência de som é só aparente. Por isso a comunicação é melodia secreta. Um canto e um baile de sentidos, dança e movimento, festa com muitos con-vivas.6 12. O silêncio contém em si burrice e sabedoria. Um ditado árabe diz: ―Todos querem falar, poucos querem pensar e ninguém quer ouvir‖. 13. A fala que mais se aproxima do silêncio é a poesia e a oração. O recolhimento sem palavras para dentro de nós mesmos, deixando que falem ‗outras‘ vozes. Uma inscrição num monastério dizia exatamente isto: ―Só fale se for melhorar o silêncio‖. De que forma então a fala pode melhorar o silêncio?7 14. Inscrição num templo em Brasília: ―Se você tem dificuldades em compreender o que é o silêncio, fique calado, que é o mesmo‖. Fechar a boca faz falar o coração, a mente, a alma. Mas na era da polifonia geral, ninguém quer ficar calado; o silêncio incomoda, agonia, perturba, por isso deveríamos aprender na escola também não só a alfabetização por palavras, mas também por silêncios. De que consiste esta alfabetização? Consiste em aprender a sentir o pensamento, ruminar a arte, perceber a si e as pessoas, e o ambiente a nossa volta. 15. O silêncio que fica entre duas palavras não é o mesmo silêncio que envolve uma cabeça quando cai, nem tampouco o que anuncia a presença da árvore quando se apaga o incêndio vespertino do vento. Assim como cada voz tem um timbre e uma altura, cada silêncio tem um registro e uma profundidade.O silêncio de um homem é distinto do silêncio de outro e não é o mesmo calar um nome que calar outro nome.8 Existe um alfabeto do silêncio, mas não nos ensinaram a soletrá-lo. Freqüentemente, a leitura do silêncio é a única durável, talvez mais que o leitor. (Roberto Juarroz) 16. Mas o que é o silêncio? Existe Tacere = silêncio verbal, diferente de Silere = tranqüilidade, ausência de movimento e de ruído. ―Silere remete a uma espécie de virgindade intemporal das coisas, antes de nascerem ou depois de desaparecerem‖. Silentes são os mortos. O silêncio é a forma mais acabada de se aproximar de Deus e de sua criação. O silêncio coincide com a aparição do verbo: começa a linguagem, o ato da fala (Locutio).9 17. Na visão mística de Jacob Boehme (1575-1624), Deus ―em si‖ é pureza, claridade, bondade e silêncio. Seu silêncio o torna incognoscível, estado sem paradigma, sem sinal. Para manifestar-se, Deus cria um contrarium de si mesmo, representado na Cabala – sistema filosófico oculto hebraico – pelos 7 Sephiroth. Deus começa a falar através de Sophia.10 18. O tema do silêncio está sempre ligado ao da palavra. Todos têm direito ao silêncio, mas nem todos à palavra. Entre os gregos havia uma palavra para indicar esse direito: Isegoria (outro nome para democracia): direito para todos de falar na assembléia. Problema sempre atual, o direito à palavra relaciona-se diretamente ao direito à expressão. E o direito ao silêncio, quem reclama? 19. Silenciar é também uma tática de vida. Para Bacon é uma arte de velar-se ou ocultar-se. São três os graus: 1. homem reservado, discreto e calado, que não se expõe; 2. dissimulação ―negativa‖, parecer diferente do que é realmente e 3. dissimulação ―positiva‖, fingimento, dizer-se diferente do que realmente se é, fingir para passar melhor.11 20. ―Pessoas silenciosas são perigosas‖, diz o ditado. O silêncio é uma arma. Uma forma de ação contra a opressão. Por isso, a Inquisição via no silêncio também uma forma implícita de protesto contra a fé católica. Torquemada (1420-1498) chama de ―heresia implícita‖ a uma linguagem que não se declara a favor da Igreja. O crime era: ―Preso por motivo de implícito‖ ou ―Condenado por motivo de silêncio‖. Santo Agostinho estabelece a obrigação de dizer ―tudo autenticamente‖, seja lá quais forem as conseqüências. 12 21. A franqueza em excesso denota um certo tipo de burrice. 22. Para Tímon, o cético, o silêncio (aphasía: ciência do tacere), é uma atitude psicológica, que diz respeito à alma; uma atitude lógica, que diz respeito à postura diante das ―verdades‖; e uma postura ética, que visa a obter repouso, ataraxia. Recusa-se à fala sistemática e dogmática, mas nem por isso é um silêncio só da boca, mas do pensamento e da razão. 23. Ataraxia: impertubabilidade da alma. O silêncio adquire aqui uma forma mais ou menos estóica, sábia. Bacon conta uma história: ―Conta-se que, reunindo-se um multidão de filósofos em grande pompa na presença do enviado de um rei estrangeiro, cada um se empenhava em ostentar sua sabedoria, a fim de que o enviado, formando a respeito deles a mais elevada idéia, pudesse fazer um belo relatório sobre a maravilhosa sabedoria grega. Contudo, um (Zenão) deles não dizia uma palavra e não apresentava sua parte; o enviado voltou-se para ele perguntou: ‗E o senhor, nada tem a me dizer que sirva para o meu relatório?‘ – Diga a seu rei – respondeulhe o filósofo – que o senhor encontrou entre os gregos um homem que sabia calar‖. 13 24. Maurice Blanchot descreve uma questão formulada por Kafka: ―Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar por calado‖. ―Angustia conhecida‖, diz Barthes, ―creio, pela maioria de nós: preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa, etc, senão vão pensar que estou entediado (o que, no entanto, é verdade)‖. 25. Não é possível amizade quando dois silêncios não se combinam. (Mário Quintana).14 26. Na mística do oriente, no Zen sobretudo, há uma desconfiança em relação à palavra. Entre os 500 discípulos que entendiam bem o budismo e que deveriam ser escolhidos para suceder o quinto patriarca, foi escolhido um que não entendia nada de budismo, que só conhecia o caminho e nada mais. No Tao, Lao Tse diz: ―Quem conhece o Tao não fala dele; quem fala dele não o conhece‖. A iniciação começa por ―não julgar nem falar mais‖. Silêncio total, radical: interior e exterior = silere = silêncio de toda a natureza. O homem seria um ruído na natureza. 27. O Deus do silêncio entre os africanos é Obaluaiê (senhor da terra e da morte, coberto por um filá de palha = mistério, apresenta pelo silêncio o que realmente importa: a vida). O deus do silêncio entre os gregos é Harpócrates, cuja simbologia é uma criança com um dedo na boca. Silêncio, diz Sartre, não é mutismo, mas outro falar. Fala, trampolim para o silêncio; silêncio, trampolim para a sabedoria. Na música tacet ―calar-se‖, em latim, corresponde ao silêncio de um instrumento ou de uma voz como parte de um trecho musical. Taceo = Tacere = tácito (ser implícito, prudente, calado). 28. Samuel Beckett diz que ―somos uma ilha de carne cercada de silêncios por todos os lados‖. Em nosso corpo, habitam muitas vozes, ecoam sons vindos de todas as partes do interior da gente. Só através do silêncio poderemos ouvir todas elas. O ruído e os rumores não facilitam em nada o curso do rio. São pedras que impedem a passagem, mas que nos servem para meditar sobre a força e o fluxo das passagens. 29. Para penetrar nos mistérios da comunicação, silenciar. Sentir o expressar de cada fagulha desse som erudito. A mesma regra vale para aprender sobre os silêncios do corpo e suas falas. Do corpo, primeiro entender nossa identidade Frankenstein. Pois somos realizações de um cientista em seu laboratório. Deve ser por isso que toda comunidade é um laboratório e viver é um experimentarse. Somos misturas de eus = autos, colagens de experiências, imprintings racionais, tatuagens de sentimentos; peles sobre peles, homem-máquina com um coração de carne.15 30. O silêncio do corpo fala por expressões e gestos. Braços cruzados, tez franzida, baton na boca, movimento das mãos, postura ereta... Cada expressão pode indicar uma fala; cada gesto um pedido, uma recusa, uma aceitação; um olhar geralmente diz tudo; uma doença ou uma dor num ponto do corpo é um sinal com muitos discursos. Um silêncio contém mais palavras do que muitas imagens.16 31. O corpo é a primeira comunicação. Tudo se estende a partir dele e a tudo ele acolhe. Para entendê-lo, ouvi-lo. Do pé à cabeça, sinais e códigos ele emite o tempo todo para que ouçamos os seus sussurros. Devíamos conversar o tempo todo com ele, percebendo nele os fios que nos unem a nós mesmos, ao outro, às comunidades e ao invisível. 32. ―A pele é a ponte do sensível no contato com o mundo e pode ser também um abismo. É o nosso órgão mais extenso, é o nosso código mais intenso, um lar de profundas memórias. O corpo sente, toca, fala, comunga. Vida incorporada, corpo da Vida‖. Roberto Crema. 17 33. Pensar o mundo que se sente; fazer raciocinar o coração. Estruturar uma cardiótica: A santidade é uma genialidade do coração. Do coração nasce um mundo novo; o entusiasmo demiurgo do coração superpõe os mundos. A inspiração criadora do coração é a chave para a compreensão dos santos. O capítulo principal de uma cardiótica, que se ocuparia do sentido e da lógica do coração, teria que tratar dos santos e do infinito de seu coração.18 (Emil Cioran) 34. A comunicação mediada pelos sentimentos estabelece vínculos diferentes que a mediada pela palavra. A diferença está no espaço e no tempo. Os vínculos são duradores, as distâncias não impedem a manutenção dos fios. A duração (tempo) e a geografia (espaço) da comunicação determinam a força e a elasticidade dos vínculos, mas são determinados pelas sensibilidades de nossos contatos. Com tatos corporais: a forma de ligar os homens pelos fios do amor. 35. No fundo, as sensibilidades é o que dá suporte às relações. Mas será que existe relação que não abrigue em si, conjuntamente, uma finalidade instrumental e outra comunicativa? Será que as relações devem ser sempre uma coisa ou outra? Através das várias formas de contato amoroso, aprendemos que as relações abrigam em si a diversidade dos fins e dos meios: nem sempre o ar é transparente, nem sempre nevoado. Em todos os casos, estamos sempre a desembaçar vidros e espelhos. Buscamos transparências e uma visão melhor da realidade. Mesmo sabendo que todas as formas estão borradas. 36. Na comunicação, uma parte é forma, a outra conteúdo; uma parte é aparência, a outra essência; uma parte é céu, a outra inferno; uma parte história que dura, a outra história que passa; uma parte é amor, a outra ódio; uma parte simples, a outra complexa; uma parte problema, a outra solução; uma parte encontro, a outra separação; uma parte é análise, a outra é síntese, uma parte prosa, a outra poesia; uma parte mente, a outra coração... Religuemos pois todas as partes e teremos uma filosofia do abraço numa simbiosofia da comunicação.19 37. Toque com suas mãos o seu corpo e o alheio. Haverá aí nova interação. Com a boca, mastigue palavras imaginadas: força, bem, vontade, saúde, paz... E as engula! Com os olhos, aprenda a contemplar o mínimo; com o coração a sentir o máximo. Com os ouvidos, escute os silêncios da tua respiração. Ensine o seu corpo a sair da teoria da comunicação para entrar na empíria das conexões. 20 38. Não existe senão um só templo no universo, e é o Corpo do Homem. Curvar-se diante do homem é um ato de reverência diante desta Revelação de Carne. Tocamos o céu quando colocamos nossas mãos num corpo humano. (Novalis) 39. O corpo do homem, diz Leloup, é o seu próprio livro de estudo. Basta ir virando as páginas, através de uma anamnese física e psicológica para ir encontrando os códigos que o explica. 40. Resumo explicativo do homem, assim o corpo fala: a cabeça é a nossa síntese; os ombros falam de nossa autonomia; o coração da nossa sociabilidade; o ventre é nossa consciência familiar; os genitais revelam nosso inconsciente; os joelhos nosso acolhimento; os pés, a relação com nossa mãe. O corpo é uma caixa de ressonância: a sincronicidade entre nossas memórias e o nosso estado físico. 41. O mais profundo é a pele. (Paul Valéry) 42. Comunicação, és diafragma! Diafragma (phren) que fez nascer o conhecimento que se adquire através dos sentidos, o saber prático, a prudência (phronesis) pois és guerra e paz; sístole e diástole; metáfora e metonímia; abertura e fechamento. Quando és assim, te entendo. Mas não entendo os que te nomeiam apenas como isto ou aquilo, porque em teu discurso-rio, passas por todas as terras. És isto e aquilo: esclarecimento e alienação, ideologia e apatia; massa e individuação; corpo e alma; mente e coração... 43. Delicadeza e sensibilidade: valores esquecidos pelo comunicador. O cinema e a literatura – ou a arte em geral – quando esquecem desses valores, padecem de um mal conhecido: a soberba. Talvez pelo fato de delicado vir de Delicatus = efeminado ele seja deslembrado. Quando o viril cede lugar a um valor feminino, faz com que algumas pessoas não percebam o requinte de qualidade ali presente. Há quem condene a delicadeza, diz Paul Valéry, por achar que ela debilita os ânimos, por achar que o extremo do gosto, do polimento e do refinamento não combina com a força da energia. 21 44. A gentileza faz parte da magnanimidade de quem tem a mente aberta. (Nietszche)22 45. Quando se busca o saber prático da comunicação, a desproteção é quase que absoluta. Vai-se à comunicação com o que se tem. Se se está aberto, ela flui; se fechado, ela empoça. O comunicador é o guardião da interdisciplinaridade. Devia ser também oficiador de uma reflexividade permanente que prolonga e aprofunda os sentidos e os desentidos do mundo. 46. O comunicador é um nexologista. Os medievais diziam que inteligência é a capacidade de pôr em relação. Legein para os gregos, significa prender, tomar. Como metáfora alude a uma conexão entre o que parece heterogêneo. Com prendere = formar nós e laços entre os diversos fios, tecendo uma colcha colorida. 47. Comunicação entendida como a arte de prender e remeter, estabelecer vizinhanças e tecer vetores de sentido, consiste em diminuir o espaço entre nós, a reflexividade e a coisa. 48. Comunicação é heteromobilidade: move algo mais do que atores, situações, mensagens e códigos. Move o próprio espírito do cosmos. Talvez por isso ela abrigue em si uma ecologia da linguagem. 49. Comunicadores são profissionais da arte de estar sempre na realidade. Por isso é bom a advertência: realidade demais mata! Comunicador, não guarda os teus sonhos. Vive-os. A realidade não os tem tão belos quanto a arte!23 50. O fato é um aspecto secundário da realidade. (Mário Quintana) 51. O comunicador é um cooperador. Não faz sozinho, mas junto. Em con junto. 52. Conjunções: pleno e não plenos, convergente-divergente, consoante-dissonante, e de todos, um; e de um, todos. (Heráclito de Éfeso)24 53. Para ser comunicador, tradutor. Toda a comunicação é uma forma de tradução. Deve ser por isto que comunicadores e tradutores são traidores da realidade objetiva: tradutore = traditore. Traduzir é trair? Mas há outro modo de acessar o saber que não se sabe? O original não é, já de alguma forma, tradução? Fale da coisa que está diante dos seus olhos: você está sendo fiel ao original ou fazendo uma leitura sua da coisa? 54. Este é o Discurso, a convergência de muitos cursos, a sobreposição de correntes. Os cursos, ao discorrerem, enredam-se e desenredam-se, convergem e divergem no fluir que se refaz. Traduzir é manter viva a tradição, é impedir que o rio se corte em poços, que estanque, que morra (...). O discurso em curso requer a tradução.25 (Donaldo Schuler) 55. A tradução – dizem-no com desprezo – não é a mesma coisa que o original. Talvez porque tradutor e autor não sejam a mesma pessoa. Se fossem, teriam a mesma língua, o mesmo nome, a mesma mulher, o mesmo cachorro. O que, convenhamos, havia de ser supinamente monótono. Para evitar tal monotonia, o bom Deus dispôs, já no dia da criação, que tradução e original nunca fossem exatamente a mesma coisa. Glória, pois, a Deus nas alturas, e paz, sob a terra, aos leitores de má vontade. (José Paulo Paes)26 56. O tradutor deve escolher bem os caminhos da palavra. A palavra que acesse e participe o real. Do contrário, não conseguirá fazer chegar ao outro (receptor) nem uma fagulha desse real. Os caminhos que conduzem ao nome não seguem sozinhos. Necessitam dos homens para percorrê-los. É Quintana quem diz: ―O triste dos caminhos é que eles jamais podem ir aonde querem‖. 57. O comunicador é o homo legens. Homem-leitura: que lê e é lido, que escreve e descreve, que traduz, recria e comunica a criação, sua ou de outrem. O comunicador deveria ser um criador: fartar-se do inesgotável.27 58. Embora toda tradução seja uma espécie de recriação = imitação = mimetismo = mimesis = comunicação, o comunicador está sempre a criar: a si mesmo, o ambiente, a mensagem, o outro, as trocas e os vínculos. Sua comunicação deve ser um conjunto de movimentos coordenados com vistas à beleza e ao entendimento. Deve dar expressões de dança a todos os pensamentos e relações. E fazer dos atos de linguagem um encontro ajustado. Ou em busca de ajuste. Semelhante a um casal que baila o difícil tango. 59. O baile da comunicação: contatos, experimentos, festa. Não há comunicação que não seja uma troca experimental. Avançar um passo e criar um movimento coordenado. Amar o que vai além do que se é. Comunicação: mostra-me o caminho para mim mesmo: abre uma fenda em minha espessura. Faz-me ir além do meu próprio limite. 28 60. Cada um de nós tem sua maneira de amar e de odiar, e esse amor, esse ódio refletem toda a nossa personalidade. Porém, a linguagem designa esses estados pelas mesmas palavras em todos os homens; por isso, só pôde fixar o aspecto objetivo e impessoal do amor, do ódio e de todos os sentimentos que agitam a alma. (...) Mas, assim como poderemos intercalar indefinidamente pontos entre dois espaços de um móbile sem jamais preencher o espaço percorrido, assim, pelo simples fato de que falamos, pelo simples fato de que associamos idéias umas às outras e que essas idéias se justapõem em vez de se interpenetrarem, falimos na tarefa de traduzir inteiramente em palavras aquilo que a nossa alma sente: o pensamento permanece incomensurável com a linguagem. (Henri Bergson)29 61. No Gênesis, a criação vem após o caos pelo instrumento do verbo. Ela é uma forma de pôr em ordem a desordem pelo ofício mágico da linguagem. A linguagem é por isso uma forma de capturar e arrumar o mundo da desarrumação geral. Às vezes, ela mesma esfrangalha a tudo. A criação é como a fotografia: ―seus olhos emboscam o tempo no degrau de cada minuto‖, (Mia Couto).30 62. A criação é como a fotografia: requer filosofia própria. Quase uma regra de vida. Porque toda arte é um olhar indireto sobre a realidade. Um olhar demiurgo. Para criar, captar o daimon da natureza.31 63. Sugestões ao criador: Separar-se do mundo com elegância; dar perfil e graça à tristeza; ter um estilo só teu; marchar ao compasso das recordações; ir passo a passo para o impalpável; respirar nos limites vacilantes das coisas; renascer o passado em uma inundação de aromas; o odor, mediante o que vencemos ao tempo; o contorno das coisas invisíveis; as forças do imaterial; fundir-se no intangível; apalpar o mundo que flutua no perfume; diálogo aéreo e dissolução em vôo; banhar-se em teu próprio reflexo... (Emil Cioran) 64. Ao simbolizar o fim do caos pela constituição de uma forma, a criação assemelha-se à invenção. A invenção é a percepção de uma ordem nova. A criação, a instalação dessa ordem por uma energia que organiza os dados informes. A criação é o efeito/resultado dessa energia. É a relação invenção-criação que faz surgir um novo tempo. 65. A comunicação criativa é vista na mitologia egípcia por quatro desenhos geométricos: a espiral redonda que indica a energia cósmica insuflada pelo espírito criador; a espiral quadrada que significa a energia em ação no seio do universo; uma nuvem informe, imagem do caos primitivo e o quadrado, que representa a terra e o mundo organizado.32 66. A comunicação criativa nunca cessa. Depois do ato criador a matéria criada apresenta duas formas: a imanente e a transcendente. A imanente é a própria matéria participando da energia criadora e tendendo sempre para formas diferenciadas. A transcendente, a energia criadora continua a sua obra e a mantém na existência, sendo a matéria concebida como uma criação contínua. 67. O simbolismo da criação une-se ao da água e ao da planície. A comunicação criativa participa do espírito do vale. O espírito que recebe todas as águas para formar um único curso-discurso. Nesse sentido, a comunicação acolhe todos os rios. Como a água, pode ser fonte, meio e logos. Fonte por onde jorram as relações, meio de expressão das linguagens e dos sentidos, logos que regenera e vivifica.33 68. Como a água, a comunicação é uma massa indiferenciada, representa a infinidade dos possíveis. Contém o virtual, o informal e as promessas de desenvolvimento. Como a água, a comunicação busca a coesão na adaptabilidade. É símbolo do que se reintegra e do que se inicia. Batiza-se o homem pela água. Não é também através do batismo que o homem recebe um nome?34 69. A água insere o homem na comunidade. A criatividade retira o homem do caos. ―A criatividade de cada um depende da comunidade na qual se insere‖, diz Maffesoli. Já o poeta, Quintana, falando sobre a criatividade aconselha o seguinte: Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida – esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas ressenerem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.35 70. Memória e comunicação: um casamento que redunda às vezes em arte. Olhar para o futuro com o objetivo de criar memória. Olhar para a memória com o objetivo de ver o futuro. 