8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-1 Instituto Superior Técnico Álgebra Linear 1o ano 2010/11 –1o semestre das Lics. em Engenharia Inform ática e de Com putadores A ideia de coordenatização (2/2) Dois teoremas fundamentais da Álgebra Linear Os seguintes teoremas são de demonstração difícil; por isso apesar de serem muito importantes, não serão demonstrados na aula (Para ter uma ideia da complexidade da demonstração veja-se adiante o Apêndice: a importância de ser corpo; a demonstração é apresentada a título de curiosidade, mas não faz parte do programa). Teorema da base (Hamel (1902)). Todo o espaço vectorial sobre um corpo tem uma base. Teorema da dimensão …nita (Steinitz (1910)). Num espaço vectorial com uma base …nita, qualquer outra base é …nita e tem o mesmo número de elementos. Dado um espaço vectorial V sobre um corpo K, se V tiver uma base …nita então chama-se dimensão de V sobre K ao número de elementos de qualquer base do espaço vectorial V sobre o corpo K; esse número designa-se por dimK V . 8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-2 Apêndice: a importância de ser corpo Em tudo o que segue K designará sempre um corpo. Vamos referir um teorema básico da Álgebra Linear, que nem por isso deixa de ser de demonstração nada óbvia: todo o espaço vectorial tem uma base. Numa primeira abordagem da Álgebra Linear a demonstração deste teorema pode e deve ser omitida mas numa segunda abordagem torna clara a indispensabilidade dos fundamentos da matemática. Vamos agora referir um axioma de capital importância da teoria dos conjuntos: o axioma da escolha; em qualquer formulação axiomática da teoria dos conjuntos terá de …gurar algum ou mais axiomas que impliquem aquele. Axioma da escolha Seja (Ai )i2I uma família de conjuntos não vazios; então existe uma função f : I ! S i2I Ai tal que para cada i 2 I se tem f (i) 2 Ai . Mostra-se em teoria dos conjuntos que este axioma é equivalente a um teorema, conhecido por lema de Zorn ou ainda por princípio de Hausdor¤, mas para enunciar este resultado precisamos de introduzir alguns conceitos relativos a conjuntos ordenados: Um conjunto P munido de uma relação de ordem diz-se um conjunto ordenado (ou parcialmente ordenado). Recordamos que uma relação de ordem veri…ca as propriedades seguintes: 1. x x para todo x 2 P (propriedade re‡exiva) 2. x y ey x implica x = y antisimetria) 3. x y ey transitiva) z implica x z para quaisquer x; y em P para quaisquer x; y; z em P (propriedade de (propriedade P diz-se totalmente ordenado se dados dois elementos x; y de P se tem x y ou y x. Uma parte S P diz-se uma cadeia se for um conjunto totalmente ordenado (considerando S com a relação de ordem de P restrita a S). Dada uma parte S P um elemento x 2 P diz-se um majorante de S se para todo s 2 S se tem s x; um elemento s 2 S diz-se maximal se para todo s0 2 S a relação s s0 implica s0 = s. P diz-se indutivo se toda a cadeia de P tem um majorante. Podemos agora enunciar o: Princípio de Hausdor¤ Todo o conjunto ordenado P que seja indutivo tem um elemento maximal. Baseados neste princípio poderemos demonstrar que todo o espaço vectorial tem uma base. Convém porém precisar algumas de…nições relativas a um espaço vectorial V sobre um corpo comutativo K: 8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-3 1. Uma combinação linear dos elementos v1 ; : : : ; vn de V é um elemento da forma 1 v1 + : : : + n vn em que os elementos 1 ; : : : ; n estão em K (estes elementos dizem-se os coe…cientes dessa combinação linear). 