A Doutrina de Durante todo este trimestre, estaremos numa jornada desafiadora ao ser humano. Sim, estudar a pessoa de Deus é algo que começa diante de uma barreira mental intransponível para nós: como identificar e vislumbrar aquilo que nos é infinito e invisível? Esta constatação que hoje explicitamos acima com tanta firmeza literária e espiritual torna-se mais e mais complexa na medida em que procuramos dar ao texto que começa servindo de base para a nossa reflexão a sua datação histórica. Este poema do capítulo 15 de Êxodo deve ter sido escrito há cerca de 3.500 anos. Isto, porque, embora os comentários bíblicos divirjam quanto a data em que deve ter acontecido o êxodo do povo de Israel, os diversos estudos arqueológicos remontam a um tempo entre 1.300 a 1.500 anos antes de Cristo. Ele foi escrito por Moisés para celebrar a maravilhosa saída do Egito e especialmente a vitória sobre o exército egípcio que lhe vinha em perseguição. Lembremo-nos de um dado importantíssimo: ele é praticamente a primeira manifestação coletiva do povo de Israel para celebrar a pessoa de seu Deus. No passado histórico da formação deste povo, com Abraão, Isaque e Jacó, e depois José, em nenhum momento temos uma expressão clara da presença desse Deus especial para o seu povo como neste instante. A obra de Moisés, que vai ser acompanhada pela dança de Miriã, sua irmã, e de outra mulheres, numa forma espontânea de celebração conjunta, é, portanto, a primeira vez em que este povo, de forma coletiva, reconhece a realidade de um Deus supremo e, em especial, conduzindo e guardando o seu escolhido: "O Senhor é a minha força, e o meu cântico; ele se tem Tornado a minha salvação; é ele o meu Deus, portanto o louvarei; é o Deus de meu pai, por isso o exaltarei." Ex 15.2 Observem que a reação do povo de Israel diante da grandeza desse Deus é a de cantar, louvar, exaltar o nome dele. A realidade da presença do Senhor na condução do povo se tornou de tal forma visível e nítida em uma de suas manifestações (a travessia do mar e a derrota de Faraó) que o primeiro impulso que surge é o de cultuar a esse Deus de maneira espontânea e devotada. O povo de Israel estava saindo dentre a sociedade mais desenvolvida, possivelmente, daquela época. Os registros sobre o grau de conhecimento e recursos da civilização egípcia desse tempo que estamos descortinando são objeto de estudos os mais aprofundados por parte de historiadores e arqueólogos modernos. Esta civilização tinha construído as pirâmides, a primeira delas em 2.600 anos a.C. Erigiu monumentos belíssimos, de arquitetura aprimorada, cujos cálculos matemáticos e de engenharia até hoje assombram os estudiosos por sua precisão. . Em matéria de religiosidade, tinham os egípcios toda uma complexa estrutura de deuses, os mais variados, deuses de todos os pesos, tamanhos e origens. Adoravam o boi Apis, a lua Isis, o sol Aton, o rio Nilo e até a rã, tida como a protetora das nascentes dos rios e cujo coaxar, para eles, atraía as chuvas. Daí, para alguns estudiosos, o porquê de as pragas do Egito, oriundas da vontade de Deus, martirizarem tanto os egípcios. Para a maioria dos sábios do Egito, elas eram afrontadoras, pois vinham do Deus de Israel contra os deuses do Egito, mostrando a supremacia daquele sobre esses. Assim o porquê do versículo abaixo transcrito. A expressão do cântico de Moisés reflete para o povo de Deus uma realidade que haviam presenciado recentemente. Quando as águas do Nilo se tornaram em sangue, quando as rãs se multiplicaram a ponto de invadir as casas, quando a saraiva, as trevas, os piolhos, enfim, aconteceram, em cada praga havia como que uma comprovação da fraqueza e inconsistência de algo que os egípcios reverenciavam ou adoravam: "Quem dentre os deuses é como tu, ó Senhor? quem é como tu poderoso em santidade, admirável em louvores, operando maravilhas?" Ex l5.11 A partir deste trecho, o cântico de Moisés deixa de ser contemplativo da vitória alcançada e passa a ser profético sobre as vitórias que virão. Já no versículo 13 há a primeira menção a Jerusalém, quando menciona a "santa habitação", que no deserto será o Tabernáculo e mais tarde o templo, na cidade santa. Estamos pelo menos 40 anos antes da conquista da terra santa, pois este será o número de anos da travessia do deserto pelo povo. Porém, as citações que Moisés faz de povos e reinos que estremecerão diante de Israel são quase como que uma previsão