71. A memória e o batismo nos legam um nome. Cai sobre nós uma classificação indelével, definitiva. Agora já não somos nós mesmos, em si, mas uma marca querendo ter identidade. E sobre esta marcanome, colocamos outras marcas: tatuagens, grifes, etiquetas... E se tirarmos tudo de sobre, nome, marca, tatoo, grifes, etiquetas, o que fica? 72. Eu, Etiqueta Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório,36 Um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida Que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro Que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto Que nunca experimentei Mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido De alguma coisa não provada Por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, Minha gravata e cinto e escova e pente, Meu copo, minha xícara, Minha toalha de banho e sabonete, Meu isso meu aquilo, Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso, reincidêndia, Costume, hábito, premência, Indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.37 Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda Seja negar minha identidade, Trocá-la por mil, açambarcando Todas as marcas registradas, Todos os logotipos de mercado. Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia Tão diverso dos outros, tão mim-mesmo, Ser pensante, sentinte e solidário Com outros seres diversos e conscientes De sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, Ora vulgar ora bizarro, Em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer principalmente).38 E nisto me comprazo, tiro glória De minha anulação. Não sou – vê lá – anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago Para anunciar, para vender Em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora Meu gosto e capacidade de escolher, Minhas idiossincrasias tão pessoais, Tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco de roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, Sou gravado de forma universal, Saio da estamparia, não de casa, Da vitrina me tiram, recolocam, Objeto pulsante mas objeto Que se oferece como signo de outros Objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso De ser não eu, mas artigo industrial, Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.39 Meu nome novo é coisa. Eu sou coisa, coisamente. (Carlos Drummond de Andrade). 73. Minha senhora, quando os poetas te cantam, calo-me. Mesmo que cantem tua face sombria. Remexo minha memória em busca das marcas que me anunciam. Antes, eu era tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte, agora, demito-me de ser. Meu novo nome é coisa. Foste tu, minha senhora, que me fizestes assim? 74. O que tem coisificado = reificado o homem? A comunicação em sua forma instrumental ou o uso do jornalismo, da publicidade, do marketing, das relações públicas em sua expressão tecnicizante? Talvez isso seja só mera desculpa. No final das contas talvez o homem é que esteja coisificando o próprio homem. E nada mais. 75. Era uma vez um homem que vivia montado nas costas de outro homem. Andava assim todo o dia, de um lado para o outro. O que ia montado, vivia dizendo para todos: “Oh...Deus, como queria aliviar o peso deste pobre homem!...”, e completava, “menos saindo de cima dele”. Às vezes acho, minha senhora, que os homens são assim, mas que, como não querem admitir que são, usam o teu nome, Mídia, para aumentar ainda mais o peso de nossas mazelas. 76. Que dizer da comunicação que não tem sabedoria o suficiente para superar as suas mazelas? 77. Toda técnica, em sua forma mais elevada, redunda em arte. Toda arte exige uma técnica e não existe elevada arte que não possua em si apurada técnica. Arte vem do grego Techné = conhecer-se no próprio ato de produzir = Poiesis. 78. Assim é a comunicação em sua forma mais elevada: arte. O mesmo que filosofia espiritual. Enquanto filosofia espiritual, o fundamento da comunicação e das relações sociais é o amor. E o amor faz nascer e manter os vínculos elementares e supra-sensíveis. O conceito de amor de Humberto Maturana vale como um conceito possível para a comunicação. ―Encaixe dinâmico recíproco espontâneo que acontece ou não acontece e só acontece quando acontece‖. Em Maturana, o amor é ―congruência estrutural‖, coordenação de coordenação de linguagem. Nasce com ele uma Teoria da Comunicação.40 79. Queria pensar uma Teoria da Comunicação extraída dos elementos da natureza. João José Curvello, quando as águas de março deixavam o verão, falou de uma escola de pensamento assim, chamou ―Escola de Águas Claras‖, em referência a um locus, obviamente, mas também em relação à necessidade dela apreender algo sobre a fluidez de seu conceito, diria até, necessidade existencial e técnica, por um lado e inacessibilidade determinada de forma, porque múltipla e variada, por outro. Um conceito assim nos ensina muito. Turva, fluída e móvel, a comunicação só funciona se se emenda aos fluxos, sejam eles sociais ou não. ―Águas emendadas‖, a comunicação corre em direção ao mar. Qual o seu mar? A totalidade. 80. Símbolo da eficácia no oriente, a água é o que está por toda a parte, no vento, na terra, nas nuvens e no corpo do homem. A água é como a comunicação: uma encruzilhada onde as linhas geográficas e geocognitivas se encontram. A comunicação é um espaço-escola aberto que abraça direções e jornadas diversas e adversas. Penso agora porque as escolas de pensamento ganham nomes de lugares: escola de Frankfurt, de Chicago, de Viena, de Palo Alto, de Birmighan, de Perdizes, de Águas Claras... Deve ser, como diz Heidegger, pelo fato de que o lugar determina a colocação. A fala cantada a partir de Águas Claras então, canta o mergulho nos elementos primeiros da comunicação: a filosofia, a arte, o encontro: uma volta filosófica e poética a uma comunicação como conjunto dos saberes inter-relacionais, mas também o despertar para as essências veladas dos níveis de contato humano e supra-humano. Esse inter da comunicação é o contato entre intimidades, sejam elas racionais e/ou sensíveis. 81. Chico Lucas nunca saiu de sua aldeia. Nunca leu Benjamim nem Adorno e muito menos ouviu falar em Bourdieu. Mas sabe teoria da comunicação como ninguém. Aprendeu a ler o tempo, o espaço, o coração dos homens. Aprendeu a ler os olhos do povo, como diz. Durante a seara e o plantio, nos campos tristes e secos do Rio Grande do Norte, ele conta histórias para os camponeses enquanto eles colhem ou semeiam. Uma dessas histórias ficou na minha memória. ―Caminhava no mato quando, dizia ele, vi duas cobras brigando. Era algo assustador. Uma cena Terrível. De repente, uma mordeu o rabo da outra e ambas começaram a se comer. Vagarosamente, foram se comendo. Até que, quando uma chegou bem perto da cabeça da outra, aprontaram o bote final. Abriram bem a boca e, num lance, se engoliram de uma só vez. Nesse momento, desapareceram no ar...‖. Alguém que estava ouvindo perguntou: ―Mas Chico, como isso pôde acontecer?‖E ele: ―Não sei, só sei que foi assim‖. 41 82. Às vezes acho que a comunicação é pura continuidade: cobra que engole o próprio rabo. Fim e recomeço em si mesmo. Às vezes acho que a comunicação é como uma contenda de significados, dois entendimentos ‗brigando‘ entre si, um alimentando-se do outro, incessantemente. 83. Um alimenta o outro. Mas não é isso o que é o amor? O amor é como a comunicação, tem muitos nomes. Há o amor que suga (Pornéia); o amor que é harmonia (Storgué) o que nos dá asas e estimula nosso libido (Eros); o que é dom, devotamento (Ennóia), o que é gratidão (Kharis), o que é amor que partilha do alimento vital (Ágape); o amor que é amigo da sabedoria (Philia). ―Amar a partir da nossa plenitude e não da nossa carência‖, diz Leloup. Se comunicar também. 84. Amizade Quando o silêncio a dois não se torna incômodo. Amor Quando o silêncio a dois se torna cômodo. (Mário Quintana) 85. Conheço uma mulher que todas as vezes que viaja para o litoral traz água do mar para o seu amor. É que o seu amor é filho de Iemanjá e edificou para a deusa um pequeno altar onde oferta conchas marinhas e água salgada. Portadora de águas oceânicas, ela sabe que esta pequena oferenda alimenta mesmo um ‗mar adentro‘. 86. A verdadeira comunicação se faz com sutilezas. Pena que tenham esquecido a poesia e o amor nas teorias da comunicação. Nessas teorias, há muita ‗massa‘ e pouco homem. Há muita palavra e pouco silêncio. Há muitas certezas e poucas dúvidas. Para lidar com o conhecimento e a comunicação e, principalmente, para fazer pesquisa científica, partir da dúvida. 87. É preciso que eu, incessantemente, mergulhe na água da dúvida. (Wittgenstein) 88. A água me ensina sobre a dúvida da linguagem e do viver. Uma vez, aos dezoito anos, considerei-me morto, afogado sob o mar. Havia tomado umas cervejas a mais e entrei na praia. Nadei até o fundo, aventurosamente. Depois parei, boiei, curti o céu... Quando tentei voltar descobri que havia uma correnteza contrária, a maré estava secando. Quanto mais eu nadava menos saía do lugar. Logo fiquei cansado. Não tinha mais forças, havia engolido água salgada, o que torna nosso corpo pesado. Parei e senti que meu corpo começava a afundar. Distante da praia, vi minhas esperanças irem embora. Afundei. E, quando cheguei ao fundo, tomei pé e subi, alavancando-me. Ao chegar na superfície, punha a cabeça para fora d‘água e respirava um pouco, e logo afundava novamente... Fiquei nesse lento iô-iô, subindo e descendo por muito tempo. Foi quando senti que ia morrer. Por longos minutos, considerei-me partindo... Lembro-me dos meus pensamentos ali: ―estou morrendo!...mas eu não queria...tenho tanto ainda por fazer...‖, pensei. Toda a minha curta vida passou como um relâmpago, um filme diante de mim. Foi quando, ao subir, talvez uma última vez, uma mão agarrou-me, era um surfista. Ele disse: ―ei, cara, você está morrendo‖. Eu não conseguia mais falar, nem os olhos abriam direito. Ele tomou meu corpo, me fez abraçar a prancha e me empurrou na onda que se seguiu. De onda em onda, cheguei na praia. Lembro-me de ter beijado a areia. Lembro-me do vulto do surfista se aproximando para pegar a prancha. Lembro-me tentando – mas sem forças – agradecer a ele. Lembro-me que a água me fez pensar muito sobre o que é não ter certezas sobre o destino. É por isso que até hoje acalento em mim mortes ao meu fluído e incerto viver... 89. Tão frenético anda o mar que não se ouviria o morto bater a porta e chamar... (Cecília Meireles)42 90. No pensamento e na ciência, às vezes até na vida, é melhor ter dúvidas. Gustave Flaubert, diz Juremir Machado, é o modelo de intelectual que privilegia a dúvida à certeza. ―Sabe que em cada verdade habita a possibilidade do não. A certeza gera um sistema autocomplacente que parte da suposta compreensão superior da existência e termina na mediocrização da vida‖.43 91. Também traímos a água A chuva não se reparte para isso, o rio não corre para isso, o charco não se detém para isso, o mar não é presença para isso. Outra vezes perdemos a mensagem, as vocais abertas da linguagem da água, sua inaudita transparência palpável. Nem sequer sabemos beber a transparência. beber algo é aprendê-lo. E aprender a transparência é o começo de aprender o invisível. (Roberto Juarroz)44 92. Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à água: flui. Hoje está um rio. Amanhã estará mar. A água toma a forma do recipiente. Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa. Eulálio será sempre Eulálio, que encarne (em carne), quer em peixe. Vem-me à memória a imagem a preto e branco de Martin Luther King discussando à multidão: “eu tive um sonho”. Ele deveria ter dito antes: “eu fiz um sonhos”. Há alguma diferença, pensando bem, entre ter um sonho e fazer um sonho. Eu fiz um sonho. (José Eduardo Agualusa)45 parte II – fogo o guardador de chamas 1. Da água dos pensamentos ao fogo do coração. Na comunicação, deixamos de lado a comunicação com o lado de lá. Apesar da palavra mídia = médium, separamos as coisas. E as coisas não se separam. Todos somos mediadores entre algo e algo. Quiçá fôssemos entre o Algo e outro alguém. 46 2. Todas as vezes que acendo uma vela sou levado a querer proteger a chama contra o vento. Ponho as mãos ao redor para que ela não se apague. Para que a fragilidade não se perca. Às vezes, tenho vontade de fazer o mesmo com a comunicação, que a qualquer sopro, se perde. Torna-se imposição, coerção, informação autoritária, arrogância. 3. O espírito sempre foi associado à chama. A sarça ardente, em Moisés, as carruagens de fogo, de Elias, as labaredas do Espírito Santo, no Ato dos Apóstolos. O espírito é a linguagem da luz. A comunicação é a resposta do mundo. 4. Ouço a expressão popular: ―Você se queima pela língua‖. E penso nas línguas de fogo do Pentecostes. Penso também nos dragões. Cada ser à sua maneira, o homem, o espírito e os dragões, possuem brasas na boca. Agora entendo porque as palavras aquecem, destroem, infundem vida. Será por isso que a palavra ‗chama‘ é tão próxima da palavra ‗chamar‘? 5. Temos uma chama acesa dentro da boca: a língua. Na cor e na forma, a imagem de uma chama. 6. As línguas são o melhor espelho do espírito humano.47 (Leibniz) 7. Língua, nome, palavra... o homem tem encontrado muitas formas de encaixotar o sentido do mundo dentro de compartimentos e classificações. Por que será que os nomes não são todos os mesmos em todas as línguas? Na verdade, não conseguimos nos livrar do mito de Babel. Instituída a polifonia, agora a palavra tem de alçar – e se contentar – com torres humanas. 8. O nome: esses olhos e ouvidos de todas as coisas. O nome tem também boca, tato, paladar. Tatua uma inscrição ora tribal ora moderna na língua de todos nós. Torna-se um corpo a parte, uma pele a parte, sobre nossa epiderme. Roberto Juarroz, num verso sem título, canta o seguinte: Palavra: esse corpo para tudo. Palavra: esses olhos abertos. 48 9. SÓCRATES: Não estás contente com o fato de que o nome seja definido como uma representação do objeto? CRÁTILO: Estou.49 SÓCRATES: E o fato de dizermos que, entre os nomes, uns foram compostos com o auxílio de nomes mais antigos, e outros são primitivos, não te parece certo? CRÁTILO: Parece. SÓCRATES: Mas, se os nomes primitivos devem ser representações, tens uma melhor forma de torná-los representações do que torná-los tão similares quanto possível aos objetos que devem representar? Ou ficas mais satisfeito com a explicação, dada por Hermógenes e muitos outros, de que os nomes são convenções e que representam os objetos para aqueles que disso convieram e que conheciam os objetos antes? Admites que a correção de um nome consiste nessa convenção, e que essa convenção pode de forma indiferente ser estabelecida como a vemos estabelecida, ou, ao contrário, que é indiferente chamar de grande o que chamamos de pequeno e de pequeno o que chamamos de grande? Qual desses dois modos preferes?50 CRÁTILO: Em todo caso, Sócrates, uma imitação similar é preferível do que qualquer outro meio para representar aquilo que se representa. SÓCRATES: Tens razão. Portanto, para que o nome seja similar ao objeto, os elementos de que se constituirá o nome primitivo devem, por necessidade, ser naturalmente similares aos objetos? (...) Ora esses elementos são as letras? CRÁTILO: Sim. SÓCRATES: Pensas que temos razão em dizer que o “r” tem semelhança com o alento, o movimento e a dureza? CRÁTILO: Penso que sim. SÓCRATES: E o “l” com o liso, o doce e as outras propriedades de que falávamos ainda agora? CRÁTILO: Sim, na minha opinião. SÓCRATES: Ora sabes que para a mesma noção nós dizemos sklêrotês (dureza), e as pessoas de Eretria sklêrotêr? CRÁTILO: Perfeitamente. SÓCRATES: O “r” e o “s” se parecem então tanto, um com o outro? A mesma noção é representada por nós com o “s” final e por eles com o “r”, ou não o é em um dos casos? CRÁTILO: É sim, em ambos os casos. SÓCRATES: Enquanto o “r” e o “s” são similares ou enquanto não o são? CRÁTILO: Enquanto são similares. SÓCRATES: São similares em todo lugar? CRÁTILO: São, ao menos, talvez, para a representação da mobilidade. SÓCRATES: E é também assim com o “l” colocado no nome? Ele não expressa, ao contrário, a dureza? CRÁTILO: Talvez ele não esteja no lugar certo, Sócrates. Como no caso que citavas ainda agora para Hermógenes, retirando e inserindo as letras em seus lugares – e justamente, a meu ver – aqui também deve-se substituir o “r”pelo “l”. SÓCRATES: Tens razão, Mas como! Com a pronúncia atual não nos compreendemos um e outro quando dizemos sklêros (duro), e tu mesmo não sabes neste exato momento de que estou falando? CRÁTILO: Sei, pelo uso, meu caro amigo. SÓCRATES: Mas ao falar em uso, pensas que estás falando outra coisa senão na convenção? Por uso, não estás querendo dizer que eu, ao articular essa palavra, tenho essa coisa em mente, e que tu reconheces que é essa coisa que tenho em mente? Não é esse teu pensamento? CRÁTILO: É SÓCRATES: Conseqüentemente, se a reconheces quando a articulo, obténs de mim uma representação? CRÁTILO: É. SÓCRATES: E com o auxílio de algo que não se parece com o que tenho em mente quando a articulo, já que o “l” não é em nada similar com a dureza (sklêrotês) de que falas. Mas, se assim for, não é verdade que tu convéns contigo mesmo e que a correção da palavra se tornará para ti uma convenção, já que as letras similares e não similares são igualmente expressivas, uma vez admitidas pelo uso e a convenção? Mesmo que o uso não tenha absolutamente nada de convenção, não é mais a semelhança que teremos razão de definir como meio de representação, mas o uso. Pois este faz uso tanto do similar como do dissimilar para representar. E, como estamos de acordo Crátilo – pois, tomarei teu silêncio por um consentimento – a convenção, qualquer que seja, e o uso devem necessariamente contribuir para a representação daquilo que temos em mente ao falarmos. Tomemos, se quiseres, Crátilo, o número como exemplo. Como pensas poder aplicar a cada um dos números em particular nomes que se pareçam com eles, se não atribuíres à tua concordância e convenção uma autoridade decisiva no que diz respeito à correção dos nomes? Eu também, gosto que os nomes sejam tão parecidos quanto possível com os objetos: mas temo que, na realidade, seja aqui necessário, para retomar a palavra de Hermógenes, atirar laboriosamente sobre a semelhança, e que sejamos forçados a recorrer novamente, para a correção dos nomes, a esse grosseiro expediente que é a convenção. Ou seja, a mais bela maneira possível de falar consistiria provavelmente em empregar nomes que fossem todos, ou na maioria, semelhantes aos objetos, ou seja apropriados; e a mais feia, no caso contrário. 10. Comparadas entre si, as diversas línguas mostram que não se chega nunca à verdade pelas palavras, nem mesmo a uma expressão adequada: do contrário, não haveria tantas línguas. A “coisa em si” (seria justamente a pura verdade sem conseqüências), até para aquele que fabrica as línguas, é completamente inabarcável e não vale os esforços exigidos. Ele somente designa as relações entre as coisas e os homens e recorre para expressá-las ao auxílio das metáforas as mais ousadas. Transpor primeiro uma excitação nervosa em imagem! Primeira metáfora. A imagem novamente transformada em som articulado! Segunda metáfora. E todas as vezes, pulo completo de uma esfera para outra esfera, diferente e totalmente nova. Pode-se imaginar um homem completamente surdo que nunca tenha tido nenhuma sensação sonora nem musical: da mesma forma como se espanta com as figuras acústicas de Chladni (1) na areia, encontra sua causa no tremido das cordas e, em função disso, jura saber o que os homens chamam de som, da mesma forma acontece conosco com relação à linguagem. Acreditamos que sabemos algo sobre as coisas em si quando falamos em árvores, cores, neve e flores e no entanto não possuímos nada além de metáforas para as coisas, que não correspondem em nada às entidades originais. Como o som enquanto figura de areia, o X enigmático da coisa em si é tido primeiro como excitação nervosa, depois como imagem, finalmente como som articulado. Em todo caso, não é de forma lógica que procede o nascimento da linguagem e, se todo o material dentro do qual e a partir do qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e depois constrói, não provém de nenhum lugar, também não provém de forma alguma da essência das coisas. (Nietzsche)51 11. “É uma glória para ti!” “Não estou entendendo o que queres dizer com glória”, respondeu Alice. Humpty Dumpty sorriu com ar de desdém. “Naturalmente que não sabes, enquanto eu não te disser. Eu quis dizer: é um argumento decisivo para ti!” “Mas „glória‟ não significa „argumento decisivo‟”, retrucou Alice. “Quando utilizo uma palavra”, declarou Humpty Dumpty com gravidade, “ela significaexatamente aquilo que decidi que ela significaria – sem mais, nem menos”. “Mas o problema”, disse Alice, “é saber se podes fazer com que as palavras signifiquem coisas diferentes”. “O problema”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem é que manda, só isso!”