As princesas em obras infantis clássicas e contemporâneas
Elesa Vanessa Kaiser da Silva (UNIOESTE)1
Orientadora: Professora Dra. Clarice Lottermann (UNIOESTE)2
RESUMO: Levando em consideração a importância dos contos de fadas no processo de
formação do leitor, aspecto esse evidenciado por vários estudos, percebe-se que, através de
recontos, as crianças entram em contado com esse gênero que prevalece vivo ao longo dos
anos, já que foi um dos mais fecundos no imaginário popular. Tendo em vista que muitas
obras contemporâneas dialogam com as clássicas, pretende-se, neste estudo, investigar como
são representadas as princesas em obras clássicas e em obras contemporâneas, evidenciando a
construção da identidade feminina através das obras estudadas. Este trabalho se prenderá à
análise de dois contos da Literatura Infantil contemporânea: Até as princesas soltam pum
(2008) de Ilan Brenman e Uma, duas, três princesas (2013) de Ana Maria Machado. Busca-se
uma comparação em relação às princesas das obras de Perrault e dos Irmãos Grimm. Para
tanto, serão utilizadas, como base teórica, sobretudo, as obras Em busca dos contos perdidos:
os significados das funções femininas nos contos de Perrault (2000) de Mariza B. T. Mendes
e Conto e reconto: das fontes à invenção (2012) de Vera Teixeira de Aguiar e Alice Áurea
Penteado Martha (Org).
PALAVRAS-CHAVE: Contos de fada; princesas clássicas e contemporâneas.
RESUMEN GENERAL: Llevando en consideración la importancia de los cuentos de hadas
en el proceso de formación del lector, aspecto ese evidenciado por varios estudios, se percibe
que, a través de recuentos, los niños entran en contado con ese género que prevalece vivo al
largo de los años, ya que fue uno de los más fecundos en el imaginario popular. Con miras a
que muchas obras contemporáneas dialogan con las clásicas, se pretende, en este estudio,
investigar como son representadas las princesas en obras clásicas y en obras contemporáneas,
evidenciando la construcción de la identidad femenina a través de las obras estudiadas. Este
trabajo si prenderá al análisis de dos cuentos de la Literatura Infantil contemporánea: Até as
princesas soltam pum (2008) de Ilan Brenman y Uma, duas, três princesas (2013) de Ana
Maria Machado.Se busca una comparación em relación a las princesas de las obras de Perrault
y de los Irmãos Grimm. Para tanto, serán utilizadas, como base teórica, sobre todo las obras
Em busca dos contos perdidos: os significados das funções femininas nos contos de Perrault
(2000) de Mariza B. T. Mendes y Conto e reconto: das fontes à invenção (2012) de Vera
Teixeira de Aguiar e Alice Áurea Penteado Martha (Org).
PALABRAS-CLAVE: Cuentos de hada; princesas clásicas y contemporáneas.
INTRODUÇÃO
1
Aluna regular de Pós-graduação strictu sensu em Letras, nível de Mestrado da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná -UNIOESTE- campus de Cascavel. Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e
Interfaces Sociais: Estudos Comparados.
2
Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná- UNIOESTE, câmpus de Marechal Cândido
Rondon.
Vários estudos evidenciam a importância dos contos de fada para a vida das crianças.
Através da obra A psicanálise dos contos de fadas (1980), de Bruno Bettelheim, é possível
identificar as inúmeras contribuições ofertadas a partir da leitura dos mesmos, pois, conforme
o psicanalista, “Os contos de fadas são ímpares, não só como uma forma de literatura, mas
como obras de arte integralmente compreensíveis para a criança, como nenhuma outra forma
de arte o é” (BETTELHEIM,1980, p.21).
Neste estudo apresenta-se uma análise comparativa entre personagens princesas em
obras literárias clássicas (contos de fada) e obras contemporâneas (recontos), evidenciando
como tais personagens são representadas em relação à identidade feminina.