2. Uma parte B V diz-se livre ou formada por vectores linearmente independentes se qualquer combinação linear nula (de um número …nito de elementos de V , portanto) tem os seus coe…cientes necessariamente nulos. 3. Uma parte B V diz-se geradora de V se todo v 2 V for combinação linear (…nita!) de vectores de B, escrevendo-se então hhBii = V . 4. Uma parte B V diz-se uma base de V se for livre e geradora de V . Teorema da base (Hamel) Todo o espaço vectorial tem uma base. Lema. Seja V um espaço vectorial sobre um corpo comutativo K e B uma parte de V ; então B é uma base de V se e só se for livre e maximal relativamente à relação de ordem dada pela inclusão, ; no conjunto das partes livres de V . Dem. 1o ) Suponhamos que B é livre e maximal ; então, dado v 2 V tal que v 2 = B o conjunto B [ fvg não pode ser livre — senão B não seria maximal no conjunto das partes livres de V — pelo que existirá uma combinação linear com coe…cientes não todos nulos v + 1 v1 + : : : + n vn = 0 onde v1 ; : : : ; vn estão em V . Porém como B é livre tem de ser corpo, existe o inverso de e podemos escrever v= ( 1 1 v1 + ::: + 1 6= 0 e como K é um n vn ) pelo que v pertence ao subespaço gerado por B, …cando claro que V é gerado pela parte B V . Por outro lado B é livre pelo que é uma base de V . 2o ) Suponhamos agora que B é uma base de V ; então B é livre e temos de mostrar que dada uma parte C de V que seja livre e tal que B C se tem B = C; suponhamos que existia v 2 C tal que v 2 = B. Como B gera V resulta que para qualquer v 2 V se tem que B [ fvg não é livre e C B [ fvg tão pouco pode sê-lo, contrariamente à hipótese. Logo B é maximal no conjunto das partes livres de V . Passemos à demonstração do teorema da base, demonstrado por Hamel, em 1902, para o caso particular em que V = R e K = Q. Dem. Seja V um espaço vectorial sobre um corpo comutativo K e seja L o conjunto das partes livres de V munido da relação de ordem ; basta portanto mostrar que L tem um elemento maximal. Para isso vamos ver que estamos nas condições previstas pelo princípio de Hausdor¤ pelo que poderemos aplicá-lo. Mostremos então que o 8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-4 conjunto ordenado L é indutivo. Realmente dada uma cadeia C L formemos a reunião R de todos os conjuntos que pertencem a C; é claro que R é um majorante de C no conjunto ordenado, P(V ), das partes de V mas há que ver que também o é no conjunto ordenado, L, das partes livres de V . Basta portanto mostrar que R é livre. É o que faremos agora. Consideremos uma parte …nita fv1 ; : : : ; vn g de R e suponhamos que se tem 1 v1 + ::: + n vn =0 com certos 1 ; : : : ; n em K. Como fv1 ; : : : ; vn g R e R é reunião de partes livres de L , existirão partes livres B1 ; : : : ; Bn pertencentes à cadeia C veri…cando v1 2 B1 ; : : : ; vn 2 Bn ; mas como C é uma cadeia fB1 ; : : : ; Bn g C também o é, pelo que existirá uma parte livre Bi0 tal que B1 Bi0 ; : : : ; Bn Bi0 e daí os elementos v1 ; : : : ; vn pertencerem todos a Bi0 ; ora Bi0 é livre pelo que a combinação linear acima escrita só é possível se se tiver 1 = 0; : : : ; n = 0 e conclui-se assim que R é livre. O teorema …ca então demonstrado. Enunciaremos e demonstraremos a seguir outro teorema fundamental, devido a Steinitz (1910). Teorema da dimensão …nita (Steinitz) Num espaço vectorial com uma base …nita, qualquer outra base é …nita e tem o mesmo número de elementos. A demonstração baseia-se no seguinte