. (Lewis Caroll) 52 12. O nome parece sempre precisar de alguém para anunciá-lo. Ele parece não saber pronunciar a si mesmo. Por isso é ao mesmo tempo virtude e defeito proverbial. É extravagante, mas segue regras. O extravagante por sua vez se torna habitual, mas não há motivo para crer que se torne vulgar ou ordinário. Os nomes fotografam figuras espaciais e imaginais. São objetivos e necessários, parecem casuais e despersonalizados, mas possuem algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico. Os nomes conseguem investigar e descobrir coisas. Aprisionam palavras, são cômicos e possuem falas, crescem, possuem espelhos, são numerosos, impossíveis de contar. São de espécies: os que nos acompanham e os que encontramos ao passar pelos mais variados espaços. O nome dá forma a tudo o que contém. Os nomes trazem consigo fragmentos, figuras, mas também ocultam e obscurecem os mesmos. Estão fechados em torno de si. Têm uma história atribulada; decaem e reflorescem, repovoam-se, adequam-se às exigências; são estranhos, incongruentes, usurpadores, velozes, adaptam-se. Reconstroem coisas, mudam com o costume e as populações, sofrem deteriorações, são compactos como um ser vivo. Possuem respiração, odor. Perdeu-se a ordem de seu seqüenciamento. Podem ter significado uma coisa antes e, hoje, significar outra. Possuem história. 13. O nome gosta de andar encangado com outro. A regra é sempre misturá-los e tentar recolocá-los num lugar. O nome também possui música, explosão, incêndio, alarido. O nome magnetiza os olhares e os pensamentos. Visto de dentro é uma cidade. Mas o nome muda à medida que dele se aproxima. É distante, é variado e diz muitas coisas, de maneiras diferentes. 14. Acredito que nós temos mais idéias do que palavras. Quantas coisas sentidas que não são nomeadas! Tem um sem número dessas coisas na moral, na poesia, nas belas-artes. Confesso que eu nunca soube dizer o que senti na Andrienne de Térence, nem na Vênus de Médicis. Talvez seja a razão pela qual essas obras sempre me são novas. Não se retém quase nada sem o recurso das palavras e as palavras quase nunca bastam para dizer com precisão aquilo que sentimos. (Denis Diderot) 53 15. A arte pode dizer talvez com precisão aquilo que sentimos. É por isso que arte e gosto podem ser definidos pelo nome de sensibilidade. 16. Quando, na alma, desperta-se verdadeiramente o sentimento de que a língua não é um mero instrumento de comunicação visando à compreensão recíproca, mas um verdadeiro mundo que o espírito, pelo aprimoramento interior de sua própria força, deve necessariamente colocar entre si e os objetos, então a alma está no verdadeiro caminho de ter sempre algo mais a encontrar na língua e de sempre colocar nela algo mais. (Wilhelm von Humboldt)54 17. Seguirei eliminando as palavras más que pus em meu todo, ainda que meu todo fique sem palavras. (Antonio Porchia) 18. O papel do ferreiro junto ao fogo, forjando a liga de metal, técnico de instrumentos para o homem, lembra algum tipo de comunicador, certos técnicos dos ofício de forjar realidades, e fazer a ligação entre o homem e o mundo. Meio Hefestos, ele guarda nas profundezas os mistérios do que forja, a mística da transformação. 19. Há certamente algo inexpressível. Ele se mostra, é o elemento místico. Aquilo que não se pode falar deve-se calar. (L. Wittgenstein)55 20. Apagar uma chama me deslumbra mais que acendê-la. (Roberto Juarroz)56 21. O homem, ponto luminoso de sua própria noite, quando quer apagá-la, se extingue. (Antonio Porchia)57 22. Atiço em mim uma chama... O meu coração é o lar onde mora a comunicação. A boca fala o que o coração sente. Como o fogo, a comunicação é o motor da regeneração periódica. Deve ser por isso que a palavra ‗fogo‘ e a palavra ‗pureza‘ têm o mesmo nome em sânscrito: porque as chamas têm a capacidade de levar todas as coisas a seu estado sutil. 58 23. Fogo interior, conhecimento penetrante, iluminação. As chamas buscam sempre o alto, enquanto busca. A comunicação por sua vez busca todos os horizontes: o alto, o baixo, os lados, o dentro. A comunicação é como o sol: atiça seu calor em todas as direções. A comunicação: ou é penetração ou absorção ou destruição. São essas três naturezas da comunicação a luz do fogo. 24. A comunicação pela poesia e pelo coração. Coração em chamas: calor humano, simpatia, amor à natureza, alegria. Proponho uma nova e uma velha teoria da comunicação: o mundo como poema. Em que o seu sistema é a palavra poética tornada ação concreta na vida, com vistas à sabedoria ou a uma ética espiritual. Proponho a comunicosofia: a prática de viver o mundo como poema vertical. 25. Penetra surdamente no reino das palavras.... Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? (Carlos Drummond de Andrade) 26. Onde nasce a comunicação? Primeiro, ou veio o caos, ou o silêncio, ou um leve ruído musical, ou o vazio... A força da linguagem reside nos ‗ocos‘ da linguagem. Primeiro, creio, veio o silêncio-poema, depois a prosa-palavra. Reside aqui uma ontologia da comunicação. A palavra tem esse poder misterioso de transformar o que não existe em realidade e de dar aparência de irrealidade ao que realmente existe. 27. Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador? E, ao mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na relação entre os homens e as divindades, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental de revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a palavra, o discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da falsidade? Como a linguagem pode mostrar e esconder? (Marilena Chauí) 59 28. O mundo é um poema que se declama sem cessar. Poema terrificante, destruidor. Poema em forma de prosa; prosa vazia; vazio de pensamentos e sensibilidades. O mundo é um poema escrito e guardado. Poema oculto, mágico, encantador. Poema vertical que revela ao homem-mundo, ao mundo-homem, a chama que ele é. 29. Heráclito comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar. Transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça, a fumaça em ar, o ar em vida, a vida em morte, o mundo nunca pára de poemar. O dia se torna noite, o verão vira primavera, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no seu contrário, num fluxo perpétuo. 30. A palavra tem mil faces, disse Drummond, assim como a comunicação. Pharmakon, em o Fedro de Platão, que significa farmácia, poção, diz que a linguagem é remédio, veneno e cosmético. Remédio porque através do diálogo, do conhecimento, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros. É veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar fascinados, o que vimos ou lemos. É cosmético quando maquia – para o bem e para o mal – a realidade.60 31. Dizem que a comunicação tem mil e uma utilidades. Se tem mesmo, não usa nem dez por cento delas. Centrou seu universo na mídia de massa e esqueceu do resto. A comunicação é uma porta aberta por onde o mundo passa. Mas quase não passa ninguém. A maioria acaba vendo o mundo da janela-datelevisão. E o mundo não passa na televisão, no rádio, no jornal... O mundo não passa. Nós é que passamos. Para que serve tanta mídia-de-massa, afinal? Estar mais informado é o mesmo que ser compreensivo?61 32. Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias, anúncios, fotografias, opiniões...? Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra: e o sol empalidece suas letras infinitas. Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens? Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu. De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa; de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado. Aqui, toda a vizinhança proclama convicta: “os jornais servem para fazer embrulhos”. E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo. (Cecília Meireles)62 33. Ao ver o mundo passar pela janela, o homem empobreceu a experiência. Parece que viramos, com a tv, definitivamente, sedentários. Deixamos de ir-e-vir. E o ir-e-vir é a própria comunicação. Ir ao deserto ou à floresta ou a um museu não é o mesmo que ver pela televisão. Vir conhecer gentes, contar e ouvir histórias, vivenciar realidades, experimentar a vida deixou de ser prazer, aventura. Perdemos com a experiência, nos tornamos mais pobres.63 34. Releio o poema Jornal, Longe, de Cecília Meireles. Ela bem que poderia ter dito: ―que faremos com a mídia‖, observaria ela lá na terceira estrofe, ―longe do mundo e dos homens?‖. Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu. 35. Para expressar-se, o poema do mundo exige uma linguagem. De forma simples, podemos dizer que ―a linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos‖. Como capacidade de expressão dos seres humanos e dos animais, ela é natural. Os homens nascem com uma capacidade (aparelhagem) física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se por palavras, mas as línguas são convencionais. Surgem das condições históricas, geográficas, econômicas e políticas. São fatos culturais. 64 36. Temos também as perturbações na linguagem: afasia, agrafia, surdez verbal e cegueira verbal. A afasia é a incapacidade para usar e compreender a palavra; a agrafia é a incapacidade para escrever ou escrever determinadas palavras; a surdez verbal é ouvir palavras sem conseguir compreender, e a cegueira verbal é ler sem conseguir entender. 37. Pra que falar? Mas, para que calar? Não existe ouvido para nossa palavra. Mas tampouco há ouvido para nosso silêncio. Ambos se alimentam unicamente entre si. E às vezes intercambiam suas zonas, como se quisessem amparar-se mutuamente. (Roberto Juarroz) 38. São quantas as faces da linguagem? Os gregos, para referir-se a ela tinham duas palavras: mythos e logos. Mythos é a palavra ficcional, mítica, mágica, religiosa, artística. Logos é a palavra técnica, conceitual, causal, metódica, demonstrativa, científica. Lemos em Chauí: ―Logos é uma palavra síntese de três idéias: fala/palavra; pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, nexos e ligações universais entre os seres). É a palavrapensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra-conhecimento de alguma coisa: o ‗logia‘‖. O poder da palavra desenvolve o conhecimento racional e forma os conceitos e idéias. 39. As palavras como os cristais têm faces e gêneros de rotações com propriedades diversas, e as luzes se refrangem segundo os cristais-palavras são orientados, segundo as lâminas e as polaridades são talhadas e sobrepostas. (Ítalo Calvino) 40. Vivemos num tempo em que as múltiplas faces da palavra são cada vez mais exploradas, todas as nuances, os prismas, os pontos de vistas. Fala-se na televisão, no celular, no rádio, nas ruas. Há um excesso de falas e ainda assim nem todos têm direito à palavra. O que está acontecendo? O que houve com a comunicação? em que uma conversa é quase um delito, porque estamos rodeados de tantas coisas ditas? (Francis Ponge) 42. A palavra, a falada, mas sobretudo a escrita, pode ser um perigo para o homem e a memória. Essa era a advertência de Platão, em o Fedro. Sócrates narra ao discípulo a visita de Thoth, o deus das invenções a Thamus, rei do Egito, (Thoth é o mesmo Hermes para os gregos). Dentre as suas invenções, expõe a escrita, apresentando ao rei as suas vantagens. Thoth fala sobre a escrita como uma receita segura para a memória e a sabedoria dos egípcios. O faraó posiciona-se contrário à invenção, argumentando entre outras coisas a diferença entre mnemose (memória) e anamnese (recordação). A escrita, como toda tecnologia, tem suas vantagens e desvantagens. atribui-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a adquirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus recursos internos. O que você descobriu é a receita para a recordação, não para a memória ... (Platão) 44. Mas nem só de deuses vive a comunicação. Devemos lembrar também os demônios. O demônio da comunicação é Astharoth. A ele foi dado pela Divindade a missão de ser o canal de comunicação entre os homens e os demônios, por isso todos os tratados de demonologia o descrevem como solícito, educado, gentil e sábio. Tem como símbolo, uma espada voltada para baixo, como sinal de justiça que se faz presente, enquanto seu irmão, Asmodeo, tem a espada voltada para cima, como símbolo da justiça executora. 45. Astharoth é andrógino. Sua face feminina é Astarte, a masculina é Astharoth esmo. É o único demônio que possuí o Asth em seu nome, prefixo de astral. Foi conhecido na antiguidade como Dogon, cultuado na Síria Salomão ergueu um templo em sua homenagem. Esse demônio participa com Hermes e Thot de uma mesma identidade energético-comunicativa, só que do lado oposto. Ele é, como dissemos, canal por excelência para os homens de todos os conhecimentos, divinos e diabólicos, por isso mesmo é sedutor. Seu dia é 16 de agosto. 46. Para compreender os efeitos maléficos da mídia de massa, deveríamos entender melhor as ações dos demônios? Não se trata de diabolizar a mídia. Não mesmo? Trata-se apenas de entender que a mídia tem muito a ensinar aos demônios. Ou será o inverso? 47. A luz do écran, a voz do telefone, a notícia ―quente‖ do jornal, a última campanha da Coca, etc, são fogos que aquecem a alma solitária do homem. São mais do que isso, na verdade, são distrações, companhias, sortilégios. Não dá mais para ficar sem. Não dá mesmo? Desde 1998 não vejo mais televisão sistematicamente. O que aconteceu comigo? Não me senti desinformado em nada, nem das novelas. Consegui dedicar muito mais tempo às minhas leituras, ao cinema, ao teatro, a música e, principalmente, a mim mesmo. Para isso, me liguei em todos os canais da existência, vi que cada coisa guarda uma mensagem, um sussurro, uma notícia. 48. Cada coisa é uma mensagem, um pulso que mostra, uma escotilha vazia. Mas entre as mensagens das coisas vão-se desenhando outras mensagens, ali no intervalo, entre uma coisa e outra, conformados por elas e sem elas, como se o que está decidisse sem querer o estar daquilo que não está. Buscar essas mensagens intermediárias, a forma que se forma entre as formas, é completar o código. Ou talvez descobri-lo. Buscar a rosa que fica entre as rosas. Ainda que não sejam rosas. (R. Juarroz IX,11) parte III – ar o colecionador de ventos 1. De todas as forças, o ar talvez seja a que mais me inspira. É que ouço o vento falando comigo desde criança e, ao longo dos anos, travamos um diálogo sem fim... Ele me sugere temas, me conta histórias, me aconselha, me ensina a voar... Uma vez, quando criança, correndo na praia, uma lufada de vento me nocauteou. Caí derrubado por ele. Levantei-me da areia pensativo. Desde então, respeito a leveza, sou esbofeteado por vozes e vazios, abençôo-me do invisível. 65 2. Sinto no ar, o sopro das narrações. Contar histórias é uma forma de comunicar ao homem a vida humana. Ler e ouvir histórias é uma singela forma de ser feliz; é isso que alguns chamam de felicidade literária; aquilo que o mito faz brotar em nós quando é semeado nas terras do ar: nos vales da imaginação. 3. Em diversas tradições e culturas, a comunicação humana tem sido associada às divindades e sobretudo, às forças da natureza. Mitos astecas, gregos, escandinavos, egípcios, latinos, orientais, africanos, entre outros, dão conta da presença de figuras responsáveis pelo fluxo de informações entre homens e deuses ou, de modo mais complexo, entre natureza e cultura. 4. A presença de seres geradores de elos e contatos, promotores de vínculos, responsáveis por caminhos, revela um papel crucial dessas divindades no imaginário humano, tendo em conta que o papel desempenhado por eles, hoje, no estudo das linguagens e da própria cultura, não nos permite relegar a segundo plano a dimensão antropocósmica. 5. Levar a comunicação é o mesmo que levar a luz? Prometeu, espécie de repórter divino, portou e comunicou o fogo ao homem, por conta disso morre e renasce todos os dias, tendo seu fígado devorado pelos abutres. 6. Odin faz dos corvos os seus repórteres. Quando ele quer manterse informado, manda-os sobre a terra e eles trazem notícias do tenebroso mundo humano. Repórteres-corvos. Alguém vê nisso alguma semelhança? 7. A linguagem dos mitos: a velha e a nova gramática da comunicação. Enquanto conhecimento e narração, os mitos são uma nova forma de compreender a comunicação. 8. No mundo atual, não é comum aceitar o risco de pensar conjuntamente antropologia, espiritualidade, ciência e filosofia, tendo o mito como motor-metáfora do conhecimento. Tal risco é mesmo um dos desafios postos ao pensamento para o século XXI. O século XXI, para o prêmio Nobel, Ilya Prigogine, ―ou será espiritual ou não será nada‖. O espiritual aqui deve ser entendido como abertura (daisen) antropológica do homem a uma dimensão que, historicamente, foi dogmatizada e mistificada. 66 9. O pensamento não pode mais estar preso a dogmas, sejam eles acadêmicos, administrativo-empresariais, religiosos ou econômicos. A ciência, arvorando-se como fiel depositária do pensamento lógico-conceitual, encastelou-se em paradigmas mecanicistas e em teorias incomunicáveis, malgrado todos os esforços cognitivos e ideológicos empenhados na religação dos saberes. O continente das ciências humanas ao ser desconectado das ciências da natureza produziu, numa e noutra parte, uma fragmentação disciplinar de proporções assustadoras. O desafio da religação de saberes consiste, para o século, no próprio itinerário a que se destina nossa teoria do conhecimento. O contrário desta hipótese, ou a contínua parcelarização dessas áreas, só acentuaria o que hoje já é perceptível, principalmente, nas instituições acadêmicas e culturais: a fragmentação do conhecimento e sua hiper-especialização. 10. Criticar os efeitos perversos que a cisão entre as culturas científica e humanista foi capaz de provocar na sociedade e na cultura requer uma atitude também crítica, mas antes de autocrítica. A aproximação entre ciência e espiritualidade corresponde, além de uma busca poética, por facilitar o diálogo transdisciplinar entre campos, a uma revisão mesmo da epistemologia contemporânea, ―uma reforma de pensamento‖, nos dizeres de Edgar Morin. Requer uma re-leitura aberta e complexa do conhecimento produzido pelo conjunto dos saberes planetários.67 11. Constata-se que os sistemas culturais, além de serem constituídos por padrões, normas, mitos, valores, ordens e imagens, exibem uma ampla zona obscura antropocósmica que vitaliza subjetividades nômades, produzindo comunicações dos mais variados matizes, que retroalimentam explosões imaginais. Tal constatação nos faz perceber que a presença do mito na contemporaneidade não é apenas mera figura alegórica. 68 12. Infelizmente, o mito deixou de ser visto, até certo ponto, como fonte de compreensão do humano. Hoje, o mito nos coloca não apenas o problema do conhecimento metafórico e narrativo – como uma das vias de entrada ao pensamento científico –, mas o problema da sabedoria e da abertura antropocósmica. George Gusdorf já falava da necessidade de restituir através do mito a ―unidade perdida‖ do homem com a natureza. Os mitos, diz ele, são registros da experiência unitária do homem em sua plenitude. 13. O mito é algo capaz de agir transformadoramente sobre a realidade humana, impregnando as linguagens, o senso comum, a sensibilidade, as narrativas, afirmando-se constantemente como uma conduta de retorno à ordem, princípio equilibrador da psique, espécie de formulário da reintegração. Alceu Amoroso Lima adverte que se segue à criação de um mito o surgimento de uma mística, isto é, o aparecimento de uma ordem implicada (David Bohn) voltada para o diálogo numinoso e harmonioso com o mundo, um mergulho radical e profundo nos sentidos e narrações ocultas que a natureza constantemente nos oferece. Mística aqui entendida também no sentido de um conjunto aurático de valores e atitudes.69 14. Com o desenvolvimento da filosofia pós-socrática e, séculos depois, com a separação do Estado da Igreja e a conseqüente secularização do pensamento, a consciência reflexiva fez parecer que havia eliminado de vez a consciência mítica. Edgar Morin irá dizer que, tentando se livrar do mito, a ciência acabou mitificando a si mesma. Parafraseando Leszek Kolakowski, a questão hoje é saber se a sociedade e a cultura podem durar e sobreviver sem se enraizar no caos organizador do mito. Regis de Moraes vai mais além e entende que é justamente na consciência mítica que sobrevive, na cultura e na subjetividade humana, a fonte do sagrado. 