Através da leitura de contos de fadas é possível observar que as personagens
mulheres desempenham importantes papéis; a bondade e maldade são apresentadas através de
fadas, princesas e bruxas. Assim, o objetivo deste estudo é analisar como as princesas estão
sendo retratadas nos contos contemporâneos, já que na maioria das histórias percebe-se a forte
presença de personagens mulheres, que tradicionalmente apresentam-se como belas, espertas,
mágicas e até más e invejosas.
Nesse sentido, o presente artigo apresenta um estudo referente aos recontos,
destacando a contribuição dos mesmos para a formação de novos leitores e a produção
destinada ao público infantil. Para embasamento teórico, foram consultadas obras de Mendes
(2000), Aguiar e Martha (2012), Sant’Anna (1937), Bakhtin (2002), entre outros.
CONTOS E RECONTOS
Embora os contos de fadas não tenham sido criados pensando no público infantil, tais
contos objetivavam transmitir um ensinamento, com um final moralizante em cada história.
Com o passar dos anos, os contos foram recebendo novas roupagens, novos desfechos e
passaram a ser direcionados às crianças, mas sem perder a característica dos ensinamentos.
O sucesso da repercussão dos contos de fadas pode ser comprovado a partir das
inúmeras edições, tanto dos clássicos como de releituras dos mesmos. E assim esse gênero se
mantêm vivo ao longo dos anos. De acordo com Olmi (2008), em Renovando a tradição pelos
caminhos da intertextualidade:
De qualquer maneira, o conto de fadas não é apenas uma fonte privilegiada
de estudos, mas também um ponto de partida para ulteriores reflexões, para
cada vez mais novos tipos de “contos” que invadem nossa literatura e
procuram penetrar, de forma cada mais convincente, na mente do leitor, seja
ele criança ou adulto. (OLMI,2008, p.08)
Os recontos ocupam um espaço significativo na produção literária destinada ao
público infantil. De acordo com Ribeiro (2012), em O Reconto dos contos da oralidade:
permanências e mudanças no gênero:
A partir dessas compilações e interferências entre tradição oral e literatura
escrita tornaram-se numerosas; contudo, conseguir determinar em que
medida essa influência se fez sentir é tarefa impraticável. As histórias
repetem-se e se revestem, ao longo do tempo, com novas roupagens,
mantendo duas características intrínsecas: a ficcionalidade e a oralidade.
(RIBEIRO, 2012, p. 217)
Da mesma forma, tornaram-se enredo inspirador para inúmeros filmes e desenhos
animados. Quanto a definição do termo recontar, Silva (2012), em Sobre os contos e recontos,
afirma que:
Se, como sugere o prefixo reduplicativo, recontar é contar de novo, podemos
incluir nesse processo um leque muito amplo de produtos obtidos com base
em textos anteriores. Recontar histórias pode tanto constituir uma atividade
oral – uma modalidade de jogo dramático -, como uma elaboração escrita,
processo de que resulta um texto para ser lido. (SILVA, 2012, p. 13)
Observando e lendo textos endereçados para crianças, é possível concluir que os
recontos estão muito presentes na Literatura Infantil contemporânea. Em tal contexto, destacase a importância da criança e/ou leitor conhecer antecipadamente os contos clássicos, para que
posteriormente, a leitura dos contos contemporâneos tenha maior sentido. O mesmo será
necessário quando se trata de uma produção parodística, pois somente com conhecimentos
prévios a respeito dos clássicos é que a paródia surtirá efeito.
De acordo com Bettelheim (1980, p.50),“o conto de fadas oferece materiais de fantasia
que sugerem à criança sob forma simbólica o significado de toda batalha para conseguir uma
auto-realização, e garante um final feliz”. Em outras palavras, a leitura permite que a criança
se identifique com os personagens, vivencie as mesmas aventuras e comemore a vitória ao
final da história.