lema que demonstraremos mais adiante: Lema. Seja V um espaço vectorial sobre um corpo comutativo K e B uma base com n elementos; então para que m elementos possam ser linearmente independentes tem de ter-se: m n. Dem. do teorema. Seja B = fv1 ; : : : ; vn g uma base do espaço vectorial V ; e seja B0 uma outra base. 0 Se fosse card(B0 ) > n = card(B) poderíamos escolher n + 1 vectores v10 ; : : : ; vn+1 em 0 B mas em virtude do lema o seu conjunto não pode ser um conjunto de vectores linearmente independentes e portanto só pode ter-se card(B0 ) n = card(B) pelo que em particular a base B0 terá de ser …nita. Note-se porém que o mesmo argumento permitiria concluir que card(B) card(B0 ). Logo card(B) = card(B0 ). 8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-5 Dem do lema. Vamos proceder usando o método de indução sobre o número de elementos de uma dada base de V . Se n = 0, tem-se V = f0g e tomando m > n = 0 elementos u1 ; : : : ; um em V eles seriam necessariamente todos nulos e teríamos por exemplo 1u1 + 0u2 + : : : + 0um = 0, ou seja o conjunto fu1 ; : : : ; um g não seria livre. Suponhamos o enunciado do teorema estabelecido para o caso em que V tem uma base com n 1 elementos e tratemos de mostrar que então o o enunciado também será válido no caso em que V tem uma base fv1 ; : : : ; vn g com n elementos. Seja então V 0 o espaço gerado por v1 ; : : : ; vn 1 ou seja V 0 = hhv1 ; : : : ; vn 1 ii — sendo portanto fv1 ; : : : ; vn 1 g uma base de V 0 com n 1 elementos — e tomem-se m > n vectores u1 ; : : : ; um em V ; como v1 ; : : : ; vn geram V teremos u1 = 1 1 v1 um = 1 m v1 n 1 vn 1 1 + ::: + + n 1 m vn 1 + ::: + 1 vn + = w1 + m vn 1 vn = wm + m vn onde os vectores w1 ; : : : ; wm estão todos em V 0 . Se os escalares 1 ; : : : ; m fossem todos nulos teríamos que os elementos u1 ; : : : ; um estariam todos em V 0 e como m > n > n 1 poderíamos concluir pela hipótese de indução que esses elementos seriam linearmente dependentes. Resta pois analisar o caso em que algum dos escalares 1 ; : : : ; m não fosse nulo; podemos supor sem perda de generalidade que por exemplo m 6= 0. Como K é um corpo o elemento m é invertível e podemos escrever 1 m (um vn = e após substituição nas m 1 relações anteriores obtém-se u1 = w1 + um 1 1 m (um wm ) m 1 1 m (um 1 1 m um = w1 1 m 1 1 m um = wm u1 1 1 + = wm e daí: um wm ) 1 wm ) 1 m wm 1 1 m wm m 1 Vemos assim que os m 1 vectores do lado esquerdo estão todos em V 0 — pois assim sucede com os vectores w1 ; : : : ; wm . Ora V 0 tem uma base com n 1 elementos e pela hipótese de indução — como m > n > n 1 — podemos concluir que esses m vectores são linearmente dependentes, ou seja que há-de haver uma relação do tipo 1 (u1 1 com escalares 1; : : : ; 1 u1 + ::: + ou seja que, pondo nação linear nula m 1 m um ) m 1 + ::: + 1 m um ) m 1 =0 não todos nulos; ora esta relação equivale a m 1 um 1 = m 1 (um 1 ( 1 u1 1 1 1 m ( 1 1 m + ::: + + ::: + 1 + ::: + m 1 m 1 um 1 + m 1 m 1 m um m 1 1 m ) =0 1 m )um =0 obtivemos uma combi- 8a : aula (1h) — 12/10/2010 a ideia de coordenatização (2/2) 8-6 cujos coe…cientes não são todos nulos; quer dizer: os vectores u1 ; : : : ; um são linearmente dependentes, como se pretendia demonstrar. O teorema anterior permite associar a qualquer espaço vectorial V sobre um corpo comutativo K e com uma base …nita, um número natural chamado a sua dimensão e designado por dimK V ; o espaço vectorial V diz-se então de dimensão …nita; nesse caso, dimK V 2 N = f0; 1; 2; : : :g.