da sequência com que ele mesmo, e Josué depois, os defrontariam. "Tu os introduzirás, e os plantarás no monte da tua herança, no lugar que tu, ó Senhor, aparelhaste para a tua habitação, no santuário, ó Senhor, que as tuas mãos estabeleceram. O Senhor reinará eterna e perpetuamente." Ex 15.18,19 Este último versículo do capítulo é como que a razão de ser do título da lição desta primeira semana. O autor sacro finaliza o seu cântico exaltando exatamente os dois maiores e absolutos atributos de Deus: sua unicidade e sua eternidade. Se quisermos caminhar no conhecimento da doutrina de Deus durante este trimestre, temos que começar por reconhecer esta verdade absoluta e total: Deus é único e eterno. Uma das coisas que devemos entender, ao estudarmos a pessoa de Deus na narrativa bíblica, é que o conhecimento dele, ou seja, a noção da presença de um Senhor que tudo conduzia na face da terra, era algo muito difuso, mesmo para o povo de Israel. Embora eles fossem tidos como "povo de Deus", o conhecimento do que ele era e representava para a nação e, principalmente, para o indivíduo isolado e só era muito impreciso e inseguro. Abrão ouvia Deus falar, mas não o via.. Isaque, muito menos.. Jacó entreviu a manifestação de um ser superior em seus sonhos mas não teve com ele maior intimidade... José foi fiel a Deus, mas também não viu ao Senhor... Moisés, 400 anos depois, vai querer ver a sua glória, mas não consegue... Josué, os juízes, Samuel, não vão conseguir. Davi, então, é que, através de seus salmos, começa nos anos 1000 antes de Cristo a desvendar a pessoa de Deus para o povo hebreu e para nós, que hoje somos continuidade desta revelação progressiva. O salmo 86 é um daqueles que nos apresenta a noção de um Deus único e eterno sendo descoberta pelo rei-poeta para o povo que era seu: "Inclina, Senhor, os teus ouvidos... Preserva a minha vida... Alegra a alma do teu servo.... Entre os deuses não há semelhante a ti... Porque tu és grande e operas maravilhas; só tu és Deus." Sl 86.1,2,4,8, 10 Sim, a noção de um Deus próximo e presente está se formando. "Mas tu, Senhor, és um Deus compassivo e benigno, longânimo e abundante em graça e em fidelidade. Volta-te para mim, e compadece-te de mim." Sl 86.15,16 Sim, é Davi que começa a mostrar ao povo de Deus que aquela face austera, severa e exigente, que eles achavam ser a única, era também uma face que poderia ser de amor, paz e benignidade. Tudo dependeria de como o povo se posicionasse diante dele. Se o fizesse com fidelidade e respeito, sem dúvida aquele Senhor viria ao encontro das bênçãos prometidas por ele mesmo ao povo de sua herança, aqueles que seriam os pregoeiros de sua presença para o mundo. "O Senhor me criou como a primeira de suas obras... Desde a eternidade fui constituída... Antes de haver abismos... Antes que os montes fossem formados, nem sequer o princípio do pó do mundo." Pv 8.22,23,24,25,26 Salomão, com sabedoria divina, nos apresenta os dois conceitos que temos procurado evidenciar em toda esta introdução ao estudo da pessoa de Deus. Ele fala da sua unicidade (pois já existia, só e único) e da sua eternidade (pois sua presença existia em todo o tempo anterior à Criação). Que sejamos dignas criaturas desse Deus, Senhor do universo, do mundo, e nosso Senhor também. Embora único e eterno, a pessoa de Deus desceu de sua magnitude criadora para coabitar com a sua criatura. É interessante verificar como Salomão nos transmite esta idéia da presença do Senhor de todas as coisas ao lado de uma das suas mais insignificantes obras, em termos físicos, mas, ao mesmo tempo, a mais significativa e expressiva criação dele, em termos de complexidade e inteligência: o ser humano. "[ ... eu estava ao seu lado]... folgando no seu mundo habitável, e achando as minhas delícias com os filhos dos homens." Pv 8.31 O que nos deve empolgar numa leitura como esta é o fato de percebermos que, embora sendo tão pequenos e falhos, ainda assim, o Senhor único e eterno, o criador de tudo e de todos, o Deus soberano, tem prazer em conviver conosco. Esta expressão leva-nos ao jardim do Éden, onde, quando ainda sem o pecado de Adão, o Senhor vinha "conviver" com a sua criatura todos os dias, "ao cair da tarde". Esta figura de imagem leva-nos ainda mais perto da pessoa de Cristo, quando o Senhor mais uma vez demonstrou que tinha prazer em conviver conosco, enviando o seu Filho para conosco estar e para nos salvar.