Embora, aparentemente, as narrativas clássicas abordem temas distantes das crianças
contemporâneas, através de uma linguagem carregada de símbolos, permitem ao leitor uma
vivencia de experiências. Azevedo (2012)3 destaca que:
O livro é um lugar de papel e dentro dele existe sempre uma paisagem. O
leitor abre o livro, vai lendo, lendo e, quando vê, já está mergulhado na
paisagem. Pensando bem, ler é como viajar para outro universo sem sair de
casa. Caminhando dentro do livro, o leitor vai conhecer personagens e
lugares, participar de aventuras, desvendar segredos, ficar encantado, entrar
em contato com opiniões diferentes das suas, sentir medo, acreditar em
sonhos, chorar, dar gargalhadas, querer fugir e, às vezes, até sentir vontade
de dar um beijinho na princesa. Tudo é mentira. Ao mesmo tempo, tudo é
verdade, tanto que após a viagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se
tiver sorte, pode ficar compreendendo um pouco melhor sua própria vida, as
outras pessoas e as coisas do mundo. (AZEVEDO, 2012)
Dessa forma, são claras as contribuições aos leitores, pois “O conto de fadas é um
estímulo encorajador na luta da vida, em que se valorizam os princípios éticos na relação com
o outro: o mal é denunciado e o bem é valorizado.” (VIEIRA, 2005, p.11).
A PARÓDIA NOS RECONTOS
Sant’Anna (1937, p. 05), em Paródia, Paráfrase & Cia,destaca que a paródia só pode
ser estudada se, no mínimo, a estudarmos ao lado não só da estilização, mas também da
paráfrase e da apropriação. Nesse sentido o autor propõe um estudo acerca do tema,
evidenciando que a paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais
presente nas obras contemporâneas, no entanto, não se trata de uma invenção recente.
Levando em consideração a repercussão dos contos de fadas, Machado (2002), em
Como e porque ler os clássicos universais desde cedo, aborda sobre a produção parodística
em relação ao gênero: “Como esses contos tradicionais são os clássicos infantis mais
difundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar o olho para o leitor,
porque ele conhece o universo de que estamos falando” (MACHADO, 2002, p 81).
Nesse sentido, a escritora ainda destaca que “Fica possível, então, fazer paródias aos
contos de fadas e brincar com esse repertório, aprofundando uma visão crítica do mundo a
partir de pouquíssimos elementos” (MACHADO, 2002, p 81-82)
Em relação à recepção do leitor, conforme Sant’Anna (1937, p. 26): “os conceitos de
paródia, paráfrase e estilização são relativos ao leitor. Isto é: depende do receptor”. Sendo
3
Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/ricardo-azevedo/
assim, ainda conforme o autor, estilização, paráfrase e paródia são recursos percebidos por um
leitor mais informado, ou seja, é preciso um repertório ou memória cultural e literária para
perceber e compreender os textos superpostos.
Da mesma forma, Machado (2002) afirma que:
Mas para que esse jogo literário possa funcionar plenamente, para que o
humor seja entendido e a sátira seja eficiente, é indispensável que o leitor
localize as alusões feitas, identifique o contexto a que elas se referem e seja,
então, capaz de perceber o que está fora de lugar na nova versão. É como
uma brincadeira. Não dá para brincar de “pequeno construtor” com quem
nunca viu uma casa. Ou seja, nem que seja apenas para poder entender tanta
coisa boa que vem sendo escrita hoje em dia a partir de uma reinvenção
desse gênero, os contos de faz continuam sendo um manancial inesgotável e
fundamental de clássicos literários para os jovens leitores. Não saíram de
moda, não. Continuam a ter muito o que dizer a cada geração, porque falam
de verdades profundas, inerentes ao ser humano. (MACHADO, 2002, p 8182)
No contexto da Literatura Infantil, é possível observar que a utilização da paródia é
frequente. Dessa forma, a leitura de um reconto provoca o efeito cômico a partir do momento
que transforma o esperado em algo inusitado. Tratando-se dos contos de fadas, o leitor que
conhece os clássicos, observará um novo desfecho nas narrativas contemporâneas.