15. O sagrado busca devolver o universo cósmico, reunificado por uma inteligibilidade não racionalista, mas fideísta. Uma nova intuição mágica reinventa a realidade para grande quantidade de seres humanos que, ao contrário de passarem a enxergar outro mundo, enxergam o mesmo mundo de uma forma diferente – a partir de um ângulo novo. (Regis de Moraes)70 16. O sagrado só sobrevive entre os que lhe são sensíveis, e para tanto, exige a reprodução contínua de mitos e ritos que lhe dão forma no meio sociocultural. Reside no mito, a meu ver, uma racionalidade ainda pouco explorada. Para além do uso ambíguo que se faz da palavra, assinalando uma dupla valorização para ela, ora negativa, ora positiva, ora engano e mistificação, ora sublimidade e encanto, o mito propicia um deslocamento da razão para os limites da sabedoria. Uma das maiores aquisições do pensamento contemporâneo foi a consciência dos limites. Frente à destruição acelerada dos recursos naturais do planeta, o homem pouco a pouco vem tematizando sobre a importância da sabedoria. 71 17. A sabedoria, cujo coração é mais do que inquieto, foi e é banalizada por todos os lados. Virou auto-ajuda aqui, holismo destituído dos princípios de contradição ali, ganha-pão de editoras e escritores acolá. Entre os gregos antigos, a sabedoria era um conjunto de regras para uma vida que se poderia chamar sábia. Na Idade Média, o termo foi vulgarizado pela Igreja Católica, especialmente a partir do século XV, quando virou sinônimo de prudência e moderação. Sabemos que, desde o início, a filosofia grega está ligada à sabedoria, pois, na origem da palavra, aparece o termo Sofia (sabedoria). Necessária e impossível, a sabedoria, historicamente, nunca dispensou de sua racionalidade a lógica dos mitos. Em nenhuma cultura as narrativas – fonte de todas as sabedorias – foram deixadas de lado ou tidas como dimensão de uma consciência não-reflexiva. Ao contrário, vista a partir da cultura, a noção de sabedoria está arraigada nos saberes da tradição, nos ditos populares, na oralidade, nos contos ancestrais, passados de pai para filho. Quem arriscaria dizer que não existe sabedoria na poesia e na filosofia? Deste ponto, o que são elas senão parte de uma grande narrativa? 18. O filósofo-poeta Heráclito disse: ―Homens que amam a sabedoria precisam ter muitos conhecimentos‖. E o conhecimento aqui não é meramente formal, mas sobretudo imaginal. Interessante notar que homens que amam a sabedoria denota claramente uma referência aos filósofos. São eles que necessitam ter conhecimentos, de modo que todo aquele que busca a sabedoria e, por conseguinte, a ama, é um filósofo. O poeta-filósofo Rimbaud, por sua vez, disse: ―Concluo como sagrada a desordem de meu espírito‖. Ele compreendeu que na desordem há algo que reorganiza a dimensão sacra da vida, algo que tira a insipidez mecânica da existência e a conduz para um patamar mais aventureiro. Espíritos de coração inquieto como Nietzsche, Hölderlin e Van Gogh, todos eles partícipes de uma consciência mítica, viveram os limites da própria razão humana: entre a loucura e a sabedoria. 19. Um dos mitos que ‗governa‘ a noção de sabedoria é o mito de Hermes (para os gregos) ou Thoth (para os egípcios), isso porque, para alguns estudiosos, o deus egípcio Thoth possui os mesmos atributos da figura do Hermes grego, sendo este apenas representado de outra forma. No Egito, Thoth é representado ora com as feições de um babuíno, ora com as feições de um íbis, cujo bico encurvado lembra uma lua crescente. Por esse motivo, ele é, no Egito, o Deus da Lua. Além disso, Thoth possui muitas outras atribuições: é senhor da sabedoria porque é o medidor dos tempos, tem a capacidade de medir os céus, compreendendo as distâncias, os cursos, as constelações e a influência delas em nossa vida. Por isso, através do curso das estrelas, ensinou ao homem a astronomia, o cálculo de medidas e com isso, dizem, inventou a matemática e a geometria. 20. Em Thoth já podemos ver a intrínseca relação do conhecimento científico (através do ensinamento das leis que regem a natureza) com os mitos e a sabedoria. Thoth dialoga com os humanos e lhes ensina, além disso, como usar os medicamentos, a arte de trabalhar os metais e sobretudo a arte da música (a ele é atribuída a invenção da lira de três cordas). A relação desse mito com a racionalidade humana não pára por aí. Entre os egípcios, existe a crença de que Thoth compreende todos os mistérios da mente humana, porque foi ele quem ensinou o homem a pensar; ele conhece todas as articulações criativas da linguagem. Assim, ensinou os homens a organizarem os seus pensamentos através da escrita, estruturando tudo numa linguagem apropriada. A ele é atribuída a invenção de todas as palavras que existem. A linguagem é um sistema classificatório e, ao criar os hieróglifos, Thoth propiciou também a invenção de sistemas de numeração. Como deus da escrita e da ciência, ele tornou-se, na história egípcia, o senhor de todo o conhecimento, sendo que, para aquela cultura, o conhecimento não está dissociado da magia. Ali, todo e qualquer escriba, antes de redigir qualquer texto, deveria endereçar uma oração ao deus: ―Oh, Thoth, proteja-me das palavras vãs. Seja tarde minha manhã. Es uma doce fonte para o viajante sedento no meio do deserto. Ela é lacrada para o loquaz e aberta para o silencioso‖. 21. Em Roma, também na Antigüidade, as estâncias dedicadas à contemplação, estudo e leitura nos palácios imperiais eram denominadas de Hermeum, em homenagem ao deus grego Hermes. Os velhos sábios descreviam Hermes como o ―coração da luz‖, a ―língua do criador‖, o escriba capaz de redigir as narrações dos deuses. Na Grécia, ele era representado ora com asas nos pés, ora com asas na cabeça, ágil e hábil negociador. Hermes sempre me pareceu o deus das conexões, símbolo da inteligência criativa e realizadora, capaz de esclarecer, mas também de perverter através do exercício da mediação, dos vínculos, da comunicação e do silêncio. Por ser ele o senhor das encruzilhadas, pode conduzir viajantes e leitores tanto ao caminho da farsa e da ilusão quanto ao do esclarecimento e da revelação. 22. Deus de olhar claro, observador crítico por excelência, Hermes é, sabidamente, no panteão grego, o mensageiro dos deuses, o que lhe valeu o patronato da eloqüência e da comunicação. Conhecido pela discrição, consegue logo ao alvorecer penetrar os interstícios da vida humana com sua natureza plástica, mutável, ambígua e leve, conseguindo ser ao mesmo tempo atraente e complexo. Platão diz no Crátilo que ele se relaciona ao discurso (logos), que possui características de intérprete (hermeneus) e de hábil comerciante. Diz também que ele utiliza as palavras com rara maestria, geralmente para fazer ficção ou enganar os outros. É ainda um deus ladrão, que rouba informações e saberes para pô-los em circulação, visto que todas as suas habilidades relacionam-se, como vemos, ao poder do discurso. 23. Por dominar a retórica e os diversos tipos de linguagem é que Hermes valoriza sobretudo o silêncio. É desse modo que ele desenvolve uma outra capacidade sua: a alquimia. O poder de transformar por conta própria uma coisa em outra, de subverter a ordem natural das coisas, para refazê-las artificialmente é um dom concedido somente a quem possui a pedra filosofal ou, quem sabe, um modus operandi comunicacional próprio. É no silêncio e na meditação que ele encontra a justa medida para as suas ações, sejam elas de encantamento, transmissão, falseamento ou mistificação. 24. A semelhança de Hermes com o universo da comunicação e da literatura vai além. Ele exerce o papel de guia, que auxilia navegantes e andarilhos na melhor rota a seguir, engendrando por isso três funções básicas: narração, explicação e revelação. Tem a missão de pôr a descoberto, da melhor forma possível, o comércio de informações que circulam no mundo, nem que para isso tenha de utilizar-se da astúcia e de subterfúgios. 25. Hermes é mestre em um certo tipo de saber, que podemos chamar de transdisciplinar, por conseguir intermediar e dialogar com todos os conhecimentos, sem privilegiar este ou aquele ou, ainda, especializar-se num único. É ele também quem estabelece os nós sígnicos com o mundo, quem institui – dirá Italo Calvino – as relações entre as leis universais e os casos particulares, entre os deuses e os homens, entre as formas da natureza e as formas da cultura, entre os objetos do mundo e todos os seres pensantes. 26. Freud, Jung, Marx, Tales, Nietzsche, Spinoza, Vico, Montaigne, Rousseau, Chardin, Einstein, Newton, Descartes, Bergson, Hegel, Deleuze, Cioran... ao que parece, não houve pensador que não tenha utilizado os mitos como fonte de apoio, afirmação, negação ou crítica à formulação de seus pensamentos. Os mitos estão por todas as partes, impregnando a racionalidade humana. 27. A busca pelo mito como suporte ou crítica tem razão de ser. Como são lentes bifocais, os mitos podem ajudar o homem a ver melhor a realidade que o cerca assim como podem torná-lo mais míope. Contudo, a meu ver, os homens que buscaram o conhecimento e a sabedoria não relegaram os mitos a um segundo plano. A capacidade de interpretação e reinterpretação que um único mito porta consigo leva por vezes o seu intérprete a descobertas inesperadas. Os mitos nos ensinam que não existe um programa de sabedoria, uma fórmula mágica a cumprir, e pronto: eis o sábio! O que existe é uma busca, um esforço, indícios de que a sabedoria pode estar nos caminhos da ética, de uma auto-ética ou de um antropoética. A antropoética implica a aceitação da sensibilidade, da leveza e da delicadeza como condições primeiras à sua senda. Exige evitar a baixeza, pulsões vingativas e maldosas, supõe autocrítica, auto-exame, mito-análise, aceitação da crítica do outro, aceitação de si, exercício da compreensão. 72 28. Se existe um centro na sabedoria, deve orbitar em torno dele um número exacerbado de virtudes e valores, dos mais variados tipos, com os mais variados nomes, contando as mais variadas histórias. Para uns é sábio nada ter, ser desapegado e despreocupado com os bens materiais; para outros, sábio é moderar bens materiais e espirituais; para uns, sábio é a capacidade de enfrentar as dificuldades e superá-las, indo além do que se pensava poder ir, para outros, é a escolha do difícil, do complexo, porque só por essa via pode se alcançar a harmonia e a paz; para uns, sábio é a capacidade de suportar em silêncio as adversidades da vida, para outros, é a capacidade de ação e resolução dos problemas; para uns, sábio é nada esperar, para outros sábio é ter esperança; para uns, sábio é ser asceta, isolar-se do mundo, para outros, sábio é saber se comunicar, interagir, dialogar, aprender com os outros; para uns, sábio é reconhecer que nada se sabe, para outros é reconhecer que nem isso se sabe ao certo; para uns, sábio é seguir o caminho do meio, para outros, sábio é seguir todos os caminhos... 29. Diz uma antiga história, conhecida de todos, que um jovem rapaz muito cedo decidiu procurar a sabedoria. Leu todos os livros que pôde, viajou por todas as vilas que conseguiu, conversou com todos os mestres do caminho, visitou todos os desertos isolados do mundo, enfim, experimentou a vida sempre buscando por ela. Onde chegava, perguntava o que era a sabedoria, onde ela estava, como e quem a possuía...Passaram-se os anos e, já velho, não havia encontrado resposta para a sua pergunta. Aquele pobre homem nunca havia sossegado o seu coração, sempre inquieto, a despeito de tudo o que havia visto, vivido, lido e ouvido. Um belo dia, brincando com o seu neto, este lhe perguntou o que era o ―ar‖... O velho deu uma explicação simples. Disse que o ar era para o homem o que a água era para o peixe. Estava dentro e fora dele, por todos lados, alimentando e nutrindo toda a vida, todos os seres, todas as espécies, fauna e flora. Estava em todas as partes mas ninguém podia vê-lo. O homem via a água, mas o peixe não. Assim, o homem não via o ar, mas os deuses sim, podiam ver. Súbito, o velho homem teve, sozinho, uma luz, e duvidou: talvez a sabedoria seja assim...73 30. Nunca ouvi um professor meu de jornalismo falar da necessidade do mito e da sabedoria na comunicação. Talvez porque ela não seja mesmo necessária. Se for, quais os parâmetros para a sua constituição? Como estudá-la, compreendê-la, investigá-la? Para que haja uma comunicosofia primeiro é necessário uma comunicologia. Para que haja uma comunicologia, primeiro é necessário estudar o aberto. 31. Acolher o aberto: investigá-lo, abraçá-lo. Para começar, observar o céu. Mas como é que se observa o céu? Espreitando todos os ventos, todas as nuvens, todos os tempos? Acolhendo a totalidade? Pesquisar é aceitar a abertura, a busca, a ignorância de quem procura, no fundo, pelo que não sabe. E é desse não saber que nasce o conhecimento. 32. Quem investiga não sabe, tateia, dá um jeito, hesita, mantém as suas próprias escolhas abertas. Temos de ser como o passarinho que investiga o céu em busca do azul perfeito. Quem pesquisa, deve ter uma inquietude de passarinho. Pesquisar é uma forma de construir mergulhos e sobrevôos. 33. Na Babilônia, por volta de 1800 a C. havia os daglil-issure ou os ―observadores de pássaros‖. Eram especialistas na arte de predizer o futuro a partir do comportamento das aves. No Nordeste do Brasil tem o vem-vem, pássaro que anuncia pelo canto, chegadas e partidas. É assim que é a investigação, um pássaro: sobrevôos e mergulhos profundos nas camadas do objeto e da existência. 34. Para construir a famosa biblioteca de Alexandria, Ptolomeu espalhou pesquisadores por todo o mundo conhecido. Pediu que esses pesquisadores trouxessem das terras distantes, cópias e livros das principais obras conhecidas da humanidade. Conseguiu assim, com esse esforço, construir um dos maiores templos do saber da Antigüidade. Propiciar o saber e a arte é uma forma de facilitar a concórdia, mas sobretudo, a elevação espiritual do homem. 35. Para construir um saber, partimos de um não saber. Dúvidas, incertezas, inquietações, curiosidades promovem a busca e a construção. 36. ...sem dúvida, jamais saberemos donde nos vem o Saber, por muitos que sejam as fontes possíveis: ver, ouvir ou observar; falar, sustentar, contradizer; contrafazer, imitar, desejar, odiar, amar; ter medo e defender-se, aventurar-se, arriscar, apostar, viver e trabalhar juntos ou separados, querer dominar por posse ou predomínio, aliviar a dor, tratar as doenças ou matar por assassínio ou guerra; ficar espantado perante a morte, orar até ao êxtase; fabricar com as próprias mãos, cuidar da terra ou destruir... 37. O conhecimento difere da informação; a informação difere do saber; o saber difere da sabedoria e a sabedoria do conhecimento. 38. O conhecimento é um fenômeno multidimensional que comporta competência, aptidão para produzir conhecimento, atividade cognitiva e um saber resultante dessa atividade. É simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, cultural, psicológico, social. 74 39. Informação é uma unidade de conhecimento que explica uma unidade de conhecimento que explica uma unidade de conhecimento...75 40. Sabedoria é auto-conhecimento. (―Sê o escultor e o mestre de ti mesmo‖ – Nietzsche). 41. Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento; onde está o conhecimento perdido na informação. (T. S. Eliot) 42. Pode-se também começar a busca do conhecimento comunicacional – aquele que une informação, saberes, imagens, diálogos, mitos, experiências, savoir faire – observando uma onda na praia. A observação exige um temperamento, um estado de ânimo e um concurso de circunstância conforme. 43. O senhor Palomar vê uma onda apontar na distância, crescer, aproximar-se, mudar de forma de cor, revolver-se sobre si mesma, quebrar-se, desfazer... É muito difícil isolar uma onda da que lhe segue de imediato... Não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente da outra onda; mas da mesma maneira é verdade que cada onda é igual a outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva; enfim, são formas e seqüências que se repetem, ainda que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo. (Italo Calvino) 76 44. Para conhecer algo é necessário um método = caminho. Até mesmo para conhecer uma onda, o rumor do vento, a vida das formigas ou dos homens, uma moda, um estado, qualquer coisa, preciso de um método. Preciso de um caminho para chegar até essa coisa. É preciso, neste método, ir da análise à síntese e da sistêmica à analítica, indo e vindo. É preciso tentar acusar o contraste entre uma sintaxe aparentemente linear, clássica, e uma realidade aparentemente complexa, não linear. Pesquisar é administrar ordem e desordem. 45. Os gregos tinham uma palavra, Themata, para definir nossas buscas obsessivas. Nós estamos sempre ligados a certos temas, nós os perseguimos, ou será que são eles que nos perseguem? Em cada pesquisa temos também que nos auto-investigar. É necessário que o pesquisador esteja na pesquisa porque, ao final, o resultado da sua pesquisa, acho até que o resultado de qualquer pesquisa, será sempre uma objetividade subjetivada. 46. Necessitamos não só de uma epistemologia dos sistemas observados, mas também de uma epistemologia dos sistemas observadores. (H. von Foerster)77 47. O primeiro critério de um pesquisador é ter olhos e coração. Ter olhos espalhados por toda a pele e um coração pulsando na cabeça. Sem sensibilidade não se faz nada. Sem atenção, acuidade, cuidado, método só se chega a resultados parciais. Embora toda pesquisa seja, ao final, um resultado parcial, sempre é bom acreditar que se sabe alguma coisa. Ao final da pesquisa, o pesquisador deve olhar para si mesmo e perguntar: que sei eu? 48. Que sei eu? (Montaigne) 49. Perguntemos a nós mesmos: que sabemos? E mais: que sabemos sobre a comunicação? Será que temos realmente produzido conhecimento ou reproduzido objetos? Será que temos estudado somente mídia ou a comunicação em sua multiplicidade e totalidade? Será possível estudar a comunicação em sua totalidade? Metrodoro de Chio disse: ―Não sabemos se sabemos. Não sabemos nem mesmo o que é saber‖. O mesmo vale para a comunicação. Não sabemos o que é comunicação. Não sabemos nem mesmo o que é o saber comunicacional. 50. Para ser um bom pesquisador, ser um bom costureiro. Um complexeur. Só conseguindo manter a comunicação entre todos os aspectos observados, colhidos, costurando-os conjuntamente, podese começar a segunda fase da operação: estender este conhecimento para os seus próprios limites. 51. Tem gente que pesquisa melhor com os pés no chão, tem gente que pesquisa melhor com a cabeça nas nuvens; tem gente que gosta do caos, outros da ordem, uns preferem ‗uma coisa de cada vez‘, outros, ‗tudo ao mesmo tempo agora‘; uns não sabem por onde começar, outros, começam pelos livros, outros nunca começam, outros nunca terminam. Todos os caminhos da pesquisa conduzem ao pesquisador. Olhar para o alto, olhar para baixo... não são duas maneiras de olhar para si mesmo? 52. Um homem apaixonado pelo céu andava o tempo todo de rosto para cima, a contemplar as mutáveis configurações das nuvens e o brilho distante das estrelas. Nesse embevecimento, não viu uma trave contra a qual topou violentamente com a testa. Um amigo zombou da sua distração, dizendo que quem só quer ver estrelas acaba vendo as estrelas que não quer. Espírito previdente, esse amigo vivia de olhos postos no chão, atento a cada acidente do caminho. Por isso não pôde ter sequer um vislumbre da maravilhosa fulguração do meteoro que um dia lhe esmagou a cabeça. (José Paulo Paes)78 53. Como e o que pesquisar? Comece perguntando ao seu coração: o que eu gosto realmente? Depois pergunte: o que me interessa pensar? Que idéias me atraem? O que me inquieta, o que, no conhecimento, me dá prazer? Depois de responder estas questões, comece a brincar de fazersaberes. Não é uma brincadeira perigosa, não muito, só um pouco. Você já brincou de colar? Primeiro recorte, depois cole. Mas não cole dos outros. Isso é feio. Só vai mostrar que você não sabe brincar, que não é criativo. Se não souber responder, faça uma lista, por escrito, converse com outros que brincam há mais tempo do que você. Eles podem te ajudar. Mas cuidado. Tem muita gente que pensa que sabe brincar. Mas são tristes, feios por dentro. Eles podem querer que você seja igual a eles. Procure os que são felizes por dentro. Esses nunca vão o desestimular. Então comece a brincar assim, perguntando: o que eu acho que devo conhecer? 