AS PRINCESAS NOS CONTOS DE FADAS CLÁSSICOS E NOS RECONTOS
CONTEMPORÂNEOS
Através da leitura dos contos de fadas clássicos é possível perceber que a
representação das princesas (tais como Cinderela, Branca de Neve e Bela Adormecida) é
marcada por algumas características que acentuam a sua beleza e fragilidade. Além de serem
bonitas, dóceis e amáveis, são ingênuas e desprotegidas dos perigos mundanos. Ao final do
conto, a princesa é encontrada ou salva por um príncipe, e este se apaixona por sua beleza. O
desfecho envolve, quase sempre, um casamento e, desta forma, as personagens vivem “felizes
para sempre”.
Em Cinderela (GRIMM; GRIMM, 2000, p. 28) a princesa: “se sentou em um
tamborete, tirou de pé o tamanco e calçou o sapatinho dourado, com maior facilidade. E,
quando ela se levantou, e o príncipe encarou-a, reconheceu a linda moça que dançara com
ele.” Com Branca de Neve não é diferente, sua beleza é tamanha que chega a provocar a
inveja da madrasta, que deseja a morte da princesa. Os personagens anões, quando a
encontram, ressaltam a beleza da mesma: “Meu Deus do céu, que menina linda!” (GRIMM;
GRIMM, 2000, p. 360). Mesmo sendo tomada por morta, chama a atenção de um príncipe
que se diz encantado por sua beleza: “-Deixar-me levar o caixão, que vos darei em troca o que
quiserdes”. Apaixonado, confessa não poder mais viver sem ela.
Em A Bela Adormecida (GRIMM; GRIMM, 2000, p. 252), observa-se que novamente
um príncipe encanta-se pela beleza da princesa: “chegou à torre e abriu a porta do quarto onde
se encontrava a Bela Adormecida. Tão bela, que ele não pôde dela afastar os olhos por um
segundo, e curvando-se, beijou-a”.
Mendes (2000) afirma que, nos contos de Perrault, destaca-se de forma marcante a
feminilidade da mulher, representada em elementos como a beleza, a ingenuidade, a doçura e
até curiosidade, que lhe rende alguns castigos. Para a autora “A beleza era o maior ‘estigma’
da feminilidade, se a mulher não fosse bela, não seria feminina” (MENDES, 2000, p. 130).
Nesse sentido, observa-se que os príncipes resgatam as princesas somente após terem
se encantado com a sua beleza. E assim acontecia o casamento.Conforme Massuia e Ribeiro
(2012), em O papel das mulheres nos contos de fadas:
Com a ascensão da burguesia, esta passou a dedicar um tratamento especial
para as crianças, foi nessa época que surgiu a literatura infantil. Para isso
foram adaptados diversos contos destinados aos adultos, para as crianças. Os
contos eram cheios de moral e exemplos de comportamentos corretos, as
moças sempre pacientes, belas e doces, e todos os maus comportamentos
eram castigados. (MASSUIA e RIBEIRO 2012, p. 01).4
Ainda de acordo com Massuia e Ribeiro (2012, p. 01), “Além disso, a burguesia via
nos contos uma forma de ajudar o povo a se conformar com a realidade dura em que viviam, e
com as fadas, que transformavam magicamente a realidade, o povo poderia ter um pouco de
sonhos, junto ao conformismo”.
Conforme Machado (2002) em Como e porque ler os clássicos desde cedo:
Entendidas e aceitas em sua linguagem simbólica, essas histórias de fadas
tradicionais se revelam um precioso acervo de experiências emocionais, de
contatos com vidas diferentes e de reiteração da confiança em si mesmo. No
final o pequenino se dá bem e o fraco vence. A criança pode ficar tranquila –
com ela há de acontecer o mesmo. Um depois do outro, esses contos vão
garantindo que o processo de amadurecimento existe, que é possível ter
esperança em dias melhores e confiar no futuro. (MACHADO, 2002, p. 80)
Já Maíra Bastos dos Santos (2008), em O processo de transposição de valores do
conto clássico para o contemporâneo em relação à idealização da mulher, afirma que:
4
Disponível em: http://www.artigosonline.com.br/o-papel-das-mulheres-nos-contos-de-fadas/.
Para tanto se faz necessário conhecer alguns aspectos das heroínas desses
contos de fadas. Dotadas de uma beleza excepcional, todas elas são plenas
de alegria, apesar das adversidades, doçura diante da crueldade do mundo,
aceitação aos desígnios do destino e, acima de tudo, completa devoção e
submissão aos destemidos príncipes, que também são dotados de grandes
virtudes. Essas características das personagens, especialmente as femininas,
remetem à leitura de um contexto romântico cristão, no qual as histórias
expõem os atributos consagrados pela sociedade e servem como modelos a
ser seguidos. A idealização da mulher também está relacionada à ideia de
amor cortês e a separação de papéis sociais entre homem e mulher.
(SANTOS, 2008, p. 01)
Tais representações sofrem uma ruptura em obras literárias contemporâneas tais
como Até as princesas soltam pum (2008) de Ilan Brenman e Uma, duas, três princesas
(2013) de Ana Maria Machado. Nessas obras, apresentam-se as personagens femininas com
atitudes, comportamentos e aparências totalmente opostas em relação às clássicas (belas,
dóceis, ingênuas, desprotegidas, submissas ao homem).
De acordo com Fortes (1996, p. 35), em De objeto a sujeito, Chapeuzinho muda de
cor ,“A nova identidade sócio-sexual é tema recorrente na literatura do final do século XIX e
no XX. Com a nova perspectiva de mundo surgem obras que reavaliam o masculino x
feminino e sua integração na construção de novos papéis sociais”. Assim, dentro dessa nova
perspectiva do feminino é que Ana Maria Machado e Ilan Brenman retratam princesas sob
olhares diferentes em relação à identidade feminina dos três últimos séculos.
A criação parodística permite esse regate dos contos clássicos e ao mesmo tempo
uma inovação em relação às possibilidades de novos caminhos a serem seguidos pelas
personagens que sobrevivem através dos contos de fada.
Em Até as princesas soltam pum (2008), Brenman aborda uma questão em relação às
princesas que, a princípio, provoca certo estranhamento no leitor: ao afirmar, desde o título,
que as princesas também soltam pum, chama atenção para algo inusitado: personagens
princesas são tratadas como pessoas “normais”. No conto, Laura, uma garotinha curiosa
como as demais crianças, interroga seu pai a respeito do tema que gerou discussão entre seus
amigos. A menina fica intrigada em relação à questão levantada na escola, por seus colegas,
sendo que um chegou a afirmar que “Cinderela é uma peidona!”; as meninas, por sua vez,
discordam, não aceitam macular a imagem das princesas.
Com uma versão oposta em relação às histórias clássicas, nessa narrativa, o
personagem pai recorre a “O livro secreto das princesas”, e conta à filha sobre os “problemas
gastrointestinais e flatulências das mais encantadoras princesas do mundo”. Assim, algumas
das mais conhecidas princesas dos contos de fadas são resgatadas, porém, com algumas
características constrangedoras em comum.
A Cinderela, nesse conto, havia comido duas barras de chocolate que a madrasta
guardara na despensa; no momento do baile soltou um pum, após o príncipe, na hora da
dança, ter apertado muito a sua cintura: “e soltou um pum bem no instante em que o relógio
avisou que era meia noite”. (BREMMAN, 2008, p. 16)
Branca de Neve sentia-se estufada com a comida dos anões, que era gordurosa e
cheia de colesterol. Antes mesmo de provar a maçã envenenada pela madrasta, “Branca soltou
um pum tão fedorento, que chegava a ser tóxico” (p. 19). A personagem foi colocada em um
caixão de vidro para não sentirem o cheiro: “Aqui no meu livro diz que, no dia em que o
príncipe passou e viu o caixão de vidro, ele estava com uma gripe danada, o nariz todo
entupido” (p. 21).