54. Que belo tema de disputa sofística tu nos trazes, Menon; é a teoria segundo a qual não se pode procurar nem o que se conhece, nem o que não se conhece. O que se conhece porque, conhecendoo, não se tem necessidade de procurá-lo; o que não se conhece porque não se sabe o que se deve procurar. (Platão) 55. Para brincar de pesquisa é preciso saber recortar bem. Você já brincou de recortar? Nesta brincadeira, é preciso saber recortar bem direitinho. Quanto melhor o corte, melhor o encaixe, a colagem, o quadro geral. Seja um bricoleur aplicado, atento, cuidadoso. Você não pode dar conta de colar todas as imagens, todas idéias e todos os objetos. Não tem problema. Você não tem que dar conta de tudo isso. Por isso é que o recorte tem que ser bem feito, para que o resultado seja todo seu. É preciso que você encontre as imagens certas para as idéias certas. É preciso que o objeto esteja bem colado às imagens e idéias e que haja a liga perfeita para que ele não fique sem aderência e destaque. Cole o objeto no lugar certo. Depois mostre aos outros o seu trabalho; seja crítico e auto-crítico. Esse tipo de brincadeira deve servir para deixar a gente mais feliz e não mais triste. 56. A pesquisa é a procura da verdade. Assim ela vale porque é uma procura, justamente. Como procura, podemos seguir vários caminhos = métodos. A arte de procurar os caminhos certos = verdadeiros é a arte da pesquisa. Qual o caminho mais verdadeiro? Aquele que casa o conhecimento produzido pelo homem ao longo dos anos, aquele que você mesmo acredita com aquele que pretende contribuir para o desenvolvimento do homem. Pesquisar é uma forma nova de construir velhos mitos. 57. Quanto mais a pesquisa for extensa, menos possibilidade de profundidade. Quanto mais curta, maior possibilidade de superficialidade. 58. Não é fácil brincar de fazer-saberes. Corremos alguns perigos. Mas, como diz Holderlin, ―onde está o perigo, cresce também o que salva‖. 59. A ciência é o reflexo do homem no espelho da natureza (Pauli) 60. Para ser cientista, ser artista. Para ser artista, aninhar-se de abismos.79 61. Não se faz pesquisa sem um problema. Resolver este problema é o objetivo do cientista. Mas o objetivo do artista muitas vezes não coincide com o do cientista. O artista muitas vezes quer multiplicar os problemas. Daí que vem o cientista para tentar resolvê-los. Enquanto o artista trabalha com a metáfora, o cientista lida com a metonímia. Artista e cientista partilham porém um caminho comum: preferem andar na margem, onde a razão gosta de estar em perigo. Ambos gostam dos limites: dos limites do possível e do impossível. 62. Mesmo sendo totalmente dependente das interações entre os espíritos humanos, o conhecimento escapa-lhes e constitui uma potência que se torna estranha e ameaçadora. Hoje, o edifício do saber contemporâneo ergue-se como uma Torre de Babel que nos domina mais do que a dominamos. (Edgar Morin) 63. O conhecimento é mesmo uma Torre de Babel. Há uma crise nos seus fundamentos, nas suas relações. O conhecimento é sempre múltiplo. É um ―fundamento sem fundo‖, disse Heidegger. Saber que o conhecimento não possui um fundamento é adquirir um saber fundamental. Seu fundamento é móvel, aéreo, flutuante, profundo. Como diz Fernando Pessoa: ―Somos dois abismos: um poço olhando um céu‖. Ou como diz Roberto Juarroz: ―Entre altas torres vou cavando fundos poços‖.80 64.Precisamos trocar a metáfora arquitetônica de ―fundamento‖, uma metáfora musical de ―construção em movimento‖.81 65. Eu creio que toda forma de conhecimento pode ser procurada no receptáculo da multiplicidade potencial. O espírito do poeta, como o espírito do sábio, funciona por associações de imagens (e saberes) seguindo um processo que constitui um processo mais rápido de associação e de escolha entre as formas infinitas do possível e do impossível. (Italo Calvino) 66. Conhecimento do conhecimento: outro nome para epistemologia. Palavra pesada. É difícil para ela voar. Quem a incitou a ficar mais leve foi Gaston, o velho Bachelard. 67. No conhecimento da comunicação, remeto desde já a Demócrito de Abdera, que via uma diferença entre a comunicação mediata e a imediata. A mediata é sempre mediada por mecanismo que exigem um canal, um fluxo entre emissor e receptor, já a imediata não, não exige nada. Ocorre nos átomos, no interior do homem. De dentro do homem para dentro do homem. Não exige meio. 68. No conhecimento do conhecimento comunicacional deveríamos nos preocupar mais com o que Niels Bohr chamou de ―Unidade do Conhecimento‖, aquela dimensão do saber que une filosofia, ciência, técnica, magia, religião, arte numa só unitas multiplex. A comunicação é a liga natural que faz a ponte entre os conhecimentos. Pena ela ter se transformado (ou desejado) isolar-se, encastelando-se ora num campo ora numa técnica ou num mercado que não a torne verdadeiramente episteme filo-pluri-conceitual. 69. ―Eu tenho um sonho!‖, disse um pensador da paz. Era também um poeta da vida. O sonho motiva o homem e a ciência. Para se tornar um cientista, todo homem precisa ser poeta e ter um sonho. Todo cientista precisa de um sonho capaz de fazê-lo voar e motivar seu desejo de paz e de conhecimento. Por isso, na era da comunicação social tecnicista e do fechamento do homem ao diálogo, ousamos dizer: é preciso recriar a idéia de Comunicação! Urge, como diz Edgar Morin, reformar o pensamento e a ciência. Nessa perspectiva, necessário também se faz reformar o conceito de comunicação, devolvendo-lhe o que a disciplinaridade e a hiperespecialização lhe roubaram: a sua capacidade de ser, por excelência, a ciência da religação dos saberes e, mais do que isso, a ciência do diálogo.82 70. Existe a sensação global, diz David Bohm, de que a comunicação está progressivamente se deteriorando. Para ele, é preciso recriar a comunicação porque nossa forma de pensá-la e de falar sobre ela constitui um dos fatores que nos impedem de tomar consciência da sua real importância em nosso sistema de conhecimento. Muito cedo, a Comunicação tornou-se ―social‖, aportou no cais desencantado do jornalismo; navegou os mares de plástico da publicidade; vendeu pela mão do marketing produtos que apitam e acendem, e causam sensações de bem-estar; facilitou o acesso às bibliotecas tornando a técnica da catalogação algo louvável; fez e desfez da informação como bem quis, prostituindo-a ao máximo, entregando-a sem meditação a todos. Todos então se sentiram mais informados e, ao se sentirem mais informados, se acharam mais sábios, alguns até, gênios individuais. De maneira nenhuma, ninguém se achou idiota coletivo, muito pelo contrário. 83 71. A comunicação ―social‖ pretendeu ser analítica e seguiu o caminho natural por onde trafegou o conhecimento humano com o advento do cartesianismo. Mas os seus servos esqueceram que ela era Comunicação, não somente ―social‖, mas também ―humana‖, ―ecológica‖, ―psíquica‖, ―mitológica‖ e principalmente ―filosófica‖. Quiseram que ela não fosse mais Comunicação, mas jornalismo, publicidade, marketing, biblioteconomia, gestão de informação e uma infinidade de outras disciplinas. Foi quando a Comunicação tornou-se uma entidade fantasmática. Um campo sem campo, um mero guarda-chuva para outras áreas. Isso provocou ao longo do tempo um efeito drástico: ela deixou de ser estudada como tal e passou a ser tautologia, signo-sinônimo de ideologia, dominação, negação, alienação, técnica. Por mais que esses componentes estejam presentes, diga-se, na dimensão social (mas não só) da comunicação, perguntamo-nos por que foram eles os fatores privilegiados. Isso é fácil de responder: foram privilegiados porque os estudos avançaram em direção à compreensão da técnica como meio e suporte máximo a ser racionalizado. E talvez porque, além da tecnicização da sociedade, a informação é o escudo que os homens usam para se proteger e justificar a ausência do verdadeiro diálogo. 72. Quem já conseguiu dar uma definição satisfatória do que seja a comunicação? E a cultura, que teoria é capaz de abarcá-la? As tentativas de definir essas duas noções foram inúmeras. Não foram vãs porque contribuíram para a apreensão que hoje podemos ter das relações humanas e sociais. Porém, nunca foram satisfatórias. Talvez, ao invés de conceituá-las, melhor seria aceitar nossa incapacidade de dar conta da totalidade dos conceitos que as envolvem. Aceitando as implicações da lógica de Tarski e do teorema de Kurt Gödel, segundo os quais um sistema semântico não pode ser explicado a partir de si mesmo nem pode encontrar em si mesmo a prova de sua validade, a cultura e a comunicação como sistemas dinâmicos não podem validar-se nem se fazer conhecer completamente simplesmente a partir de seus próprios instrumentos de conhecimentos. São noções indomáveis que por isso necessitam do diálogo, entendido como meio de enriquecer-se com o diverso e o desconhecido, conhecendo-o, compreendendo-o, aceitando-o. Hoje, temos informações demais e compreensão de menos. 73. Isso significa dizer que a primeira condição para a elaboração de uma Teoria da Comunicação que se pretenda autoconsciente é renunciar à completude e ao exaustivo processo de fechamento do objeto em torno dos elementos que o compõem. Mas não devemos para tanto abandonar ou minimizar os elementos que o circunscrevem. A postura antes requer um misto de ousadia, rigor e humildade. Nossa incapacidade de definir o sistema comunicaçãocultura, revelada pela vastidão de conceitos apresentados ao longo dos anos, constitui uma prova da dimensão enigmática desse campo. O século XX foi especialmente pródigo em formular conceitos para essas áreas. Sabemos que mais de cem definições foram enunciadas (Kluckhohn, 1945) para a cultura e que, para a comunicação, são pelo menos quinze escolas clássicas e inúmeras noções como: interação, informação, linguagem, diálogo, vínculo, processo de significação, partilha, educação, relação, negociação, manipulação, influência, persuasão, narração, retórica, comunidade, atividade sensorial e nervosa, elemento desencadeador e delimitador, instrumento formador, processo moderador, compreensão, entendimento, interpretação, processo histórico, troca, cooperação, coexistência, mensagem, meio, interlocução, tautologia, expressão, socialização e ecologia. 74. Para questionar a razão de uma ciência da comunicação distinta da ciência da cultura, perguntamo-nos: em quais dessas noções comunicação e cultura não são o mesmo? A essência da comunicação reside nos processos relacionais e interacionais tanto quanto a cultura, e todo comportamento humano possui um valor tanto cultural como comunicativo. Isso a Escola de Palo Alto nos ensinou com maestria. Então, por que a ciência da cultura, a Antropologia, não se valeria da noção de diálogo numa era em que, como veremos, as civilizações produtoras e veiculadoras de cultura são incapazes de compartilhar o espaço global, num espírito de compreensão e aceitação mútua? Por que não pensar uma ciência capaz de aproximar os seres humanos e seus saberes num espírito de diálogo? 75. Assim, reformulamos o nosso próprio conhecimento dos conhecimentos de modo que, para investigar os limites, os conceitos e a fortuna crítica da cultura e da comunicação, devemos levar em conta a possibilidade de uma culturanálise (Morin, 1999) que queremos comandada pelo espírito do diálogo e por isso chamamos de Comunicologia. O homo comunis ainda está por nascer. E ele será engendrado a partir do paradigma da intercompreensão (Habermas, 2003) e no universo da partilha, da capacidade de tornar comuns saberes e condições materiais e espirituais da vida. Em ambos os casos, devemos admitir pressupostos e aberturas sistêmicas, incompletude teórica, decifração de seus caracteres e contínua religação de suas partes. 76. Apesar da totalidade da natureza na qual o homem está inserido ser algo inatingível, existe uma porta aberta para um universo realimaginário indomável do qual o homem tem por desafio se aproximar, começando por aceitar a infinitude e a necessária articulação dos saberes. Essa porta é a da lógica do sensível. 77. Uma das formas perenes e primeiras de produzir, perpetuar e regenerar o diálogo intercultural é o mito. Por si só, ele estabelece a relação entre o universal e a diversidade, sendo o mediador da passagem da natureza à cultura. Permite construir modelos explicativos estabelecidos de acordo com o imaginário e as relações sociais (Lévi-Strauss, 1970). E mais, o mito consegue realizar a tarefa de respeitar a relação harmoniosa entre o natural e o cultural, o material e o espiritual, o físico e o imaginário, o visível e o invisível. Algo que pode nutrir e complementar o espírito científico. 78. Como o mito, a arte e a religião são mediadores ideais entre as dimensões do visível e do invisível, entre as ordens natural e artificial. Olhar a vida como uma obra de arte, levando em conta as duas dimensões e as duas ordens, é uma premissa inclusive para a ciência. Tais manifestações do imaginário sempre foram necessários supridores da relação do material com o espiritual, do visível com o invisível e do empírico com o intangível. Os objetos sagrados, entre os quais se deve incluir os mitos, as artes, as ciências e as espiritualidades, enquanto patrimônios da humanidade, podem cumprir funções de solidariedade e de resistência aos sistemas desiguais e unidimensionais das trocas, conduzindo a uma humanidade mais aberta, uma ecologia das culturas, promotora de paz. 79. A lógica da igualdade também constitui uma porta para o necessário diálogo intercultural planetário tanto quanto para o diálogo da dimensão racional humana com as da sensibilidade e do imaginário. Assim como as relações interculturais não podem ser pautadas pelo poder e a dominação, as relações interdisciplinares e os vários domínios do conhecimento não podem continuar alimentando relações de exclusividade. É necessário instituir entre os domínios fragmentados novos caminhos de volta para a união, reunir o que foi desunido pela necessidade de classificar, separar e ordenar para melhor apreender, distinguir e conhecer. Vaidades, ânsias de poder e individualismos foram capazes de corromper os idealismos e sonhos de certos homens e transformá-los em déspotas da categorização, da hierarquização e da exclusão, fazendo-os esquecer que havia um caminho de volta a percorrer. Hoje, a lógica da concorrência, profundamente ancorada em todos os domínios da vida, serve de justificativa para corridas desenfreadas entre espíritos científicos desprovidos de premissas humanitárias universais. 80. Assim, uma ciência do diálogo só é possível se formos capazes de instaurar um espírito de igualdade tanto no âmbito das relações sociais e interculturais, como no âmbito das relações entre os diversos domínios do conhecimento e da apreensão do real: um espírito científico que inclua o pensamento racional e técnico, o pensamento poético e o pensamento mítico-religioso. Enriquecer-se com o diverso e aceitar o desconhecido é uma necessidade cuja ambição reside na humildade requerida, porém raramente encontrada, no meio científico. 81. O diálogo implica um fluxo em sentido duplo e simultâneo possibilitando que uns cedam espaço aos outros, que todos, qualquer que seja a diversidade de seus pontos de vista, possam ir e vir nos caminhos das inter-relações e possam assim interagir melhor através de uma rede de modos de compreensão da realidade com vistas à completude da apreensão do mundo. A imagem da rede de interações remete à idéia de interdependências e interresponsabilidade presente na noção de ecologia do espírito. Se as ciências físicas e biológicas não desdenharem a importância das ciências humanas e sociais e essas, por sua vez, não menosprezarem os domínios da criação artística, estaremos mais próximos da idéia de Comunicologia. A linguagem transdisciplinar da arte e da poesia auxilia a compreensão do homem enquanto ser que se constrói a partir da necessidade de compartilhamento e comunhão para enfrentar o meio natural no qual se insere. 82. Há ainda que se falar na importância dos saberes das dimensões verticais, presentes na arte, na poesia e na espiritualidade Ao estender os limites da linguagem, o artista e o poeta alargam os horizontes do real e tornam o homem mais sábio, mais satisfeito, mais próximo da completude almejada. Essa busca de conhecimento de si para melhor situar-se no mundo, para melhor relacionar-se com ele, permite aceder a mistérios inerentes a todos os seres e que, se não forem rechaçados ou abafados pela racionalidade científica, podem ser pressentidos num estado latente ou manifestos e até exaltados. Entramos no domínio sagrado das religiões que a ciência tanto teme abordar. No entanto, são muitos conflitos, paixões e desafios para o homem se conhecer e se situar no cosmo que uma ciência do diálogo não pode desconhecer. 83. Perguntamo-nos qual é a verdade científica que, assim como as religiões, não se baseia em crenças, premissas, postulados ou enunciados tomados como princípios e elaborados sobre bases emocionais, ao ponto de serem capazes de se sobrepor ao conhecimento proporcionado pela espiritualidade, suprimindo-o do domínio da ciência. Propor para a ciência os caminhos do diálogo, portanto, implica também em religar o conhecimento científico com o conhecimento dos mistérios da natureza, o sobrenatural. Vítima do preconceito gerado pela soberania da racionalidade científica, esse conhecimento foi relegado a zonas obscuras da vida social, porém nunca deixou de ser amplamente desenvolvido em todas as culturas porque o homem não vive sem uma forma de apreensão dos mistérios, de qualquer ordem que seja. Ignorá-lo é um procedimento que carece de rigor para a ciência da comunicação. 84. Agora respondamos às inquietações daqueles que se perguntam que lugar a Comunicologia reserva à comunicação social que até hoje domina as reflexões no espaço comumente atribuído à ciência da comunicação. O mesmo espaço que ela sempre ocupou, só que com uma diferença fundamental: com a Comunicologia, a comunicação social ganha uma força a mais. Jornalistas, publicitários, assessores de imprensa, relações públicas e todo o contingente de formadores de opinião produzido pela sociedade da informação e da comunicação de massa, imbuídos da sua própria capacidade de sonhar, imaginar, aprofundar-se, e conhecer o mundo, dotados do fabuloso aparato técnico dos meios de comunicação de massa, podem se tornar os principais mensageiros de uma ciência do diálogo proporcionada por um espírito de igualdade e um sonho para a humanidade. Concretamente, nenhum indivíduo pode dar conta da idéia de Totalidade compreendida na perspectiva da Comunicologia, porém, todo indivíduo pode encontrar na comunicação um caminho para o diálogo transdisciplinar com as outras formas de conhecimento que a vida, inevitavelmente, se encarrega de lhe oferecer. De fato, como pode, quem nunca sonhou em voar, querer se abrigar sob os auspícios de um deus que tem asas nos pés e na cabeça? 85. Voar sem sair do real. Alimentar a imaginação no dia-a-dia. Quando se olha para o cotidiano se olha para as partes e para o todo ao mesmo tempo. O que fomos no passado, ainda somos um pouco no presente. Somos o conjunto dos restos que fomos. Restos e restos de cotidianos vindos no conjunto dialetizado que somos. A vida cotidiana exige sempre uma anamnese; quase uma súmula de cada jogo vivido. Os cotidianos passados nos ensinam tanto quanto queiramos aprender com eles. A exigência da anamnese é também uma exigência pedagógica, formadora do corpo físico histórico, corpo espiritual, intelectual e material. O efêmero conquistado é logo perdido, vivido, torna-se passado aprendido no presente. Agatha Cristie estava correta ao assinalar que a invenção, a criação, deriva de um certo ócio, acrescido a uma certa preguiça. É um movimento aparentemente de contradição mas que tem sentido. O importante é observar que não deriva apenas daí; mas também do trabalho. Como eram os filósofos? Que criaram? Que pesquisaram? A ―invenção do cotidiano‖ é a criação perene e constante da vida cotidiana. 84 86. O homem é uma metáfora de si mesmo. (Octavio Paz) 87. O novo paradigma tem como referência ―o homo creans‖ e não apenas o homo faber. Trata-se de reconhecer – implicitamente – que a atividade de fabricar é apenas utilitária, extensor, mercantilista; mas define-se por um ―dentro‖ autônomo, de uma inventividade imanente. 