A Pequena Sereia era a princesa que mais conseguia disfarçar seus problemas
gástricos, pois “Quando dava aquela vontadezinha... Era só pular na água, e quando
apareciam as bolhas... Ela dizia que eram as algas que estavam arrotando” (p. 23).
Um aspecto importante está relacionado às princesas, que nesse conto, saem do plano
da nobreza, vistas como divinizadas, e aparecem no plano popular, mais humanizadas, mais
reais; tanto que o próprio título já afirma que “até” elas soltam pum.
De maneira similar, o conto Uma, duas, três princesas (2013) de Ana Maria Machado,
apresenta três princesas que são irmãs, no entanto, a história está ambientada de acordo com o
cenário atual, pois apresenta elementos típicos de nossa época, tais como: computador, tablet,
Internet, carro, laboratório, televisão, entre outros. Esse deslocamento no tempo já remete a
outra visão de sociedade.
Elementos dos contos de fadas, como príncipes, princesas, sapo, Lobo, entre outros,
são recuperados parodicamente, através de uma inversão dos fatos, provocando a situações
cômicas.
O reino todo queria um herdeiro para o trono, um príncipe. E só nascia
princesa. Num lugar e num reino em que mulher não podia governar. Era
uma vez um rei e uma rainha que tinham três filhas? Pode ser. Uma, duas,
três princesas. (MACHADO, 2013, p. 04)
O reconto apresenta novas características de princesas, em relação aos estereótipos
físicos das princesas dos contos clássicos. Estas, na obra de Ana Maria Machado, são
morenas.
Quando nasceu a terceira, o rei disse para a rainha:
- O que é que a gente faz agora, minha majestade querida?
Ela olhou a nova princesinha linda, moreninha com olhos de jabuticaba, e
sorriu. Depois viu as irmãs dela todas felizes com a neném recém-nascida.
Também moreninhas, de cabeço cacheado.
Uma com olhos que pareciam azeitona preta, outra com olhos que
lembravam avelãs. As duas sorriam de volta para ela.
A rainha sorriu mais ainda e respondeu ao rei:
- Agora, meu querido, só temos um jeito.
-Qual?
-Vamos ser modernos e acabar com essa história de príncipe herdeiro.
(MACHADO, 2013,p. 06)
No decorrer da narrativa, uma princesa por vez, é enviada para viajar em busca de
algum remédio que salvasse o rei que adoecera. A partir disso, a história passa a citar os
personagens de contos de fadas, que são encontrados pelas princesas. Estas, ao interagirem
com as personagens de contos clássicos, acabam adulterando os desfechos clássicos das
histórias. A irmã mais nova cria a maior confusão ao aconselhar aos que encontra:
Saiu dali, esbarrou numa velha horrorosa que vendia maçãs. Quebrou um
espelho mágico que ela levava e acabou para sempre com a história dela.
Num dia em que estava com fome, encontrou uma abóbora enorme. Fez uma
bela sopa numa fogueira. E nunca mais Cinderela pôde ir ao baile.Ainda
bem. Porque pouco antes a princesa caçula já tinha trocado o sapatinho de
cristal por um pé de bota e agora o príncipe andava procurando um gato que
sabia caçar até não poder mais. E lhe trazia presentes em nome do Marquês
de Carabás. (MACHADO, 2013, p.31)
Cada uma das três princesas, com suas particularidades, busca a melhor solução para o
problema da doença do rei. Porém, somente a mais velha consegue. O leitor que está
habituado às descrições clássicas, passa a conhecer uma outra visão em relação as
personagens princesas, pois até o final da história tem um desfecho surpreendente:
O rei e a irmã do meio ficaram bons.
A caçula foi para a escola.
E a mais velha?
Viveu feliz para sempre? Quase.
Mas ficou para sempre livre da obrigação de seguir tudo igualzinho a como
já estava escrito. E de fazer tudo repetido.