88. Entender o novo paradigma que tenta se estabelecer dentro da comunicação é entendê-la como rede comunicacional, como um todo. Essa nova concepção permite tratar as redes como várias circulações sem começo e nem fim, na medida em que suas junções são múltiplas e seus cursos complexos. Há nesta concepção uma visão circularista. A comunicação é um corpo cujas ramificações estão em todas as direções e sob todas as manifestações no campo da sociedade. A rede é a nova ―tecnologia do espírito‖. 89. Que um sistema possa ser visto nos termos da rede, isto é, sem começo nem fim fixado e sem linhas que podem se acavalar circularmente, tornando toda circulação possível da mesma maneira, e estamos não somente num sistema aberto, como também num sistema que se define pelo tempo passado para percorrê-lo em todos os sentidos como o sistema geral de todos os sistemas possíveis. 90. O que Morin chamou de dupla consciência, a saber: ― a ilusão da realidade é inseparável da consciência de que ela é realmente uma ilusão, sem que essa consciência destrua o sentimento da realidade‖. Uma em associação com outra ou somente manifestações diferentes de uma concretude cotidiana. A vida cotidiana é a ―vida vivida no presente e da qual não conseguimos esgotar as riquezas‖ por que as ―riquezas‖ estão sempre a se repor, a se recompor na ―louca‖ intensidade da vida diária. 91. A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do ―aqui‖ do meu corpo e do ―agora‖ do meu presente. Este ―aqui‖ e ―agora‖ é o foco da minha atenção à realidade da vida cotidiana. Aquilo que é ―aqui e agora‖ apresentado na vida cotidiana é o realissimum de minha consciencia. A realidade da vida diária, porém, não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça fenômenos que não estão presentes no ―aqui e agora‖. Isto quer dizer que experimento a vida cotidiana em diferentes graus de aproximação e distância, espacial e temporalmente. O conceito contemporâneo de comunicação se caracteriza pela dualidade: sentido e movimento. 93. O cotidiano é assim: na hora do almoço a gente almoça, na hora de dormir, dorme. E vive o dia, todo dia. Ele ao mesmo tempo é porto e morte. Emergência, convergência e mediação. Mas o cotidiano é um concreto perpassado de sonhos, pedras de espuma. O cotidiano é sempre mediador. É a situação concreta que relaciona todas as partes. Afinal de contas o que vivemos? Como vivemos? Vivemos sempre o instante, interligados em redes, em redes que se interligam constantemente, ampliam-se, complexificam. Tudo se liga a tudo. O melhor dos cotidianos é aquele no qual a gente não vive. 85 parte IV – terra o leitor de polens 1. Leio no ar o cântico da terra. Polens ventos flores pingos caem por cá. Chão de nossas convivências, a terra ensina à comunicação a ser o chão de nossas relações. 2. Gostaria de ter sempre um livro ante os olhos. Fosse o livro do mundo, não-escrito, fosse um livro de papel, mundo escrito. Mas não, o que tenho é quase sempre uma página em branco, a espera de uma palavra-ação que venha confortar o meu silêncio de papel. Gostaria de entender que energia é essa que nos prende ao livro. Que objeto é esse que faz com que os homens sejam homens melhores? 3. O mitólogo Joseph Campbell dizia que uma das suas formas de prazer preferida era sublinhar frases nos livros que lia. Alguns não sabem ler sem algo por perto com que possam riscar, intervir, escrever à margem, apontar, fazer referência adicional, criticar... Para outros, como Jorge Luis Borges, a melhor companhia para o livro não é nem o café nem o lápis, mas o próprio leitor. Borges diz que o maior de todos os momentos é quando o leitor encontra o seu livro.86 4. Conheci em São Paulo, nos arredores da PUC, um jovem alagoano que por muito tempo viveu no lixo, literalmente pelas ruas, sobrevivendo a catar restos, numa condição degradante: era migrante, mendigo e marginal, mas não analfabeto. Seu nome era Chaparral, pelo menos era assim que ele se apresentava a todos. Certo dia, procurando no lixo restos de comida, Chaparral encontrou um livro todo despedaçado. Leu alguns trechos e logo se interessou pelos assuntos ali tratados. Ficou fascinado, como disse, enfeitiçado por aquelas palavras, por aquela energia gráfica, aquilo, dizia dele, era ele, aquele autor desconhecido empregava a força que ele esperava encontrar nas palavras. Mesmo sem ter lido linearmente o livro, ele fora atingido pelos fragmentos, seus estômago doía, sua cabeça fervilhava, quis saber quem era aquele autor e que livro era aquele. No dia seguinte descobriu. O autor era Nietzsche e o livro, Assim Falou Zaratustra. 5. Livros mudam o homem. Um exemplo foi Chaparral que largou a mendicância, se casou, constituiu família, teve uma filha, e passou a escrever livros só por ter encontrado o ‗seu‘ livro. Hoje vive da venda de porta em porta de seus próprio volumes, que lhe permite a educação de sua filha e o alimento à sua mesa. Longe do mercado e das grandes editoras, o livro foi o objeto que revolucionou a sua história. O livro foi o sentido existencial que lhe propiciou alcançar a dignidade, um trabalho, mesmo que autônomo, e o amor à palavra. 6. As razões do fascínio do livro e dos seus poderes de sedução são feitas de vários elementos, alguns deles imponderáveis. Não erramos em dizer que boa parte da cultura contemporânea estruturase em torno do livro. Por isso mesmo talvez caiba aqui, neste momento, uma pergunta um tanto óbvia: o que é o livro? Que tipo de comunicação ele é? 7. Às vezes, o livro é definido como uma porção de cadernos manuscritos ou impressos cosidos ordenadamente. Do mesmo modo, poderíamos dizer também que o livro é um suporte que permite a difusão do conhecimento em seus vários matizes. É tão múltiplo quanto a vida. Pode ser brochado, encadernado, de bolso, ilustrado, raro, usado, infantil, científico, literário, didático, antigo, novo, desaparecido, no prelo, estar na alma ou na lembrança... 8. O ano do nascimento do livro é incerto. De sua vida pouco se sabe pois são raros os registros que contam sua história, apesar de uma literatura específica começar a ser produzida neste sentido. Conta-se que o Livro de Bambu que originou o I Ching foi o primeiro livro da história e que ele já conta com quase cinco mil anos de história. Um extenso registro escrito sobre os livros da idade média, por exemplo, não são fáceis de encontrar, visto que ler e escrever naquela época era privilégio de poucos. Ainda que o livro tenha sido desde cedo o responsável pela divulgação da palavra escrita, e por torná-la acessível a todos, sua principal contribuição talvez seja a de ditar os caminhos por onde passa a cultura humana. 9. Depois que Johannes Gutenberg inventou a prensa tipográfica, em 1408, as informações e o conhecimento começaram a ser divulgados de forma sistemática. Seu invento permaneceu o mesmo praticamente por quatrocentos anos. Hoje, ainda que ultrapassado tecnologicamente, sobrevive enquanto idéia, onde houver palavras impressas sobre o papel. A história da impressão sobre o papel começara na China no final do século II da era cristã. Os chineses sabiam fabricar papel, tinta e usar placas de mármore com o texto entalhado como matriz. Quatro séculos depois, o mármore foi trocado por um material mais fácil de ser trabalhado, o bloco de madeira. Os mais antigos textos impressos que se conhecem são orações budistas. Foram feitos no Japão entre 764 e 770 a C. O primeiro livro propriamente dito que se tem notícia apareceu na China em 868 a C. O desenvolvimento da escrita deu um novo salto no século XI graças a um alquimista chinês, Pi Cheng, que inventou algo parecido com tipos móveis, letras reutilizáveis, agrupadas para formar textos. No final do século XV, a China produzia mais livros que o resto do mundo. 10. No início do século XXI, a cultura contemporânea produz mais livros do que o homem tem condições de ler. Há livros para todos os gostos e, nesse caso, a quantidade nem sempre indica qualidade. No entanto, ler é sempre fundamental. Cada livro escrito é um microcosmos que se adensa no índex sócio-histórico do conhecimento, é um fragmento que se insere no catálogo da biblioteca do espírito humano. Cada livro que lemos se insere no livro complexo, unitário, que forma o livro geral que é a soma de nossa leituras, de modo que para compor esse livro pessoal devemos nos transportar, entrar em contato com os livros lidos anteriormente, deixá-los tornarem-se o corolário, o desenvolvimento, a refutação, a glosa ou o texto de referência. Na atualidade, esse livro geral, unitário, tem amplas oportunidades de se complexificar. No Brasil, nunca se editou tanto. Textos antigos, medievais, modernos, futuristas, em todos os gêneros... Lemos autores de países distantes e dos rincões mais isolados do interior do país. Livros são feitos em casa, são produzidos sob encomendas, são objetos de veneração de algumas confrarias, disponibilizados na internet, xerocados continuamente, procurados como tesouros, motivo de leilões. Se o Paraíso for mesmo semelhante a uma biblioteca, como disse Borges, cada livro será então um canto órfico pronto a servir à celestial razão. 11. Borges diz que as bibliotecas são ―templos‖, mas outros as vêem como locais ultrapassados, empoeirados, devido ao imenso índice oferecido hoje pelos aparatos multimidiáticos das redes telemáticas. Não devemos de forma alguma descartar tais suportes, mas basta que a natureza oscile um pouco para que tanto conhecimento corra o risco de ficar às escuras. Talvez um dia o homem necessite de uma fogueira para contemplar uma lâmpada elétrica. Mas para ele bastará sempre a luz do sol para que o conhecimento presente num livro salte aos olhos, iluminando a razão. É difícil ser vela num mundo eletrificado. E é isso o que o livro é: uma chama lançada sobre a ignorância humana. 12. Signo da ciência e da sabedoria, o livro é sobretudo o símbolo da totalidade do universo. No Apocalipse, o apóstolo João diz que no centro do Paraíso existe o Livro da Vida de onde nasce uma árvore: a Árvore da Vida. As folhas dessa árvore, como os caracteres de um livro, representam a totalidade dos seres, toda a humanidade, todas os vegetais, minerais, animais, o cosmo inteiro em sua abrangência máxima. A idéia de fazer do livro o receptáculo de todo o universo esteve sempre presente no espírito humano. 13. Galileu Galilei foi um dos que pensou poder concentrar a totalidade do mundo num livro. Só não sabia como fazê-lo. Pensava que o livro total poderia ser escrito em linguagem matemática, geométrica, na língua da racionalidade e da exatidão. O infindável dificilmente pode ser retido num livro, e é por isso que o ato de ler e escrever não tem fim. Um livro jamais termina de dizer o que tem para dizer. Galileu certamente sabia disso. Por isso quis encontrar uma fórmula matemática que exprimisse a totalidade do cosmo. Ele sabia que a natureza é como um livro, uma narrativa que não se esgota em sim mesmo. 14. Quem acreditou poder registrar a totalidade das histórias num livro foi Italo Calvino. Calvino, inspirado em Galileu, apresentou um seminário em 1980, na Sorbonne, no curso de Algirdas Julien Greimas, em que mostrava que o livro é um tipo particular de comunicação e a leitura um modo singular de realizar-se como ser humano. O livro propiciou ao homem um senso de integração com o mundo, conquistado a partir da leitura. A partir do seu aparecimento, o livro levou o homem à prática de um exercício ótico que envolvia a mente e os olhos, um processo de abstração que resultava na extração dos caracteres a partir de operações abstratas, no reconhecimento de marcas distintas, decompondo o que ele via em elementos mínimos, reunindo-os em segmentos significativos, para descobrir em volta da leitura regularidades, diferenças, repetições, exceções, substitutições, redundâncias... Calvino foi a simbiose humano-vegetal. Trata-se aqui de um modo único de perceber a civilização e a cultura: o homem está também unido ao vegetal através do livro. Dito de outro modo, o homem comunica-se à natureza através da cultura. E mesmo quando o homem lê e investiga cognitivamente o universo ainda assim a natureza não se desconecta dele. 16. Talvez a universalidade humana já esteja presente em livros escritos pelos nossos mestres literários. Penso que foi isso que o humanista italiano Aldus Manutius pensou quando, em 1494, empreendeu um ambiocioso programa de publicações que produziria alguns dos volumes mais belos da história da imprensa. Pela primeira vez, antes em grego e depois em latim, foram impressos Sófocles, Aristóteles, Platão, Tucídides, Virgílio, Horácio, Ovídio e os seus quase contemporâneos Dante e Petrarca. Gosto de pensar naqueles vendedores ambulantes de livretos que percorriam a Europa medieval ou nos trovadores nordestinos que, de cidade em cidade, vendiam seus cordéis, liam em praça pública e declamavam seus versos ao sabor do vento. 17. O livro alivia a existência. Facilita o viver. Nos leva a mundos maravilhosos, reais, cruéis, fascinantes; nos ensina a compreender as possibilidades e as impossibilidades da vida, nos alfabetiza e até nos ensina a morrer. Enquanto nos ensina sobre a palavra, o livro nos ensina também sobre o silêncio. O advento da leitura silenciosa vem, segundo Alberto Manguel, após a popularização dos volumes, mas desde a sua gênese, voz e letras andam uníssonas sendo proclamadas em alto e bom som. Já haviam registros de leitura silenciosa no século V a C. Em Hipólito, de Eurípedes e em Os Cavaleiros, de Aristófanes, aparecem referências a uma leitura silenciosa. Nos mosteiros, ela foi incentivada em diversas ocasiões, mas também o seu contrário permanece até hoje. É comum vermos nos mosteiros beneditinos e cistercienses, durante as refeições, um monge lendo em voz alta enquanto os demais ceiam. 18. Alberto Manguel, que escreveu o imperdível Uma história da leitura, em 1996, foi leitor durante anos de Jorge Luis Borges que, cego, adorava ouvir as diversas narrativas. Manguel leu de tudo para o velho Borges, dos clássicos aos modernos, de poetas a romancistas, dos argentinos aos universais. Ao completar cinqüenta anos, Borges foi nomeado diretor geral da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, que contava com mais de oitenta mil volumes. Neste mesmo ano, ele ficou cego. Conta-se que o velho argentino costumava passear sozinho pelo prédio, entre as prateleiras, deixando-se perder nos labirintos de papel do seu Paraíso terrestre. 19. Que tipo de comunicação é o livro? Que realidade é a palavra? No Eclesiastes diz: ―Toda palavra é enfadonha, e ninguém é capaz de explicá-la‖. Será que a comunicação não passa de balbuceios, pedaços de diálogos em busca de encaixe? Visto assim, será possível mesmo a comunicação? A comunicação não será apenas fragmentos de linguagem soltos no ar, como polens de flor?... 87 20. Falar então com fragmentos, falar com pedaços de palavras, já que pouco ou nada serviu falar com palavras inteiras. (Roberto Juarroz)88 21. Como é possível comunicar-se? Como se pode ser escutado? Quando saio do inferno para o espaço aberto? Sou o mais escondido dos escondidos. (Nietzsche)89 22. Saber ler o livro do mundo é uma arte tão difícil quanto saber o livro das letras. Alguns não sabem ler a própria vida, mas sabem reconhecer os caminhos como nenhum outro. Mas como é possível saber reconhecer caminhos e não ir pela estrada certa? 23. Um mestre barqueiro vivia bêbado. Mas ninguém na velha aldeia sabia melhor do que ele a arte da navegação. Como vivia bêbado, ele não saía de terra. Estava sempre nos botecos, enchendo a cara. No entanto, só ele na aldeia era quem sabia fazer determinada travessia mar afora, de dia ou de noite, sem se perder. A travessia era perigosa, muitas embarcações já haviam afundado, muitos marinheiros deixados filhos órfãos, várias naus perdido o rumo da costa. O mestre barqueiro era por isso um homem necessário. Quem necessitava fazer a travessia tinha de pagar a ele antecipado, colocá-lo no barco, bem sentado – porque ele não aceitava manipular o leme – com algumas garrafas de cana do lado. E ele entornava todas. Para reconhecer onde estava, os outros marinheiros apanhavam no oceano uma bacia d‘água, recolhiam um pouco dela, e mostravam para o mestre barqueiro. Olhando a água posta na bacia ele era capaz de dizer a direção, o tempo de chegada e de partida, a distância e as condições de navegação. Ninguém nunca entendeu que técnica aquele velho homem utilizava para fazer a perigosa travessia. Homem do mar, ele parecia jamais perder o fio que o ligava à terra. Ao chegar em terra, feliz, parava no primeiro bar do cais e contava história de marinheiro. 24. Que fazer para decifrar caminhos? Quais os códigos, as formas corretas de leitura, os modos adequados de interpretação? A ciência é a linguagem da interpretação da natureza mas, e a ciência da alma de cada um de nós, quem poderá decifrar? 25. Um signo somos, indecifrado, Sem dor somos, e em terra estranha Quase perdemos a fala. (Holderlin) 26. Como fazer para decifrar uma flor? Na linguagem das coisas sublimes, existe uma mensagem posta ―no ar‖. Em cada pólen solto ao vento há uma carta, escrita em papel-pétala, mas que (quase) ninguém sabe interpretar. Quantas são as pétalas de uma flor? Acho que uma flor é como um livro. Tem mais pétalas do que leitores. Nunca pára de dizer o que tem para dizer. Quem escreveu a pétala? Um copista perfumado. 27. Diálogo na Montanha Perguntais por que moro na verde montanha. Intimamente sorrio, mas não posso responder. As flores do pessegueiro são levadas pela água do rio... Há outro céu e outra terra, para além do mundo dos homens. (Li Po) 28. Não é fácil ler a flor, a montanha, os diálogos. Não é fácil entender a vida, a morte, a terra, a água, o céu e o que está para além do mundo dos homens. Quem quer entender a comunicação deve primeiro aprender a ler, e ler muito... Talvez necessite depois aprender a escrever; a escrever na alma com as tintas da experiência e a pena do coração. 29. Quem pensa o mais fundo, ama o mais vivo. (Sócrates) 30. Para as almas, a morte é tornar-se água, para a água a morte é tornar-se terra; todavia, da terra provém a água e da água, a alma. (Heráclito) 31. Ler espaços interiores. Há quem saiba ler íntimos como quem olha uma página de jornal. Outros, como se lê uma folha em branco, alguns, mesmo analfabetos, sabem mais, decifram os códigos da intimidade como quem soletra a voz do nada. Assim, acompanham-se de nuvens sem chuva. emprenham-se de vazios aureolados. 32. O pior de todos os cegos é o que não quer se iluminar. 33. Há alguns anos, pergunto a todos os jornalistas e publicitários que conheço: ―em que a comunicação tornou você mais sábio?‖ Quando posso, peço a resposta por escrito. E assim venho ao longo do tempo juntando comigo um conjunto de respostas que apontam senão para uma sabedoria da comunicação, para alguns saberes que parecem às vezes nada ter com o jornalismo ou a publicidade. É inegável a importância dos saberes técnicos nesse meio, mas, no momento, não é esse o foco a me interessar aqui. Este texto não se dirige, portanto, àqueles profissionais do mercado nem aos da academia, mas a todos os que escolheram a comunicação (seja ela em que nível for) como meditação em suas vidas. 90 34. O primeiro desafio a que me colocava era responder a pergunta: o que é se tornar mais sábio? Escolhia para os que me indagavam um caminho poético, proposto por Roberto Juarroz e Ítalo Calvino em suas obras, dizia simplesmente: ―o desafio do autoconhecimento‖. E aí completava: ―em que o jornalismo, a publicidade, o marketing, as relações públicas tornou você mais sábio, fez com que despertasse em você a necessidade da busca pelo auto-conhecimento, já que me parece que essa busca é própria do humano?‖ A grande maioria a quem perguntava não sabia responder ou não havia se colocado tal questão ou não se interessava pelo assunto. Isso me levou a pensar que o autoconhecimento e a sabedoria não tinham mais o mesmo status de outrora quando, para os antigos, era a única busca e o único desafio para o qual importava viver. Não posso desconsiderar tais questões simplesmente porque muitos por elas não se interessavam. A meu ver, o auto-conhecimento é um valor fundamental seja em que época for. 35. A minha pergunta inicial, acho, não se restringe à comunicação e vale para todos os campos do saber: letras, contabilidade, direito, administração, medicina, farmácia, engenharia, veterinária, turismo, ciências sociais, etc. Até parece – ironia das ironias – que o conhecimento nos afastou do conhecimento de nós mesmos. Tornamo-nos objetivos e utilitaristas demais: mercado, mercado, mercado... Esquecemos, no universo do conhecimento e da informação, da dimensão do auto-conhecimento. Ironia das ironias! 36. Para os que encontravam na comunicação dimensões de sabedoria, as respostas à minha questão apontavam invariavelmente para longe do conhecimento técnico, caindo ou resvalando nos saberes primeiros que fundamentam o campo. A partir dessas respostas, fui alinhavando as minhas conclusões que ora apresento aqui sob a noção de uma Comunicosofia. Como essa pesquisa não foi quantitativa, não esperem definição de público, nem estatísticas ou coisa que o valha. Sou daqueles que acreditam que dados – mais do que diagnosticar parcialmente – servem para pensar globalmente outras questões além daquelas apontadas na pesquisa. Por isso, pergunte você mesmo a quem você conhece em que o jornalismo ou a publicidade o tornou mais sábio. Talvez você encontre uma ou outra idéia aqui explorada. As questões a seguir, não representam nenhuma novidade revolucionária, querem apenas meditar um pouco sobre a real importância do conhecimento comunicacional em nossas vidas. 37. Gostaria primeiro de rejuntar cacos de cultura e de história para montar aqui uma arqueologia da partilha como estrutura dialógica fundamental da humanidade. Mas isso é tarefa para uma vida inteira. Talvez possa dispor de uma vida inteira para a tarefa de rejuntar cacos, tendo a comunicação como cola, grude, amálgama a fundir e ajustar as partes desconexas do mundo e do homem. A capacidade de partilha da comunicação foi o primeiro dos saberes elencados a partir da pergunta inicial. E, ao pensar mais detidamente neste aspecto, entendo que o homem não pode ser mesmo definido sem esta dimensão básica que é a partilha ou, mais precisamente, o com-partilhamento. Um dos fundamentos ecoexistenciais da comunicação está no duplo caminho: aceitar a partilha ou recusar a partilha. Talvez pudéssemos até contar a história humana a partir desses caminhos e associar à ausência de partilhas, guerras, fomes, pestes, toda a sorte de egoísmos, totalitarismos, corrupções, crashs financeiros, etc, e, por outro lado, solidariedades, comunicações libertadoras, manifestações artísticas, etc, como entrega, aceitação e promoção de uma boa vontade convivial. É possível uma convivência ou um diálogo sem partilha? O diálogo é um dos fundamentos da cultura e torna-se alicerce de tudo isso por ser, por excelência, a práxis constituidora de vínculos os mais diversos: intelectuais, morais, sígnicos, espirituais... É por ver o homem impossibilitado de dissociar-se da dimensão do compartilhamento que entendo que a antropologia deveria ir além da idéia de um homo symbolicus, reconfigurando a identidade humana a partir de um homo comunis. 38. O homo comunis é um ajuntador de cacos. Sincrético por natureza, faz do diálogo o meio para tudo interligar, tecendo objetos, assumindo os vínculos e os nós eco-existenciais. É um complexeur, isto é, um tecelão, um costureiro, um cozinheiro. Um bricoleur, nos dizeres levistrausianos. O homo comunis desenha-se, como dissemos, a partir da prática do que lhe foi sempre inerente: a aceitação da partilha ou a recusa dela. Grande costureiro de sentidos, o homem borda continuamente palavras dentro de si, caseia imagens, descostura e recostura realidades. Mas, às vezes, o que costura de manhã, descostura à noite, como Penélope. 39. Por todos os lados, ouvi que a comunicação é uma epistemologia da abertura sistemática. Como metodologia, acabei entendendo-a – depois de muito meditar – como uma atitude de religação sistemática. Posso dizer isso costurando alguns fios das histórias que li e ouvi que apontavam nessa direção. O homem é uma reunião de mundos, diz Boris Cyrulnik, pois reúne em si os genes da mãe e do pai, partilha, depois, por nove meses, do alimento ingerido pela mãe, está unido a ela de tal modo que um e outro estabelecem uma comunicação amorosa essencial ao desenvolvimento de ambos, para, em seguida, ao nascer, ter início uma outra história de partilha. Agora se dá a partilha do pão na mesa, do leite, da educação, dos saberes ancestrais. Com o tempo, o homem descobre a duras penas que é um ser só no mundo, mas também aprende que não está só. Aprende a dividir espaços, a trocar palavras, a negociar companhias, a permutar idéias, a estender o seu afeto a outros, a acolher o coração alheio, a abraçar o tempo que, mais cedo ou mais tarde, o destruirá. Mas o homem não partilha a vida e a morte apenas com outros seres humanos, há também o si-mesmo a quem ele deve acompanhar irremediavelmente por toda a vida (e talvez na morte também) de modo que existe a possibilidade de nunca se livrar dele mesmo, o que é ao mesmo tempo trágico, cômico e reconfortante. Mas a partilha não termina aí. Ele comunga também com a pedra, o plástico, o figo, o papel, o moinho, o sapato, a traça, a lamparina, o vidro, divide o espaço do mundo, o seu calor e atenção, com todos os objetos e seres que o envolve, porque o mundo é uma grande e louca feira. O homem partilha assim simbioticamente com todas as dimensões da vida, mas não costuma se ver como um ser de partilha, mas como um ser de posses, de poder, arraigado em si mesmo, egoísta e mesquinho. Esse é o outro lado do homo comunis; o lado que não põe em comum. 40. Ainda na mesma costura, medito o significado do fato de que, em certas tribos indígenas, as crianças mastigam o alimento para os velhos que não possuem dentes na boca. Além da generosidade em sorver o alimento para que o outro permaneça nutrido, aqui há uma oferta ainda mais humana: a saliva. A troca de salivas, mas também de cheiros, sussurros e secreções, dentre outras viscosidades afetivas, fazem parte da partilha do amor sexual. O amor aqui é a dimensão primeira e essencial para isso que poderíamos chamar de uma epistemologia do compartilhamento e da abertura. Ninguém ama se não se abrir. Em outras tribos, todos os parentes tocam as crianças até uma certa idade, como forma de lhes ofertar um pouco de pele, assim, o toque constitui-se num alimento essencial ao desenvolvimento afetivo e psicológico delas. Ainda hoje, no oriente e na África, é comum que, nas refeições, os alimentos sejam servidos em um prato comum, assim como se praticava no medievo europeu. Nesse caso, havia na Europa certas regras básicas como a obrigação de servir-se do primeiro pedaço que encontrasse, de não ficar escolhendo partes, a necessidade de limpar a colher antes de passar ao outro – isso quando os alimentos não eram comidos com as próprias mãos. Partilhar um prato comum é mais do que partilhar o alimento comum, é estar frente a frente com aqueles que convivemos, assim, a abertura ao diálogo ganha novamente a cena. Após a ceia ou durante ela, partilhavam-se vidas e histórias. A arte de contar histórias após ou durante o jantar é tão antiga quanto o próprio homem. Remonta aos primórdios quando o meio-homemmeio-simiano reunia-se em volta do fogo, vislumbrando ali diante dele a caça, mas também as estrelas e os raios do céu. Neste cenário, nasceram as primeiras narrativas. Na África, ainda hoje, é comum observar nas vilas velhos e jovens reunirem-se após o jantar para contar histórias. Lá, existem os contadores oficiais de histórias, geralmente anciões ou iniciados. Contudo, nada impede que alguém possa pedir licença e contar a sua própria história. A história como partilha e a narração ou contação como testemunho da saga humana sobre a terra foi um dos elementos mais tocados nas entrevistas que realizei. Boa parte dos entrevistados apontavam ―a narração‖ como um elemento da sabedoria da comunicação. De fato, a comunicação humana, em seus vários matizes, técnicos ou não, desenvolveu sobremaneira a capacidade de contar histórias: novelas, filmes, peças publicitárias, peças teatrais, livros, sites, diários virtuais, programas de rádios, músicas, tudo parece nos contar, por todos os lados, histórias. Contudo, esse aumento da capacidade de contar histórias não quer dizer que tenha fomentado o auto-conhecimento. Afinal, como bem disse Walter Benjamin nos ensaios Experiência e Pobreza e O Narrador, a cultura de massa parece ter diminuído nossa capacidade de imaginar e viver experiências fundamentais, já que temos tudo pronto e enlatado. 41. Não é segredo para ninguém que a palavra comunicação deriva da palavra comunis que, acrescida do sufixo ie, fazer, tornar, dá-lhe o sentido de um ―fazer comum‖. Também não é segredo para ninguém que comunidade e comunicação têm o mesmo radical. O que não parece claro, no entanto, é que tenhamos explorado suficientemente, seja na cosmontologia, seja na antropologia, a possibilidade do homo comunis, aquele gênero engendrado em torno da convivialidade das trocas e compartilhamentos, e que podemos definir também como um sujeito-aberto-propenso-àpartilha. Mas, como sabemos, a história do homem como sujeito voltado para o diálogo não é nova nem recente. Martin Buber, Paulo Freire, Jurgen Habermas, David Bohn e Edgar Morin, entre outros, já insistiram nisso. Sobre o problema da participação, da igualdade, das trocas lingüísticas, do poder, etc, já sabemos de suas derivas e necessidades. Talvez o que precisamos ter em mente agora é a necessidade de uma volta à sabedoria dentro das sete dimensões básicas do indivíduo: intelectual, emocional, espiritual, físico, social, comunicacional e criativo. Tanto o diálogo como a ausência dele foram apontados também como relevantes no desafio da comunicação que busca a sabedoria. Muitos comentavam: ―A comunicação tem de voltar a investir no diálogo‖. Novamente, que ironia, pensava, como pode haver comunicação sem diálogo? 42. Dia = através de, dois, e logos = palavra, conhecimento, é a raiz etimológica que principia a busca da sabedoria através dos saberes da comunicação. Mas que saberes, além da prática do diálogo podemos aqui vislumbrar? São muitas as formas de diálogo: consigo, com o outro, com as materialidades (os objetos presentes na natureza) e com as imaterialidades (seres, entidades, forças invisíveis e divindades). Em algumas dessas dimensões, o homem apenas engatinha no seu conhecimento. É certo que já sabemos muito de nós mesmos, das sociedades, da cultura, do nosso organismo físico.... Mas muito ainda temos a aprender. Para não nos estendermos em todos esses campos, gostaria de citar aqui apenas uma única dimensão esquecida pela formalidade acadêmicocientífica da comunicação: trata-se da transcomunicação. Considero que o acesso direto ao outro pela palavra falada faz com que o diálogo frente a frente com um Guia espiritual, por exemplo, numa seção de Umbanda seja uma das maiores revoluções comunicacionais do século XXI. O homem e os espíritos dialogam não mais em sentido figurado, mas agora em sentido físico. Assim, o homem tem acesso a si mesmo através de um Guia espiritual e, com ele, pode chorar, rir, conversar, pedir auxílio, ouvir. A conversação aqui diversifica-se porque o homem lida com o universo ordinário do cotidiano e com o cosmo extraordinário dos deuses, presentes em Terra através de seus representantes. Em todas as escolas psicológicas sabemos da importância da palavra e do diálogo no tratamento de qualquer sintoma. A própria medicina já aponta como solução de muitos males orgânicos, a atenção, o carinho, o toque e a capacidade de ceder a palavra ao outro. Essa forma de gerenciar artisticamente a vida (que a biologia moderna chama de Bionomia) utilizada pela Umbanda, faz com que o outro se sinta sujeito de sua própria história. Tudo isso sem contar outros níveis artísticos como a contemplação da natureza, base mesmo do próprio princípio Theos, de abstração, elevação e ideação presentes nos conceitos de teoria, teologia, teosofia, teogonia, etc. Em todos esses níveis, a sensibilidade para a absorção, aprendizado e troca com o outro figura como manifestações de fundo. 43. Se por um lado a comunicação facilita o entendimento e a compreensão, por outro provoca ruídos e ignorâncias de toda ordem. O número de informações disponíveis em nossa sociedade não ampliou o entendimento mútuo. Elevou-se o número de informações, mas o mesmo não ocorreu com a compreensão. O problema da comunicação não é só a mensagem, a emissão ou a recepção, mas o entendimento. Por isso, em certo sentido, a comunicação deve valorizar a tradução como parte facilitadora ao entendimento. Ela pode ser uma via magnífica de acesso a si mesmo e ao mundo. Costumo dizer, para descontentamento de muitos, que o jornalismo e a publicidade poderiam ser estudados dentro dos cursos de Letras, num departamento de Tradução. Pois a comunicação exige sempre tradução. Em todas as suas vertentes, ela é social e humana, além do que, como a tradução, trai o sentido sempre, aproxima, diz quase a mesma coisa, como observou Umberto Eco recentemente. Os tradutores são agentes da compreensão, pontes e canais de acesso ao sentido e à mensagem, devem, por um lado, obediência (ob audiare, saber ouvir) ao conteúdo, por outro, vivem o ‗inferno das formas‘ possíveis do dizer e do expressar. Assim como o jornalismo e a publicidade, a tradução necessita de técnica, de dom e de criatividade. Hugo Zemelman ao escrever Los horizontes de la razón, insinuou que toda comunicação é tradução por exigir sempre decodificação, em todos os níveis. Para ele, são quatro as racionalidades humanas: o pensamento em si, a oralidade, a escritura e a imagem. Do pensar para o falar ou para o escrever exige-se um processo de tradução, ordem e compreensão; da imagem para a fala, a escrita ou o pensamento, o mesmo; da fala à escrita e ao pensamento, a mesma coisa e assim por diante. De um pólo a outro, vivemos traduzindo. Poderia acrescentar aqui uma outra racionalidade um tanto esquecida pelo filósofo mexicano, e que exige, da mesma forma, tradução: a sensibilidade. Inclua-se aí o nível da experiência. Talvez nada seja mais difícil do que traduzir sensibilidades. Se isso já é complexo do ponto de vista subjetivo, que dizer da vida social? Assim como a leitura de um texto, do mundo e de si, a fala, a imagem, o pensamento, a experiência e a sensibilidade exigem um processo contínuo, ordenativo e sistemático de agrupar níveis de compreensão dentro de níveis de compreensão. Talvez seja por isso que é tão difícil ao homem o entendimento. É certo que a técnica da tradução é um dos saberes necessários ao entendimento humano, um saber de fundo, que subsidia outros saberes, o problema é que torná-la o centro das atenções (e dos projetos pedagógicos) é um equívoco. Até mesmo a técnica necessita ser compreendida, resituada, precisamos por isso compreender o papel da técnica e não sermos dominados por ela. Compreender ao outro, ao mundo e a si mesmo exige portanto esse saber ouvir os reclames da palavra e do silêncio, sem medo de enfrentá-los.91 44. Devemos ter esperança no homem? Os horrores que ele provoca parecem não ter fim nunca. Esse estado de coisas nos deixa um tanto perplexos e divididos. A dimensão política é uma arte de difícil acesso e prática, mas inevitável. Definitivamente, acho que viver em comunidade/sociedade é um saber que não aprendemos ainda. Joel de Rosnay, no ensaio O homem: gênio individual, idiota coletivo salienta que os insetos sociais (formigas, cupins, abelhas e outros) sabem viver socialmente porque renunciam à sua individualidade, enquanto nós, por não renunciarmos a ela, não sabemos viver assim. Mas temos mesmo de renunciar para aprender a viver em comunidade? A poesia e o imaginário parecem ter perdido total espaço na política, que se tornou sinônimo de negociação (quisera fosse uma negociação a la Habermas) e de poder (como definiu Foucault e Bourdieu, entre outros). Talvez, se Platão pudesse reformular a sua República, expulsasse desta vez os políticos profissionais e não os artistas. Talvez até sugerisse os poetas no poder. Talvez seja isso, a política se tornou sinônimo de poder e não de relação em prol da convivialidade, da integração e das necessidades humanas. A política de comunicação virou estudo de leis e normas legais, nem sequer se lida mais com a dimensão primeira, a dos relacionamentos, nem com a dimensão comunitária, a sua teleologia.92 45. Em que pese o fato de comunicação e comunidade terem o mesmo radical, o comunis, e visarem o mesmo homo, ambas parecem não mais dialogar. Até parece que a noção de relações sociais, tão cara a todas as ciências sociais, se perdeu no seio do pensamento comunicacional, relega-se ela à sociologia e depois não se fala mais nisso. Talvez por não saber onde ela está ou por não saber o que significa isso. Não, a comunicação sabe bem o que significa e lida com isso restringindo-a a grife ―mídia‖ eletrônica, impressa, digital, etc, apresentando-se, por sua vez, como uma especialidade, o ramo de compreensão midio-tecnológico às ciências sociais. O problema é que a questão comunitária ultrapassa essa redução que o pensamento comunicacional lhe agrega. Se a comunidade apareceu nas respostas das minhas entrevistas como um valor e um saber a ser destacado, é porque a comunicação não perdeu de todo o seu sentido político-relacional. Não é só lazer, informação, coesão social, democratização de temas, crítica, o que ela deve nos oferecer através da mídia, mas formas de partilha radical para o desenvolvimento comunitário. Mas essas formas de partilha buscamos não é de hoje e não é de hoje que nos atrapalhamos todos em interesses, necessidades e contradições tão presentes e inerentes a qualquer processo político-comunicativo. 46. Vivemos na sociedade da palavra vulgarizada. Nem nos damos conta mais do valor e do cultivo do silêncio. O silêncio envolve a palavra e a palavra, uma única que seja, diz o poeta Roberto Juarroz, é uma ―casa de espelhos‖, um mistério com muitas faces e perspectivas. Talvez o essencial de toda a palavra e de toda relação seja o seu silêncio, já que é bem possível que uma palavra nada explique.Silêncio e palavra: muitas vozes no corpo do texto da vida, dois fios distintos cosendo a mesma tessitura: a da vida e suas relações. Muitos diálogos são um itinerário rumo ao silêncio que, por sua vez, não é só um passivo inexpugnável, encena um valor precioso, absoluto, já que no fundo de toda dificuldade de comunicação habita uma zona de silêncio. Quem, no diálogo, não está preocupado em fazer afirmações, mas em colocar demandas, perguntas e possibilidades, ganha em abertura. O problema é que nesse caminho reflexivo a ruminação nos leva a um território desconhecido, distante dos percursos seguros.93 47. A arte de calar, certamente, é mais difícil do que a arte de falar, mas a dificuldade de falar amplia-se para quem, no diálogo, impossibilita a diversificação dos pontos em comum, base para o entendimento. O ponto em comum reside no fato de que a continuidade entre uma conversação e outra (ou entre um silêncio e outro) depende da possibilidade ou impossibilidade de comunicar algo a alguém, assim como depende da distância dos elementos comuns, como a herança biológica, dos elementos cíclicos, dos elementos irreversíveis e dos elementos de diversidade, que cada época traz consigo, a depender da herança histórica. A continuidade acontece sempre de um modo ou de outro (seja por mímese ou por rupturas), mas a distância (entre as gerações, por exemplo, permanece). Mesmo assim, a comunicação possibilita sempre pontos em comum, identificados tanto na herança biológica quanto na herança histórica, tanto nos elementos cíclicos quanto nos de diversidade. Assim, meio discurso e meio silêncio complementamse como formas de garantir o fluxo e a coerência dos sentidos e são, ambos, necessários para a emergência da comunicação. 48. O silêncio não aparece apenas como fonte de onde brota a linguagem, mas como algo que pode expressar para além da linguagem, apresenta-se como o pano de fundo de toda a comunicação humana, como uma arte difícil de exercitar, porque urge perscrutar nela os reclamos da própria linguagem. Com a palavra, podemos influir positivamente nos acontecimentos, mas também aumentar o trânsito, o ruído e a confusão. Com o silêncio, podemos pecar também pelo excesso (o excesso de reserva) de tal modo que meio a meio, silêncio e discurso parecem desemparelhar e reaparelhar o sentido da comunicação. É ao silêncio ou à palavra que tende toda a linguagem? ―É o silêncio a pontuação da voz ou a voz a pontuação do silêncio?‖, diz Juarroz. Se todas as relações tendem a se desemparelhar e reaparelhar no silêncio e nas palavras, uma pontuando a outra, ambas responsáveis pela manutenção do fluxo comunicativo, deveríamos dar mais atenção aos ensinamentos advindos dessa relação: contemplação, auto-reflexão, meditação, desejo de invisibilidade, conhecimento e auto-conhecimento.94 49. A dimensão holística e espiritual apareceu de forma surpreendente em várias das respostas dadas. Uma delas dizia: ―Há uma dimensão/saber pouco ou nada explorada, é a dimensão espiritual, a dimensão dos mediadores ou médiuns como dizem. Não serão eles também formas de mídias?