Por isso viveu feliz às vezes.
Como todo mundo, teve dias de riso e dias de choradeira.
Mas ficou para sempre curiosa e inventadeira. (MACHADO, 2013, p. 39)
A partir dessas considerações, é possível observar a inversão de imagens
estereotipadas pelos contos tradicionais, pois, nas obras contemporâneas, as princesas
apresentam-se, além de belas, independentes, capazes de enfrentarem desafios (no caso da
obra de Ana Maria Machado) e também podem ser representadas como mais humanizadas,
chegando a terem comum problemas gastrointestinais (como na obra de Brenman).
Nota-se, através dos contos estudados, a comicidade na Literatura Infantil. Nesse
sentido, vale destacar o estudo de Bakhtin (2002) sobre Rabelais e a história do riso, que trata
sobre a “carnavalização na literatura”. O autor apresenta uma teoria inovadora da cultura
cômica popular na Idade Média e no Renascimento. Os ritos e espetáculos passaram a ser
considerados uma segunda vida da cultura popular, ou seja, uma paródia da vida segundo a
ordem estabelecida.
Segundo Bakhtin (2002):
O riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas
capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade,
sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e universal
sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos
importante (talvez mais) do que o sério; por isso a grande literatura (que
coloca por outro lado problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma
que ao sério: somente o riso; com efeito, pode ter acesso a certos aspectos
extremamente importantes do mundo. (BAKHTIN, 2002, p. 57)
No que se refere aos recontos citados, vale ressaltar que o conhecimento dos contos
clássicos pode ser considerado um “ingrediente” fundamental para que a paródia obtenha o
efeito proposto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As princesas continuam belas, porém os contos contemporâneos apresentam
características que vão além da beleza: as personagens enfrentam desafios e passam por
situações constrangedoras. Assim, as narrativas contestam os estereótipos, criam imagens
diferentes em relação às personagens clássicas.
Através do estudo de contos de Perrault e Irmãos Grimm, foi possível evidenciar que,
em obras infantis clássicas, as princesas são dotadas de beleza, além de serem frágeis e
submissas aos príncipes. O desfecho dos contos sempre aponta, quase sempre, para um
casamento que garante um final “feliz para sempre”.
Nesse sentido, observa-se que, nos contos de Perrault, o afastamento masculino gera
questões desastrosas, ou seja, era fundamental a proteção da família para com as mulheres e
crianças (deveriam ser protegidas dos perigos mundanos). Pode ser considerado, como
exemplo de tal situação, o momento em que Branca de Neve e A Bela Adormecida ficam
sozinhas. Assim, as princesas eram salvas por um Herói (príncipe), embora com ajuda de
fadas. Constata-se que será sempre um personagem masculino que chegará para resgatar ou
apenas garantir um final feliz através do casamento.
Já em obras infantis contemporâneas, é possível destacar que o enredo está inserido no
contexto atual. Os autores criaram novas roupagens, questionando os estereótipos de
princesas. Independentes, corajosas, loiras ou morenas, com problemas gastrointestinais ou
não, elas estão presentes na Literatura Infantil atual, e continuam sendo “as princesas mais
lindas do mundo”. Tendo como base o conto Uma, duas, três princesas, nota-se que as três
irmãs é que saem em busca de uma solução para curar o Rei.
Cabe ressaltar a importância dos recontos para o resgate dos contos de fadas clássicos,
pois é quase imprescindível que o leitor tenha uma leitura prévia dos contos tradicionais para
construir sentidos ao ler as obras contemporâneas. De acordo com Machado (2002, p. 111112) os contos de fadas não são apenas “livrinhos para as crianças”, dispostos a dar alguma
lição e, eventualmente, divertir. Como qualquer obra de literatura, tem tudo para agradar ao
leitor mais sofisticado e exigente. Por isso, se tornaram grandes clássicos.
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Disponível
Acesso em 15 nov. 2013.
em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rev_crian_38.pdf>.
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