‖, dizia uma resposta que recebi por escrito. Outras se manifestaram na mesma direção, destacando que cabe à comunicação investir na heterodoxia. 50. A espiritualidade é um processo de vitalização, internalização e externalização de forças e energias no seio da humanidade; é um iralém-comunicativo que é meramente terreno e que em si seria destinado à caducidade. A concepção moderna de mundo, elaborada a partir da física quântica de Niels Bohr e da teoria da relatividade de Albert Einstein em combinação com o princípio da indeterminação de Werner Heisenberg, sugere representar o mundo como uma complexa combinação de energias. Tudo, no fundo, é energia, dizem essas concepções. A própria matéria é um momento da energia que se cristaliza e o universo das energias é constituído por um tecido de relações. Emerge assim uma espiritualidade segundo a qual o que é humano só pode ser definido a partir de uma integração do homem com as plantas, as águas, o ar, os animais, os outros homens e as condições saudáveis de vida material. Tudo interage, e se tudo interage, tudo possui um vínculo de comunicação. Até as pedras possuem sua lógica de interação. Elas são mais do que simples composição físico-química, estão em contato com a atmosfera e influenciam a hidrosfera, interagem com o clima e se relacionam com a biosfera. Sem contar que as pedras podem falar ao imaginário do poeta e ao coração do místico, podem passar mensagens de fortaleza, força, majestade, grandeza, solenidade e paciência. Por volta dos anos 30 do século XX, Theilhard de Chardin havia intuído que, quanto mais avança o processo evolucionário, mais ele se complexifica, mais se interioriza; quanto mais se interioriza, mais consciência possui e quanto mais consciência possui mais se torna autoconsciente. Por isso a espiritualidade tem também como característica a autopoiesis. A capacidade e a força da auto-organização. A autopoiesis é fundamental para entender a comunicação pois há uma sinfonia secreta acontecendo a todo momento em todos os corpos com vistas ao equilíbrio, como se o universo inteiro fosse regente de uma melodia de encontro que o une o ínfimo com o máximo, o dentro com o fora, o visível com o invisível. 51. Como tudo evolui, a comunicação também evolui. Pode ser que parte da sua evolução no século XXI aponte a dimensão espiritual. Nesse sentido, os médiuns ou mediadores são um vasto campo de estudo porque são senão mais sensíveis, mais abertos a esses contatos. Têm a capacidade de pôr em relação o mundo visível com o invisível. Esses mediadores são canais pelos quais passam os fluídos energéticos, eles podem, por conseguinte, sofrer com o ruído, falhas, confusões e estão sujeitos à segunda lei da Termodinâmica: a entropia. A entropia é o grau de desagregação de um sistema, enquanto que, na primeira lei da termodinâmica, todo sistema tende ao equilíbrio, na segunda, ele tende sempre a se desestabilizar. Os mediadores são canais que podem estar sujeitos também à redundância. A redundância é o grau de recorrência de uma mesma informação sobre o sistema, assim, quanto mais retroação da informação (energia) sobre o canal (mediador), tanto mais inteligibilidade. Caso haja ruído, esse entendimento é prejudicado. As formas de ruído são as mais diversas e podem ocorrer sob diversas circunstâncias, desde a interferência do canal até a ininteligibilidade da informação. 52. O amor talvez seja a forma mais elevada de comunicação, por não prescindir da experiência sensível. É um mover-se rumo a si mesmo e ao outro; construção de vínculos e ligações valiosas que infundem na vida o desejo de mais vida. Amamos de muitas formas diferentes e, mesmo aquelas mais complexas, implicam um certo grau de interação-integração. Integração consigo e com o outro é algo que exige tempo e paciência, dois valores que parecem ter se perdido no turbilhão da sensibilidade humana. O encontro amoroso não é apenas um mero encontro, mas uma trama secreta do destino, do tempo e do próprio coração. Quando duas pessoas começam a se aproximar movidas por um magnetismo qualquer, que nome, rótulo ou classificação poderíamos dar ao que move esse encontro, senão comunicação? Talvez, no amor, devamos deixar um espaço reservado para o que excede os limites da lógica. E a comunicação quer ser lógica demais, quando nem sempre tem condições de sê-lo! Talvez o amor devesse ser explicado a partir dos limites da comunicação de corpos, sensibilidades, racionalidades, e do que excede esses limites. Assim, deixaríamos um espaço para um saber menos pretensioso e arrogante. A verdadeira comunicação amorosa é sempre partilha. Inerente ao homo comunis, implica na aceitação do outro sem exigências pois é inimigo da tirania e do abuso, abre um espaço para a cooperação e não à apropriação. Sem o amor não somos seres sociais, diz Humberto Maturana. Como fundamento do tecido social, trata-se de um domínio qualquer nas interações que o faz durar somente enquanto persistir, encerrando em si o que ele tem de mais pontual a ensinar à comunicação: as virtudes da cooperação. 53. Todos esses tópicos suscitados aqui apontam para velhas - mas sempre atuais - questões da comunicação: partilha, abertura, diálogo, compreensão, comunidade, silêncio, espiritualidade, amor são temas recorrentes, uns mais outros menos, que, por vezes, vemos serem abordados e novamente tematizados. Outra não foi a intenção desta meditação reflexiva. Se penso uma contribuição conceitual e existencial da comunicação em nossos dias, ela parte de uma retificação de caminhos. Uma epistemologia fundamental requer que se reconheçam as bases onde se assentam os conhecimentos comunicacionais. É certo por isso que poderíamos ter ampliado o leque de temas a partir das respostas dadas: as questões da técnica, do uso da palavra, da contação de histórias (minimamente abordada aqui), das organizações, da informação propriamente dita, etc. Sem dúvida, poderíamos destacar aqui muitas outras formas de busca da sabedoria através dos elementos presentes na comunicação, mas preferimos destacar apenas esses oito como pontos de partida para novas explorações. É certo que os campos profissionais não estão hoje associados ao desenvolvimento da sabedoria humana, muito embora não exista conhecimento que não possa ser trabalhado em seus conteúdos eco-existenciais. O que chamamos de comunicosofia portanto não é nada mais do que uma busca, um desafio e uma tentativa de reformar o pensamento comunicacional, repensando-o noutro patamar, menos técnico, mais humano e relacional, mais aberto, integrador das diversas faces da nossa existência comunis. 54. Talvez por termos uma existência comum é que a política seja algo tão importante em nossas vidas. Cegas para a poesia e a arte tem sido, sem dúvida, a política. Há quem diga, como Juarroz, que política e poesia não se misturam. Mas eu quero duvidar. Há quem aposte numa Poe-política, uma dimensão artística da vida prosaica ou uma dimensão lúdico-artística da vida social. Quem viu uma dimensão peculiar à política foi Huizinga ao resgatar um sentido medieval, perdido (e talvez até falso) do termo. Ele via em poli a tradução para multiplicidade e em icos a idéia de guardião. Nesse sentido, político seria o guardião da multiplicidade entre os homens, o protetor da diversidade. 55. polis = cidade; icos = guardião também explica o termo. Invertendo Platão, poderíamos dizer que os políticos é que deveriam ser expulsos da polis pois corrompem a alma da cidade. 56. O homem inventou mil formas de governança. Conselho de sábios, anciãos, tiranias, autocracias, aristocracias, cosmocracia, teocracia, democracia. Mas nem sempre essas formas relacionaramse com a sabedoria. Poder e política quase sempre confundem os homens e quase nunca se dissociam. Poder, política e sabedoria, contudo, quase nunca, infelizmente, se relacionam. Os antigos egípcios tinham, em matéria de política, uma máxima: ―tudo pelo povo, nada com o povo‖. 57. Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras de que designam os regimes políticos: arché: o que está a frente, o que tem comando; e kratos (cracia). Assim, podemos desenhar: monarquia: governo de um só; oligarquia: governo de alguns; poliarquia: governo de muitos; anarquia: governo de ninguém; autocracia: poder de uma pessoa reconhecida como rei; aristocracia: poder dos melhores; democracia: poder do povo. 58. É político o regime no qual os governantes estão submetidos às leis. Quando a lei não coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante, não há política, mas despotismo e tirania. Quando não há lei de espécie alguma, não há política, mas anarquia. Um regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas segundo a justiça). Os regimes se transformam de acordo com as mudanças econômicas e as guerras: aumento do número de ricos ou de pobres, conquista de territórios, etc. 59. A política é também gestão de informações, ações e homens. Arte dos riscos, para muitos a política não passa de administração pública. Administração é ação coordenada, por vezes técnica, enquanto a política é coordenação da coordenação, simultaneamente arte e técnica, administração e para-administração, gestão de ordem e caos, relação e negociação, sonho e ação, ética e estética. 60. Política e circo sempre se relacionam. Do ―pão e circo‖ dos gregos até o circo da mídia das campanhas eleitorais, até a intenção, velada ou não, de fazer do povo palhaço, passando pelo jogo de cena, ilusionismo, adestramento de mentes, etc. Política não é circo, mas exercício ético, exercício de táticas e estratégias, meios e fins. Deve ser por isso que alguém uma vez perguntou ao professor: ―Mestre, se teocracia é o governo de deus, democracia é o governo do demônio?‖ 61. Quem dera os políticos soubessem ler os polens. Perceberiam as sutilezas que existem nas coisas antigas. Isto porque os polens têm a idade da terra, registram os lugares, depositam-se sobre o mundo para nunca mais sair. Quem dera o mundo fosse governado por artistas e médicos de alma. Filósofos espirituais são os poetas. Embaixadores doutras dimensões. Sobre o autor: Gustavo de Castro e Silva nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 1968. Formou-se em Jornalismo pela UFRN e, após concluir a graduação, virou monge franciscano. No seminário, estudou filosofia, teologia e mística espiritual. Após alguns anos, deixou o mosteiro e dedicou-se à vida acadêmica. Fez mestrado em Educação e Comunicação, também pela UFRN, e doutorado em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com uma tese sobre o escritor Italo Calvino. Vive atualmente em Brasília, onde leciona na Univerisdade Católica de Brasília (UCB) e na Universidade de Brasília (UnB). É coordenador de pesquisa do Instituto Hermeum de Ciências Filosóficas e Antropológicas onde desenvolve uma pesquisa sobre Poesia e Pensamento. Organizou, em parceria com Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis Carvalho, Ensaios de Complexidade (Sulina, 1997); em parceria com Alex Galeno, organizou Jornalismo e Literatura - A Sedução da Palavra (Escrituras, 2002) e Complexidade àFlor da Pele (Cortez, 2003), este, com a contribuição de Josimey Costa. Publicou com Florence Dravet os livros Sob o Céu da Cultura (2004) e Arvorescendo - Livro para Espíritos Sensíveis (2005), ambos pela editora Casa das Musas. NOTAS 1 Cf. Edgar Morin / Heterologia, segundo Michel Maffesoli, ou o saber do múltiplo. 2 Cf. Donaldo Schuler. 3 “Rio sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto. 4 “Perdemos a noção com-um quando permitimos que o saber se parta em poços”, Donaldo Schuler. 5 Interação, informação, diálogo, vínculo, linguagem, processo, partilha, comunidade, discurso, educação, relação, manipulação, influência, persuasão, narração, retórica, farmácia, atividade sensorial e nervosa, lementos desencadeador e delimitador, modelo, formação, compreensão, entendimento, interpretação, história, mito, cooperação., socialização, expressão, tautologia, ecologia, política, jornalismo, cinema, publicidade, marketing, RP, literatura, artes... 6 Silêncio 7 “Para lavar velhas mágoas, é preciso beber mil frascos”. Li Po. 8 “O silêncio foi a primeira coisa que existiu...” Arnaldo Antunes. 9 Roland Barthes, “O Neutro”. 10 Sephirot: substantivo plural, termo da Cabala. Nome dado às dez perfeições da divindidade, cujo conhecimento é o mais alto grau da vida contemplativa. Elas eram: coroa. Sabedoria, inteligência, força, misericórdia, beleza, vitória, glória, fundamento e realeza. 11 Francis Bacon, “Ensaios morais” 12 Para os Donatistas, cristãos cismáticos do Norte da África, no séc. IV d. C., Agostinho é o modelo de intolerância. 13 Bacon, “Dignité des sciences”. 14 “Os Silêncios” In: Porta Giratória [livro de Mário Quintana). 15 Corpo 16 “O corpo e seus símbolos”, de Jean Yves Leloup. “O Corpo Fala”, de Pierre Weil. 17 In: O corpo e seus símbolos. Prefácio. 18 Emil Cioran, “Livro de las Quimeras”. 19 Filosofia e estética do abraço, de Maria da Conceição de Almeida. Comunicação como abraço. Complexere (latim) = tecer / Complexus (grego) = abraçar. 20 Será isto auto-ajuda? A comunicação serve para auxiliar o eu e a sociedade a encontrar a paz? 21 O comunicador 22 Fragmentos do Espólio, Brasília: UnB, 2004. 23 Goethe 24 “Synapsis (conjunção), significa contato físico, organização de idéias, elaboração de planos, conversa, entendimento amoroso e, em sentido hostil, colisão de exércitos”. Donaldo Schuler. 25 Comunicador e tradutor. 26 Do evangelho de São Jerônimo. In: Socráticas. 27 Comunicador-tradutor-criador. 28 Comunicação: a brecha. 29 Henri Bergson, 1888. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, PUF, 1946. pp. 123-124. 30 “Considero como sagrada a desordem de meu espírito”. A Rimbaud / “Desarmonia sinfônica das almas” Carlos de Sousa. / Mia Couto, “Cronicando”, Lisboa: Ed. Teorema. 31 Daimon, palavra grega que significa gênio criador, instigador. O pensamento católico a traduziu como demônio. 32 Jean Chevalier e Alain Ghreebrant 33 “Quando Deus entendeu a si mesLmo, ele gerou a si mesmo e à sua antítese”. Nietzsche. 34 “Os nomes não designam as coisas: as envolvem, as sufocam”. Roberto Juarroz. 35 Michel Maffesoli, Comunidade Localizada, In: Sob o Céu da Cultura. 36 O nome 37 Homem-anúncio 38 Marca 39 Coisa 40 In: Ontologia da Realidade. 41 Walter Benjamim valoriza a figura do narrador, num texto homônimo. / Theodor Adorno / Pierre Bourdieu. 42 Retrato Natural/ Mar abosluto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 43 Juremir Machado da Silva, A Miséria do Jornalismo Brasileiro. Petrópolis, Vozes, 2000. 44 Poesia Vertical, Buenos Aires, Emecé, 1997. 45 O Vendedor de Passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. 46 “O ser humano deve ser o meio entre a planta e o fantasma”. F. Nietzsche. 47 Nouveaux essais sur l’entendement humain 48 Roberto Juarroz Poesia e ealidade. 49 Platão, por volta de 386 a.C. 50 Crátilo. 433d. a 435c. Les Belles Lettres, 1969. 51 Friedrich NIETZSCHE, 1873. O livro do filósofo, III, Flammarion, 1969, p. 179. / (1) Chladni (Ernst Florens Friedrich), 1756-1824. Físico alemão que estudou as vibrações acústicas por meio de figuras de areia. 52 Lewis Caroll, 1871. Do outro lado do espelho, Aubier, 1976. 53 Denis Diderot, por volta de 1765. Pensamentos soltos sobre a pintura. Garnier Frères, 1877, XII, p. 77. 54 Wilhelm von Humboldt, 1829. Da diversidade das estruturas da palavra humana e sua influência no desenvolvimento espiritual da espécie humana, §20. 55 Tractatus Lógico-Philosoficus 56 Decimocuarta Poesia Vertical 57 Ver A Chama de uma Vela, de Gaston Bachelard. 58 Nos vedas, Agni (em sânscrito) é o deus do fogo. o mais antigo e venerado dos deuses da India. Agni, Voyu e Surya eram a trindade do fogo. Agni é o fogo na na terra, Voyu é o fogo na atmosfera como o raio, e Surya é o fogo no céu. como o sol. 59 Convite à Filosofia. SP: Ática, 1996. 60 Remédio = a palavra cura. Veneno = a palavra mata. Cosmético = a palavra embeleza e mascara. 61 “A televisão é um chiclete para os olhos”. Frank Lloyd Wright, arquiteto americano (1867-1959). 62 Poema “Jornal, Longe”. In: Mar Absoluto/Retrato Natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 63 Ver sobre isso o texto “Pobreze e experiência”, de Walter Benjamin. 64 Conferir Marilena Chauí, Convite à filosofia. Para ela, as hipóteses para a origem da linguagem são quatro: 1. a linguagem nasce por imitação. Os humanos imitam pela voz os sons da natureza e, dessas onomatopéias ou imitações, nasce a linguagem. 2. a linguagem nasce da imitação dos gestos, pela pantomima ou encenação na qual cada gesto indica um sentido. Pouco a pouco, cada gesto passa a ser acompanhado de um som e estes se tornaram gradualmente palavras. 3. a linguagem nasce da necessidade, a fome, a sede, o abrigo, necessidade de reunir-se em grupo, formar comunidades. A necessidade fez nascer palavras que exprimiam essas necessidades. Formaram, a princípio, um vocabulário elementar, rudimentar, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua. 4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito, do medo, surpresa e alegria. Nasce das paixões e, nascendo assim, é primeiro linguagem figurada e por isso, surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa depois. As vogais nasceram antes das consoantes, como a imagem nasceu antes da escrita. Primeiro os homens cantaram seus sentimentos, depois exprimiram seus pensamentos. Marilena Chauí, op cit, p. 140. 65 “A maior dor do vento é não ser colorido”. Mário Quintana. 66 Prigogine, Ilya. Ciência, razão e paixão. Belém: EdUFPA, 2001. 67 Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 68 Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. 69 Gusdorf, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1980. 70 Kolakowski, Leszek. A revanche do sagrado na cultura profana. In: Rev. Religião e Sociedade. Maio/1977, N. 1. 71 Moraes, Regis de. As razões do mito. Campinas: Papirus, 1988. 72 Seis propostas para o próximo milênio. SP: Cia das Letras, 1990. 73 “A única pessoa que gostaria de conhecer profundamente sou eu mesmo”. Oscar Wilde. 74 Edgar Morin, O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2004. 75 Dístico do livro História das Ciências, Michel Serres (Org.). Lisboa: Teorema, 1994. 76 Livro de Ítalo Calvino, Palomar (1996) 77 H. von Foerster, Epistemology of communication, IN: Woordward, K. (org.) The Myths of information, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1980. 78 Altos e baixos, poesia de José Paulo Paes In: Socráticas. SP: Cia das Letras, 2001. 79 “Onde os cientistas chegaram os artistas já tinham chegado”. S. Freud. 80 Crise = krisis = acrisolar. krino (grego) = crítico = critério 81 Idéia de Edgar Morin 82 Do fragmento 69 até o 85 foi publicado originalmente como prefácio do livro Sob o céu da cultura, Ed. Casa das Musas – Ed. Thesaurus, 2004. 83 Bohm, David. Sobre el diálogo. Barcelona: Kairos, 1997. / Rosnay, Joel. O homem: gênio individual, idiota coletivo. In: Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. 84 O alienado é uma espécie que silencia diante do mundo. As emergências ao humano são tratadas como contigências. / Segundo Lins a Silva “as fontes interpessoais e as instituições mais próximas dos indivíduos são mais influentes” 85 Certau diz: “ o cotidiano se inventa com mil maneiras de caçar não autorizada”. / Os homens se odeiam uns aos outros. (Freud) 86 “A vida não é fácil: é a arte do encontro, apesar de ser feita de desencontros”. Vinícius de Morais. 87 Eclesiastes 1,8. O que seriam das religiões fundadas sobre textos, ditos sagrados, se não fosse a palavra escrita? (Ex: Bíblia, Alcorão, Livro dos Espíritos...) 88 Poesia Vertical, XI,4. 89 Fragmentos do Espólio. Brasília: UnB, 2004. 90 Do fragmento 33 ao 55 foi originalmente publicado In: Dravet, Florence; Castro, Gustavo de. Sob o céu da cultura, Brasília, Ed. Casa das Musas – Ed. Thesaurus, 2004. 91 Zemelman, Hugo. Los horizontes de la razón: uso crítico de la teoria. Vol. I e II. Barcelona: Anthropos; México: El Colégio de México, 1992. 92 Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. 93 Juarroz, Roberto. Decimocuarta poesia vertical/Fragmentos Verticales. Buenos Aires: Emecé, 1997,p.128. / Macherey, P. In: Pimenta, Alberto. O silêncio dos poetas. Lisboa: A regra do jogo, 1978, p. 98 / Nietzsche, F. Vontade de potência. Trad. Mário F. Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 288 94 Calvino, I. O contraste entre o mundo e a palavra. In: O Estado de S. Paulo, 18/3/84. P.2 e 3. Originalmente uma conferência preparada para o “James Lecture” (1983) no New York Institute for the Humanities.